Recepção: 10 Novembro 2024
Publicado: 31 Janeiro 2025
Resumo: Esta pesquisa conjuga os pressupostos teórico-metodológicos da Investigação-ação crítica à Pesquisa Narrativa com o objetivo de compreender a Autoria Reflexiva Coletiva de um programa de ensino de Química para o primeiro ano do Ensino Médio como produto educacional para a formação continuada de professores de Química emancipados a partir da produção de conhecimento químico escolar. Para tanto, reuniu quatro professores de Química da educação básica em um processo de formação inspirado na espiral de Investigação-ação crítica (i. Definição do problema; ii. Reflexão e planejamento; iii. Ação e iv. Avaliação e Replanejamento). Os dados foram construídos e analisados pela Análise Textual Discursiva e os resultados expressam que a Autoria Reflexiva Coletiva de programas de ensino de Química, como produto educacional para formação continuada de professores da Educação Básica, potencializada pela reflexão crítica no/do próprio ensino e reconstrução do Conhecimento Químico Escolar, propicia o desenvolvimento do conhecimento dos professores, orienta o pensamento crítico nas decisões do ensino que realizam e amplia a autonomia docente emancipatória. Nesse sentido, o produto educacional se constitui um modelo de formação com potencial para ser desenvolvido com professores da educação básica em diferentes contextos (produção de materiais didáticos, experimentação investigativa, ludicidade, textos de divulgação científica, entre outros) onde a autoria pode ser realizada.
Palavras-chave: produto educacional, modelo de formação docente, programa de formação continuada, educação básica.
Abstract: This research combines the theoretical and methodological principles of Critical Action Research with Narrative Inquiry, aiming to understand the Collective Reflective Authorship of a Chemistry teaching program for the first year of high school as an educational product for the continuous professional development of emancipated Chemistry teachers, based on the production of school chemistry knowledge. To achieve this, four basic education Chemistry teachers were brought together in a professional development process inspired by the spiral of Critical Action Research (i. Problem definition; ii. Reflection and planning; iii. Action; iv. Evaluation and replanning). The data were gathered and analyzed through Discursive Textual Analysis, and the results reveal that Collective Reflective Authorship of Chemistry teaching programs, as an educational product for the continuous development of basic education teachers, enhanced by critical reflection on and within their own teaching and the reconstruction of school chemistry knowledge, fosters teachers' knowledge development, guides their critical thinking in teaching decisions, and broadens emancipatory teacher autonomy. En este sentido, el producto educativo se configura como un modelo de formación con potencial para ser desarrollado con profesores de educación básica en diferentes contextos (como la creación de materiales didácticos, experimentación investigativa, ludicidad, textos de divulgación científica, entre otros) donde se puede fomentar la autoría.
Keywords: educational product, teacher development model, teaching continuous training, high school.
Resumen: Esta investigación combina los supuestos teóricos y metodológicos de la Investigación-acción crítica con la Investigación Narrativa, con el objetivo de comprender la Autoria Reflexiva Colectiva de un programa de enseñanza de Química para el primer año de Educación Secundaria como producto educativo para la formación continua de profesores de Química, emancipados a partir de la producción de conocimiento químico escolar. Para ello, se reunieron cuatro profesores de Química de la educación básica en un proceso formativo inspirado en la espiral de la Investigación-acción crítica (i. Definición del problema; ii. Reflexión y planificación; iii. Acción; iv. Evaluación y replanificación). Los datos fueron construidos y analizados mediante el Análisis Textual Discursivo, y los resultados muestran que la Autoria Reflexiva Colectiva de programas de enseñanza de Química, como producto educativo para la formación continua de profesores de Educación Secundaria, potenciada por la reflexión crítica sobre/en su propia enseñanza y la reconstrucción del Conocimiento Químico Escolar, favorece el desarrollo del conocimiento de los profesores, orienta el pensamiento crítico en las decisiones pedagógicas que toman y amplía la autonomía docente emancipadora. En este sentido, se configura como un producto educativo que puede ser desarrollado con profesores en diversos contextos formativos, donde la autoría puede llevarse a cabo (producción de materiales didácticos, experimentación investigativa, ludicidad, textos de divulgación científica, entre otros).
Palabras clave: producto educativo, modelo de formación docente, programa de formación continua, educación primaria y secundaria.
