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O Ensino do Jornalismo no Brasil Frente à Inteligência Artificial: Um Panorama dos Desafios e Possibilidades a Partir das Competências Curriculares
Marcelo Crispim da Fontoura
Marcelo Crispim da Fontoura
O Ensino do Jornalismo no Brasil Frente à Inteligência Artificial: Um Panorama dos Desafios e Possibilidades a Partir das Competências Curriculares
Journalism Teaching in Brazil in the Face of Artificial Intelligence: An Overview of Challenges and Possibilities Based on the Curricular Competencies
La Enseñanza del Periodismo en Brasil Ante la Inteligencia Artificial: Una Panorámica de los Retos y Posibilidades a Partir de las Competencias Curriculares
Revista Comunicando, vol. 13, núm. 2, e024008, 2024
Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação
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Resumo: Este artigo explora o impacto da inteligência artificial (IA), especialmente da IA generativa, no ensino de jornalismo no Brasil. Examina as diretrizes curriculares nacionais do curso de jornalismo à luz das transformações impulsionadas pela IA. A análise identifica a necessidade de reforçar, readequar e reformular certas competências para preparar os futuros jornalistas para o uso ético e crítico da IA, enfatizando a importância da literacia em IA e do aprendizado contínuo. Também discute a necessidade de adaptação pedagógica e o papel do jornalismo na explicação da IA ao público, bem como os desafios nesses processos. Busca-se evitar uma visão determinista, pensando não apenas nos potenciais da tecnologia, mas em suas apropriações.

Palavras-chave: Ensino de Jornalismo,Jornalismo,Inteligência Artificial,Diretrizes Curriculares.

Abstract: This paper explores the impact of artificial intelligence (AI), especially generative AI, on journalism education in Brazil. It examines the national curriculum guidelines for journalism courses in the light of the transformations driven by AI. The analysis identifies the need to reinforce, readjust, and reformulate certain competencies to prepare future journalists for the ethical and critical use of AI, emphasizing the importance of AI literacy and continuous learning. It also discusses the need for pedagogical adaptation and the role of journalism in explaining AI to the public, as well as the challenges in these processes. It seeks to avoid a deterministic view, considering not only the potential of this technology, but also about its appropriation.

Keywords: Journalism Education, Journalism, Artificial Intelligence, Curriculum Guidelines.

Resumen: Este artículo explora el impacto de la inteligencia artificial (IA), especialmente la IA generativa, en la enseñanza del periodismo en Brasil. Examina las directrices curriculares nacionales para los cursos de periodismo a la luz de las transformaciones impulsadas por la IA. El análisis identifica la necesidad de reforzar, reajustar y reformular ciertas competencias para preparar a los futuros periodistas para el uso ético y crítico de la IA, haciendo hincapié en la importancia de la alfabetización en IA y el aprendizaje continuo. También discute la necesidad de adaptación pedagógica y el papel del periodismo a la hora de explicar la IA al público, así como los retos en estos procesos. Trata de evitar una visión determinista, pensando no sólo en el potencial de la tecnología, sino también en su apropiación.

Palabras clave: Enseñanza del Periodismo, Periodismo, Inteligencia Artificial, Directrices Curriculares.

Carátula del artículo

Secção Temática/Thematic Section/Sección Temática. Artigos/Articles/Artículos

O Ensino do Jornalismo no Brasil Frente à Inteligência Artificial: Um Panorama dos Desafios e Possibilidades a Partir das Competências Curriculares

Journalism Teaching in Brazil in the Face of Artificial Intelligence: An Overview of Challenges and Possibilities Based on the Curricular Competencies

La Enseñanza del Periodismo en Brasil Ante la Inteligencia Artificial: Una Panorámica de los Retos y Posibilidades a Partir de las Competencias Curriculares

Marcelo Crispim da Fontoura
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Escola de Comunicação, Artes e Design, Porto Alegre, Brasil
Revista Comunicando
Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, Portugal
ISSN: 2184-0636
ISSN-e: 2182-4037
Periodicidade: Semestral
vol. 13, núm. 2, e024008, 2024

Recepção: 08 Junho 2024

Aprovação: 15 Outubro 2024

Publicado: 07 Novembro 2024


1. Introdução

A popularização e pulverização de tecnologias de automatização de tarefas, ou inteligência artificial (IA), no trabalho jornalístico engendra readequações em processos, produtos e consumo. Com redações do norte ao sul global (Beckett & Yaseen, 2023) incorporando diferentes tipos de ferramentas para aumentar suas eficiências e automatizar atividades antes feitas por seres humanos, a área da educação em jornalismo também demanda transformações (Jaakkola, 2023). Se é verdade que as tecnologias de IA são consequentes tanto dentro quanto fora das redações, e que seu uso já tem transformado como o jornalismo é feito e conceituado, é preciso compreender como estas realidades podem ser incorporadas na educação em jornalismo. Afinal, é importante formar futuros jornalistas que tenham capacidade tanto de trabalhar com estas tecnologias quanto de analisar criticamente seus usos, e refletir sobre seu papel no jornalismo.

O objetivo deste artigo é explorar os impactos potenciais que as tecnologias de IA, sobretudo a chamada IA generativa, têm na educação em jornalismo no Brasil. Para tal, se executou uma análise das diretrizes curriculares dos cursos de jornalismo, com especial atenção às competências curriculares e como estas podem ser revisitadas à luz deste novo paradigma técnico. Efetuou-se uma análise exploratória, visando a conceituar este contexto em que a possibilidade tecnológica da IA reforça o valor do jornalismo, mas demanda novas discussões quanto ao seu papel e prática.

