Dossiê
Recepção: 27 Maio 2023
Aprovação: 29 Junho 2023
Resumo: O artigo é a narrativa dos protagonismos das mulheres militantes na oposição ao golpe e à ditadura militar implantada, desde 1964, no Brasil, a partir de diversas iniciativas políticas, inclusive em contraposição às ações das militantes golpistas, fundamentada na abordagem de gênero de linha marxista e no feminismo decolonial. A partir das articulações entre as suas vidas íntimas e públicas, excertos de suas biografias e inserções nos partidos e movimentos sociais de esquerda, procura-se evidenciar as relações históricas, dialéticas e materiais da interseccionalidade do sexo-social no processo da luta de classes, entendendo a história dessas mulheres atuantes no Recife como um micro-universo interferindo e desvendando a macroestrutura nacional e latino-americana, no bojo do movimento mais amplo de oposição às políticas de neocolonização orientadas pelo capitalismo internacional e organizadas pelos países imperialistas. Esta narrativa se faz na percepção da construção sociocultural da sujeita reveladora da estrutura político-econômica da resistência ao estado de exceção, ao mesmo tempo em que ressalta que a busca pelas origens psicológicas de ações nos eventos históricos narrados não é o princípio norteador da análise, concordando que a complexidade humana, dialeticamente observada, resulta objetivamente na história, sendo contestável qualquer alusão subjetiva sem fundamento na práxis.
Palavras-chave: História das Mulheres, Participação política, Gênero, Resistências, Brasil.
Abstract: The article is the narrative of the protagonism of the militant women in the opposition to the coup and the military dictatorship implanted, since 1964, in Brazil, from diverse political initiatives, including in opposition to the actions of the militant coup, based on the Marxist approach of gender and in decolonial feminism. From the articulations between their intimate and public lives, excerpts from their biographies and insertions in leftist parties and social movements, it seeks to highlight the historical, dialectical and material relations of the intersectionality of the social-sex in the process of class struggle, understanding the history of these women active in Recife as a micro-universe interfering and revealing the national and Latin American macrostructure, within the broader movement of opposition to neocolonization policies guided by international capitalism and organized by imperialist countries. This narrative is based on the perception of the sociocultural construction of the subject revealing the political-economic structure of resistance to the state of exception, while at the same time emphasizing that the search for the psychological origins of actions in the narrated historical events is not the guiding principle of the analysis, agreeing that human complexity, dialectically observed, objectively results in history, any subjective allusion without foundation in praxis being contestable.
Keywords: Women’s history, Political activism, Gender studies, Resistances, Brazil.
Resumen: El artículo es la narrativa del protagonismo de las mujeres militantes en la oposición al golpe y a la dictadura militar implantada, desde 1964, en Brasil, a partir de diversas iniciativas políticas, incluso en oposición a las acciones del golpe militante, de base marxista. enfoque de género y en el feminismo decolonial. A partir de las articulaciones entre su vida íntima y pública, extractos de sus biografías e inserciones en partidos y movimientos sociales de izquierda, se busca evidenciar las relaciones históricas, dialécticas y materiales de la interseccionalidad del social-sexo en el proceso de lucha de clases, comprendiendo la historia de estas mujeres activas en Recife como un microuniverso que interfiere y revela la macroestructura nacional y latinoamericana, dentro del movimiento más amplio de oposición a las políticas de neocolonización guiadas por el capitalismo internacional y organizadas por los países imperialistas. Esta narrativa parte de la percepción de la construcción sociocultural del sujeto develando la estructura político-económica de resistencia al estado de excepción, al mismo tiempo que enfatiza que la búsqueda de los orígenes psicológicos de las acciones en los hechos históricos narrados no es el principio rector del análisis, aceptando que la complejidad humana, observada dialécticamente, resulta objetivamente en la historia, siendo discutible cualquier alusión subjetiva sin fundamento en la praxis.
Palabras clave: Historia de las Mujeres, Participación política, Género, Resistencias, Brasil.
Mulheres protagonistas, uma introdução
Mesmo sendo incipiente, nos estudos históricos que ampliam o papel político das mulheres nos movimentos sociais no Brasil, é possível observar nomes femininos no rol dos protagonismos, com forte atuação na história política do país. No campo das esquerdas, é interessante exemplificar a participação de Tereza Escobar no Grupo Clarté do Rio de Janeiro, desde os anos 1920. Esse grupo foi responsável pela divulgação dos ideais comunistas, através da revista Clarté, sendo influente junto às camadas intermediárias da população, uma vez que era reconhecidamente um grupo de intelectuais. “A Revista Clarté chegou a ter considerável influência com a expressiva tiragem, para a época, de 2.000 exemplares” (PACHECO, 2008, p. 70). O grupo foi também responsável pela fundação do Comitê das Mulheres Trabalhadoras, uma iniciativa da militante Laura Brandão, considerada a primeira organização de massas femininas no Brasil, nos finais dos anos 1920, como extensão do Bloco Operário e Camponês (idem, p. 92). Também, nos anos 1930 e em diante, nota-se a presença feminina na direção do Partido Comunista do Brasil, com nomes como: Sílvia, Inês, Cina, Morena, Vânia Bambirra e Maria Medina Machado.
Nos anos 1950, a presença de mulheres em experiências piloto de planejamento social e urbano, influenciadas pelo padre francês Lebret é marcante. O projeto brasileiro foi coordenado pelo frei dominicano João Batista, que recebeu autorização para residir na capela na Rua Vergueiro, na capital paulista, dando nome ao Projeto. Ao instalar-se, criou uma cooperativa de trabalho. Segundo Cinira Fausto, “a ideia implantada no Vergueiro era a de mudar a relação entre o capital e o trabalho, [...] estendendo-se pela força do exemplo” (LEAL, 2003, p. 136). Reconstruiu-se a Capela do Cristo Operário, ornada com pinturas de Volpi e esculturas de Lúcia Frachetti, e construiu-se o salão, onde funcionaram teatro, cinema, biblioteca e local de palestras, além de uma fábrica de móveis, nos fundos, atividade da cooperativa Unilabor. A militante trotskista Cinira Fausto (POR-SP) participou desde a instalação e permaneceu na manutenção da biblioteca do Centro do Cristo Operário, com um trabalho direcionado ao público infanto-juvenil. Por algum tempo, recebeu a colaboração de Maria Edi Ferreira. Com a ampliação das atividades da cooperativa, voltadas para o desenvolvimento cultural, Teresa Vargas organizou o teatro, onde atuavam os operários da Unilabor e as militantes trotskistas Sabattina de Lourdes Gervásio, a Sabá, e Doroty Massola completavam a equipe. A experiência no Vergueiro durou até 1959, quando o Cardeal Arcebispo D. Carmelo Motta, preocupado com o avanço das esquerdas e o perigo que as ações dos militantes no Centro e na Cooperativa surtiam na comunidade e para além dela, despediu as jovens, levando Cinira Fausto a transferir, para sua casa no mesmo bairro, as muitas atividades que desenvolviam no Centro (idem, p. 135ss).
Nota-se, assim, que a participação feminina não destoa e se integra na luta mais ampla do qual o Brasil foi palco. Salientam-se ainda, outras participações de mulheres, como a da líder estudantil e trotskista Maria Hermínia Brandão Tavares de Almeida. Editora e revisora do jornal Frente Operária, desde a sua primeira edição em Santo André, em maio de 1963,[1] presa em diversas ocasiões antes de 1964, em decorrência da sua militância, e a destacada participação de Maria Medina Machado, no Recife, no Levante de 1935.