Autoria reflexiva coletiva de Programa de Ensino de Química Escolar: produto educacional para a formação continuada de professores de Química
Apresentação do objeto de investigação: fundamentos teóricos e metodológicos da Autoria Reflexiva Coletiva
A Autoria Reflexiva Coletiva[3] representa uma abordagem para a formação de professores, fundamentada nas etapas da espiral de Investigação-ação crítica (Carr; Kemmis, 1988; Contreras, 1994). Essa proposta visa formar professores por meio de um processo de produção de conhecimento químico para o contexto escolar.
Neste artigo, a autoria foi desenvolvida a partir de uma pesquisa de doutorado e consistiu em um trabalho colaborativo realizado por quatro professores de Química da Educação Básica, visando a construção de um programa de ensino de Química voltado para o primeiro ano do Ensino Médio. A Autoria Reflexiva Coletiva é uma clara oposição às práticas reprodutivas tradicionais, buscando promover a autonomia dos professores, ao posiciona-los como protagonistas na sistematização do conhecimento que ensinam.
O processo de formação de professores, tanto inicial quanto continuada, investe pouco na produção de conhecimento pelos docentes. No que diz respeito à produção curricular, predomina a prática de reproduzir sumários de livros e outros materiais didáticos. No Ensino Médio, isso se traduz frequentemente na adesão às matrizes de referência de processos seletivos para ingresso nas universidades, como o Enem e os vestibulares tradicionais.
Essa reprodução limita o desenvolvimento profissional dos docentes e restringe sua autonomia na definição dos objetivos de ensino que pretendem alcançar. Em contraste com essa prática, e buscando novas abordagens de formação, esta pesquisa tem como objetivo principal: compreender a Autoria Reflexiva Coletiva de um programa de ensino de Química para o primeiro ano do Ensino Médio como produto educacional para a formação continuada de professores de Química emancipados a partir da produção de conhecimento químico escolar.
Ao considerar que o termo "programa" pode ser utilizado para diferentes propósitos, defendemos ser importante esclarecer, desde a introdução deste trabalho, o que entendemos por programa de ensino de Química escolar. Trata-se da sistematização (seleção e organização) dos conteúdos químicos adequados ao ambiente escolar, com o intuito de promover uma formação crítica dos estudantes. Isso implica na integração entre o senso comum e o conhecimento científico, visando ampliar a compreensão dos alunos sobre a realidade e as oportunidades de intervenção social consciente e alinhada com o bem-estar coletivo.
De igual modo, a autonomia docente tem sido amplamente debatida em estudos sobre a formação de professores, com diversas definições que variam conforme a base epistemológica utilizada. Nesse contexto, consideramos importante esclarecer por que entendemos a autonomia abordada nesta pesquisa como emancipatória. Com base nas ideias de Contreras (2002), assumimos que os fatores sociais e institucionais que influenciam a prática docente não surgem de forma espontânea, mas representam formas de dominação que limitam a atuação do professor, suas concepções sobre o ensino, os objetivos de formação dos alunos e o papel social do conhecimento escolar.
Nessa perspectiva, advogamos que a autonomia docente, enquanto forma de emancipação, se revela como um processo de análise perpetuamente crítica das circunstâncias que inibem o desempenho dos educadores – especificamente no contexto desta investigação, na elaboração de um programa de ensino voltado para componente curricular de Química – almejando assim estreitar a relação entre a prática docente e as transformações sociais pautadas nos valores de igualdade, justiça e democracia (Freire, 2009).
Ao entender a autoria como um instrumento para a autonomia e emancipação dos professores, esta pesquisa reuniu quatro professores de Química que atuam na educação básica, com o objetivo de desenvolver coletivamente um programa de ensino. Esse processo foi guiado por uma reflexão fundamentada na Racionalidade Prática e Crítica, em contraposição à Racionalidade Técnica (Carr; Kemmis, 1988; Schön, 1992; Zeichner, 1993).
A elaboração do programa requer uma análise profissional das decisões pedagógicas na abordagem do ensino de Química, o que, sem dúvida, remete à participação dos professores na construção do currículo (Elliott, 2005; Stenhouse, 2003, 2004) e produção do Conhecimento Químico Escolar em práticas colaborativas (Lopes, 1999; Maldaner; Frison, 2014; Maldaner; Zanon, 2019).