Uma dificuldade, no entanto, é que o ciclo de desenvolvimento atual da IA ainda é relativamente recente. A tecnologia de aprendizado de máquina se popularizou no início da década de 2010 (Russell & Norvig, 2013), e as ferramentas de criação de mídia sintética via aprendizado profundo se tornaram amplamente acessíveis apenas em 2022, tornando este um conjunto de ferramentas e técnicas de rápida adoção, mas de impacto ainda incerto na sociedade e no jornalismo. Assim, qualquer análise ainda padece do tempo necessário para que se faça um julgamento mais certeiro das consequências que as apropriações deste conjunto de tecnologia engendram, especialmente com seu ciclo de desenvolvimento veloz (Crawford, 2021). Portanto, embora haja uma limitação de tempo, esta pesquisa se baseia nos indicadores acadêmicos e profissionais mais recentes para estabelecer uma análise sobre o impacto da IA no jornalismo e na educação em jornalismo no Brasil, evitando o determinismo de considerar a tecnologia como força motriz única das transformações sociais.

Primeiro, se discorre sobre a natureza da IA contemporânea, caracterizando-a de modo a se ter uma base sobre o que se fala quando se fala de IA. Após, se explana a natureza das diretrizes curriculares de jornalismo no Brasil, com sua gênese histórica. Finalmente, se analisa as diretrizes curriculares frente aos avanços recentes da IA.

O ensino de jornalismo no Brasil é regido pelas diretrizes curriculares (Resolução Nº 1, de 27 de Setembro, 2013). Cursos da área devem corresponder ao que está ali definido, inclusive contemplando as chamadas competências curriculares do ensino de jornalismo, que somam 45. Dessas, a partir da análise deste artigo, 16 são diretamente impactadas pela popularização da IA no jornalismo e na sociedade. Então, dividiu-se a transformação destas em três categorias: reforço, quando aquela competência tem sua importância reforçada frente ao cenário tecnológico contemporâneo, que foi o caso de sete competências; readequação, quando uma competência não apenas mantém sua importância, mas cuja natureza necessita ser revisitada ou redirecionada, caso de oito competências; e reformulação, caso de uma competência, que é quando ela demanda uma revisão profunda frente ao impacto da IA no jornalismo e na informação digital. Observou-se também como as competências precisam ser consideradas do ponto de vista conceitual, técnico e reflexivo, demandando atualizações no ensino jornalístico tanto do ponto de vista prático e laboratorial quanto intelectual.

2. Inteligência Artificial Contemporânea

O conceito de “inteligência artificial” está sob constante disputa, não havendo uma única acepção aceita academicamente. Desde meados do século XX, esta expressão está constantemente à mercê de tecnólogos, pensadores e atores que projetam nela seus anseios. Russell e Norvig (2013) a definem como “o estudo de agentes que recebem percepções do ambiente e executam ações” (p. 7), algo reforçado mais tarde por Russell (2019) quando descreve um agente inteligente como algo que percebe e age. Já Tegmark (2017) a caracteriza como inteligência não biológica, sendo inteligência a capacidade de atingir objetivos complexos. O autor descreve os sistemas atuais, que são bem-sucedidos em tarefas bem específicas, como jogar uma partida de xadrez ou conduzir um carro, como inteligência artificial estreita. Tegmark (2017) reserva a alcunha de inteligência artificial geral para um suposto sistema que conseguiria igualar, e então superar, um ser humano médio em qualquer tipo de atividade. Para esta ideia, Bostrom (2018) dá o nome de superinteligência, enquanto Russell (2019) trata de inteligência artificial super-humana.

Nesta pesquisa, não se dará atenção a esta última modalidade de IA, pelos seguintes motivos: em primeiro lugar, este tipo de evolução da IA não passa, hoje, de suposição, sem ainda profundidade teórica ou prática necessária para que se dê atenção acadêmica. Mais importante, este tipo de preocupação tem a tendência de distrair de impactos mais urgentes, como a desigualdade algorítmica, o problema do direito autoral, a vigilância e o extrativismo de dados etc. (Bender et al., 2021). Para fins de definições, se trata aqui de IA como um sistema digital que permite a automatização de tarefas outrora realizadas por seres humanos, dentro da perspectiva da IA estreita.

De fato, a IA tem se tornado mais frequente na vida humana desde meados da primeira década do século XXI, com impactos em praticamente todas as áreas da existência: da sugestão de conteúdos em redes sociais ao reconhecimento de doenças de maneira automatizada, passando pela criação de fases e adversários em jogos de videogame, pela seleção de rotas em aplicativos de transporte, seleção de currículos para recrutamento, identificação de fraudes bancárias, decisão de liberação de empréstimos bancários e de quais réus podem aguardar julgamento em liberdade, entre centenas de outros (Crawford, 2021). Recentemente, o campo da comunicação também voltou sua atenção para a IA (Cardozo et al., 2020; Gunkel, 2020; Magno & Romancini, 2023).

