DOSSIÊ - MEMÓRIAS DE AULAS DE MATEMÁTICA
Recepção: 27 Setembro 2021
Aprovação: 26 Outubro 2021
Resumo: Este trabalho tem como objetivo descrever as lembranças de uma ex-aluna do ensino primário do Município de Aiquara BA, revisitando o passado mediante a memória das práticas do ensino de matemática. Para cumprir tal objetivo, usa a narrativa de histórias de vida como suporte metodológico e considerou como fonte a entrevista cedida por uma aluna que frequentou o então curso primário nos Grupos Escolares Lomanto Junior e Júlio Ignácio de Matos, trazendo enfoque às memórias das aulas de matemática, bem como o relato da relação professor-aluno presentes no contexto da sala de aula. A narrativa tecida aponta aspecto de uma cultura de ensino marcada pelo castigo, em decorrência do estudo da tabuada, aferida pela sabatina.
Palavras-chave: Narrativas, Memórias, Ensino de Matemática, Ensino Primário, Tabuada.
Abstract: This work as objetive describe the memories of a former primary school student in the city of Aiquara BA, revisiting the past through the memory of the practices of teaching mathematics. To achieve this goal, it uses the narrative of life stories as a methodological support and considered as a source the interview given by a student who attended the then primary school in the Lomanto Junior and Júlio Ignácio de Matos School Groups, bringing focus to the memories of mathematics classes, as well as the report of the teacher-student relationship present in the classroom context. The woven narrative points to an aspect of a teaching culture marked by punishment, as a result of the study of multiplication tables, measured by the test.
Keywords: Narratives, Memories, Teaching of Mathematics, Primary school, Tables.
Resumen: Este trabajo tiene como objetivo describir los recuerdos de un ex alumno de la escuela primaria en la ciudad de Aiquara BA, revisando el pasado a través de la memoria de las prácticas de la enseñanza de las matemáticas. Para lograr este objetivo, utiliza la narrativa de historias de vida como soporte metodológico y consideró como fuente la entrevista dada por un alumno que cursaba la entonces primaria en los Grupos Escolares Lomanto Junior y Júlio Ignácio de Matos, enfocando los recuerdos. de las clases de matemáticas, así como el informe de la relación profesor-alumno presente en el contexto del aula. La narrativa tejida apunta a un aspecto de una cultura de enseñanza marcada por el castigo, como resultado del estudio de las tablas de multiplicar, medidas por la prueba.
Palabras clave: Narrativas, Memorias, Enseñanza de las Matemáticas, Escuela Primaria, Sabatinas.
INTRODUÇÃO
Circunda no senso comum que a aprendizagem dos conteúdos de matemática é algo para quem tem talento. Quando se pensa no ensino desta disciplina, vem à memória de muitos, a concepção de um ensino abstrato. É inegável que a matemática é uma disciplina que segue um formalismo, tem uma linguagem própria e muitos estudantes têm dificuldade de compreender alguns conteúdos.
Pensar a relação do dia a dia existente na sala de aula e fazê-la conhecida, muitas vezes, não é possível, se não houver as narrativas das experiências ali ocorridas. Nesse sentido, para conhecer uma determinada realidade é necessário recorrer aos relatos e narrativas de situações acontecidas no interior da sala de aula e, para isso, o que uma documentação não consegue traduzir por si só, evocar a memória dos sujeitos que viveram tal situação é imprescindível.
Tomamos neste trabalho o compartilhamento de narrativas de práticas escolares do ensino da matemática vivenciadas por uma ex-aluna do ensino primário, nos idos dos anos de 1970, expressando as reminiscências de aulas de matemática entremeadas com tantas outras lembranças da escola e da vida.
Compreendendo que as narrativas das práticas escolares podem elucidar as práticas pedagógicas recorrentes de um determinado período, elas podem mostrar os impactos de determinadas experiências educativas, revelar os problemas e as dificuldades do dia a dia do interior da sala de aula, assim como apresentar estratégias usadas para a sua superação.
O presente trabalho compartilha elementos da história do ensino da matemática presentes no curso primário de um município baiano, auferidos no levantamento da pesquisa O ensino da matemática nos grupos escolares no município de Aiquara/BA (1965-1985): documentos, narrativas e perspectivas sobre a história, da qual desdobra uma pesquisa de doutorado, em andamento, que busca entender a influência da matemática moderna no interior da Bahia[2].
Serão apresentadas lembranças afetivas do tempo escolar coletadas por meio de uma entrevista gentilmente cedida por uma participante a fim de reconstruir o processo histórico. Trata-se de narrativas sobre as memórias relacionadas à Matemática durante a vida escolar no curso primário.
Nesse sentido, objetivamos descrever as lembranças de uma ex-aluna do ensino primário do Município de Aiquara[3]/BA, revisitando o passado mediante a memória das práticas do ensino de matemática.
Optamos como recurso metodológico a narrativa de história de vida por se caracterizar o método mais satisfatório para a obtenção de dados concernentes às práticas educacionais no que tange à cultura escolar que não se encontram em fontes materiais (documentais) e estas, por si só, não podem dar pistas das práticas realizadas nas escolas.