Com base na definição do objeto de pesquisa, que é a Autoria Reflexiva Coletiva de um programa de ensino de Química dirigido ao primeiro ano do ensino médio, foi desenvolvida uma proposta de formação continuada com o objetivo de promover a colaboração e a participação ativa dos professores envolvidos. Este modelo é aqui defendido como um produto educacional para a formação continuada de professores e será apresentado em detalhes na seção seguinte deste trabalho.
Desenho metodológico da pesquisa
Para tornar possível caracterizar a pesquisa, é necessário explicitar que houve imbricação de dois métodos investigativos: a Investigação-ação crítica (Carr; Kemmis, 1988; Contreras, 1994) e a Pesquisa Narrativa (Clandinin; Connelly, 2011). A imbricação intenciona compreender sobre a proposta de formação em pauta a partir das experiências vividas e narradas pelos professores que dela participaram.
A Pesquisa Narrativa contribuiu para o processo de construção teórica a partir da experiência vivida e compartilhada, o que agregou a esta pesquisa a possibilidade de teorização das aprendizagens construídas, a partir das produções docentes do programa de ensino possibilitado pela ação formadora. Já a Investigação-ação crítica possui etapas que inspiraram o modelo de formação defendido neste trabalho, conforme descrevemos na Figura 1.
As etapas da espiral de formação continuada pensadas para esta pesquisa preveem um avanço epistemológico que parte da reprodução (concepção técnica do trabalho docente) para a autoria (concepção prática e crítica do trabalho docente).
Para a realização da pesquisa foram executados quinze encontros de formação organizado nas quatro etapas da espiral: i. Definição do problema (ausência de autonomia dos professores para tornar possível a autoria de programas de ensino de Química); ii. Reflexão e planejamento (reflexão crítica sobre as concepções e práticas dos professores-autores para permitir o planejamento da Autoria Reflexiva Coletiva); iii. Ação (Autoria Reflexiva Coletiva do programa de ensino de Química para o primeiro ano do Ensino Médio) e iv. Avaliação e replanejamento (Análise e crítica sobre o processo de produção dos professores-autores e sua contribuição para ampliação da autonomia docente e aprendizagem do Conhecimento Químico Escolar, além de possibilidades de expansão da espiral formativa para outros espaços que os professores-autores ocupam).
Neste trabalho, serão discutidos os resultados vinculados às terceira e quarta etapas de formação (“Ação” e “Avaliação e replanejamento”). Assim, o enfoque estará localizado no processo de formação vivido pela reconstrução do conhecimento químico escolar com o objetivo de produzir o programa de ensino para o primeiro ano do ensino médio e suas implicações para a formação dos professores envolvidos na pesquisa, prospectando possibilidades de formação para professores de Química da educação básica.
Para a construção, sistematização, análise e comunicação dos dados da pesquisa foi adotada a metodologia de Análise Textual Discursiva (Moraes; Galiazzi, 2016), que consiste na realização de três principais etapas: unitarização, categorização e metatexto.
O processo de Análise Textual Discursiva é realizado no corpus da pesquisa, que são “Produções que expressam discursos sobre diferentes aspectos que fazem parte do fenômeno investigado e que podem ser lidos, descritos e interpretados, correspondendo a uma multiplicidade de sentidos possíveis” (Moraes; Galiazzi, 2016, p. 38). Nesta pesquisa consideramos como corpus as transcrições das áudio-gravações dos encontros do grupo de formação, assim como a produção coletiva do programa de ensino de Química.
Ainda no delineamento metodológico da pesquisa julgamos importante apresentar os quatro professores participantes do processo de Autoria Reflexiva Coletiva, esclarecendo que ao longo de todo o texto eles são denominados professores-autores. A cada professor-autor foi dada a possibilidade de identificar-se a partir de seu próprio nome ou escolher nomes fictícios para representá-los nos diálogos transcritos nos resultados. São professores-autores a Joyce (pesquisadora), a Júlia, a Maria e o Murilo.
Após a seção metodológica da pesquisa, passamos a narrar[4] os resultados da pesquisa em primeira pessoa do singular como representação do processo de análise e interpretação da pesquisadora (primeira autora). O surgimento da voz em primeira pessoa do singular é assunção da pesquisadora como narradora que analisa os resultados do processo de formação vivido com os outros professores-autores.