Academicamente, a IA tem sido explorada por perspectivas diversas. Tem se dado atenção aos seus usos nocivos, com potencial de aumentar a desigualdade (Broussard, 2018; O’Neill, 2021), e à perspectiva do capitalismo de vigilância (Zuboff, 2021). Também tem sido analisada do ponto de vista do trabalho e seu custo humano, com relação a quem treina os algoritmos de aprendizado de máquina e quais as consequências disto (Grohmann & Araújo, 2021). No caso da comunicação, uma grande pergunta que emerge é a transformação do campo de trabalho da área (Cardozo et al., 2020). De fato, no caso do jornalismo, o número de investigações acadêmicas sobre sua intersecção com a IA aumentou 38 vezes de 2011 a 2020 (Ioscote, 2021). Mais especificamente, a preocupação com o aspecto da desinformação e a regulamentação da tecnologia também tem discussão emergente (Bontridder & Poullet, 2021; Saad & Santos, 2023), além do que diz respeito a bots automatizados (Hajli et al., 2022). As discussões se tornaram ainda mais prementes a partir da popularização de ferramentas de IA generativa, ou seja, aquela empregada para criação de mídia sintética: textos, áudios, imagens e vídeos. Embora este tipo de técnica já existisse, foram disponibilizadas, de maneira gratuita ou em versões acessíveis, diversas ferramentas, das quais o ChatGPT talvez seja o exemplo mais conhecido, com eficiência maior do que as registradas anteriormente, e usos ainda não previstos (Piaia et al., 2023).

A geração de mídia por IA traz embutida em si questionamentos sobre a autoria e direito autoral, o uso da tecnologia, e a interpretação da linguagem como ferramenta ou não (Coeckelbergh & Gunkel, 2023). Finalmente, outro ponto sensível é a explicabilidade dos produtos gerados por sistemas de redes neurais (Kaufman, 2021). Por ser resultado de milhões de interações entre os chamados “neurônios” do sistema, os outputs não possuem uma explicação clara sobre porque aquele resultado específico foi gerado, numa estrutura denominada de “black box” (caixa negra). Há, ainda, o seu potencial como difusor de desinformação (Wach et al., 2023), uma vez que possuem vieses e dados muitas vezes desatualizados, ou mesmo da própria dificuldade de se estabelecer um modelo de verdade a partir de um sistema de linguagem automatizado.

Deste modo, é importante assumir uma perspectiva crítica frente à IA. Conforme Verdegem (2021), isto envolve levar em consideração a ideia de poder, principalmente no que diz respeito a quem tem poder para tomar decisões e criar produtos que influenciam outras pessoas. Uma análise crítica da IA envolve considerar seus incentivos, seu uso da informação, dos recursos naturais e do trabalho das pessoas, e nas consequências que ela gera para populações marginalizadas (Crawford, 2021).

No caso do jornalismo, com a ascensão de modelos de linguagem e criação de mídia sintética, a atividade enfrenta diversos desafios, alguns potenciais, outros já verificáveis. A IA tem a possibilidade de afetar aspectos centrais para o jornalismo, como a verdade, a natureza e procedência da informação, o processo de verificação, e a confiança. Ao afetar a profissão em si, acaba por impactar seu ensino. Mas, para entender este processo, é necessário primeiro caracterizar o ensino de jornalismo no Brasil.

3. Ensino de Jornalismo no Brasil

Conforme Antonioli (2014), o ensino sistematizado de jornalismo no Brasil tem início regulatório em 1943, com a publicação do primeiro decreto que organizava o que seria um curso de jornalismo. O curso pioneiro no país viria em 1948, com outros surgindo nos anos seguintes. Este processo acontece justamente durante um período em que o jornalismo se solidifica como profissão, assim como o ensino de jornalismo se expande ao redor do mundo (Traquina, 2020). Durante as décadas de 60 e 70, o currículo do curso de jornalismo viria a ser modificado diversas vezes, sempre por decretos do governo federal, que impunham às instituições os conteúdos e cargas-horárias mínimas. Este controle governamental só vai arrefecer em 2001, quando as instituições passam a ter liberdade de compor seus currículos. É deste ano a publicação das primeiras diretrizes curriculares nacionais para o curso de jornalismo. Com esta estrutura, instituições não precisavam pensar em cargas horárias específicas, mas sim em como atender às diretrizes. No entanto, estas ainda se referiam à habilitação de jornalista, dentro do bacharelado em comunicação social, como definido no século anterior. As diretrizes seguintes viriam a modificar este aspecto, substituindo essa formação pelo bacharelado em jornalismo, o que indica a institucionalização do jornalismo como campo científico e prática de ensino (Machado, 2021). Albuquerque e Roxo (2015) caracterizam esta influência do estado na formação profissional no Brasil, em todos os casos, mas, especialmente, no jornalístico, como cartorialismo. Assim, as exigências de diplomações específicas, de currículos uniformes e cargas-horárias seriam uma demanda da elite, junto ao estado, para manter a função de jornalista controlada e para poucos, mais do que uma exigência pedagógica ou profissional. De outra parte, Aguiar (2013) defende o processo da formação e defesa da curricularização do ensino de jornalismo em um bacharelado distinto, em razão de uma qualificação técnica específica.

De qualquer forma, as diretrizes atuais para o bacharelado em jornalismo, que regem o ensino de jornalismo no Brasil, foram implementadas pela Resolução Nº 1, de 27 de Setembro (2013), que define as diretrizes curriculares nacionais. Estas foram desenvolvidas a partir de audiências públicas pelo Brasil, além de abertura de chamada para sugestões no site do Ministério da Educação, conforme descrito em parecer do próprio Ministério.

No cerne das diretrizes estão as competências curriculares, que devem ser verificadas nos egressos dos cursos de jornalismo. Elas são divididas em quatro grandes grupos: competências gerais, cognitivas, pragmáticas e comportamentais, em um total de 45 itens. Em razão de sua extensão, segue um resumo de seus principais pontos abaixo.