Cabe destacar que a utilização do termo prática, ora utilizado neste artigo, segue a compreensão disposta por Fiorentini & Crecci (2012, p.67, grifos dos autores) “‘prática(s)’, não a utilizamos no sentido oposto a de teoria, mas no sentido de que as práticas sociais são múltiplas, porque são diversas as formas de atuar e significar o mundo, de estabelecer relações com ele”. Nesse contexto, prática docente retrata as experiências/vivências e visão de mundo, refletidas a partir das relações históricas produzidas e recriadas.
Ao admitirmos as experiências dos sujeitos, consideramo-los como protagonista da narrativa e vislumbramos a sua contribuição para educação matemática, vez que a experiência, segundo Larrosa (2011), traz consigo a ideia de transformação. De acordo com o autor, o resultado da experiência resulta na formação ou a transformação, daí “que o sujeito da experiência não seja o sujeito do saber, ou o sujeito do poder, ou o sujeito do querer, senão o sujeito da formação e da transformação (Larrosa, 2011, p. 12).
As reflexões apresentadas tomam como pressuposto referenciais de Josso (2007), que discute a compreensão do potencial existente nas narrativas como ponto de partida para modalidades de pesquisa que abordam as histórias de vida, a memória, as representações sobre a profissão, entre outros temas. Para Josso (2007, p. 414), o “trabalho de pesquisa a partir da narração das histórias de vida ou, melhor dizendo, de histórias centradas na formação, efetuado na perspectiva de evidenciar e questionar as heranças, a continuidade e a ruptura, os projetos de vida, os múltiplos recursos ligados às aquisições de experiência, etc.”.
Nesse trabalho usamos trechos de uma entrevista[4] realizada em 2018, cedida pela participante, de 59 anos, em sua residência, situada na fazenda em que nasceu e passou parte da infância e regressou para a localidade após alguns anos morando na zona urbana. Seu nome não será identificado porque outros participantes da pesquisa, não permitiram que suas identidades fossem reveladas. Contudo, aparecem alguns nomes de professoras citadas pela entrevistada. Tais nomes são apresentados porque as mencionadas não participaram da pesquisa e são consideradas professoras que se tornaram referenciais no ensino primário do município.
Pelas explicações coletadas na entrevista e comparando com os dados levantados, foi possível identificar que a ex-aluna frequentou o Grupo Escolar Lomanto Júnior (1971-1973). Já o Grupo Escolar Júlio Ignácio de Matos a partir do ano de 1974. A escolha da participante se deu pelo critério de ter estudado em dois grupos escolares.
Para desenvolver esse texto foi necessário dividir a entrevista em categorias. Portanto, parte do fragmento que aparece em determinada categoria, por exemplo, pode não ter ocorrido dentro da sequência da gravação. Nestes fragmentos, procuramos buscar as associações de lembranças e repetição de ideais que pudessem captar os significados atribuídos pela entrevistada sobre os aspectos da realidade vivenciada.
1. A MEMÓRIA E HISTÓRIA DE VIDA
A lembrança e a recordação são ações que fazem parte da ação humana e compartilhar essas recordações, configura ação comum nas nossas vidas. Freitas & Fiorentini (2007, p.63) afirmam que “desde pouca idade, estamos contando aos outros nossas histórias e nos envolvendo, de maneiras diversas, com [essas] histórias”.
Neste trabalho não pretendemos aprofundar sobre o estudo da memória, visto que tal estudo carece de conhecimentos técnicos para entender seu funcionamento. Traremos à discussão alguns estudos de autores sobre a temática, de forma que possam sustentar nossa escrita.
A memória é o meio de conhecer a trajetória de uma pessoa segundo seu próprio ponto de vista das coisas. Através dela, o sujeito expressa recordações de momentos, situações, espaços, pessoas que carregam consigo e tais elementos vêm carregados de uma subjetividade própria. Dessa forma, a memória forma uma identidade.
Por Bosi (1994, p. 47), compreendemos que
Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas últimas, ocupando espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora.
No entender da autora, é pela memória que o passado emerge, misturando-se com as percepções sobre o presente e é pela interação dos tempos (passado e presente) que desloca-se o conjunto de impressões construídas ocupando o espaço da consciência.
É sabido que o vocábulo memória traz consigo um leque de significações. No entanto, o sentido usado neste trabalho reporta ao ato recordar fatos vivenciados. Com isso, visitamos a visão de Halbwachs (2006), que defende que a memória é construída socialmente, embora, trata-se de algo pessoal. De acordo com o autor, ela implica o ser social do homem, pois, se forma a partir de uma teia de correntes do pensamento coletivo e é fortemente influenciada pelo contexto que o sujeito convive como a classe social, a religião, a família, colega de trabalhos, etc.
Em Santos (2003, p. 51) temos que “indivíduos não se lembram por si mesmos e, para lembrarem, necessitam da memória coletiva, isto é, da memória que foi construída a partir da interação entre indivíduos”. De tal forma, Halbwachs (2006, p.72) corrobora afirmando que para “evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade”.
