Resumo: Este trabalho é conduzido por um estudo de caso realizado após o ataque a uma creche no Brasil, em 2023, e se propõe a responder a como a cobertura jornalística pode contribuir no combate a esses crimes. A análise sobre o comportamento de veículos noticiosos perante atentados em ambientes escolares busca apontar os acertos e desacertos na cobertura e identificar soluções para o exercício de um jornalismo contemporâneo que não promova o medo e, tampouco, alce os autores dos massacres à fama. Após a catalogação de 96 matérias nas 24 horas seguintes ao atentado, e o diálogo com pesquisas acerca do papel da mídia no impulsionamento de crimes, esta pesquisa indica que a imprensa brasileira ainda peca pela superexposição de vítimas e criminosos, mas avança no tratamento das informações e propõe caminhos de mudança.
Palavras-chave: Massacres,Cobertura,Jornais,Sensacionalismo,Ética.
Abstract: This paper is based on a case study conducted following the attack on a daycare center in Brazil in 2023, and aims to answer how journalistic coverage can contribute to combating such crimes. The analysis of news outlets' behavior in response to attacks in school environments seeks to highlight successes and failures in coverage and identify solutions for practicing contemporary journalism that does not promote fear, nor elevate the perpetrators of massacres to fame. After cataloging 96 news stories in the 24 hours following the attack and engaging with research on the media's role in driving crimes, this study suggests that the Brazilian press still falters in its overexposure of victims and criminals, but has made progress in how information is handled and proposes paths for change.
Keywords: Massacres, Media Coverage, Newspapers, Sensationalism, Ethics.
Resumen: Este trabajo se basa en un estudio de caso realizado después del ataque a una guardería en Brasil en 2023 y tiene como objetivo responder cómo la cobertura periodística puede contribuir a la lucha contra estos crímenes. El análisis sobre el comportamiento de los medios de comunicación frente a atentados en entornos escolares busca resaltar los aciertos y desaciertos en la cobertura e identificar soluciones para ejercer un periodismo contemporáneo que no promueva el miedo ni eleve a los perpetradores de masacres a la fama. Tras catalogar 96 noticias en las 24 horas siguientes al atentado y dialogar con investigaciones sobre el papel de los medios en la incitación de crímenes, este estudio indica que la prensa brasileña aún comete errores por la sobreexposición de víctimas y criminales, pero avanza en el tratamiento de la información y propone caminos para el cambio.
Palabras clave: Masacres, Cobertura, Periódicos, Sensacionalismo, Ética.
Secção Temática/Thematic Section/Sección Temática. Artigos/Articles/Artículos
O Terror Publicizado: Uma Discussão Sobre Como o Jornalismo Pode (e Deve) se Livrar da Prática da Espetacularização do Horror
The Publicized Terror: A Discussion on How Journalism Can (and Should) Abandon the Practice of Spectacularizing Horror
El Terror Publicitado: Una Discusión Sobre Cómo el Periodismo Puede (y Debe) Desprenderse de la Práctica de Espectacularizar el Horror
Recepção: 10 Junho 2024
Aprovação: 27 Novembro 2024
Publicado: 17 Dezembro 2024
Embora não seja rara — e tentadora — a utilização do artifício de estabelecer uma linha imaginária entre o “bom” e o “mau” jornalismo, muitas vezes materializando a crítica na divisão entre veículos de imprensa ditos sérios versus os sensacionalistas, uma simples observação de coberturas midiáticas de casos de muita repercussão pode pôr por terra esse traço demarcatório. Destacadamente, quando se trata da produção jornalística recente acerca de massacres, a publicização do horror é encontrada em ambos os polos. O desrespeito à dignidade humana suplantado pelo afã da audiência pode assentar “bons” e “maus” veículos no mesmíssimo patamar.
Neste estudo, produzido após o ataque a uma creche localizada na cidade brasileira de Blumenau, no Estado de Santa Catarina, sul do Brasil, no dia 5 de abril de 2023, deixando quatro crianças pequenas mortas e outras cinco feridas (Borges & Pacheco, 2023), propõe-se uma discussão sobre o modo como a imprensa brasileira tem se dedicado a essas coberturas. Além de apontar os caminhos percorridos pelo jornalismo ao reportar ataques em massa, objetiva-se identificar e apontar, ancorado no lastro da ética jornalística e dos preceitos recentes sobre boas práticas de cobertura de temas sensíveis, saídas factíveis para o exercício de um jornalismo que efetivamente respeite e promova os direitos humanos. Para tal, recorre-se à análise comparativa do comportamento dos veículos Folha de S. Paulo e G1 na cobertura do massacre numa escola em Suzano, em 2019, e o comportamento na cobertura do atentado em Santa Catarina.