  1. Gerais: são as mais amplas. As competências gerais envolvem a valorização de uma sociedade democrática e de princípios como os do interesse público e as informações verdadeiras, além de capacidades instrumentais como domínio da língua escrita, dos idiomas inglês ou espanhol, da pesquisa de informações, e alguns fatores comportamentais, como saber trabalhar em equipes, atuar de maneira ética e sempre buscar aprimoramento.

    Cognitivas: envolvem a construção de conhecimento do jornalismo e sua aplicação na sociedade, abrangendo a história da profissão, seu papel na democracia e cidadania, a compreensão dos aspectos éticos, técnicos e estéticos do jornalismo, além do discernimento quanto aos objetivos de lógicas das diferentes instituições em que o jornalismo é exercido.

    Pragmáticas: envolvem capacidades práticas, de natureza diversa, necessárias aos egressos. São mencionados aspectos como contextualização e interpretação das informações, a proposição e execução de projetos, coberturas e pautas jornalísticas, condução de entrevistas, além de todo o processo de apuração. Envolve também o conhecimento das técnicas de assessorias, além das diferentes linguagens midiáticas, o domínio de softwares e hardwares, e uma perspectiva crítica das práticas jornalísticas

    Comportamentais: envolvem fatores como a percepção da regulamentação político-jurídica da profissão, a análise e estudo de questões éticas, além de sua avaliação em ações jornalísticas. Envolve também a imposição do interesse público aos critérios, decisões e escolhas profissionais.

Assim, note-se como as diretrizes cobrem aspectos importantes na formação de um jornalista, ao mesmo tempo em que são amplas, possibilitando sua aplicação em instituições de ensino superior com realidades distintas. Antonioli (2014) as via com otimismo: “as Diretrizes Curriculares Nacionais de Jornalismo, além de resgatar a própria profissão do jornalista, oferecem aos cursos indicadores para a construção de projetos pedagógicos que compreendem aspectos essenciais para a formação do jornalista do século XXI” (p. 195). Obviamente, dada a complexidade do jornalismo enquanto profissão e da educação em si, essas diretrizes buscam iluminar um caminho possível, sem resolver os desafios subjacentes. Antonioli (2014) destaca alguns desafios que permanecem com as diretrizes, como: as novas possibilidades práticas do jornalismo em ambientes digitais, com a necessária convivência com muitas vozes e perda da primazia do discurso; a necessidade de constante atualização na prática laboratorial, mesclando prática e reflexão; e, mais amplamente, a coexistência entre teoria e prática ao longo do currículo. Nesta mesma linha, Machado (2021) destaca quatro problemas com o ensino de jornalismo como está configurado pelas diretrizes: a separação entre teoria e prática, cada um destes pilares vinculado a uma corrente própria de disciplinas, ignorando suas diversas convergências; de maneira similar, a falha em considerar as narrativas como eixo estruturante de práticas de ensino, o que permitiria reorganizar o currículo de maneira mais integrada entre teoria e prática; a desvinculação das práticas de ensino das práticas de pesquisa; e a alta dependência em métodos tradicionais de ensino, sem considerar inovações pedagógicas relacionadas tanto a formas de ensino quanto a formas mais complexas do fazer jornalístico, como o jornalismo em base de dados e a apuração automatizada. Assim, Machado (2021) conclui que, embora as diretrizes destaquem o lugar do jornalismo como âmbito de pesquisa e prática profissional e pedagógica, elas acabam sendo vítimas de si próprias, muitas vezes afastando o ensino de jornalismo da inovação.

Independente das diretrizes, a revisão dos métodos de ensino e formas de avaliação durante a formação em jornalismo deve ser constante. Bianchini et al. (2021) destacam a necessidade de uma maior valorização da formação pedagógica para docentes de jornalismo. Isso inclui uma conscientização dos próprios jornalistas sobre a importância dessa formação, um maior incentivo das universidades para a participação em cursos de formação continuada e o reconhecimento de que a docência no ensino superior exige uma postura profissional que vai além da simples reprodução de práticas de mercado ou de modelos antigos de ensino. Deuze e Witschge (2015) complementam que a educação em jornalismo tem seguido, historicamente, a compreensão da profissão como algo sólido e imutável, ignorando a complexidade inerente (e crescente) à atividade. Os autores argumentam que o ensino de jornalismo deve trazer inovação em termos de métodos e concepção de jornalismo, de modo a possibilitar uma compreensão mais ampla do campo.

Tendo avaliado os aspectos gerais das diretrizes curriculares do ensino de jornalismo no Brasil, com suas características formativas e desafios, dedica-se agora a avaliar como estas características permanecem ao serem provocadas pela institucionalização da IA.

4. As Competências Curriculares para o Ensino de Jornalismo e os Impactos das Inteligências Artificiais

Como fica evidente ao analisar as competências dispostas nas diretrizes, estas estão sempre em necessidade de constante reavaliação frente a novas possibilidades técnicas, dada a característica do jornalismo de sempre depender, e se materializar, a partir de um suporte tecnológico. O ensino de jornalismo enfrenta o constante desafio da necessidade de se atualizar frente às possibilidades tecnológicas, mas precisando manter os pilares importantes da profissão. Este processo não é uma novidade, como já registrado por Tárcia e Marinho (2008). No entanto, o desafio da IA em termos de impacto no ensino de jornalismo recai sobre seu potencial de modificar a profissão de maneira ontológica, ou, no mínimo, em diversas frentes (Beckett & Yaseen, 2023; Jaakkola, 2023). Além disso, envolve a necessidade de se capacitar os estudantes para analisar os impactos da IA na sociedade e reportar sobre elas, ao mesmo tempo em que usam estas ferramentas. Se trata de um cenário extremamente orgânico, com constantes desdobramentos em termos de novas invenções, adoções e reapropriações de ferramentas, em uma escala global. No entanto, não se trata de revolucionar totalmente a educação em jornalismo, mas compreender as estruturas já existentes e refletir sobre seu aprimoramento.