Esta pesquisa foi submetida à avaliação pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos pelo CAAE de nº 50781721.7.0000.8187 e aprovado pelo parecer de nº 5.141.236.
Critérios para a construção do programa de ensino de Química coletivo: superando a reprodução para emergência da autoria
A definição dos critérios de organização do programa foi um dos aspectos mais significativos do nosso movimento de entrada na Autoria Reflexiva Coletiva. Digo isto, pois, no processo de reprodução de programas elaborados por outros profissionais – ou mesmo na adaptação de programas aos sumários de livros didáticos – não se observa uma mobilização do professor para refletir sobre os critérios do ensino que executa, uma vez que se trata de seguir, criteriosamente, a sequência proposta por outros profissionais.
Partindo das nossas discussões sobre os conteúdos que priorizamos para ensinar Química no primeiro ano, mesmo quando ainda não estávamos comprometidos em elencar critérios, algumas questões importantes emergiram para nossa concepção do programa de ensino do primeiro ano, passo a narrar dois episódios.
Joyce: Eu começo trabalhando aspectos da História da Química, o meu trabalho no NEABI[5] e uma das provocações dentro do núcleo que me fizeram pensar sobre esta História da Química, e de como a gente conta esta história numa perspectiva eurocêntrica. As descobertas químicas, os inúmeros ingleses, franceses, alemães, mas ignoramos totalmente uma história que tem também contribuições do continente africano para o desenvolvimento do conhecimento químico, então eu tenho tentado nos últimos tempos, semestres...
Júlia: Só uma questão para o futuro, vamos montar um programa nosso, não é?
Joyce: Sim.
Júlia: Nesta parte de montar um programa eu acho interessante a gente trazer esta outra perspectiva, que é decolonial. Já existem artigos que podemos deixar como sugestão.
Joyce: Eu conheço alguns da professora Bárbara Carine[6].
Júlia: Alguns artigos que trazem esta perspectiva da importância de superar esta visão apenas eurocêntrica.
Joyce: Muitos cientistas africanos e suas contribuições foram apagados no processo de escravização.
Júlia: Por exemplo, a pilha. Tem a pilha de Daniell e a pilha de Bagdá que traz outra perspectiva, totalmente diferente. Tem lá no livro dela [Professora Bárbara Carine].
Joyce: História preta das coisas?
Júlia: É. A gente faz um paralelo para trazer esta perspectiva, fica bem legal. Joyce: Eu gostei bastante da ideia.
Júlia: Anota como uma proposta para o programa, para ser um critério (Excerto dos diálogos nos encontros de formação, 2022).
Mesmo não tratando (ainda) dos critérios para a organização do nosso programa, o movimento de pensar sobre nossas escolhas individuais possibilitou a discussão sobre como contamos a História da Química aos nossos alunos. Refletir como esta narrativa pode ser discriminatória/excludente e contribuir para o agravamento de disparidades sociais das quais a Ciência não está isenta. Júlia enxergou uma possibilidade no movimento reflexivo que fazia ao longo das discussões sobre o que priorizamos ensinar nos nossos programas individuais.
O segundo episódio narra uma discussão acerca da importância dos diferentes níveis de compreensão do conhecimento químico, mais especificamente, sobre a imbricação entre eles para avançar na complexidade necessária ao Conhecimento Químico Escolar.
Joyce: Esta intencionalidade de relacionarmos tudo é importante, porque quando a gente começa dentro de uma sala de aula fazendo uma provocação, uma pergunta sobre um fenômeno qualquer, por exemplo: “por que os alimentos demoram mais tempo para decomporem-se na geladeira?”. Parece uma pergunta simples, não é? E os alunos vão responder: “porque se conservam”, “por conta da temperatura”, “disso ou daquilo”. É o fenômeno! Depois partimos para a teoria, no caso do exemplo, a teoria das colisões. O fato da redução da temperatura, interferir na energia cinética das moléculas, que se movimentam menos, que colidem menos e isso provoca a redução na velocidade da reação... Então eu vou avançando em níveis e depois eu vou pra lousa para expressar a ordem da reação e a lei da velocidade. Quando a gente consegue ter esta noção e juntar estes três níveis, isso dá condições ao aluno de ter uma ideia mais consolidada a respeito do conceito.