Dito isto, memória está impregnada das memórias de outros sujeitos e não se trata de um simples registro daquilo que foi vivido, mas de uma seleção de experiências e fazê-las emergir ou mesmo esquecê-las se vincula a elementos inconscientes como o afeto, a censura, entre outros.
A história de vida enquanto abordagem metodologia, foi considerada por priorizar as informações da entrevistada. Estas, é claro, tratam-se de dados descritivos e não tem caráter categorizador, pois valoriza-se mais o processo que o produto das situações relatadas.
Partindo deste pressuposto (Santos, 1995, p. 66) assevera que essa abordagem metodológica “poderá ser um valioso instrumento para o estudo da prática pedagógica no interior de uma disciplina, desde que se coloque a experiência de vida do indivíduo dentro de um enquadramento socio-histórico”.
As palavras da autora encontram base em Goodson (1988), que defende que é preciso que haja conexão dos estudos que se propõem analisar situações escolares e a dimensão biográfica e histórica dos atores diretamente ligados ao ensino.
O termo História de Vida, segundo Bertaux (1980), assume uma pluralidade de significados e foi traduzido de historie (em francês) e de story e history (em inglês) que consiste em narrativas contadas da maneira própria do sujeito e faz ponte entre o individual e o social. E Gauer& Gomes (2006, p. 106) definem a história de vida ou memória autobiográfica, como “à habilidade de recordar conscientemente de experiências individuais vividas no passado”.
Nesta dinâmica envolve capacidades cognitivas relacionadas à lembrança de um fato pessoal do cotidiano com o caminho de casa ao trabalho. Gauer & Gomes (2006) pontuam o fato que, apenas, alguns eventos possuem registros duradouros a ponto de serem lembrados em longo prazo. Destaca o autor, que esses vêm à memória com facilidade, mais até do que outros que se repetiram inúmeras vezes.
Ao estudar as abordagens narrativo-biográficas na socialização profissional de professores Kelchtermans (1995) apresenta cinco características para a História de vida: narrativas (experiências são organizadas e não centra nos fatos, mas no significado que eles tiveram), construtivística (inserem as suas experiências numa “história” significativa para eles), contextual (os eventos são sempre apresentados num dado contexto físico, institucional, social, cultural e intrapessoal) interacionista (resulta da interação significativa com o contexto) e dinâmica (ressalta a dimensão temporal e a dinâmica de desenvolvimento).
A história de vida enquanto metodologia de pesquisa surgiu no final da década de 1970 e ganhou força nos anos 80. Sua particularidade consiste em explorar a abordagem biográfica como instrumento de formação e de pesquisa. O autor aponta que o objetivo do método é ter acesso a uma realidade que ultrapassa o narrador.
Em Josso (2007), encontramos que quando os sujeitos descrevem suas histórias, eles revivem suas trajetórias evidenciando sentimentos e emoções e, de modo significativo, passam a refletir sobre questões identitárias e da existencialidade. E,
esse trabalho de reflexão a partir da narrativa da formação de si (pensando, sensibilizando-se, imaginando, emocionando-se, apreciando, amando) permite estabelecer a medida das mutações sociais e culturais nas vidas singulares e relacioná-las com a evolução dos contextos de vida profissional e social. As subjetividades exprimidas são confrontadas à sua frequente inadequação a uma compreensão liberadora de criatividade em nossos contextos em mutação (Josso, 2007, p. 414).
A autora ainda acrescenta que essa ação coloca “em evidência a pluralidade, a fragilidade e a mobilidade de nossas identidades ao longo da vida a identidade individual é, pois, definida a partir de características sociais, culturais, políticas, econômicas, religiosas, em termos de reprodução sociofamiliar e socioeducativa” (Josso, 2007, p.415).
A utilização do método da História de Vida sofre algumas críticas. A principal, segundo seus críticos, diz respeito ao rigor científico, principalmente naquilo que se refere ao contato entre pesquisador e sujeito. Ressaltamos que este método tem como característica o vínculo que se estabelece entre pesquisador e sujeito.
A pesquisa de Campos (2004, p. 21) caracteriza a história de vida como uma metodologia. E, sobre o posicionamento do pesquisador de sujeitos, a autora pontua que há uma interação própria entre ambos e, “a pesquisa é uma forma de “co-construção”. Os dados coletados são específicos daquela situação. A maneira como o pesquisador se coloca frente ao sujeito é de máxima preocupação para esse tipo de abordagem.
Nesse sentido, Josso (2007, p.415) aponta que pesquisa com histórias de vida “evidencia a exigência metodológica de pensar as facetas existenciais da identidade através de uma abordagem multi-referencial que integra os diferentes registros do pensar humano (as crenças científicas, crenças religiosas, esotéricas)”. Posto isto, a história de vida evidencia trajetória de pessoas comuns, da qual é possível desenvolver uma consciência individual e coletiva.
2. ANÁLISES E RESULTADOS
Durante a coleta de dados buscamos fazer com que a entrevistada pudesse trazer à memória lembranças ou informações relevantes sobre seu tempo de vida escolar e aspectos importantes do município à época do seu estudo primário. Ao utilizar esses dados, neste trabalho, separamos os pontos das entrevistas em três categorias. Optamos em descrevê-la desta maneira, com o intuito de apresentá-las contextualmente evitando a análise de perguntas isoladas.