Sobre a maneira como o jornalismo brasileiro cobre temas que suscitam sensibilidades, embora certamente apresente variantes evidentes a depender do tempo histórico e do veículo, não se pode apontar uma evolução, no sentido de estarmos, hoje, necessariamente em patamares de maior cuidado com o tipo de informação que produzimos. Se, atualmente, é considerado anacrônico e inadmissível o que um grupo considerável de jornalistas e veículos fez na cobertura do clássico caso da notícia falsa sobre pedofilia alardeada pela imprensa brasileira em 1994, a da Escola Base (Barbosa, 2014), não se pode esquecer que em 2008 — portanto, há apenas pouco mais de uma década —, assistiu-se ao vivo à deterioração da ética jornalística, do bom senso e da humanidade com uma apresentadora entrevistando um sequestrador e a vítima de sequestro no ar, bloqueando a linha telefônica utilizada pela polícia (Negrini, 2010).
Decerto, a exploração das misérias humanas pela imprensa tem ecos distantes. O uso de ilustrações, por exemplo, para reforçar o conteúdo de matérias acerca de crimes e acidentes fazia parte do modus operandi de jornais brasileiros que circularam no século XIX — anteriores, portanto, ao advento da utilização da fotografia nos periódicos, que só viria a se tornar tecnicamente possível em princípios do século XX (Freund, 1986). Se esses diários não abusavam do recurso, também não se furtavam a fazê-lo, destacadamente para extermar o sentimento de indignação ante barbaridades. Encontramos um exemplo em 1900, no Jornal do Brasil (RJ), que traz uma denúncia bastante enfática sobre violência doméstica infantil. O jornal apresenta um desenho executado em bico de pena utilizado como ilustração explícita de maus-tratos contra uma criança (“Perversidade”, 1900).
Mas não é preciso ir tão longe para encontrar marcas da espetacularização midiática. Parte indissociável da rotina dos jornais impressos brasileiros nas décadas de 1980 e 1990, os “cineminhas” (ilustrações criadas na editoria de arte dos veículos, uma espécie de storyboard com o quadro a quadro de um crime ou acidente) eram completamente normalizados na produção de matérias de maior destaque, raramente sendo alvo de questionamentos de ordem ética. No máximo, críticas em relação a estética ou verossimilhança (Mitchel, 2018). O estranhamento ante a visão desses recursos visuais aparecia com mais frequência quando exemplares contendo essas imagens chegavam em determinadas “praças” jornalísticas estrangeiras, cujas práticas correntes já não davam espaço para essa espetacularização e banalização da violência.
Quase que completamente abolido dos jornais impressos brasileiros contemporâneos por trazer marcas evidentes da banalização da violência, o “cineminha” foi sendo paulatinamente substituído pela infografia, mais utilizada para facilitar a compreensão de fatos e temas de maior complexidade. No entanto, ao nos voltarmos para a cobertura do atentado em Suzano/SP[1], em 2019, podemos observar que mesmo esse recurso recente do jornalismo visual segue dando mostras de que traveste a intenção do sensacional com a roupagem de contemporâneo. Importante ressaltar que há pelo menos duas décadas os jornalistas brasileiros estão sob vigência de um código de ética profissional[2] que veta, em seu artigo 11, alínea 2, a divulgação de informações “de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes” (Federação Nacional dos Jornalistas, 2007, para. 4).
A respeito do nível de exposição do horror na cobertura de massacres, em estudo de caso (Dourado, 2019) realizado com análise da cobertura das notícias publicadas no período de 24 horas após o ataque à escola Professor Raul Brasil, em Suzano/SP, pela Folha de S. Paulo online e pelo G1, a pesquisadora chegou aos seguintes números: 20 matérias publicadas pela Folha de S. Paulo e 17 notícias pelo G1, num espaço de apenas um dia. Em relação ao destaque dado aos atiradores, a dimensão é estarrecedora: 96 menções ao atirador 1 e 53 ao atirador 2. Para Dourado (2019), ambos os veículos fizeram detalhamentos extremos, que incluíam, por exemplo, o passo a passo dos atiradores, as roupas que vestiam, as armas utilizadas e onde as haviam comprado.