Júlia: Eu digo que faz mais sentido do que a gente trabalhar de forma separada. Eu digo que eles fazem relações que ficam. Agora que eu retornei[7],
eu trago muitos destes exemplos, e na semana do meu retorno foi um choque.
O mundo mudou, percebi que os alunos mudaram, é outro perfil de aluno. Eles estavam muito na questão da teoria e quando eu comecei a trabalhar com esses... tentando trabalhar os três eixos [níveis] – porque eu também trago esta perspectiva do fenômeno, da teoria e da representação – eu vi que eles mudaram e, no final, com pouco tempo que eu estava, eles disseram assim: “professora, está muito diferente, porque antes a gente só fazia lista [de exercícios] e aula”. [...] E foi uma aluna que já saiu do instituto há um tempo que falou e os alunos de agora mencionaram a mesma coisa: “Ah! A gente vendo o fenômeno fica mais interessante”. E eu disse: “Não, vendo o fenômeno faz mais sentido!” (Excerto dos diálogos nos encontros de formação, 2022).
O relato de Júlia me recordou a discussão de Lopes (1999) de que o olhar exclusivo para o fenômeno, e sua manutenção nas escalas do senso comum, contribui para o processo de simplificação extrema que vulgariza o conhecimento escolar. A autora destaca que, “além de não permitir a compreensão da ciência, só contribui para enfatizar seu caráter mítico, fundamentalmente, por reforçar seu caráter de espetáculo, que induz ao culto e à admiração, mas não à reflexão” (Lopes, 1999, p. 217).
Nas diversas ocasiões em que nos debruçamos sobre as perspectivas do Conhecimento Químico no contexto escolar, abordamos os diferentes níveis de compreensão desse conhecimento, enfatizando a relevância da articulação entre esses níveis. Tal integração é fundamental para promover a expansão do aprendizado do discente e a sua aproximação com os preceitos científicos, mediada pelas orientações do educador, o que, por sua vez, atenua as chances de que concepções errôneas se estabeleçam.
Encontro em alguns autores (Johnstone, 1982; Antunes-Souza, 2018; Machado; Mortimer, 2020) a importância da integração entre os níveis[8] de compreensão dessa ciência: fenomenológico, representacional e teórico-conceitual. Quem realiza o processo de integração entre os níveis de compreensão do conhecimento químico é o professor, através da mediação. “A mediação deliberada, em direção à negociação de significação da própria linguagem química, pode colocá-la como ponte para a articulação entre os outros dois níveis” (Antunes-Souza, 2018, p. 63).
O professor deve promover a atribuição de significado ao conteúdo, isso só ocorre com a compreensão dos fundamentos epistemológicos que sustentam o conhecimento químico, para tornar possível sua transformação pedagógica e recontextualização didática nas abordagens especificamente escolares (Maldaner; Zanon, 2019).
Para além da integração entre os três níveis de compreensão do conhecimento químico, outras sugestões foram manifestadas em nossos diálogos. No recorte a seguir, sintetizo-as:
Joyce: Uma das coisas que temos que definir na reunião de hoje é a seleção dos critérios do nosso programa. Não podemos fazer esta construção sem um direcionamento, então eu transcrevi nossas reuniões passadas e ficaram muito marcados para mim alguns aspectos que discutimos e consideramos importantes na construção do programa. [...] Quando discutíamos a parte introdutória da Química, falamos muito sobre a importância da História [da Química] e, principalmente, da necessidade de que não esteja orientada hegemonicamente pela perspectiva eurocêntrica, contribuindo para o apagamento das contribuições de civilizações como a africana. Eu lembro que Júlia sinalizou a importância de pensarmos nisso como um critério. Então eu trouxe para a gente pensar juntos e o grupo decidir se vamos estabelecer como critério. Já o segundo critério que eu consegui enxergar no nosso último encontro, foi o compromisso de trabalhar os conhecimentos químicos dentro dos três níveis de compreensão, o fenomenológico, o representacional e o teórico-conceitual. [...]