1. As memórias dos estudos na infância;
2. As memórias de uma cultura escolar;
3. Memórias do ensino da matemática.
Esse ato de voltar ao passado, por meio das lembranças, prioriza as ações que estão inseridas na história de cada um, constitui parte de si e certamente acompanham significados imensuráveis.
De acordo com Larrosa (1994, p.43),
a própria experiência de si não é senão o resultado de um complexo processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam discursos que definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu comportamento e as formas de subjetividade nas quais se constitui sua própria interioridade.
Nessas categorias buscaremos identificar as recordações de infância e das ações educativas, pedagógicas e culturais que ocorriam no ambiente escolar na visão da participante e significação para a sua vida.
3. AS MEMÓRIAS DOS ESTUDOS NA INFÂNCIA
O modo como as pessoas narram suas histórias permite revivê-las e reorganizar as lembranças para que possam ser transmitidas. Na narração, o sujeito organiza as ideias a seu próprio modo expondo aquilo que acha pertinente, relevante, podendo ressaltar momentos de sofrimento, de superação ou engraçados.
Na narrativa da entrevistada, as lembranças do tempo de sua infância apresentam dificuldades vivenciadas para frequentar a escola, que, no momento, não se constituíram impeditivos.
A seguir, separamos trechos da entrevista que evidenciam as lembranças do estudo na sua infância.
Pesquisador: Desde quando a senhora mora neste município?
Participante: Nasci aqui na fazenda, morei aqui até a faixa de treze anos. Depois de treze anos que fui morar na cidade.
Pesquisador: Agora, como foi seus estudos, quais as escolas que estudou?
Participante: Quando a gente morava aqui na fazenda a gente ia a pé para escola, na cidade que fica quatro quilômetros. Então a gente ia a pé e voltava a pé. A primeira escola que estudei foi naquele Grupo Escolar Lomanto Júnior, foi a primeira escola que estudei. A primeira professora foi dona Neomésia. Depois do Lomanto Júnior eu fui para o Grupo Escolar Júlio Ignácio que já estudei com a professora Zeile, eu já estava na quarta série e depois fui para ginásio que hoje é o Colégio Américo Souto.
Pesquisador: Antes de ir lá, você estudou aqui[fazenda], você já foi pra lá na primeira série. Você se recorda se estudou em outro local?
Participante: Não. Não estudei, não. Só estudei nesses dois prédios: o Grupo Escolar Lomanto Júnior e Grupo Escolar Júlio Ignácio de Matos.
Pesquisador: Quais as matérias que você mais gostava?
Participante: Eu gostava mais de ciências, geografia... agora, Matemática eu não era muito boa não.
Estas perguntas configuram as primeiras questões da entrevista. A depoente ainda não se apresenta confortável com a gravação e respondia de forma objetiva às perguntas. Ela traz à memória as dificuldades enfrentadas para frequentar a escola no que tange ao deslocamento. Em outros pontos da entrevista essa situação volta a ser ressaltada. Em trechos que não foram expostos aqui, relata obstáculos como dias chuvosos, os perigos (enfrentamento de animais perigosos, como vaca parida, animais peçonhentos) impostos a um conjunto de seis crianças, composto por alguns de seus irmãos e outros vizinhos de fazenda.
As referências às professoras denotam a importância delas em sua vida estudantil primária. Ser professora, há 60 anos, denotava prestígio e respeito. Acreditava-se que “a tarefa de educar era sagrada, uma espécie de sacerdócio” (Martins, 2007, p.13), logo, tinha-se um ideário construído em torno da figura do professor.
Outra marca importante evidente na fala da entrevistada diz respeito à disciplina de Matemática. Ao ser perguntada sobre as matérias que mais gostava, além das favoritas, fez questão de ressaltar que a Matemática não estava no hall daquelas gostava, mas deixou explicito sua dificuldade que será descrita na última categoria.
4. AS MEMÓRIAS DE UMA CULTURA ESCOLAR
Tratamos de evidenciar nesta categoria as lembranças e recordações referentes às atividades que aconteciam na escola. Podemos referenciar essas atividades como próprias da cultura escolar, como diz Viñao Frago (2000, p. 100), são
modos de fazer e de pensar – mentalidades, atitudes, rituais, mitos, discursos, ações – amplamente compartilhados, assumidos, não postos em questão e interiorizados, servem a uns e a outros para desempenhar suas tarefas diárias, entender o mundo acadêmico-educativo e fazer frente tanto às mudanças ou reformas como às exigências de outros membros da instituição, de outros grupos e, em especial, dos reformadores, gestores e inspetores
De acordo com o autor, a cultura escolar é caracterizada como um conjunto de práticas, normas e procedimentos que representam os modos de fazer e pensar o cotidiano da escola. São atividades desempenhadas pelos atores que frequentam a escola (professores, alunos, gestores e famílias), resultantes de ações que consolidam por um tempo, evidenciando como práticas. De acordo com Chervel (1988) essa cultura escolar é produzida e originada da escola. Para o historiador francês, a escola é constituída dos programas oficiais, que contém sua finalidade educativa e dos resultados consolidados da ação da escola que não estão inscritos nos programas oficiais.