O nível de exposição foi excessivo, a ponto de os jornais terem produzido infográficos de reconstituição do ataque, mostrando cada movimentação da dupla, a cronologia do atentado, com informações até sobre a ordem em que os atiradores feriram as vítimas (Dourado, 2019). Ao se debruçar sobre o conteúdo, à luz da ética jornalística e da legislação brasileira, pontuou a autora que na cobertura do ataque de Suzano foi constatada a prevalência de uma abordagem alarmista, por vezes até sensacionalista, associada à estigmatização dos autores do atentado, além de uma atitude descuidada quanto à transmissão da mensagem ao público (Dourado, 2019).
De modo a dimensionar o comportamento da imprensa nos dois últimos casos de ataques em massa de maior repercussão no Brasil, e identificar tanto possíveis recorrências quanto mudanças de modos de atuação, reuniram-se inicialmente matérias publicadas pela Folha de S. Paulo online[3] e pelo portal G1[4] — maiores em índice de audiência no Brasil — ao longo das 24 horas seguintes à primeira publicação a respeito do crime na creche de Blumenau. O objetivo era: (1) identificar o tipo de cobertura realizada pelos dois veículos; (2) comparar quantitativamente com as matérias produzidas em 2019, no ataque em Suzano (com dados da pesquisa de Dourado, 2019); (3) evidenciar as permanências e alterações na cobertura e (4) indicar caminhos, sob o lastro da ética e com base em boas práticas, para uma cobertura de casos sensíveis realmente voltada ao interesse público.
Para realizar a análise comparativa, elencamos as seguintes variantes: (a) quantidade de matérias; (b) quantidade e tipo de menção aos criminosos; (c) modo de uso de recursos imagéticos; (d) nível de exposição das vítimas e detalhamentos excessivos do crime.
Para este artigo, foi lançada como ferramenta metodológica a análise qualitativa com base em fontes documentais — dois veículos de imprensa —, tendo como justificativa amostral os dados de audiência mencionados anteriormente. A construção desse corpus obedeceu à lógica da relevância, foco temático único, homogeneidade (textos da mesma natureza; no caso, imprensa online) e sincronia (Bauer & Gaskell, 2002). O recorte temporal adotado foi o de analisar as publicações veiculadas ao longo das 24 horas após o crime.
Foram analisadas 96 matérias veiculadas na Folha de S. Paulo online e no G1, durante as 24 horas seguintes ao atentado. Num efeito comparativo, em 2019, o número de textos relativos ao ataque em Suzano foi de 31 no total, inferior à cobertura atual, somando as publicações de ambos os veículos (Dourado, 2019). O critério utilizado para este levantamento foi a busca por palavras-chave relacionadas ao tema (“atentado”, “Blumenau” e “creche”), perfazendo o intervalo entre as 10h do dia 5 de abril de 2023 e as 10h de 6 de abril de 2023.
Dentre as notícias que fazem parte do corpus desta análise, foram 22 da Folha de S. Paulo e 74 do G1 (Figura 1). A diferença no quantitativo se explica pelo fato de o G1 reunir notícias de várias “praças” da Globo, entre afiliadas e centrais, além de trazer chamadas para telejornais da rede.
Apesar da quantidade substancial, o tom adotado pelas matérias elencadas foi o de sobriedade, especialmente quando comparadas ao teor sensacionalista imprimido pelos mesmos veículos em 2019, durante a cobertura da tragédia em Suzano. Ao contrário da postura anterior, em que ambas as empresas haviam divulgado a identidade dos dois criminosos 196 vezes, o nome do autor do atentado de Santa Catarina foi divulgado em apenas uma matéria da Folha de S. Paulo. O G1 não fez menção ao nome do criminoso em nenhum texto.
Em consonância ao Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros e, em especial, às orientações de especialistas acerca da cobertura jornalística de massacres em escolas (Avancini, 2023; Dourado, 2019; Jetter & Walker, 2018; Safernet, 2023; Towers et al, 2015), os referidos textos não deram destaque ao autor, optando por reportar a situação das vítimas, trazer relatos de familiares e repercutir com autoridades, além de se referirem ao criminoso com as seguintes expressões: “homem”, “assassino”, “criminoso”, “homem de 25 anos”, “autor do ataque”, entre outros equivalentes. Enquanto o G1 utilizou a palavra “assassino” na maioria das vezes, a Folha de S. Paulo optou por “um homem de 25 anos” (Figuras 2 e 3).