Pernambuco ocupava posição de destaque no cenário nacional, mais evidente a partir dos anos finais de 1950 até 1964, ficando na dianteira da luta de classe (PACHECO, 2008, pp. 119-163), por causa da insurgência de lideranças espontâneas do povo. Em decorrência da morte do trotiskista Paulo Roberto Pinto (codinome Jeremias), no dia 9 de agosto de 1963, o Comitê Regional do Nordeste do POR, reunido na sede do Recife, resolveu enviar três militantes, entre eles Carlos Montarroyos, para transladar o corpo e organizar um protesto. Na segunda-feira seguinte, saíram da sub-sede do sindicato em Serrinha na direção de També, com uma faixa de pano de cor preta, onde estava inscrito com letras brancas “Viva Jeremias”, em passeata. À medida que avançavam, muitos moradores e moradoras, camponeses, homens e mulheres, e crianças se incorporavam, formando um grande arrastão pelas ruas e estradas. Todos pareciam muito revoltados. “També parou em sinal de protesto pela morte de Jeremias” (idem). Até que num certo ponto da estrada, a multidão, indignada com os carros dos fazendeiros que, vez ou outra, parecia querer atropelar a passeata, decidiu que virariam o próximo carro que passasse. Queremos justiça! Os militantes que organizaram o ato pediam calma até que perceberam que seu palavreado era vazio e não surtia efeito:
Aí houve uma revolta. Uma camponesa, com um filho nos braços, de uns dois anos, pegou a discursar no meio do povo protestando contra os ‘estudantes’ [os próprios militantes] e dizendo que não ia mais continuar a marcha, pois veio para vingar Jeremias e os estudantes não deixavam o povo fazer justiça. De repente vimos que a nossa liderança havia terminado. [...] A massa vibrava e dizia: ‘Ela tem razão’, [...] a companheira [era] a essa altura a verdadeira dirigente da passeata. [...] Deu-nos as costas e [...] os manifestantes viraram-se para segui-la (LEAL, 2003, pp. 245-248. Grifo nosso).
Pernambuco, então, roubou a cena, apresentando-se como lugar onde mais fortemente se observava o conflito capital-trabalho. Majoritariamente agrária, a economia do estado dependia, quase exclusivamente, da produção da cana, feita em grandes extensões de terras, além do que, praticamente, apenas na região da zona da mata, onde o tipo de terra era mais apropriado para essa cultura. Isto obrigava, aos operários do campo, as migrações sazonais, ora do sertão na direção do litoral, ora, outra vez, na direção do sertão. Nessas plagas, as desigualdades sociais atingiram o seu clímax e as revoltas se tornaram uma constante, influenciadas pelas conquistas resultantes das lutas urbanas, que a crescente industrialização das cidades litorâneas fez eclodir. É interessante notar que o avanço na consciência das populações, sobre as desigualdades sociais de que eram vítimas, muitas vezes se originou na tentativa de minimizar essa opressão, quase nunca entendida como opressão de classe, como foram exemplos as ligas camponesas na zona rural e as associações de bairro do Recife.
O Recife, como já foi sublinhado, despontara no panorama nacional como a cidade que refletia o avanço das oposições: o governador e ex-prefeito era considerado representante das esquerdas, acusado por seus adversários de ser comunista, inclusive de “estar a serviço de Moscou” (MSFB)[2]. Sua relação com o Presidente era conflituosa. Situação observada na coluna Assis Chateaubriand do Diario de Pernambuco, sob o título O take-off para Cuba. No artigo, o jornalista informou aos seus leitores que o Presidente disputava a reeleição e o seu principal adversário era o governador nordestino, “Não deixa de revestir sedução a luta feroz em que se empenham Jango e Arraes” (JDP, 26/03/64). Jango, então, temia a popularidade do governador pernambucano no Nordeste, que o colocava como forte candidato às próximas eleições para o Planalto, em 1965. E continuou: “O apetite de Jango par uma segunda presidência [...], se revelaria ao segundo, uma calamidade [...]. O Governador [Arraes] deixou de ser um candidato encoberto para se tornar o aspirante mais visível e anotado para o Alvorada em 1965” (sic) (idem).
Nota-se que Miguel Arraes possuía amplas vantagens no Grande Recife, mas precisava disputar espaços políticos no interior de Pernambuco, o que facilitaria, também, a sua inserção nos outros estados, pela aliança quase comum e histórica entre os coronéis dos sertões nordestinos, área de lideranças conservadoras, que ainda conviviam com a cultura dos coronéis. Este espaço ambicionado foi conquistado com sua política de articulações (MSFB), que atraiu, entre outros, o apoio do coronel Chico Heráclito (Francisco Heráclito do Rego), de Limoeiro (cidade da Mata Norte, a 77 km do Recife), e de partidos de centro como o PTB, controlado por José Ermírio de Moraes, empresário que ambicionava um espaço no campo da política e tinha recursos financeiros a serem aplicados na campanha eleitoral (idem). Miguel Arraes representou “uma vaga coalizão de liberais, socialistas, comunistas, católicos progressistas, trabalhadores, estudantes e intelectuais” (PAGE, 1972, p. 69), e a crença de que era possível atingir objetivos revolucionários cumprindo a Constituição, mudanças legais e sem violência. Mote que fazia parte do projeto político da Frente do Recife, uma coligação de partidos, incluindo o Partido Comunista, que já elegera Pelópidas Silveira (PSB) para a Prefeitura do Recife em 1955, e que continuou alimentando as ilusões de política de muitos contemporâneos, inclusive o próprio João Belchior Marques Goulart, na presidência.
Mulheres e militantes conservadoras
Como já foi registrado, apesar da crescente mobilização das esquerdas pernambucanas, influentes na região, com dois nomes nos executivos estadual e municipal, na capital, o quadro político representava bem a divisão de forças que imperava no país: quando Arraes foi eleito governador em Pernambuco, Francisco Julião, liderança nas Ligas Camponesas, com posicionamento mais radical, foi eleito deputado federal; José Ermírio de Moraes, empresário, foi eleito Senador pelo estado, enquanto o IV Exército era comandado pelo general Costa e Silva e depois substituído pelo então general Castelo Branco, lideranças golpistas (JDP, 14/06/62).
Advém, então, o entendimento porque o mês de março de 1964 foi marcado por uma luta entre o discurso e o silêncio. O discurso exaustivo e confiante dos que acreditavam nas reformas a partir da luta democrática, tal como o discurso que marcou a escalada para o fim do governo Jango na Central do Brasil, em 13 de março, e o silêncio dos que agiam na preparação do ataque ao poder, olhando o desenrolar das forças populistas com sereno maquiavelismo.
Os grupos conservadores, formados por militares, empresários e políticos, apoiados pela CIA (Central Intelligence Agency), iniciaram desde fins de 1950 uma estratégia para conter o avanço das forças de esquerda no país. Agiam na legalidade, participando dos espaços constitucionais políticos, e na ilegalidade, organizando a tomada do poder, a partir do recrutamento, doutrinamento e aparelhamento de grupos de combate, que em todo o país compraram e transportaram armas de alto calibre, guardadas secretamente nas residências dos conspiradores, onde recebiam instrução de manuseio. No Recife, como foi observado anteriormente, isso também acontecia. Gregório Bezerra reforça essa afirmação: “Em Pernambuco, não era segredo a compra de armamento por usineiros, senhores de engenho e fazendeiros. Também não era segredo a complacência – melhor seria dizer a conivência aberta – do IV Exército, cujo comandante não escondia sua posição contrária ao governo estadual” (BEZERRA, 2011, p. 525).
Sob esta conjuntura, mulheres, militantes ou não, algumas apenas simpatizantes, atuaram em campos diferentes da política: experienciaram ou perceberam o avanço antidemocrático, a atuação dos civis e dos militares e se relacionaram com as forças repressivas ao eclodir a ditadura implantada. Evento marcado por fatos que de alguma forma o anunciavam.
Assim, o mês de março de 1964, nas palavras de Pelópidas Silveira, “foi um mês muito difícil no Recife, porque houve um ‘lockout’ nas classes produtoras, fecharam as fábricas, parou tudo. E o governo do Estado resistiu” (SILVEIRA, 2005). Uma paralização que começou com a reunião de empresários pernambucanos, em 1º de março, na Associação Comercial. O flagrante foi revelado no Diario de Pernambuco em poucas linhas na primeira página. Um texto curto, porém, insofismável, dizia: “as classes produtoras debatiam a situação relevante no interior do Estado, em consequência das sucessivas greves que paralisavam os trabalhos da agro-indústria açucareira” (JDP, 1° e 04/03/1964).
Bloquear o movimento dos trabalhadores e confrontar o governo eram as intenções das classes produtivas, e as classes médias se posicionaram, a exemplo da afirmativa de Ângela de Araújo Barreto Campelo, e foram favoráveis “a todas as reformas que atingem o povo. [...] Agora, a ideologia é que eu poderia combater” (AABC).