Nesse sentido, nossa entrevistada revelou algumas práticas realizadas nos grupos escolares onde estudou. As festas foram uma dessas práticas
Pesquisador: No início desta entrevista você começou a falar sobre uma das festas que era comemorada nos grupos escolares, além dos desfiles de sete de setembro, você se recorda de outras festas?
Participante: Ah, tinha o folclore, que era uma festa muito bonita, era tudo arrumado, tudo bonito, as quadrilhas que a gente participava e era muito bonito. Era uma coisa bonita mesmo. E uma coisa do passado, mas era uma festa bonita. Hoje está bem diferente, totalmente diferente. O pessoal veste calça, bota chapéu, antigamente era aquela roupa de chitão que não se fala, as carinhas pintadas, as fogueiras, o licor.
O que eu mais gostava, era o Sete de Setembro que era uma festa muito bonita. A gente participava, era uma coisa que a gente gostava muito. [...]. E da escola era o Sete de Setembro que hoje praticamente já não existe mais. Aqueles desfiles, aquelas coisas de bailarina. Eu participava de bailarina. Era essas coisas que eu mais gostava da escola.
Pesquisador: Como era a sua participação?
Participante: [...]. Eu saia caracterizada, participava de bailarina ou do que a professora mandasse. Eu ia de bailarina na frente. Eu gostava da festa, nessa época, a minha idade, eu era mais nova, eu tinha meus oito a onze anos e participava dos desfiles.
Sobre outras práticas, questionamos sobre os exames de admissão e passeios educativos, comuns aos grupos escolares.
Pesquisador: Você fez até a sétima série, você...
Participante: [interrupção] Incompleto né, eu não terminei não.
Pesquisador: Mas você fez, você chegou a fazer o exame de admissão que era a passagem do primário para o colégio?
Participante: Ah, eu fiz! que era: a gente estudava primeira, segunda, terceira e quarta série e depois fazia admissão e tinha que ir para admissão para depois ir para o quinto ano que era a primeira série.
Pesquisador: que seria o ginásio.
Participante: Isso, o ginasial. Aí a gente tinha que recordar para ir para o colégio. Tinha que fazer admissão. A gente estudava um ano para depois volta e ir para o colégio. Tinha que fazer um ano. A gente tinha que recordar, quando a gente começou a estudar a gente estudava o ABC e depois ia para a cartilha, depois ia para o primeiro ano [primário], aí para fazer o primeiro ano a gente tinha que recordar, estudava depois voltava e recordava. Eu acho que era uma coisa que atrasava muito a gente, porque você tinha que recordar e atrasava e a gente ficou sempre atrasado.
Pesquisador: E quanto as aulas só aconteciam na escola? Existiam passeios fora da escola?
Participante: Não, eu não me recordo se tinha esse passeio, essa aula fora da sala de aula. Eu me recordo que tinha os piqueniques, mas também era assim, nem todo mundo participava, porque se os pais falavam que não ia, não ia. Nisto aí, Mainha confiava na professora e falava vai porque a professora toma conta, mas também a gente ia e obedecia, não dava trabalho. Era a única coisa da escola que a gente participava fora, era esse piquenique, mas também não era pegar carro e ir para um lugar fora, para uma praia, nada disso não. Era ali no rio mesmo, fazia uma latinha de farofa e ia todo mundo ali para o piquenique e aquilo ali era uma festa, uma animação e tanto.
Pesquisador: Ia a turma toda?
Participante: A maioria, aqueles que os pais deixavam. E se a gente também tivesse feito alguma coisa na escola ou qualquer coisa que tivesse de castigo o professor já não levava.
Pesquisador: Mas isso acontecia nos horários de aula ou em outro horário?
Participante: Não, geralmente era assim, quando eles faziam o piquenique era no final de ano. Era principalmente para aqueles que passavam de ano e quem perdia nem ia lá. Eu me lembro disso, de passar de ano e ter o piquenique no rio [inaudível - latidos de cachorro].
Quando se pensa em um elemento constituinte da cultura escolar, as festas sempre têm grande representatividade. “Festas, exposições escolares, desfiles dos batalhões infantis, exames e comemorações cívicas constituíam momentos especiais na vida da escola pelos quais ela ganhava ainda maior visibilidade social e reforçava sentidos culturais compartilhados (Souza, 1998, p.241). A sua realização nos grupos escolares se divide, de acordo com Maia (2012), em três categorias: cívicas, solenes e recreativas. Na fala da participante podemos identificar duas destas categorias, a cívica e a recreativa. São festividades que fizeram parte da cultura escolar dos grupos escolares por um bom tempo.
Vários estudos atestam uma forte ligação entre a formação do espírito nacionalista com a escola primária. Os valores patrióticos eram ensinados às crianças que aprendiam a prestar culto aos símbolos nacionais e ouviam discursos educativos de autoridades convidadas.