O que a IA pode exigir é a integração parcial do tópico às estruturas existentes de educação e rotinas jornalísticas, mas alguns aspectos das estruturas e valores existentes precisam ser reforçados. Com a proliferação de sistemas automatizados programados para realizar tarefas e executar funções sem supervisão, é provável que surjam questões e práticas totalmente novas. Em vez de simplesmente proclamar a necessidade de jornalistas com IA e programas de jornalismo com IA, o ensino de jornalismo pode dar um passo atrás e refletir sobre como reconfigurar o pensamento e as práticas educacionais. (Jaakkola, 2023, p. 115-116)

Nesta análise exploratória, se dará atenção aos tensionamentos que a popularização de ferramentas IA gera frente às competências curriculares previstas nas diretrizes curriculares do curso de jornalismo. A partir de uma análise preliminar das competências, o autor chegou a uma categorização própria de como esse impacto pode acontecer:

  1. Reforço – a tecnologia de IA reforça a importância dessa capacidade, tornando-a ainda mais crucial para a formação do jornalista. No entanto, a essência da competência não é alterada, mas há uma intensificação de sua necessidade.

    Readequação – a IA provoca mudanças na forma como a competência é aplicada, exigindo uma adaptação às novas ferramentas e práticas. A essência dessas competências permanece relevante, mas sua aplicação precisa ser ajustada à realidade da IA.

    Reformulação – finalmente, neste caso a tecnologia de IA impacta tão profundamente certas competências que exige uma revisão mais densa de sua natureza e aplicação. Essas competências precisam ser repensadas em um nível mais profundo para se adequarem ao novo paradigma da IA.

Cada uma das competências foi avaliada frente a estas três possibilidades. Para fazer esta identificação, se considerou o impacto direto que a assimilação e popularização de ferramentas de IA teria frente àquela competência. Assim, metodologicamente, se considerou que, se o impacto fosse colateral, não seria contado. Esta postura foi importante para que a análise pudesse ficar mais focada nas situações com maior potencial de transformação. Como cada uma das categorizações busca representar o grau de transformação da competência frente ao uso de IA, não se considerou a possibilidade de se acumular categorias. Das 45, se identificou 16 competências impactadas. Com isto, se construiu a Tabela 1.

Tabela 1
Competências curriculares para os cursos de jornalismo com impacto potencial de inteligência artificial

Primeiro, se dá atenção ao impacto de reforço, que compreende sete competências. Elas envolvem, em sua maioria, aspectos técnicos de atualização profissional, no que diz respeito a se manter constantemente atualizado, bem como dominar as ferramentas técnicas para a produção de jornalismo.

A velocidade de lançamento e atualizações de ferramentas envolvendo IA, sobretudo IA generativa, tem sido enorme, principalmente a partir da popularização da tecnologia dos transformadores, a estrutura técnica por trás de ferramentas comuns como o ChatGPT. A mesma arquitetura possibilita diferentes tipos de aplicações. Com isso, o surgimento constante de novas ferramentas reforça a importância de aprendizado contínuo, visto que as técnicas jornalísticas podem ser aprimoradas, tornadas mais eficientes, ou mesmo revisitadas, a partir de ferramentas de edição de vídeo, texto, imagem ou outro tipo de material. O contínuo aprimoramento das práticas, frente a uma realidade em que ferramentas de trabalho se tornam mais eficientes, tocam mais partes do trabalho e permitem mais ações autônomas, se torna ainda mais vital. Logo, o ensino superior em jornalismo deve incentivar ainda mais o estudante a aprender a aprender, visto que a realidade material em que este vai exercer sua profissão tende a ser diferente daquela em que ele está de fato sendo formado.

Outra competência a se destacar é aquela que menciona a capacidade de trabalhar em equipes profissionais multifacetadas. A presença de profissionais de tecnologia da informação nas redações e como atores que influenciam a produção jornalística não é de hoje (Canavilhas et al., 2016; Lewis & Usher, 2016), resultando em constante troca de valores e discussões sobre fronteiras. Experimentos relacionados a IA, no entanto, podem expandir a presença deste tipo de atores, assim como aumentar a necessidade de jornalistas de dialogar com estes profissionais em razão do desenvolvimento de novas ferramentas, tanto internas quanto externas. Em abril de 2023, por exemplo, a gigante de jornalismo financeiro Bloomberg lançou seu próprio sistema de chatbot, chamado “BloombergGPT” (Introducing BloombergGPT, 2023), criado internamente a partir de 50 bilhões de parâmetros de seus próprios dados históricos. De fato, este uso de aplicação da tecnologia de IA se caracteriza pela baixa dependência de outras empresas de tecnologia, além de um controle sobre quais tipos de dados são utilizados, embora tenha um custo elevado. A criação de ferramentas, assim, demanda o contato constante de jornalistas com os profissionais responsáveis, bem como a sua literacia sobre o funcionamento geral desta tecnologia. Assim, é importante que se incentive que acadêmicos de jornalismo entrem em contato com acadêmicos de outras áreas, sobretudo aqueles das tecnologias da informação, num contexto de colaboração, de modo a possibilitar o aprendizado via trocas que serão comuns em suas carreiras. Especialmente a prática laboratorial, frequente no ensino em jornalismo, pode se propor a este tipo de experiência, além de projetos de extensão.