Na sequência, entusiasmaram-se com o movimento das elites que preparavam a derrubada dos governos estaduais e nacionais progressistas, formando, entre outras, uma rede de mais de cem estações de rádio e televisão, cobrindo o território nacional, conclamando o povo a tomar parte da “Rede Democrática”, alertando a população contra o governo constituído e chamando as mulheres a integrarem o movimento. Aderiram aos protestos, apoiados por parte da Igreja, que, entre outras contribuições, cedia seus espaços para as reuniões do grupo golpista.
A “Cruzada” em Pernambuco teve início nas conversas entre as mulheres que se reuniam no interior do Colégio São José. Igualmente, as marchas que aconteceram depois em outros cantos do país pretendiam agregar num movimento mais amplo de oposição a política das Reformas. Segundo Ângela Campelo, ela e outras mulheres buscaram apoio para suas inquietações naqueles “que dão segurança a gente” (idem), e integraram o movimento, possibilitando a derrubada do prefeito e do governador que ajudaram a eleger: as classes médias recifenses estavam decepcionadas com a resposta dos dois dirigentes ante os avanços dos movimentos da classe trabalhadora.
As mulheres que responderam ao chamado da “Rede Democrática”, “a maior parte daquelas mulheres [...] eram antigas ex-alunas do Colégio São José. Estavam acostumadas com aquela direção das freiras” (idem). E o fizeram na crença de que o papel das mulheres é a manutenção da ordem, a estabilidade e a promoção social, “porque nós províamos muito o homem, principalmente aquele mais carente” (idem). Com esta compreensão, perceberam o crescimento do movimento como algo natural, “E aquilo foi mais [...] E diziam que nós devemos fazer alguma coisa [...] E, de repente aquela multidão viu que já era uma força em si mesmo e saiu à rua. Aquilo foi... absolutamente espontâneo. Nada preparado” (idem).
A Cruzada Feminina tinha como mote “manter Pernambuco vivo dentro das suas tradições”, porque “a mulher pernambucana sempre foi muito ciosa da sua dignidade, da sua família e da sua pátria” (idem). E com esse discurso, cooptaram grupos em outras classes sociais, onde já estabeleceram uma militância: “Nós tínhamos muitas ligações com um grupo de lavadeiras [...] com o Córrego do Bartolomeu” (idem). Militância organizada no fundamento de que “o povo não pode ser trabalhado de cima para baixo, o povo tem de ser trabalhado de baixo para cima” (idem). E com uma práxis, realizada “através dos líderes e das pessoas representativas, das comunidades, que nós conseguíamos prestar alguma ajuda e difundir um pouco a nossa ideologia a respeito da ordem e do direito”, cumprindo, dessa maneira, uma agenda política de ordenação das camadas populares em torno da “Rede Democrática”.
Uma rede que se apoiou em ações de grupos de mulheres, chamadas a agirem na perspectiva de um modelo essencialista do “feminino”, em defesa da família, da propriedade e do estado e, para isso, muito se escreveu em homenagem ao espírito combativo de mães e esposas, verdadeiras rainhas do lar, dispostas a qualquer sacrifício pela salvação das suas crias e dos seus. Nas páginas do Diario, é exemplo dos convites às mulheres pela preservação da ordem o artigo Mulheres Mineiras. Nele, Costa Porto enaltece a figura feminina e afirma seu papel fundamental na luta pela manutenção das tradições (JDP, 01/03/64).
E, porque escreveu num jornal local, para mulheres pernambucanas, não se esqueceu de igualar aquela situação à resistência das mulheres na Igaraçu colonial, “da bravura das antigas senhoras pernambucanas”, ao enfrentar “os ataques noturnos desses selvagens” (idem), enquanto os homens dormiam. Costa Porto termina a coluna pedindo às mulheres para seguirem o exemplo das suas históricas conterrâneas. Tal pedido se coadunava com um processo ascendente de participação feminina no conjunto da sociedade, refletido no destaque que o Diario deu ao projeto de lei que ampliava os direitos das mulheres na legislação civil brasileira, equiparando-a ao homem, em tramitação na Câmara dos Deputados (JDP, 09/03/64).
Assim justificadas, mulheres de setores da classe média e dirigente se organizaram no mês de março de 1964, nas ruas do Recife, em duas grandes “Marchas da Mulher, pela Família, com Deus pela Liberdade”. A primeira, no dia 6, e a segunda, no dia 19. A marcha que aconteceu no dia 19 inseriu-se num movimento mais amplo de marchas, em resposta ao comício da Central do Brasil, carregando a mesma bandeira “nacional” dos setores conservadores da política: “MULHERES PROMOVEM CONCENTRAÇÃO EM DEFESA DO BRASIL” (JDP, 05/03/64). A marcha marcada para a tarde do dia 6 de março se incluía entre outras manifestações de aberta ameaça às instituições:
Será a primeira de uma série, iniciando uma campanha de esclarecimento, visando unificar todas as mulheres [...] contra as ideologias estranhas e a agitação vermelha nos campos, nas fábricas e nas escolas. Estão sendo convidadas, sem distinção de religião, classe social e côr, todas as mulheres – as donas de casa, as professoras, as funcionárias públicas, as estudantes, as comerciárias e as operárias. (sic) (idem).
As mulheres saíram do Colégio São José, onde começaram a concentração, sob as bênçãos da Madre Igreja. A cruzada sentiu a falta do seu líder espiritual, Dom Carlo Coelho, pois o Arcebispo Metropolitano de Recife e Olinda agonizava no Hospital do Centenário (JDP, 07/03/64). Com o pensamento no pároco enfermo, e para ele, as carolas fizeram a primeira oração antes de ouvirem o professor Paulo Maciel discursar aos seus ouvidos cândidos sobre “A Constituição do Brasil de um Novo Sistema de Poder Autoritário” (idem), a pedido das organizadoras do evento. E, depois, partiram em passeata na direção da Rua do Príncipe, a pedido de Carminha Miranda, de maneira pacífica, sem exaltações (idem). Fizeram o caminho mais curto e lógico para os transeuntes comuns que cortam de passos a cidade. Seguiram pela Rua do Hospício até alcançarem mais adiante a Sede militar. Faixas e cartazes em branco e preto se posicionaram à testa da marcha, como bandeiras desfraldadas sob um sol cálido e um céu ainda azul das tardes de março da Veneza Brasileira. Ao lado, outras bandeiras, hasteados os símbolos de cores fortes do Estado e da Nação. Pararam o trânsito, para os retratos ficarem retocados nos jornais. Saíram “SENHORAS PERNAMBUCANAS EM LUTA PELA LIBERDADE” (idem), e algumas mais afeitas aos flashes até olharam e sorriram para as “fotográficas” dos repórteres de plantão.
Naquele dia 6, registradas para sempre no Diario, marcadas como aquelas “CONTRA O TERROR VERMELHO”, concentraram-se outra vez, porém, na frente do Q.G. do IV Exército, e foram recebidas pelo Comandante General Joaquim Justino Alves Bastos. Maria Luiza recorda bem esse dia, porque ela não participou da caminhada desde o início, estava no seu horário de trabalho na Câmara e não integrou a primeira concentração no Colégio São José. “De maneira que eu peguei a marcha já no meio do caminho. Maria Clara entregou o manifesto no IV Exército”. Da sacada do comando militar, o manifesto foi lido pela professora Maria do Carmo de Tavares de Miranda, na direção da rua e das senhoras que se apinhavam na frente do prédio. Ouviram em boa voz: “Somos um agrupamento de mulheres convencidas de que devemos distorcer a evidência dos nossos destinos e [...] realizar todos os atributos da nossa condição. Reunimo-nos [...] para uma posição política [...], uma opção quanto a um sistema de poder” (sic) (JDP, 07/03/64).
Ao fim, sob o manto de estrelas, Carminha Miranda ouviu os aplausos e o “clic” de outra foto para guardar o instante histórico. Alarde maior, as notícias fizeram, nos dias seguintes, e seu nome ecoaria no hall da Câmara Municipal, merecendo, inclusive, os votos da maioria dos parlamentares da Casa (idem).