As festas cívicas ocorridas nos grupos escolares do município de Aiquara compreendiam semana da pátria, culto à bandeira e festa da cidadania. Os desfiles de sete setembro ganham destaque na fala de nossa entrevistada, por se realizar em um ambiente externo ao espaço escolar.
De modo geral, eram festas que agitavam uma determinada localidade, percorrendo as principais ruas e avenidas com apresentações artísticas, cânticos e hinos seguido de um grupo de alunos uniformizados e bem organizados.
Essas festas tinham um cunho disciplinador. Eram convidadas autoridades que proferiam seus discursos disseminando ideais republicanos de civismo e patriotismo. Desta forma, nos grupos escolares instaurou ritos, espetáculos e celebrações que, segundo Souza (1998, p.241), “mostra-se tão francamente como a expressão de um regime político. De fato, ela passou a celebrar a liturgia política da república; além de divulgar a ação republicana, corporificou os símbolos, os valores e a pedagogia moral e cívica que lhe era própria”.
Outras festas, as solenes e as recreativas, também entraram na pauta das comemorações dos grupos escolares. Por ter grande influência no calendário festivo da região nordeste, as festividades do São João (festas juninas), uma festa recreativa, ganhavam destaque de grandes comemorações. Estas comemorações tinham por objetivo trazer a sociedade para dentro da escola e apresentar aquilo que acontecia nos grupos escolares. Desta forma, toda a comunidade escolar participava do ato festivo.
Outra prática comum aos grupos escolares se referia aos exames de admissão. Apesar dessa prática ter sido extinguida com a Lei 5.692/71[5], a ex-aluna conta detalhes. Os dados apurados confirmam que a estudante cursou a quarta série primária no Grupo Escolar Júlio Ignácio de Matos no ano de 1974, três anos após a promulgação da lei. Com essa informação e também com acesso a outro documento, datado de 1972, inferimos que a prática pode ter permanecido entre as ações dos grupos escolares da localidade por mais alguns anos, mesmo após sua extinção oficialmente.
5. Memórias do ensino da matemática:
As lembranças do ensino da matemática narradas pela depoente revelam situações de temor à professora, medo e metodologia que envolvem castigo. Ao revelar essas lembranças, busca fazer um comparativo do passado com o presente.
Pesquisador: Quais as recordações que você tem das professoras? Como eram as aulas.
Participante: No meu tempo, você sabe que as professoras não ‘dava’ vez né? Era na época que tomava bolo, tomava reguada, ficava de castigo, de joelho. E assim, as vezes a gente ia até sabendo de alguma coisa, mas quando a gente olhava para a professora já tinha até medo, a gente ficava assombrado e acabava fazendo uma prova que ao invés de passava acabava perdendo. [...]
Assim, no meu caso, eu estava com doze anos, treze anos, se eu estivesse conversando no jardim com qualquer colega, com qualquer rapazinho assim e eu visse a professora, de longe ela já virava assim para mim e dizia assim - ei [nome da entrevistada ocultado] tá aí né? "tô" de olho em tu. Amanhã quando chegar na escola a gente tem uma conta a acertar -, então na verdade a gente tinha mais medo do professor até mesmo do que dos pais. então aquilo ali já tirava a gente de tempo, já sobrava, quando chegava na escola já não conseguia mais, o que a gente aprendia, desaprendia que quando a gente ia entrando ela falava – “tô” de olho eu lhe vi, eu vi você sentada ali, vi você conversando.[...]
A matemática mesmo, por exemplo, até hoje eu sou assim meio coisa na matemática, porque na minha época que estudei tinha muito a sabatina da tabuada. E ela batia mesmo pra ver o caco, batia pra ver doer. Ai, a gente já tinha aquele medo. Eu estudava, estudava, estudava, mas quando chegava lá, na hora, só de a professora colocar aquela palmatória em cima da mesa eu já começava tremendo e ali dificultava assim o estudo da gente. Hoje tá tudo mais fácil, porque além de você tomar as aulas, na época das provas vem novamente o reforço e a gente não tinha isso, ia para casa e tinha que estudar e quando chegava na escola que a gente via logo aquela “palmatorona” ali a gente já ficava assombrada.
Pesquisador: como era essa sabatina, como ela era realizada?
Participante: Ela colocava uma quantidade de aluno de um lado e outro do outro e ia fazendo as perguntas ne? Aí fazia as perguntas e se a gente não soubesse a resposta aquele aluno de lá tinha que bater na gente. Se batesse fraco, ela falava não, bota a mão que é para bater mais forte. E ali assim, era aquela disputa, aquela disputa, aí uns tinham coragem estudavam muito só para bater e outros, a gente, já tinha medo. Às vezes eu batia, mas eu apanhava mais que batia porque era difícil.
Pesquisador: Neste caso, como aprendia a tabuada?
Participante: Decorar, decorar, na verdade, a tabuada a gente não a estudava, a gente cantava.
Pesquisador: Como era esse canto?