Finalmente, dentro das competências a serem reforçadas, menciona-se também aquela que envolve a atuação ética, um pilar da atividade jornalística. O tensionamento ético frente às aplicações de IA em contextos jornalísticos é talvez a maior preocupação que jornalistas em formação enfrentarão quanto ao uso desse conjunto de tecnologias em sua carreira. Uma perspectiva ética frente à IA significa muitas coisas diferentes, a começar pela diversidade da própria tecnologia: desde usos simples, como automatizações corriqueiras em um celular, até assistentes complexos, tudo pode e acaba sendo descrito como IA, embora possuam naturezas diversas. Crawford (2021) relembra que existem dois casos principais de questionamento ético frente a estas tecnologias: o primeiro é sobre os vieses e preconceitos embutidos no sistema, que acabam sendo motores de desigualdade especialmente para populações já marginalizadas (O’Neill, 2021; Silva, 2020), em sistemas que demandam constante melhoria, para diminuição destes vieses. Por outro lado, o discurso de que se deve aprimorar estes sistemas de IA por vezes pode esconder a discussão sobre se alguns destes sistemas deveriam existir em primeiro lugar, como sistemas de reconhecimento fácil, cuja própria existência, por mais segura que seja, pode ferir populações marginalizadas (Crawford, 2021). Para estudantes de jornalismo, se colocam questões como: a escolha de quais sistemas usar, em termos de qualidade de output e adequação à tarefa; a reflexão sobre o quanto o uso de determinada ferramenta pode representar danos à sociedade; o reconhecimento de todo o trabalho de populações marginalizadas com data labelling e categorização que é necessário para que ferramentas de IA funcionem, mas que é invisibilizado frente ao público geral (Crawford, 2021; Grohmann & Araújo, 2021); a própria reflexão quanto ao uso destas ferramentas a serviço do jornalismo e da sociedade, e não ao contrário. São discussões que não possuem uma resposta certa, mas que devem ser consideradas desde a graduação, em todas as suas nuances, de modo a formar um profissional capacitado não apenas instrumentalmente, mas de maneira responsável.

Oito competências demandam readequação, o que significa que sua importância permanece, mas a maneira como elas são aplicadas enfrenta potenciais mudanças. Estas competências podem ser subdivididas em três grandes grupos: as relacionadas a mudanças no fazer jornalístico; as relacionadas à necessidade de explicações ao público sobre as práticas jornalísticas e técnicas empregadas, em um exercício de metajornalismo; e aquelas relacionadas à importância de valorizar os conhecimentos e saberes jornalísticos, em um mundo cada vez mais mediado por algoritmos.

As competências “e) pesquisar, selecionar e analisar informações em qualquer campo de conhecimento específico” e “p) avaliar criticamente produtos e práticas jornalísticas” demonstram readequações no fazer jornalístico. Beckett e Yaseen (2023) identificaram que mais de 75% das organizações de notícias pesquisadas globalmente empregam IA para funções de seleção, produção e distribuição de material noticioso. A popularização destas ferramentas transforma a realidade da pesquisa, seleção e análise de informações. Embora a prática do jornalismo em base de dados já tenha vários anos, ainda é comum pensar na prática jornalística como guiada por entrevistas com pessoas físicas e instituições. No entanto, se torna cada vez mais premente a necessidade de atentar os alunos à necessidade de considerar as informações reunidas e analisadas por meio de ferramentas automatizadas – sempre levando em conta as responsabilidades jornalísticas e éticas. Estas competências envolvem readequação pois, ao contrário de mero reforço de sua importância, a própria maneira como jornalistas passam a fazer apurações, cada vez mais, passa por estas ferramentas, com as vantagens e desvantagens que isto acarreta. O ponto seguinte, sobre a avaliação crítica, envolve justamente uma apreciação sobre essa realidade. Se os processos jornalísticos são cada vez mais atravessados por ferramentas de IA, e essas ferramentas envolvem pontos de atenção especiais no que diz respeito a relação com a verdade, processamento da informação, falibilidade e opacidade (Crawford, 2021), jornalistas precisam ser críticos ao considerar os potenciais impactos das aplicações destas ferramentas e as consequências que elas têm em termos de processamento, produto e consumo jornalístico. Se trata de uma readequação, pois, embora esta competência já se demonstrasse importante antes, necessita se moldar a esta realidade específica.

Isto nos traz ao segundo grupo de competências que demandam readequação, aquelas que envolvem as capacidades de contextualização e explicação jornalísticas. A capacidade “a) contextualizar, interpretar e explicar informações relevantes da atualidade, agregando-lhes elementos de elucidação necessários à compreensão da realidade” representa o papel do jornalista de colocar informações em contexto, de modo a dar sentido à realidade social. Em uma realidade cada vez mais mediada pela tecnologia, incluindo ferramentas de IA, o papel do jornalismo envolve explicar ao público impactos dessa vertente de ferramentas, que tendem a se tornar mais comuns, além de explicar, de modo geral, o funcionamento dela. Isto possui duas dimensões: explicar e contextualizar impactos gerais de ferramentas de IA na sociedade; e explicar o funcionamento de ferramentas e processos jornalísticos internos que empreguem IA. A capacidade “j) traduzir em linguagem jornalística, preservando-os, conteúdos originalmente formulados em linguagens técnico-científicas, mas cuja relevância social justifique e/ou exija disseminação não especializada” traz o mesmo princípio.