Não mereceu, porém, a simpatia em muitos campos populares (MNSC), como se lembra, Clemilda: as passeatas das mulheres da Cruzada, era um movimento de mulheres ricas, com ressonância apenas na sua classe, sem a adesão do povão. No bairro onde ela morava, na periferia do Recife, em Água Fria, não chegou notícia da realização desses atos (CMOS). O Diario, entretanto, ecoou informes sobre a ação cívica das cruzadas recifenses até a realização da marcha paulista do dia 19, quando os ânimos mais acirrados pediam menos cautelas, apresentando as manifestações como um conjunto de iniciativas da Rede Democrática.
A repercussão dos discursos no palanque armado na Central do Brasil, na capital carioca, no dia 13, principalmente, mas não apenas, o do Presidente João Goulart, pareceu oferecer o estopim que as elites conservadoras necessitavam, para justificar suas ações antidemocráticas, na primeira página, em letras garrafais: “MAGALHÃES PINTO DIZ QUE EXTREMISMOS LEVARÃO PAÍS AO GOLPE OU À REVOLUÇÃO” (JDP, 01/03/64). Situação e oposição, em nome do povo brasileiro, ameaçaram cumprir seus projetos.
Nas ruas, a “Rede Democrática” se antecipou e marcou “uma réplica prévia à concentração comunista organizada pelo governo federal”, na sede da entidade, no Rio de Janeiro (JDP, 10/03/64). As mulheres da Cruzada Feminina foram mais audazes: responderam com novas marchas. A marcha das mulheres na capital paulista, ocorrida no dia 19 de março, anunciada e noticiada na primeira página do Diario (JDP, 19 e 20/03/1964), recebeu o apoio e a participação de uma delegação da Cruzada Democrática Feminina do Recife. As representantes recifenses, Maria José Barreto Campelo, Haélia Batista de Carvalho, Albina Maia Mendonça, Clarita Melo Mota e Maria Ângela Campelo de Melo levaram uma faixa que desfilaram no comício sob aplausos. Na flâmula, as palavras em letras garrafais: “A MULHER PERNAMBUCANA, PELA JUSTIÇA SOCIAL, PELA LIBERDADE, PELA DEMOCRACIA” (JDP, 22/03/64).
No Recife, no dia 20 de março, as recifenses da “Rede”, promoveram novo protesto. A concentração fora chamada para a sede do América Futebol Clube, na Estrada do Arraial. O comício, entretanto, realizou-se na rua, causando disputas políticas. As portas do grêmio esportivo foram fechadas na última hora, por ordem do presidente do clube, deputado Lamartine Távora, que, segundo o jornalista do Diario de Pernambuco, era um arraeslita-janguista. Quando tomou conhecimento do fato, o deputado Felipe Coelho requereu ao presidente da Comissão Executiva da Assembleia Legislativa, deputado Walfredo Paulino de Siqueira (PST[3]), que cedesse as instalações do Palácio Joaquim Nabuco às cruzadas. Com microfone na mão, a professora universitária Carminha Miranda, outra vez, discursou para os presentes, e finalizou convidando todas as mulheres para a audição do deputado Danilo da Cunha Nunes (UDN[4]), do estado da Guanabara, em conferência na próxima reunião da Cruzada, realizada no Ginásio do SESC, em Santo Amaro, na noite da segunda-feira, 23 de março (JDP, 21/03/64). Tais atos políticos não se limitaram às passeatas nas ruas que as organizadoras gostavam de pensar e apregoar espontâneas e populares.
Maria Luiza Carneiro Campello se lembra, ainda, de uma reunião no Recife, no dia 22 de março de 1964, quando vieram Pedro Aleixo e Bilac Pinto[5] (UDN), e fizeram, segundo ela, uma palestra na sede da União dos Estudantes, na Rua do Hospício, num domingo à tarde (JDP, 22/03/64).[6] Enquanto faziam a reunião num dos andares do prédio, em baixo, na rua, um agitador iniciou um discurso acobertado pela polícia. Ao saírem do prédio, bombas de gás lacrimogênio foram jogadas e ela ficou com os olhos irritados. Mesmo assim, o grupo cantou o Hino nacional em frente ao prédio em protesto e afirmando sua posição. Por isso ela afirma que no governo de Arraes o campo, as indústrias e até a polícia – E este tal agitador tinha cobertura da polícia – estava infiltrada de comunistas. Não é muita clara a sua afirmação de quem foi o agitador e quem perseguia seu grupo, mas ela afirmou que Arraes tentou sabotar o trabalho do seu grupo, da Cruzada Democrática (MLCC). O Diario de Pernambuco, entretanto, em uma chamada, em sua edição, dias depois do acontecimento na Faculdade, confirmou o nome de Vernier, sem mais detalhes de quem seria essa pessoa (JDP, 24/03/64).
Na quarta, 25/03, Maria Luiza seguiu para o Rio de Janeiro levando uma lista de nomes de mulheres, “uma lista de assinaturas de senhoras da sociedade pernambucana, de todas as classes sociais, de todos os credos religiosos, pedindo o não reconhecimento do PC” (MLCC). Ela confirma, com essas palavras, a formação nacional da “Rede Democrática” e seu aparelhamento em várias frentes para desarticular as esquerdas.
É possível observar que os conflitos se acirraram entre as elites burguesas, as classes médias e o Estado, levando a imprensa ciosa de se tornar mais enfática nas suas críticas aos planos de Reformas dos “governos das esquerdas” (entendendo-se Jango, Arraes e Pelópidas Silveira), acusados de comunistas, numa época em que essa palavra significava mais do que uma posição política, era estar numa luta de vida e morte (BEZERRA, 2011, p. 454).
Reais ou imaginárias, essas acusações não se articulavam com as ações dos governos em qualquer instância. Em suas Memórias, o comunista Gregório Bezerra conta que, em fevereiro de 1964, “foi lançada uma campanha de boatos [...], anunciando o golpe militar contra [...] Miguel Arraes de Alencar e contra [...] João Goulart. [...] O apelo final era claro: só a intervenção do Exército poderia impor a ordem, garantir a vida e a propriedade” (BEZERRA, 2011, pp. 525-6).
A Rede Democrática, responsável por essa onda de rumores e depois na liderança do movimento militar, conjugava a necessidade de uma ação radical contra os comunistas e as lideranças “vermelhas” nas várias instâncias do executivo do estado, acusando os governos de pretenderem a iminente “cubanização do país”, de aliciarem os trabalhadores para as fileiras de um exército guerrilheiro treinado e municiado com o apoio de Fidel e dos russos.
Tal revelação justificava a “reação” das classes proprietárias de unirem força em defesa de seus direitos legítimos: fazendeiros organizaram milícias que agiam no campo, atentando contra os trabalhadores, os integrantes das ligas e os militantes das organizações de esquerda, que atuavam nas ligas ou nos sindicatos rurais. Nos centros urbanos, essa era a tarefa das delegacias e do exército. Do mesmo modo, observando o desenvolvimento dessa campanha, Gregório Bezerra entendeu a necessidade de reagir, “alertar o povo para o perigo verdadeiro e para a necessidade de preparar-se para, a todo custo, defender as conquistas até então alcançadas” (BEZERRA, 2011, p. 526). Com discursos inflamados para poucos ouvidos sonhadores, Gregório Bezerra inflamava alguns corajosos idealistas, na crença de que teriam as armas, que as massas estavam dispostas ao embate sangrento e o golpe não era uma realidade imediata.
Naquele presente, era apenas um sonho fugaz. Não existiam os campos para formação de um exército de revolucionários. E, quando o comunista Bezerra procurou Arraes e, depois, o secretário-assistente do governador, sabendo que “o patronato estava se armando” (idem), com o objetivo de armar os trabalhadores rurais e camponeses, ouviu uma resposta vaga. Vagos, também, eram os projetos de mudança na estrutura social e política brasileira e a iniciativa de enfrentamento, por parte do estado, aos grupos econômicos que dominavam no país.
Ante a inércia das “forças progressistas” e das esquerdas, a “direita golpista” continuava agindo. Para tornar essas ações golpistas verossímeis e legítimas, a Rede Democrática, atuando em âmbito nacional, manteve uma campanha de propaganda anticomunista incisiva, feita rotineiramente, num “trabalho de formiguinha”, e que grassava nos principais veículos de comunicação.