Participante: Um e um dois, dois e dois quatro, era assim, era dessa forma que ia cantando, cantando, cantando, três e dois cinco e a gente tinha que cantar. Então a tabuada não era lida, não era estudada, era cantada. E naquele momento ali a gente cantava, cantava em casa e quando chegava na hora lá, aí o coro comia. E na verdade a gente já tinha até medo do professor.
Pesquisador: Voltando um pouco na sabatina, vocês tinham as quatro operações ou era a operação da soma?
Participante: Não, eram as quatro operações.
Pesquisador: E a questão da prova real e noves-foras, você lembra de alguma coisa?
Participante: Eu lembro que ela tinha dá a tabuada e tinha que fazer os noves-fora 4, noves-fora 6. Era aquela questão, não me lembro bem de detalhe, mas eu lembro que era as quatro operações e tem mais, ainda tinha que recordar, tinha o estudo de recordar. A gente lia, estudava e tinha que recordar tudo de novo. Era uma coisa muito complicada. Eu acho que hoje fica bem mais fácil hoje que antes. É bem mais fácil hoje que antes.
Pesquisador: E seus colegas, como era a sua relação com eles, sobretudo em relação as sabatinas, eles batiam, como era relação depois com eles?
Participante: Depois a gente não podia falar nada, saia dali de mão quente e se chegasse lá fora e falasse qualquer coisa ai quando chega na sala no outro dia, fala com a professora e ela ia lá e falava, - vem cá [nome ocultado] você falou lá que sua colega lhe bateu e falou que ia descontar - ou outro colega falasse isso, ai ela pegava e falava venha cá e colocava de joelho, no milho, né? pegava a palmatória batia, batia de reguada, entendeu? E não podia falar nada, falar o quê? Não podia falar nada. Apanhou, apanhou e acaba de deixar por isso mesmo.
Pesquisador: Quantas vezes na semana acontecia a sabatina? Você se recorda?
Participante: A sabatina, a tabuada? Eu não me recordo bem não, mas eu acho que era, no meu tempo era uma vez por semana, sempre acontecia, na semana 'tinha que que ter a sabatina, tabuada.
Pesquisador: Nas suas notas, que levantei na escola onde estudava, você tirava cinco e seis em Matemática, naquele período, você acha encontrava dificuldade. Você me apresentou uma criança que você acompanha nos estudos porque mora com você, então, você tem dificuldade em orientar ele?
Participante: Eu acho assim, para a gente era mais difícil. Para tirar um cinco ou seis era mais difícil. Hoje, como eu falo, os estudos estão bem mais fácil, tá tudo fácil. Se tirar nota baixa hoje é porque não tem interesse, mas tá fácil, porque veja bem, como eu acabei de te falar, assim, que já tinha a questão de a gente apanha a gente já ia para a sala de aula amedrontado, as vezes tinha dia que de manhã, nem o café eu tomava, quando a sabatina eu já ficava com tanto medo que não tinha nem fome para tomar o café para ir para escola, porque eu já ia tremendo, já pensava assim, meu Deus quando eu chegar lá se seu não souber eu vou apanhar e quando eu acertava eu saia alegre contente né? E hoje não, hoje os meninos não aproveita porque não quer. Eu vejo hoje a paciência do professor, eu vejo a liberdade que o aluno tem né? Isso também dificultou muito o trabalho do professor, porque os alunos não respeitam e tudo mais fácil. Como eu acompanho um menino que eu tomo conta, vai fazer quinze anos, eu quebro a cabeça para fazer ele estudar e passar. Ele está na oitava série e eu vejo com muita dificuldade, mesmo sendo tudo mais fácil, hoje tem carro de estudante, o carro vem pegar na porta, tem a merenda escola, no nosso tempo a merenda era três bolinhos de fubá né? para a gente merendar dez horas e tinha que andar quatro quilômetros da cidade para fazenda e hoje tem alimentação boa, tem carro na porta, energia, água encanada e chuveirinho quente. Nós não, nós levantava de manhã, minha mãe acendia o fogão de lenha e tinha que esquentar o buião de água para gente tomar o banho na bacia para nós irmos à escola. Voltava meio dia, chegava na fazenda em torno de uma meia para duas horas. Hoje está mais fácil para o aluno, mas dificultou para o professor. O aluno hoje não quer respeitar os professores. A gente ver tantos casos acontecendo na sala de aula que os professores tentam, até se esforçam, mas hoje como o aluno tem liberdade para tudo, então eu acho assim que ficou fácil para eles o estudo e se tornou difícil porque eles querem fazer o que eles entendem e com a gente isso era difícil, porque com a gente era o medo e respeito com o professor.
As lembranças do ensino da matemática relatadas pela entrevistada remetem para o ensino da tabuada vinculada a aprendizagem e a pressão exercida em decorrência dos castigos comuns à época. Por conseguinte, percebemos uma autoridade conferida ao professor, balizada pelo apoio dos pais para uso de tal prática.
Notamos na fala da depoente, que estudo da tabuada pautada pela decoração, sendo aferida por meio da sabatina. Esta estratégia ocorreria uma vez por semana, ocupando, por certo, a centralidade da aula de matemática. Percebemos a obrigatoriedade da participação de todos os alunos nesta ação que privilegiava o acerto e, quando este não ocorria o castigo acontecia por meio do uso da palmatória.