É evidente que estas funções não serão executadas por todos os jornalistas ao estarem no mercado de trabalho. No entanto, se tornam comuns o suficiente para precisarem fazer parte, cada vez mais, da realidade de estudantes de jornalismo. Isto importa tanto do ponto de vista técnico, no sentido de compreender as características técnicas dos sistemas empregados, quanto do ponto de vista reflexivo, para compreender as consequências sociais e humanas desses sistemas, incorporando-os em sua produção.

A necessidade de reflexão sobre o papel da IA em uma sociedade complexa nos traz ao terceiro grupo de competências curriculares que demandam readequação, aquelas que envolvem a valorização da própria produção jornalística em um mundo mediado pela computação e por ferramentas de IA. Isto pode ser verificado nas seguintes competências: “c) compreender e valorizar o papel do jornalismo na democracia e no exercício da cidadania”; e “d) compreender as especificidades éticas, técnicas e estéticas do jornalismo, em sua complexidade de linguagem e como forma diferenciada de produção e socialização de informação e conhecimento sobre a realidade”. Uma vez que as tecnologias de IA envolvem produção de mídia sintética, além de resultarem em categorização e imposição de uma visão de mundo (O’Neill, 2021) a partir de código e análise de dados, elas acabam por competir em uma área simbólica que tangencia a atividade jornalística – profissionais que outrora tinham a primazia sobre a categorização sobre o mundo e a realidade social. Com isso, jornalistas, e seus equivalentes universitários, precisam cada vez mais exercitar as reflexões sobre como fica a função jornalística em um mundo mediado pela IA. A valorização do próprio jornalismo sempre foi fundamental especialmente em um contexto acadêmico. No entanto, é importante sua readequação para um contexto em que se deve refletir sobre sua valorização em um ambiente midiático com profusão de mídia sintética, com a integração de atores não-humanos na produção em comunicação, quando o próprio papel do trabalho é cada vez mais discutido (Verdegem, 2021). Esta é uma discussão importante a ser estimulada por educadores em jornalismo.

Ainda dentro da ideia de readequação, a capacidade “f) impor aos critérios, às decisões e às escolhas da atividade profissional as razões do interesse público” relembra a vinculação da atividade jornalística ao interesse público. Sua readequação frente à IA envolve o papel por parte de educadores de relembrarem a acadêmicos em jornalismo que as ferramentas de IA devem servir ao jornalismo e em última instância ao público, e que seu próprio uso envolve decisões políticas. Assim, as decisões e os critérios que esta competência menciona passam a não ser mais apenas os critérios jornalísticos tradicionais, mas aqueles aplicados também a estas ferramentas. Já a readequação da competência “g) exercer, sobre os poderes constituídos, fiscalização comprometida com a verdade dos fatos, o direito dos cidadãos à informação e o livre trânsito das ideias e das mais diversas opiniões” significa compreender que aos poderes constituídos somam-se os oligopólios da Big Tech, com suas promessas sobre IA. Ambas as competências relembram uma readequação da ideologia jornalística a uma nova realidade técnica.

Finalmente, a competência “d) distinguir entre o verdadeiro e o falso a partir de um sistema de referências éticas e profissionais” demanda um esforço de reformulação, por diferentes motivos. Por um lado, o potencial de geração de desinformação pela IA generativa já é conhecido (Saad & Santos, 2023). Isto se revela em ferramentas de geração de texto, vulneráveis ao fenômeno das alucinações (quando as ferramentas geram, com aparente certeza, informações incorretas sobre a realidade), e, principalmente, em ferramentas de geração de imagens, que popularizam a criação de imagens sintéticas com alto grau de realismo. Por outro lado, o próprio uso indiscriminado de ferramentas de IA para fazer leituras sobre a realidade acaba por impactar o quadro de referências geral da sociedade. Compreender o novo status da verdade factual necessita tanto de competências técnicas quanto reflexivas. Técnicas, de modo a capacitar estudantes de jornalismo a conseguir identificar conteúdo sintético. Reflexivas, de modo a capacitá-los a pensar sobre o próprio papel da IA para processar informação. Assim, instrutores de jornalismo devem incentivar a literacia sobre a IA, que deve ir muito além do mero uso das ferramentas, mas englobar a capacidade de questionar e refletir sobre a ideia de “verdade” que é exposta por estas plataformas. Sendo a verdade um pilar ontológico e um insumo do trabalho jornalístico, essa competência curricular precisa ser reformulada para levar em conta esta nova realidade.

5. Desafios Para o Ensino de Jornalismo

Analisar a educação em jornalismo no Brasil a partir do prisma das competências curriculares permite estabelecer uma lente pela qual olhar a necessária transformação dessa estrutura de ensino. Pode-se resumir da seguinte forma as competências a serem trabalhadas com estudantes de jornalismo acerca da familiaridade com ferramentas de IA: competências conceituais, aquelas relacionadas às noções holísticas sobre o que é IA e quais seus complementos à execução humana de tarefas; competências técnicas, que permitem aos estudantes lidarem com ferramentas de IA, avaliarem seus resultados, e poderem reportar sobre os diversos impactos dessas ferramentas na sociedade; competências reflexivas, que permitem aos estudantes analisarem criticamente o impacto dessas ferramentas na atividade jornalística e na sociedade.