Em 31 de março de 1964, as manchetes em alguns jornais de grande circulação no país pediam uma ação efetiva dos salvadores da pátria: “Seria rematada loucura continuarem as forças democráticas desunidas e inoperantes, enquanto os inimigos do regime vão, paulatinamente, fazendo ruir tudo aquilo que os impede de atingir o poder” (O GLOBO, 31/03/64).
Mulheres à frente das forças progressistas
No Recife, nesse dia, há uma lacuna de informação. O Diario silenciou a precipitação da marcha do exército mineiro na direção do estado fluminense, enquanto, no Palácio das Princesas, Miguel Arraes ponderava reagir com a palavra. O jornal continuou sua propaganda anticomunista para estabelecer o pânico e alimentar uma tensão psicológica pró-golpe das forças militares. Na edição desse dia, ao lado da manchete “CGT DIZ QUE PARALIZARÁ O PAÍS SE OS MARUJOS E FUZILEIROS FOREM PUNIDOS”, os assustados leitores visualizavam a imagem fotografada de um muro pichado com as frases “FORA ARRAIS”, “ABAIXO A[RRAIS]” e “FORA O CRIMINOSO ARRAIS!” (sic) (JDP, 31/03/64). Expressão do “popular” pouco alfabetizado, porém consciente e cioso, pensariam tais leitores. E o muro, ao invés de lamentações, incitava uma atitude de emparedar a “comunização do estado”. A fotografia impressa no meio da página transformava aquele muro alto sem localização num emblema, ao mesmo tempo em que o aproximava de leitores em qualquer recôndito da cidade. Da periferia ao centro urbano, passando pelas tradicionais ruas de casas majestosas, palacetes da virada dos séculos, o muro pertencia aos jardins de rosas mosquetas, margaridas brancas, dálias alvas, nove-horas sempre-vivas. Protegia daquela confusão que fazia coro nas missas das seis, quando o santo padre revelava a vinda dos sete anjos do apocalipse, e a primeira trombeta já entoava seu canto, enquanto aquele outro padre santo falava pela boca do divino e iluminava com os sete candelabros o caminho da caridade cristã.
Ainda, no alvorecer do dia 31, o General Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar em Juiz de Fora, já manobrava seus soldados no caminho para a antiga capital federal carioca, com o aval do governador mineiro Magalhães Pinto, quando Miguel Arraes escreveu um manifesto nordestino esperançoso e conciliador, numa tentativa de minimizar o conflito e desacelerar as forças golpistas. Sabia o Governador pernambucano da inutilidade daquele documento, porque no Palácio, em contato com Brizola, entenderam a necessidade da vinda de Jango para onde a presidência pudesse ser protegida e atuar, mas já era muito tarde. Júlia Santiago da Conceição, militante comunista do Partido, lembrou-se de que “estava em Palácio, de noite... Brizola achava que Jango devia vir para cá e, daqui, governar. Mas naquela hora, não havia mais condições da gente fazer uma preparação, um movimento, para Jango vir” (sic) (JSC).
Essa mulher iniciou sua militância nas lutas travadas cotidianamente dentro das fábricas de tecido aos dez anos de idade, quando procurava emprego e enfrentava os desafios de uma tenra idade carente, até que se tornou, em 1947, a primeira mulher a ocupar a Câmara do Recife e a vereadora mais votada, fazendo com seus votos outro vereador da sua chapa. Analfabeta, descobriu que o aprendizado político podia ser uma conversa de namorados no fim do turno do trabalho, mas antes era uma escolha de vida. Naquele dia, como em todos os outros de sua vida, ela apenas foi agindo, sem pensar muito nas consequências. Seguindo, como diz Socorro Ferraz, “[n]uma ingenuidade e [n]uma ignorância que faz com que ela caminhe, que ela não tenha medo, que o medo vai surgindo à proporção que as coisas vão acontecendo, não se tem medo antecipado” (MSFB). Esse era o modo de ser das mulheres que militavam na resistência. E resistir, no dia 31 de março de 1964, era ainda imprevisível, porque as informações eram precárias, quando não eram contraditórias.
Fora do Palácio, a paisagem ensolarada de ruas agitadas pelos passos de transeuntes apressados, em meio aos carros de passeio, aos bondes que ainda circulavam contra o tempo e aos ônibus elétricos futuristas mais apressados, era uma calmaria apenas precipitada pelos olhos intranquilos dos assíduos leitores dos jornais. Como se as notícias acontecessem somente ali, nas páginas linotipografadas.
O Recife de corais exuberantes sob um mar azul quase diáfano era outro lugar. Era um lugar onde, no imaginarium das classes populares, as bandeiras comunistas eram tão românticas quanto os desejos das esposas de um marido fiel. Esses maridos das amigas que as mulheres recebiam com respeitada inveja. Por isso, a proximidade com esses homens era tão aspirada, e eles frequentavam os lares trazendo sua “boa nova”, apesar dos sortilégios de que eram incriminados. Essa imagem do “bem” nem sempre prevalecia, o que explica a militância comunista ter sido feita pelos mais velhos e associados ao Partido de maneira “cochichada” nos corredores das empresas. E, diferentemente, entre “os jovens [...] ser comunista era sexy, atraía as meninas. [...] podia nem ser, mas deixava transparecer” (CMOS). Comunista “tinha algo diferente” (MLL). Nas escolas, os professores quando não eram revolucionários, eram forjados no pensamento iluminista francês (idem).
E no embate fazendeiros versus comunistas, era motivo de piada um pobre votar contra a “sua classe”: “Os ricos eram de direita; os pobres, o que queriam era melhorar de vida, eram de esquerda; por que ser de direita se você é pobre?” (CMOS). No ar, um sentimento de que havia um acirramento entre as forças políticas de oposição. E esse “sentimento” motivava a jovem Clemilda a querer saber do movimento que transformava a cidade num palco de lutas. Então, ela lia. “Tinha um jornal comunista [...] que a gente não comprava, mas a gente lia, passava-se de mão em mão esse jornal [...] esses jornais comunistas passavam de mão em mão” (idem). Lia e tinha certeza de porque naquele jornal se fazia a defesa da candidatura de Arraes para governador, e, nos outros, ele quase nem aparecia. E um medo pairava no ar.
Um medo que não mudou a paisagem do dia 31 de março. Apenas no Palácio das Princesas os passos nervosos e os gestos imprecisos marcavam as decisões tomadas. Na Capital pernambucana, apenas uma nublada realidade e a certeza vulgar de que, se a disputa pelo poder arrefecesse, se as armas pedidas por Gregório a Arraes fossem dadas ao povo, como era sabido por todos que aconteceu, o resultado seria que “o pau sempre quebra nas costas do mais fraco [...] mais dia menos dia, o pau vai rolar [...havia] muito medo dos usineiros [...] o povo não sabe sociologia, mas sabe quem está no poder, quem manda, ‘não te mete’ [...] e os usineiros mandavam nesse estado” (MLL).
Nessa “normalidade” reinante, distante da governadoria, Clemilda não saiu para trabalhar nesse dia, porque aconteceu o batizado da filha Anamélia e a cerimônia de casamento da sua irmã, terminando num grande almoço de comemoração. O noivo e cunhado, o tenente João Teles Monteiro, convidou muitos amigos militares ao matrimônio. No casamento, fizeram silêncio dos acontecimentos, mas um rastro de apreensão pelos comunistas convidados permaneceu até o fim da festa. E, no dia seguinte, também, não foi trabalhar, mas a avó, advertidamente, na sua astúcia ancestral e contra todo protesto juvenil, já tocara fogo na mala de livros de um amigo, militante do Partido Comunista, que estava em sua casa, a casa de Clemilda.