Embora o levantamento indique um aumento de quase 70% no número de notícias publicadas pelos dois veículos em 2023, em relação ao massacre ocorrido em 2019, o acréscimo não foi acompanhado de maior tratamento sensacionalista ao tema. Contrariamente ao enquadramento operado no ataque de Suzano, observa-se que os preceitos básicos da ética jornalística e do bom senso foram mais respeitados na cobertura atual.
Enquanto, em 2019, a cobertura foi na contramão das diretrizes contemporâneas — vide o excesso de exposição dos autores, o apelo imagético, os infográficos detalhando o modus operandi do crime e a exploração da dor das vítimas e familiares —, as matérias veiculadas durante as 24 horas após o ataque de Blumenau optaram por um maior comedimento.
Além da quase ausência da identidade do criminoso e de nenhum elemento visual que indicasse o passo a passo do crime, por exemplo, o enfoque trazido pelas notícias foi mais direcionado a: (1) reportar sobre as vítimas e familiares; (2) discorrer sobre o trabalho das autoridades e (3) trazer à discussão medidas de mitigação de novos ataques. Inclusive, uma das orientações da Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca) para a cobertura jornalística de crimes dessa natureza é justamente a da necessidade de adensamento das discussões, “ir além do relato do fato e da reconstituição dos perfis do agressor e das vítimas, ( ... ) acompanhar seus desdobramentos e as medidas tomadas pelo poder público em função do ocorrido” (Avancini, 2023, para. 15).
A análise deixou evidenciada uma maior preocupação em destacar as crianças e funcionários vitimados pelo ataque, bem como as famílias, em detrimento de detalhes sobre o atentado ou acerca do agressor. A medida encontra eco na nota técnica produzida e publicada pela Safernet — organização civil de combate a crimes digitais — logo após a ação criminosa, indicando que “mostrar nomes, materiais usados no planejamento dos ataques, site, grupos e fóruns de apologia à violência tem efeito tutorial e muito prejudicial” (Safernet, 2023, para. 5), e destacando que a exposição midiática acaba funcionando como uma espécie de prêmio a grupos que planejam ataques, formando “um círculo vicioso”.
A cobertura deu mostras de maior cuidado ao lidar com um tema tão sensível. É preciso destacar, contudo, que a atuação de ambos os veículos segue derrapando em dois quesitos considerados chave nas discussões contemporâneas acerca do papel da imprensa na cobertura de ataques em massa: (1) o excesso de publicações e (2) destaque à ação dos criminosos, ainda que de forma menos explícita e sem aludir à identidade. Em estudo já emblemático a respeito do efeito de contágio que pode ser acionado a partir da publicização midiática de assassinatos em massa e tiroteios em escolas, Towers et al. (2015) indicam que além de fatores externos, como questões ligadas a problemas de saúde mental e acesso facilitado a armas (em referência ao contexto dos Estados Unidos), “há ainda a possibilidade de que indivíduos sob estresse possam ter sido inspirados, consciente ou subconscientemente, a agir em impulsos previamente reprimidos pela exposição a detalhes de eventos similares” (p. 2).
Entre as notícias veiculadas pela Folha de S. Paulo online e G1 e que merecem relevo por se diferenciarem do caráter de morbidez preconizado como desvio de responsabilidade profissional pelo Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (Federação Nacional dos Jornalistas, 2007), ao qual aludimos anteriormente, e pelo fato de começarem a dar mostras de afastamento do caminho percorrido por ambos os veículos quatro anos antes, estão os exemplos detalhados a seguir.
O primeiro, a matéria intitulada “Memória Dele Vai Ser Honrada no Meu Coração, Diz Pai de Menino Morto em Creche de SC” (Martins, 2023), publicada poucas horas após a ação criminosa pela Folha de S. Paulo online, na editoria de Cotidiano, dá amplo destaque às vítimas e familiares, especialmente à criança indicada no título.
O texto é ancorado em entrevista concedida pelo pai do garoto, que conversou com jornalistas às portas da creche, e falou a respeito das memórias que iria guardar do filho. As imagens utilizadas para compor a matéria são do pai concedendo entrevista e um carrossel com sete fotografias que ilustram o local do crime, a chegada de autoridades, a movimentação de policiais nas cercanias, as homenagens feitas às vítimas e também registros do crime ocorrido na escola Raul Brasil, em Suzano, em 2019.