Reconstruir as lembranças é uma forma de olhar uma ação ocorrida e aprender com aquele momento passado, pois, elas não constituem histórias exatas do passado e ao serem acessadas, são moldadas aos fatos atuais. Como afirma Josso (2007, p. 420), por meio delas, o sujeito remonta as “projeções de si que têm alimentado os momentos de reorientação e são reexaminadas por sua significação no presente e pela colocação em perspectiva do futuro”.
Por algumas vezes na sua fala, a ex-aluna compara a sua dificuldade de aprendizagem no tempo dos estudos com aquilo que ela denomina de “facilidade” da atualidade. Como mencionamos anteriormente, buscamos compreender o processo e não o resultado ao analisar as memórias da ex-aluna.
Desta forma, evitando cair na armadilha do anacronismo, não consideramos comparar o modo de ensino da atualidade com o tempo escolar vivido pela estudante, contudo, vale ressaltar que a educação, nos últimos anos, passou por mudanças e transformação que centrou o ensino no educando, evidenciado estratégias que pudessem facilitar seu aprendizado, inserindo novas abordagens e estratégias diferentes daquelas usadas na época da estudante. Sabemos que os objetivos da aprendizagem da Matemática variam de acordo com as mudanças da finalidade do ensino. E o reflexo dessa mudança, que não é nosso objeto de investigação, mostra diferenças visíveis, se comparado os tempos.
O posicionamento da participante da pesquisa reflete um processo de concepção das coisas, que busca valorizar ou dar sentido às lembranças dos acontecimentos, pois, segundo Josso (2007, p. 420, grifos da autora), “põe em cena um ser-sujeito às voltas com as pessoas, com os contextos e com ele-mesmo, numa tensão permanente entre os modelos possíveis de identificação com o outro (conformização) e as aspirações à diferenciação (singularização)”.Tal situação mostra as transformações vivenciadas pela participante através das diversas vivências advindas de acontecimentos de sua vida pessoal e social e das situações que ela considera formadoras.
Observamos algumas repetições na fala da estudante, expressas por palavras ou por relatos de situações vividas. Em diversos trechos, percebemos a utilização deste recurso, sendo que três repetições se destacam: a primeira, o uso da palavra bonita que aparece seis vezes em um mesmo trecho da entrevista para caracterizar as festas; a segunda, para expressar a ideia da facilidade dos estudos na atualidade, foram utilizados os vocábulos fácil e difícil em frases e contextos diferentes para reforçar a ideia. E a terceira, refere-se ao uso da palavra medo para dar intensidade às situações vividas. Na categoria três, memórias do ensino da matemática, a palavra foi repetida sete vezes no trecho aqui descrito, sempre reforçando e intensificando algumas situações.
Tais repetições caracterizam-se como marcas do discurso, com a finalidade de reforçar a ideia apresentada ou dar ênfase a mesma, com o intuito de fazer o interlocutor compreender a mensagem. Nesse sentido, Freitas & Fiorentini (2007, p.63) advogam que as “histórias que contamos são o meio pelo qual tentamos capturar e traduzir a complexidade e as múltiplas relações que atravessam nossas experiências”
Diante destas ponderações, observamos que as lembranças aqui expostas ficaram gravadas na memória da entrevistada porque se tornou algo que marcou a sua história e, a partir delas, houve uma ressignificação. De acordo com Thomson (1997, p. 57) “ao narrar uma história, identificamos o que pensamos que éramos no passado, quem pensamos que somos no presente e o que gostaríamos de ser [e ao reordenar as lembranças trazemos aspectos desse passado que moldamos] para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais”. Em outras palavras, relatar a história de vida é uma oportunidade de (re)-experimentá-la, ressignificá-la.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso objetivo foi apresentar, a partir da memória de uma ex-aluna do curso primário do município de Aiquara, as lembranças do ensino da matemática. Foi possível perceber que o ensino de Matemática vivenciado pela entrevistada no curso primário foi fortemente pautado na memorização, valorização da tabuada, uso mecânico de procedimentos (uso da sabatina) e instrumentos (da palmatória) como elemento catalisador de situações traumáticas para a estudante.
Apesar de tal situação, notamos que a relação professor-aluno foi marcada por experiências positivas e negativas, de respeito e de medo como fora bem destacada. No que tange ao medo e vigilância da professora em relação aos atos extraescolares da aluna, podemos inferir que o contexto político que o país atravessava legitimava tais ações. O regime militar impunha uma censura e violência aos seus críticos e opositores que poderiam influenciar, ainda que sem prescrição oficial, a conduta dos professores.
A narrativa de vida como método possibilitou reconstruir nuances da história vivida e contada na própria versão da participante. A narrativa não sofreu intervenção por parte do pesquisador que preservou a história contada, considerada individual, subjetiva e cheia de detalhes importantes que expressam percepções de ensino.
Revistar o passado mediante a memória desta participante, permitiu conhecer algumas práticas do ensino de matemática relacionadas ao cotidiano, isso também foi possível pela associação da cultura envolto nos grupos escolares.
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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