Jaakkola (2023) destaca que essa trajetória traz desafios à educação jornalística, que já havia sido impactada pela mídia digital e suas provocações. Aos desafios já mencionados, a autora acrescenta mais dois: os de educação pública e os didáticos. O primeiro representa a importância de se elucidar o público sobre o que é a IA, seus impactos e os possíveis exageros de seus criadores, contribuindo para a discussão pública. O segundo, de acordo com a autora, envolve estabelecer parcerias com empresas de IA para criar novas experiências de ensino a estudantes de jornalismo. No entanto, este segundo ponto pode ser expandido. Este desafio também pode ser encarado do ponto de vista dos aprimoramentos didáticos necessários na pedagogia do jornalismo em si, que precisa de novos métodos que se adequem às necessidades e dificuldades dos alunos, enquanto permitem que os alunos tenham experiências práticas e reflexivas em sua trajetória formativa. Cruz Argudo et al. (2024) ressaltam a complexidade deste desafio, sugerindo que universidades trabalhem na direção de criar fóruns em que os professores possam discutir sobre a aplicação da IA em aulas e sobre boas práticas, que se avalie os custos e oportunidades, e que haja um monitoramento constante da evolução e dos resultados de estratégias de inclusão da IA nos currículos, de forma transparente. O jornalismo envolve um desafio duplo: além de incorporar todas estas questões sobre o impacto da IA no ensino superior, ainda envolve a dificuldade de se treinar os estudantes a usarem e reportarem sobre a multitude de impactos destas ferramentas na sociedade.

6. Considerações Finais

Analisar o impacto da IA no ensino de jornalismo significa levar em consideração aspectos diversos, como a incorporação da IA nas estratégias de ensino, a própria transformação do jornalismo com a IA, tanto tecnicamente quanto conceitualmente, a capacitação dos estudantes para reportarem sobre a IA e estabelecerem um olhar crítico frente a ela, além das consequências de se incorporar estas transformações no ensino em si.

Neste artigo, se conduziu uma análise exploratória dos impactos da IA no ensino de jornalismo. No caso do Brasil, isto significa uma revisão das diretrizes curriculares, que guiam a criação de currículos no país. O impacto da IA nestas diretrizes pode ser resumido a partir da categorização delas em reforço, readequação e reformulação, em que algumas diretrizes têm sua importância reforçada, outras são readequadas, e uma delas passa por uma reformulação. Este quadro interpretativo auxilia a mapear o trabalho a ser feito por instituições de ensino para incorporar estas transformações no ensino jornalístico no Brasil. Ao mesmo tempo, as competências a serem retrabalhadas envolvem fatores conceituais, técnicos e reflexivos.

No entanto, as provocações relacionadas ao uso de ferramentas de IA também transcendem a estrutura específica das competências curriculares. Encarar a transformação da profissão a partir da lente desta tecnologia significa ir além do mero artefato técnico, mas considerar que estas estruturam pode ter um impacto holístico frente à profissão. Daí a importância de não apenas revisar currículos, mas também métodos de ensino, encarando o conjunto de técnicas de IA como ferramentas que serão incorporadas no mercado e, logo, precisam ser tratadas no âmbito acadêmico.

A julgar pelas características da tecnologia e de suas aplicações, a IA tem se revelado como um dos grandes desafios para o jornalismo nos próximos anos. Isto se dá tanto pelo que ela permite para o público geral, em termos de edição e manipulação de mídia, quanto pelas possibilidades de análise e processamento de informação por parte de jornalistas. Ao mesmo tempo em que estes recursos representam possibilidades de agilização e transformação do jornalismo, também trazem riscos de desinformação e aumento da concorrência com o jornalismo profissional, em uma época de constante pressão mercadológica. Vem daí a necessidade de se discutir esta infraestrutura técnica no âmbito acadêmico e com os estudantes, de modo a dirimir mitos, valorizar as capacidades jornalísticas e capacitá-los a agir de maneira ativa frente a estas ferramentas.

No entanto, instrutores precisam prestar atenção para evitar cair em determinismo tecnológico. As diversas promessas sobre transformação da sociedade com IA (Brevini, 2021), muitas divulgadas pelos seus próprios criadores, sejam apocalípticas ou utópicas, se valem da ideia de que a IA é uma tecnologia imparável e que será a principal força motriz de transformações sociais, desconsiderando questões culturais, políticas e econômicas, além de usos e apropriações. Assim, embora seja importante considerar o impacto deste conjunto de tecnologias, há que se equilibrá-lo com uma noção racional e realista sobre as empresas, seus incentivos econômicos e as capacidades reais dos dispositivos.

Finalmente, é necessária mais pesquisa, principalmente com a exploração de como de fato acontece a incorporação de IA na educação em jornalismo, tanto no que diz respeito ao que é incorporado na estrutura curricular dos cursos, quanto à identificação das estratégias pedagógicas usadas pelos instrutores.

Agradecimentos

Este trabalho foi realizado por meio de auxílio do Programa de Apoio à Atuação de Professores Horistas em Atividades de Pesquisa na PUCRS, edital 02/2023.

Nota Biográfica

Jornalista e professor adjunto de jornalismo de dados e estudos de desinformação na PUCRS. Também atua como pesquisador para o Atlas de Notícias e como revisor de iniciativas para a International Fact Checking Network. Coordenou iniciativas na News Product Alliance, na Meedan e na Ajor. Tem mestrado e doutorado em comunicação, este último com menção honrosa no Prêmio Adelmo Genro Filho.

Material suplementar
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Notas
Tabela 1
Competências curriculares para os cursos de jornalismo com impacto potencial de inteligência artificial

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