O intertítulo final — “O ATAQUE” —, porém, acaba resvalando para os mesmos desvios de conduta jornalística em coberturas de massacres, trazendo relevo à ação do assassino, conforme excerto abaixo:
vizinhos da escola se disseram impressionados com a rapidez com que o assassino entrou e saiu da escola sem ser visto.
“A gente pensou que uma criança tinha caído, se machucado. Mas aí [ouvimos] uma senhora gritando, [pensei] acho que é coisa séria”, conta Anderson da Silva, proprietário da gráfica localizada em frente ao portão do CEI (Centro de Educação Infantil).
“Ninguém viu como [o assassino] chegou ou como saiu, foi muito rápido. É uma sensação de impotência, de não conseguir parar esse cara, de não conseguir fazer nada. Nossos filhos iam nessa creche até o ano passado, são amiguinhos deles que estavam ali, a gente imagina a dor dos pais em uma hora dessas”, acrescentou. (Martins, 2023, para. 10)
Além de dar espaço “à rapidez” (Martins, 2023, para. 9) do autor do atentado, a matéria ainda traz, ao final, dados sobre o instrumento utilizado para matar as vítimas, o modo como ele entrou e saiu da creche, e ainda menciona que as investigações iriam averiguar as motivações do crime.
É importante destacar que o foco dado ao criminoso é amplamente rejeitado pelas pesquisas sobre o tema. Um exemplo disso é o estudo de criminologia realizado por Lankford e Madfis (2018), cujo título já direciona um alerta à imprensa: “não os nomeie, não os mostre: mas reporte todo o resto. Uma proposta pragmática para negar a atenção que assassinos em massa procuram e dissuadir futuros infratores” (Lankford & Madfis, 2018, p. 1).
Os autores mencionados acima indicam que os assassinos que cometem atentados de grandes dimensões competem por atenção e podem, por intermédio da exposição, inspirar outras ações, sob efeito de contágio. “Contudo, se a mídia mudar a forma como faz a cobertura dos atiradores em massa, poderá negar a muitos criminosos a atenção que buscam e deter ações futuras de outros transgressores” (Lankford & Madfis, 2018, p.1).
No caso do G1, a matéria “Brasil Tem 24 Ataques em Escolas em Duas Décadas; Relatório Cobra Políticas Públicas” (Santos, 2023), da editoria de Educação, também publicada poucas horas após o ataque, foge à lógica de destacar o crime, o autor e as vítimas, para enveredar pelo fomento à discussão de ações de combate aos atentados.
O texto não explora o horror das mortes, não descreve o passo-a-passo e não traz imagens do ocorrido. Sem citar o assassino nenhuma vez, a matéria foi construída de modo a contextualizar o tema — trazendo dados sobre quantidade de casos semelhantes nos últimos anos, no Brasil — e relata sobre a criação de um grupo interministerial para tratar da violência nas escolas.
A maior ênfase da notícia é dada a um estudo realizado pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, detalhando algumas das principais orientações da pesquisa para o combate à violência escolar:
para os governos: Monitorar sites, redes sociais, comunicadores instantâneos e fóruns anônimos. Manter canais de comunicação direto com as escolas e redes públicas de ensino. Criar uma política pública que proporciona a possibilidade da ressignificação da educação. Para pais e responsáveis: pais e responsáveis precisam de orientações e instrumento para detectar alterações comportamentais dos filhos; também devem observar o conteúdo digital consumido por crianças e adolescentes. Para as escolas: Realizar diagnósticos sobre a situação das violências nas escolas. Assumir um trabalho pedagógico em educação crítica e de combate à desinformação. (Santos, 2023, para. 11)
O atentado foi manchete dos dois veículos, na versão impressa (Folha de S. Paulo e O Globo), no dia seguinte, 6 de março de 2023. Embora esta análise tenha utilizado como corpus as notícias veiculadas online, a forma de veiculação nos jornais é bastante significativa. A edição da Folha de S. Paulo abre com uma fotografia, em seis colunas, com uma pessoa acendendo velas numa homenagem às vítimas. Sob o título “Homem Mata 4 Crianças em Creche de Santa Catarina”, o texto de chamada faz o oposto do que o preconizado pelas boas práticas descritas no manual “Como retratar ataques em massa?” (Dourado, 2019) e demais pesquisas sobre o tema, ao enfatizar dados a respeito da ação e da vida do autor, como pode ser observado neste trecho:
o agressor tem quatro passagens pela polícia de 2016 a 2022. Em março de 2021, feriu o padrasto a faca e, em julho do mesmo ano, foi abordado por policiais com cocaína. Na última ocorrência, de dezembro de 2022, quebrou o portão da casa do padrasto e esfaqueou um cão. (“Homem Mata 4 Crianças em Creche de Santa Catarina”, 2023, p. 1)
O veículo ainda não dispunha de uma orientação editorial para esse tipo de cobertura, embora logo abaixo da chamada da matéria principal há o destaque para artigo do colunista Thiago Amparo[5], que conclama a imprensa a evitar a notoriedade das pessoas que cometem massacres. No texto, é citado o posicionamento do jornal diretamente concorrente, O Estado de São Paulo, de ter oficializado a decisão de não publicar nada referente ao homem que invadiu a creche em Blumenau, defendendo o autor que a mídia deve impor diretrizes para o tratamento a essas notícias (Amparo, 2023).