Longe do Recife, na capital do agreste pernambucano, Maria Leônida Lopes, a Nida sentiu medo pela primeira vez das coisas que fazia, pelas pessoas com quem convivia e trabalhava. A notícia da queda de Jango e de Arraes chegou rápida, primeiro pelo telefone do MEB[7]. Desde então, a admiração pela causa dos trabalhadores, a opção pelos pobres transformou-se num sentimento que a cada dia a distanciou da ingenuidade de participar de um movimento cristão, naquele momento tornado impraticável, porque começaram as proibições e as atividades de alfabetização rural encampada pela Igreja retroagiram, “a cartilha ‘Viver é lutar’ não se podia mais usar, a gente ficava enrolando no rádio” (idem), por causa do alastramento da repressão. Essa separação da juventude católica se deu gradualmente e sem conflito, conscientemente, migrando para outra alternativa de luta até integrá-la na militância organizada, a Ação Popular, junto daqueles que decidiram resistir ao modelo de ditadura imposta a partir do Governo Militar. Sob o estado de exceção, essa menina saiu de Garanhuns para a Universidade do Recife, para cursar Sociologia e continuar a militância política. Uma militância que se fez sob os auspícios da repressão, quando todas as atividades eram proibidas e as articulações dependiam do segredo das ações. Nida se lembra das manifestações relâmpagos, determinadas pela AP e UNE, feitas na Rua Duque de Caxias, ao lado da Praça do Diario, com o apoio dos camelôs. A preparação começava, normalmente, um dia antes, para comícios que duravam poucos minutos sobre os caixotes dos vendedores ambulantes. Os militantes, sob o comando das suas lideranças e direções estudantis, organizavam-se em mensagens codificadas que “ia[m] passando a pé pela rua” (idem), através de sinais e palavras cochichadas nas calçadas quando se encontravam os companheiros. Começava: na dezessete... Terminava: ...macaco” (MLL).[8]
Um medo que se espalhava e alcançava todos os cantos do país. Um medo que chegou pelas ondas do noticiário, em Boqueirão, no estado da Paraíba, em 1º de abril, e marcou a memória de Maria de Fátima para sempre. Ela era apenas uma menina, mas notou quando uma vaga de preocupação mascarou o rosto do seu pai: “Eu me lembro claramente da notícia na ‘Voz do Brasil’ da queda de Jango. [...] ele estava sentado ouvindo o rádio e ele ficou preocupado ele disse: ‘pode ser que tenha algum problema, alguma guerra, alguma coisa, uma defesa, as tropas estão vindo. Eu me lembro da preocupação, [...ele tinha] uma antipatia por Jango” (MFG). Uma vaga de preocupação que o acompanhou desde então, que seu pai deixou como herança para os filhos, e que ele sempre presenteava aos meninos quando saiam de casa. “Ele sempre teve uma reserva muito grande. [...Ele dizia:] ‘quando um policial se aproximar de você, [...] saia de perto, não chegue perto, não questione” (idem).
Uma vaga preocupação, um estranhamento sem corpo dividia as expectativas de diferentes setores da sociedade pernambucana. Os militantes mais aclarados ainda curtiam as ilusões de que um ataque golpista era apenas uma promessa que nunca se cumpriria e o staff golpista não cantara a vitória: “No dia 31, a gente dormiu com isso!” (MMM).
O Recife acordou muito cedo, no 1º de abril. Desde a madrugada, centenas de soldados e dezenas de viaturas se organizaram fechando a cidade, esperando a ordem de ocupação do Palácio e impedindo a articulação das esquerdas e uma possível reação. Quatro unidades foram articuladas para o assalto, o 14º Regimento de Infantaria, o 17º Regimento de Obuses-105, a 7ª Companhia da Polícia do Exército e a Esquadria de Reconhecimento Mecanizado. As tropas marcharam pelas ruas e avenidas principais, cercando o Campo das Princesas. Deslocaram-se, vindas da Praça 13 de Maio, pela Rua Princesa Isabel na direção do Palácio. Posicionaram-se a partir da ponte Princesa Isabel, interditando, assim, um dos caminhos para a Casa do Governador. Na Praça da República, armaram metralhadoras que intimidaram os transeuntes que ali circulavam, desavisados e temerosos, e seguiram para os outros cantos de saída, ruas que contornam a praça na frente do Campo das Princesas, impedindo o acesso de quem vinha da Ponte Duarte Coelho pela Rua do Sol, bem como aqueles que atravessaram a ponte Buarque de Macedo ou que cruzaram a Ponte Maurício de Nassau, descendo pela Avenida Martins de Barros. Também, quem naquelas horas da manhã costumava seguir pela moderna Avenida Dantas Barreto ou pela histórica Rua do Imperador, sob suas calmas aleias, subindo ou descendo, defrontou-se com artilharias, tanques e soldados tão espantados quanto os caminhantes. Curiosos e perturbados apressaram saltos e passos. A Sede do Governo foi cercada, impedindo, assim, a sua fuga ou o seu resgate.
A vereadora Júlia Santiago, que no dia anterior esteve no Palácio, chegou ao Sindicato dos Tecelões e recebeu a notícia: “Júlia, você sabe que o Palácio foi ocupado [...] pelo Exército? Estás conversando, estás brincando” (JSC). Quando percebeu “como nós não tínhamos vigilância” (idem), o golpe já tinha desferido sobre suas crenças um forte baque, mas não a desanimou, só tornou-a mais lúcida, “o exército aqui não fez por menos, ele não escuta, mata logo!” (idem). Sua iniciativa foi tentar retornar ao Palácio, para onde seguiu de carro pelas ruas vigiadas. Na ponte Princesa Isabel, que leva para o centro do Recife, foi parada por uma blitz do exército que procurava por armas, “eu estava com Amaro e Nelson, ai pedi a eles calma. Ai perguntei: ‘o que é que há comandante?’ [...No que eles responderam:] ‘Não é porque estão descendo com armas, estão vindo da parte de Gregório, que está lá organizando os camponeses’” (idem) Mesmo assim, deram ordem para ela passar e o carro seguiu na direção da Praça da República, de onde avistaram Arraes descer as escadarias, escoltado pelos militares.
Preso sob o comando do Coronel Castilho que entregou a carta da deposição ao Governador, e escoltado por militares do IV Exército, seguiu de carro, um fusquinha, para o 14RI (Regimento de Infantaria), situado em Jaboatão dos Guararapes, no Grande Recife, e no dia seguinte para Fernando de Noronha onde permaneceu vários meses. Nas fotos estampadas no Jornal Diario de Pernambuco no dia seguinte, o Governador parecia resignado ao lado do militar. Afinal, tentara de todas as formas manter a governadoria, desincentivara qualquer reação da Frente Popular ou dos grupos mais radicais.
A Vereadora, depois de assistir, humilhada, a queda do “guerreiro”, retornou ao Sindicato, de onde decidiu retirar a placa com o nome da associação de trabalhadores mais atuante da época. Quis mobilizar as forças da Frente Popular, mas ouvira que o Exército já ocupara o Palácio e o governo aceitara a deposição. A crença na legalidade se opusera a uma reação armada contra a tomada do Palácio. A Vereadora, então, depois de receber ordem de fuga, tentou avisar nos comitês espalhados pelos bairros da cidade que os militantes do Partido deviam se exilar da Capital. Estava inconformada, mas decidida a não ser presa, nem deixar prenderem os militantes, principalmente os do Comitê da Macaxeira, “que era muito forte” (idem). Antes, passou pela casa de Adalgisa Rodrigues Cavalcanti com a intenção de obrigá-la a fugir naquela mesma noite. Depois foi para casa se despedir e se aprontar para um exílio que durou algumas semanas. Fora torturada em outra época, mas depois de 1964 não foi presa ou respondeu inquérito, porque sumiram com sua ficha dos prontuários da “Permanência”.[9]
Em casa, Adalgisa Cavalcanti aguardava os acontecimentos. Foi encontrada no andar de cima da sua residência, acompanhada pelo marido. A Deputada foi denunciada, arrancada de sua casa à luz do sol. Na delegacia, foi torturada moralmente e ameaçada várias vezes de ser entregue para o Exército, “ameaçada de ir para o Exército e lá ser espancada. Esse negócio todo, desnorteada” (ARC). Nunca pode denunciar a tortura porque assinou um documento afirmando que não foi maltratada, “eu não gostei de ter assinado aquele negócio” (idem). Esteve presa por quatro meses na Penitenciária Bom Pastor,[10] onde recebeu visitas da companheira e vereadora Júlia Santiago, que insistia em auxiliar aos amigos de militância, apesar dos alertas de que podia ser presa a qualquer momento pelo envolvimento com os presos políticos.