O conteúdo da reportagem segue o anunciado pela chamada de capa. Traz o nome completo do assassino. Discorre sobre as passagens anteriores pela polícia, os crimes pregressos, as armas utilizadas e a pretensa falta de motivação para cometer o ataque. Só não explora a imagem dele. Após essa publicação, e certamente em função da pressão da sociedade civil organizada — a Agência Nacional dos Direitos da Infância (ANDI, 2023), por exemplo, emitiu nota recomendando que a imprensa evitasse divulgar imagens e identidade dos autores de atentados —, não foi encontrada, neste estudo, outra menção direta à identidade dele em publicações da Folha de S. Paulo, que, conforme citado anteriormente, passou a usar termos como “um homem de 25 anos” (em 43% das matérias), “o autor do ataque” (17%) e similares. Mais três matérias vinculadas foram publicadas na edição, evidenciando o relato de uma professora, uma reportagem contextualizando os ataques no Brasil e escutando especialistas, e a terceira atualizando o julgamento de autor de ataque anterior.
A edição do dia seguinte de O Globo trouxe, igualmente, o tema como manchete de capa. Intitulada “Por Que Tantos Ataques?”, a chamada é acompanhada por foto em cinco colunas, com registro da movimentação defronte à creche após o ataque, com uma criança pequena sendo amparada por uma mulher, em primeiro plano. O texto, diferentemente do similar da Folha de S. Paulo, não identifica o autor — classificando-o como “criminoso bárbaro” — traz a tônica de problematização, tentando responder à pergunta do título, adensando a discussão com trechos como:
estudiosos do assunto de diversas formações veem fatores como a disseminação de uma cultura de violência e uma crise geracional de saúde mental entre jovens, ambos potencializados pelo “território livre” das redes sociais, além de dados conjunturais brasileiros como a facilitação do acesso às armas (“Por Que Tantos Ataques?”, 2023, p.1).
O comedimento se resume à chamada de capa. A cobertura, que ocupa duas páginas (8 e 9) do primeiro caderno, com matérias intituladas “Crueldade na Creche”, “Ataque Aproxima Brasil de Problema Crônico dos EUA” e “As Crianças Precisam se Sentir sSguras” (entrevista com psiquiatra), embora não cite nominalmente o assassino, optando por identificá-lo como “homem de 25 anos” e “o autor”, dá bastante destaque a ele — fazendo uso, inclusive, de um anacrônico “cineminha”, com quatro quadrinhos detalhando o passo a passo do ataque. O recurso é acompanhado por infográfico que localiza o trajeto percorrido pelo criminoso e a distância entre a creche e um batalhão da polícia militar.
Veículos de imprensa no Brasil, sejam de abrangência nacional ou local, sob intensa pressão da sociedade civil organizada, anunciaram mudanças na cobertura de ataques a escolas nas primeiras horas após o atentado de Blumenau. Na tarde do mesmo dia, o Estadão se antecipou e divulgou, nas redes sociais (com uma thread no então Twitter, atualmente X), uma "Nota da Redação" em que garantia a não publicação de informações que identificassem o autor do crime. Na sequência, a nota justificava a decisão com base em pesquisas que "mostram que essa exposição pode levar a um efeito de contágio, de valorização e de estímulo do ato de violência em indivíduos e comunidades de ódio, o que resulta em novos casos" (Estadão, 2023).
Na manhã do dia seguinte ao ataque, 6 de abril, o Grupo Globo anunciou mudança editorial na cobertura de massacres, garantindo o fim da divulgação do nome e imagem dos autores de atentados em todos os veículos da empresa, com base em orientações de especialistas. Em vídeo de 56 segundos, o texto, lido por apresentadora no Bom Dia Brasil e em outros telejornais da emissora, avisava que já era prática do grupo publicar “apenas uma única vez o nome e a foto de autores de massacres como o ocorrido em Blumenau” (Grupo Globo, 2023, 00:00:04).
Após o crime em Santa Catarina, contudo, o grupo decidiu, segundo o informe, abolir de vez a divulgação da identidade dos criminosos: “o nome e a imagem de autores de ataques jamais serão publicados, assim como vídeos das ações” (Grupo Globo, 2023, 00:00:22). A nota justificou a adoção da medida com a necessidade de não trazer notoriedade aos autores dos massacres, e também garantiu que os veículos do Grupo Globo não mais iriam divulgar ataques frustrados, para evitar estímulos.
O grupo de comunicação Sistema Jornal do Commercio de Comunicação com atuação no Estado de Pernambuco em emissoras de televisão, rádio e portais, também aderiu à política de não divulgação de dados referentes ao criminoso para não publicizar a identidade e feitos de agressores (Sistema Jornal do Commercio de Comunicação, 2023).
Se as alterações anunciadas pelos veículos encontram eco nas orientações mais recentes de pesquisas e estudos desenvolvidos por organizações ligadas à educação e mídia, ainda não é possível dimensionar se efetivamente irão se estender a possíveis novos casos de cobertura de crimes semelhantes. Pelos comunicados das empresas, anteriormente detalhados, com exceção do pronunciamento do Grupo Globo, extrai-se o entendimento de que a decisão de não publicização de identidade e demais formas de destaque aos agressores refere-se especificamente à cobertura do ataque à creche de Blumenau. De todo modo, face ao histórico de violações explícitas ao código de ética perpetradas em tantas coberturas sobre crimes pela imprensa brasileira, a decisão consorciada de se abolir o destaque a criminosos em um caso já se configura como um passo importante em busca de parâmetros éticos na condução de reportagens.
Como lembram Camponez e Christofoletti (2020) na apresentação do "Dossiê Qualidade no Jornalismo, Democracia e Ética II", a discussão acerca da qualidade no jornalismo implica, necessariamente, em "enfrentar incapacidades, e propor soluções" (p. 8), e não colocar holofotes sobre autores de atentado pode ser o primeiro movimento de uma participação mais consciente e responsável da grande imprensa no esforço coletivo contra esse tipo de crime.
A análise em torno da cobertura recente de ataques em escolas pela mídia corporativa brasileira revela que as matérias foram editadas com tons menos alarmistas, revelando maior preocupação e engajamento com as orientações recentes a respeito do tratamento da imprensa às coberturas de ataques. Apenas o quantitativo do noticiário ainda é um fator que destoa das diretrizes hodiernas.
O crescimento exponencial de textos publicados entre ambas as coberturas — de 2019 e 2023 pelos mesmos veículos — é um demonstrativo de que a grande imprensa no Brasil segue dando espaço considerável aos massacres. E, em consequência, ainda que por um viés negativo, incrementando a exposição dos autores.
O chamado efeito de contágio, de cópia (copycat), já intensamente associado em estudos à participação da mídia no aumento de ataques futuros, diz respeito não apenas ao foco que se dá aos criminosos e à fama que se segue às publicações, mas também aos malefícios do excesso de publicações.
Jetter e Walker (2018) são categóricos e peremptórios após terem se debruçado, ao longo de mais de três anos, sobre a cobertura de tiroteios em massa pelo programa estadunidense ABC World News Tonight: "nossas descobertas consistentemente sugerem que a cobertura midiática sistematicamente causa [itálico adicionado] futuros tiroteios em massa" (p. 14). Depois de vários testes, a previsão a que os pesquisadores chegaram é alarmante: "com base em nossa estimativa principal, um cálculo aproximado sugere que 58% de todos os tiroteios em massa ocorridos entre 1 de janeiro de 2013 e 23 de junho de 2016 podem ser atribuídos à cobertura de notícias" (Jetter & Walker, 2018, p. 14).
No caso do estudo de caso empreendido neste trabalho, verificou-se um considerável crescimento de 70% na quantidade de notícias veiculadas pela Folha de S. Paulo e G1 no ataque à creche em Blumenau/SC, em 2023, num comparativo com o noticiário sobre o crime numa escola em Suzano/SP, ocorrido em 2019. Esse aumento torna-se um sinal de alerta se levarmos em consideração a recomendação final da pesquisa de Jetter e Walker (2018): "nossos resultados recomendam que os jornalistas reduzam a cobertura de tiroteios em massa" (p. 14).