Nas ruas, repercutiam as notícias divulgadas atrasadas pelos jornais e algum conhecimento repassado entre as direções dos partidos e os militantes sobre o advento golpista do dia 31 de março. Nessa ocasião, o discurso era reticente, como reticente eram as respostas. De ambos os lados, situação e oposição tratavam como incidente a marcha iniciada às cinco da manhã por “um homem vestido de pijama e roupão de seda vermelho”, que tinha apenas um número por munição e um telefone como arma (GASPARI, 2002, p. 68).
O general Mourão Filho comandou a tropa que atravessou os portões do quartel mineiro, mas não saiu de Juíz de Fora. Ainda na cidade, o chefe militar almoçou e cochilou a sesta em sua bela casa, enquanto ordenou que um esquadrão de reconhecimento percorresse lentamente algumas dezenas de quilômetros do caminho que leva ao Palácio das Laranjeiras (idem, p. 72). Numa burlesca guerra de telefones, o primeiro apoio ao movimento “revolucionário” de Mourão Filho veio do General Castelo Branco que, com seu aval, derrubou, num efeito dominó, todas as dúvidas de que a hora chegara à imprevisível realidade, até que se consumou o golpe com a declaração de vacância do cargo de presidente da República, dois dias depois.
O atraso natural das comunicações, de alguma forma, participou do esfriamento das ações dos militantes mais aguerridos. As notícias veiculadas no Diario, no dia seguinte ao primeiro dia do golpe, ainda anunciava a marcha militar mineira, enquanto, no estado carioca, Jango se convencia da sua deposição, apesar dos protestos. Por isso, os recifenses liam no passado e em letras garrafais, na primeira página da edição, a manchete: “FORÇAS MILITARES DE MINAS REBELAM-SE CONTRA JOÃO GOULART E OS COMUNISTAS” (JDP, 02/04/64). De perturbadora a salvacionista, as emoções foram tragadas de um gole, porque nem bem leram o prenúncio do movimento e já o 4º Exército estava nas ruas do Recife, cercando o Palácio, tropas comandadas pelo general Joaquim Justino Alves Bastos. Quando o comandante anunciou a sua adesão (JDP, 02/04/64), a polícia estadual estava a postos para ocupar as ruas da Veneza pernambucana (idem). Sobre as consequências da marcha militar mineira no país, as chamadas informavam a declaração do General Amaury Kruel, comandante do II Exército, sediado em São Paulo, que resolvera, após reunião com o Estado Maior, que se posicionava a favor do Brasil e contra os comunistas (idem), coadunando com as palavras do Ministro da Guerra, general Jair Dantas (idem). Nessa primeira página do Diario, os leitores mais distraídos observaram com intranquilidade que uma guerra civil se delineava na paisagem da história brasileira, pois, a acreditar na chamada do jornal, numa notícia veiculada pelo associado Meridional carioca, tropas do I Exército, sediado na capital carioca, aprontavam-se para reagir à Força de Defesa da Democracia, a marcha militar mineira como foi denominada pelo seu comandante de tropa (idem).
E, para ressaltar esse perigo de uma luta armada iminente, contrariando toda razão histórica e ponderando como a fantástica fantasia popular, em uma pequena nota que continua em página seguinte, Juscelino Kubitschek adotou a posição de ser contra o comando militar e a favor de que as forças, ora contrárias, decidiram pelo melhor para a nação. Clamava pela paz como um imperativo político, porque temia que o “sangue generoso” dos nacionais fosse derramado (idem).
Fora dos jornais, um grupo de militantes e outros tantos fiéis ao governador começaram uma marcha civil de protesto em resposta à marcha militar, que no seu desenrolar, prenunciavam, terminaria com a deposição do governador Miguel Arraes de Alencar. Reuniram-se e percorreram as ruas principais do centro do Recife, atravessaram a secular ponte da Boa Vista, e pretendiam alcançar a Praça da República, em frente ao Palácio das Princesas, para enfrentar o exército golpista, quando uma tropa da Polícia Militar, com ordem de matar, fez uma barreira, que na lembrança do jovem Marcelo era verde-oliva (MMM), à passagem dos resistentes. No julgamento da memória do, então, Jornalista Marcelo Mario de Melo, esse episódio foi marcado de outras impressões.
A primeira impressão de Marcelo sobre os episódios, no primeiro dia do golpe foi: “Pela manhã, a gente viu o cerco começando por tropas do Exército em torno do palácio. Começaram, também, as notícias sobre as prisões e as invasões de sindicato. Noticiaram a prisão de Gregório Bezerra” (idem). Ao sair para as ruas, ouviu boatos de resistência no Porto do Recife. No Porto, havia umas trezentas pessoas. Foram cercados, mas não foram presos. As pessoas, aos poucos, foram abandonando a resistência. A decepção dos militantes, entre eles, Marcelo Mario de Melo, foi maior quando compreenderam a difícil situação em que estavam colocados: “O fato é que as armas não chegaram, e não havia esquema nenhum” (idem).
Havia mesmo uma concentração espontânea na área da antiga Faculdade de Direito, que ficava numa rua central da cidade, de grande circulação de pessoas e comércio intenso, de grandes lojas de atacado e outras empresas, além de escolas. Dali, à tarde, saiu uma passeata “pela Rua do Hospício e encontra o povo em pânico, as lojas fechando, o povo como se estivesse vendo o ‘bicho papão’[11]. O povo correndo pela rua para pegar ônibus, taxi” (idem).
O caos instalado com essa mobilização modificou a paisagem na medida em que avançavam a certeza de que era preciso defender as bandeiras das lutas e de que essas bandeiras conquistadas foram desfraldadas. Hastearam a bandeira do Brasil e cantaram o Hino Nacional, seguiram pela Avenida Conde da Boa Vista, e, na esquina da loja Sertã com o cinema Trianon, pararam para mais um comício e depois, seguir para o Palácio das Princesas. No caminho, duas massas humanas, em oposição, se encontraram, na esquina do edifício Juscelino Kubitschek, no cruzamento da Avenida Dantas Barreto com a Rua Siqueira Campos, apenas uma delas armada: “uma tropa comandada por um militar [talvez] do Exército, uma tropa da PM[12], em marcha pato de ganso”[13] (idem). Nesse momento, aconteceu o tumulto, consequência da ação policial: “Começa o tiro e o pessoal diz[ia]: ‘É festim! É festim!’. Como se fosse bala de borracha” (idem). Porque passara o ano, de 1963, engajado no serviço militar, Marcelo soube distinguir a diferença de um tiro dado com bala de borracha e outro dado com bala de pólvora, pelo som causado com os disparos dos projéteis, bem como, porque observou quando as balas atingiram a parede do prédio. Apesar do recuo do povo, no campo de batalha da Veneza brasileira, o golpe fez as primeiras vítimas públicas: Jonas José de Albuquerque Barros, militante da juventude comunista, da base do Ginásio Pernambucano foi socorrido e levado para o pronto-socorro; Ivan Aguiar[14], armado com um revólver calibre 38, disparou um tiro (não atingiu ninguém) e foi atingido no pulmão, por um fuzil-metralhadora. “Foi o único tiro disparado pela resistência!” (idem). Na queda, Ivan perdeu o revolver, recolhido no asfalto por Antônio Florêncio, comunista da cidade de Palmares, localizada na zona da mata pernambucana. Antônio Florêncio guardou a arma, que foi, depois, transformada em troféu (idem).
No dia seguinte, no registro jornalístico, as vítimas foram culpadas pelos seus fins trágicos: “AGITADORES PROVOCAM TIROTEIO NA DANTAS BARRETO: 2 MORTOS” (JDP, 02/04/64). Fazia parte do discurso dos “vencedores” tonalizar o sangue vermelho derramado e até esquecer os sonhos sonhados pelo povo que elegeu Pelópidas, Arraes, Jango: o sonho dos maltratados pela falta, que falta trabalho, que falta comida, que falta justiça, que falta dignidade, até que falta democracia. Esqueceu que a passeata, enquanto caminhou pelas ruas até se defrontar com a Polícia Militar, engrossou com a adesão de “populares” que sonharam com a democracia.