A publicização extrema de crimes, tragédias e desastres, e o modo como muitas vezes é realizada, tem sido alvo de preocupação de acadêmicos há várias décadas. No final dos anos 1990, o termo "cultura do medo" passou a figurar entre as principais temáticas, não apenas em círculos acadêmicos, mas também na sociedade civil organizada, em programas de televisão e redes sociais, em função da publicação de The Culture of Fear (a cultura do medo; Glassner, 1999), que aborda o excesso de narrativas aterrorizantes alardeadas pela mídia norte-americana e suas consequências para a vida cotidiana. O autor, revisitando a obra em função do clima de terror instaurado pela propaganda trumpista e pelo próprio modus operandi do ex-presidente acerca do "outro", do "estrangeiro", do "diferente", alertou para o retorno do uso do medo como arma de propaganda, reforçado pela mídia:
somente no começo deste século é que os jornalistas começaram a corrigir suas histórias alarmistas publicadas anteriormente. Só podemos esperar que jornalistas, assim como autoridades públicas, defensores e acadêmicos, não esperem tanto tempo para questionar os sustos do dia e o uso do medo como uma ferramenta política. (Glassner, 2020, p. 68)
Não se advoga, neste artigo, um silenciamento midiático a respeito de crimes bárbaros, tais quais os contemporâneos tiroteios em espaços escolares. Contudo, em consonância com as pesquisas pioneiras e mais recentes aqui referenciadas, pretende-se apontar que parte de vislumbres de solução pode depender de uma atuação muito mais rigorosa da imprensa aquando da apuração e veiculação destes crimes.
Se o artigo 1 do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros preconiza que "o acesso à informação pública é um direito inerente à condição de vida em sociedade" (Federação Nacional dos Jornalistas, 2007, para. 1), é preciso encontrar meios para que este direito seja cumprido sem que haja desacordo com o combate a crimes de tamanha complexidade e com tantas causas e efeitos como o são os ataques a escolas e creches.
Johnston e Joy (2016) sintetizam que qualquer caminho para o enfrentamento aos massacres passa por "cortar o oxigênio" da chama que alimenta os atiradores, que é a fama advinda da superexposição que recebem das mídias a cada nova incursão criminosa. "Não somos os primeiros a fazer esse apelo, mas gostaríamos de ser os últimos" (Johnston & Joy, 2016, p. 28).
Observou-se, ao final deste estudo de caso, num comparativo com a cobertura anterior, que houve um incremento no tratamento ético das notícias a respeito do crime que vitimou crianças numa creche brasileira, destacadamente em termos de não dar destaque ao autor do atentado e a preservar a identidade das vítimas. Chama-se a atenção apenas para o número ainda elevado de notícias publicadas como “suíte”[6]. O que, de acordo com os estudos aqui mencionados, pode ter a capacidade de impulsionar novos atos.
Este é um estudo inicial, sobre o qual deve-se reconhecer as limitações em torno dos recortes temporal e geográfico. Por isso, espera-se que haja análises futuras e, consequentemente, maior possibilidade de compreensão do fenômeno em escalas maiores e que cubram a ação da imprensa em países diversos.
Repetir incessantemente, desviar o foco do que é mais importante (como discussões acerca de formas de coibir o bullying em escolas, por exemplo), e tratar incidentes isolados como tendências são, para Glassner (2020), técnicas sensacionalistas clássicas, encontradas em basicamente toda cobertura midiática acerca de atos ilícitos de grande magnitude. Entre banalizar a violência, alçar criminosos à fama, instaurar um clima de medo e, por fim, contribuir indiretamente para que novos crimes sejam cometidos, este trabalho indica a sugestão à qual recorremos anteriormente: "não os nomeie, não os mostre".
Adriana Santana é doutora em comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (Brasil) e mestre em comunicação e bacharel em comunicação social — jornalismo (Universidade Federal de Pernambuco). É professora associada do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco e autora dos livros CTRL+C CTRL+V: O Release nos Jornais e Jornalismo Possível, Cordialidade e Investigação: A Prática Jornalística no Contexto Contemporâneo. Tem pós-doutorado em andamento no Departamento de História da Universidade de São Paulo, com o tema "OLEGÁRIA - Vita brevis, ars longa: resgate histórico de uma abolicionista (1859-1898)". Tem interesse nas práticas jornalísticas e suas reverberações sócio-históricas.