Esse primeiro dia do golpe na capital pernambucana não foi vivido com a mesma intensidade por todos os recifenses. Na lembrança de Maria das Neves, seu cotidiano mudou apenas parcialmente, e a memória da violência do Exército ficou apenas nas palavras que inaugurou o medo, mas não foi capaz de silenciar as ideias aprendidas em anos de uma prática católica da caridade e da justiça. Aqueles discursos que ela ouviu em sua casa, nos encontros que a sua mãe realizava com as mulheres do bairro, para ouvir a doutrina de Dom Helder (MNSC).
Nevinha conta que trabalhava no escritório de uma empresa norte-americana com filial no Brasil, o laboratório farmacêutico Merck Sharp e Dohme, situado na Rua da Concórdia, quando foi demitida no final de fevereiro e procurou trabalho durante todo o mês de março de 1964. Em várias companhias, fez testes para admissão. No dia 31 de março, foi chamada pela firma italiana Pirelli Pneus, uma empresa situada na Av. Cruz Cabugá. Ela se apresentou nesse dia, quando conversou com o gerente, fez uma carta pedindo emprego, para mostrar que sabia redigir e deixou os documentos no departamento de pessoal. Ainda, nesse dia, trabalhou até o final da tarde e, na manhã seguinte, retornou para o emprego. No 1º de abril, por volta do meio-dia, ela recebeu ordem de ir para casa: “o gerente, um italiano, nos reuniu na sala e disse: ‘Vocês não precisam voltar à tarde, o Palácio foi invadido pelo Exército, Arraes está sendo deposto, ele é um homem de verdade’. Quando nós saímos, cadê ônibus? Não tinha ônibus!” (idem). Nevinha caminhou da Cruz Cabugá até sua casa, morava na Rua do Clube Das Pás. Moradora no bairro de Campo Grande, ela se lembra do centro da cidade deserto, naquele dia. A movimentação era apenas em torno do Palácio. Ela não viu qualquer circulação do Exército, e no rádio, pela manhã, não houve comunicação dos acontecimentos, por isso fora trabalhar. Quando retornou à casa dos pais, já passava da hora do almoço, o rádio estava ligado e ela ouviu, junto com o pai, a notícia da deposição e prisão do governador e que o vice, Paulo Guerra, assumiria no seu lugar. No dia 2, voltou ao trabalho. As ruas estavam calmas e os ônibus circulavam, normalmente. Ela sabia que não era para falar sobre o assunto, que não devia ter opinião sobre a prisão do chefe do executivo estadual, que “era para ficar calada. [Mas,] de um modo geral, as pessoas eram favoráveis a Arraes” (idem).
Distante, também, do centro dos acontecimentos, mas não menos envolvida, Elzita Santos de Santa Cruz Oliveira viveu as torturas impostas pelo regime de exceção no período da Ditadura, através das prisões de sua filha Rosalina, grávida, do genro Geraldo Leite, e do filho Fernando, depois um desaparecido político. Bem como, sofreu com o exílio do seu filho Marcelo, antes que se tornasse mais uma vítima da repressão.
Essa mulher de pouca instrução, cercada de mimos pelo pai, casou cedo e teve dez filhos. Não participou diretamente de qualquer movimento político ou partido, mas confessou que instruiu os filhos no interesse pela política quando, em casa, nos períodos de eleições, colava os ouvidos no rádio para ouvir contar os votos. Lembrou que na eleição em que Miguel Arraes foi candidato a governador do estado, fez seus meninos contabilizarem os votos gritados pelo radialista. Assistiu, assim, as urnas chegarem do interior, trazendo a boa nova de um candidato do povo ser eleito chefe máximo de Pernambuco, apesar da oposição ferrenha dos usineiros, que disputavam voto a voto com o “Zé Ninguém”. Somaram as cédulas e ela soube logo que seu candidato ganhara com uma margem pequena ante seu principal rival, João Cleofas. Pouco mais de 4600 eleitores fizeram a diferença entre o novo e o velho mundo, do que ela, dona Elzita e seus filhos iriam viver tantas consequências. A menina Elzita, a quem negaram conhecer, na infância, os mortos da família, quando adulta, aprendeu novenas de cemitério, percorrendo entre as lápides em romaria pela soltura da sua filha, pelo aparecimento do seu filho vivo. Ou morto, não importava, “sonho com o fim da história” (ESSC).
O rádio informou a prisão de Arraes causando comoção na população e depois, quando o ex-governador ficou incomunicável, gerou o boato de sua morte. “Quando Arraes saiu preso do palácio, o povo na rua chorava, chorava na porta da igreja” (CMOS).
Um ponto final para uma nova história ou à guisa de conclusão.
Um dia depois do longo suspense, a 2 de abril, jornais abertamente favoráveis à tomada do poder pelos militares voltaram a estampar manchetes, discursos em forma de editoriais e eloquentes narrativas jornalísticas que faziam acreditar que o povo se arrependera dos milhares de votos nas urnas em favor do projeto dos nacionalistas e das esquerdas brasileiras que pretendiam reformas legais, agora declaradamente os “inimigos da nação”. No jornal carioca, as manchetes traduziam a gloriosa conquista da Rede Democrática, a derrocada das lideranças vermelhas: “FUGIU GOULART E A DEMOCRACIA ESTÁ SENDO RESTABELECIDA. A ASSEMBLÉIA DE PERNAMBUCO VOTOU O IMPEACHMENT DE ARRAES” (O Globo, 02/04/64).
Em letras garrafais apresentaram aos leitores uma sequência de retratos em preto e branco do desejo construído no silêncio e na ausência de uma oposição. Fizeram acreditar que as massas, esse povo sem identidade (REIS, 2000), clamavam pelo retorno dos militares, que no imaginário das elites um dia representaram o país. Queriam a volta do “progresso” com ordem e “sem violência”: “A população de Copacabana saiu às ruas, em verdadeiro carnaval, saudando as tropas do Exército. Chuvas de papéis picados caíam das janelas dos edifícios enquanto o povo dava vazão, nas ruas, ao seu contentamento” (O DIA, 02/04/64).
O Diario de Pernambuco também se revelou a imprensa golpista. No dia seguinte, aproveitou as páginas da sua edição para estampar imagens da “revolução”. O atraso das informações não diminuiu seu forte impacto. Repetindo o modelo do jornal sudestino, a manchete publicou a fuga do chefe da nação, “JANGO SAI DE BRASÍLIA RUMO A PÔRTO ALEGRE OU EXTERIOR: POSSE DE MAZZILLI” (JDP, 02/04/64), e uma chamada na primeira linha da primeira página anunciou a queda do chefe do executivo estadual, “ARRAES DEPOSTO PELO EXÉRCITO: PAULO GUERRA A FRENTE DO GOVERNO” (idem).
Na foto, Miguel Arraes está sentado no banco traseiro de um fusca, que não é possível identificar como um veículo do exército. Seus acompanhantes vestem fardas para atividades administrativas, mas são vestes militares. O rosto imparcial do governador era traído apenas pelo olhar fixo na sua frente, certamente não enxergava a nuca do seu condutor. Talvez, vislumbrasse o futuro incerto. Recebera ordem de prisão e fora algemado. Em outra foto, na página interna da edição, o repórter do jornal registrou num “clic” essa ocasião. Na saída do Palácio, descera as escadarias apenas acompanhado de oficiais superiores e soldados armados. Porém, esse acordo de cavalheiros não depõe contra o “agitador vermelho”, e, por isso, não foi digno de se eternizar em cena.
Não foi estampado nas páginas linotipografadas, é certo. Da mesma forma, mulheres e homens que lutaram para garantir o estado democrático de direito foram condenados pela imprensa sumariamente. Até quando a história, esse “carro alegre que atropela indiferente todo aquele que a nege” (BUARQUE; MILANÊS, 1978), reencontrou as linhas das vidas de júlias, de nidas, de clemildas, de fátimas, de adalgisas, de nevinhas, de elzitas, de socorros e até de marias luízas e ângelas e, contrapondo relatos, fez sua narrativa.
Referências bibliográficas
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Notas
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