Júlia: Eu queria sugerir uma inclusão neste primeiro critério que você apresentou, o das contribuições históricas, uma sugestão para o grupo analisar, eu gostaria de sugerir as estratégias feministas de inserção e participação na Ciência. Por exemplo, nesta semana eu estava lendo sobre a Tabela Periódica e pensando: “quais foram as estratégias ou os elementos que tiveram participação de mulheres em suas descobertas?”. É uma questão que eu vou começar a discutir com as minhas turmas.
Murilo: Eu acho que os dois critérios são pertinentes, assim como o que Júlia propôs para ser analisado. Eu proponho outro que seria a contribuição desse conteúdo para a formação do aluno como um cidadão.
Joyce: Eu acho interessante esta proposta porque na abordagem da fundamentação teórica e metodológica da pesquisa eu assumo a Racionalidade Crítica, que é uma abordagem da reflexão voltada para o compromisso social, formação da cidadania, preocupação com a justiça social.
Maria: Dos critérios que você apresentou, eu acho bastante importante a integração desses níveis de compreensão e estou de acordo com os outros sugeridos por Júlia e Murilo.
Joyce: Eu queria propor um critério que pensei, que tem relação com um material que estudei nesta semana, e que eu queria compartilhar com vocês. Pensei que na definição desses critérios, ao invés de obedecermos a uma sequência, uma organização de livros didáticos, deveríamos voltar nosso olhar para as pesquisas de professores, de professores-pesquisadores sobre o Ensino Médio. A Química Nova na Escola tem muito isso “trabalhando cinética com alunos da educação básica”, “trabalhando estrutura atômica no Ensino Médio”, “trabalhando Tabela Periódica...”, tem um exemplar inteiro da Química Nova na Escola em comemoração aos 150 anos da Tabela Periódica, com artigos voltados para o conteúdo na escola. Então, um dos critérios que poderíamos adotar seria contemplar as pesquisas de professores-pesquisadores para o Ensino Médio. O que vocês acham?
Júlia: Eu acho importante, porque ultrapassa a perspectiva do livro didático e valoriza os resultados da pesquisa de professores.
Murilo: Joyce, esta sua proposta de contemplar os trabalhos e as pesquisas de professores-pesquisadores é muito interessante como forma de valorizar os estudos realizados. Uma coisa que eu critico muito de nós professores, é que não valorizamos como deveríamos as pesquisas na área de ensino, nas outras áreas eles estão sempre pesquisando o que existe de novo e implantando como inovações profissionais. Na educação, muitas vezes, a gente não considera, vê um artigo, como foi realizado e a gente estuda, como conhecimento, mas não procura colocar em prática. Outra coisa que pensei, não sei se vocês concordam, dentro dessa proposta que eu coloquei da formação cidadã, poderíamos também atender à perspectiva ambiental.
Joyce: No caso, poderia estar inscrito o movimento da preocupação com o meio ambiente, na abordagem CTSA[9] [Ciência, Tecnologia, Sociedade e Meio Ambiente] como um todo, eu achei a ideia muito bacana.
Maria: Eu acho que também seria interessante atender nestes tópicos o protagonismo do aluno.
Joyce: Acho muito interessante e penso também que este protagonismo se insere na discussão a respeito da formação crítica do aluno. O que acham? Todos concordaram (Excerto dos diálogos nos encontros de formação, 2022).
Sintetizamos todas as sugestões e considerações do grupo em três critérios, a saber: (i) formação crítica para o aluno (que unificou as sugestões de formação para a cidadania, educação antirracista e feminista, protagonismo estudantil e abordagem CTSA); (ii) articulação dos três níveis de compreensão do conhecimento químico e (iii) fundamentação em pesquisas de professores sobre o conteúdo químico escolar.
Após a definição dos critérios para a elaboração do programa, passamos a discutir a seleção e organização dos conteúdos químicos, sempre priorizando o atendimento aos critérios selecionados, a próxima seção se dedica à apresentação do programa e discussão do processo de formação docente vivenciado a partir de sua produção.
Construção do programa, ressignificação do conhecimento químico para a escola e emancipação de professores pelo processo de formação continuada
Na esfera escolar, os estudantes encontram condições ideais para interagir com conhecimento científico. Mas seria a mesma interação que ocorre no âmbito profissional da indústria, laboratórios e centros de pesquisa? Não! Os alunos vivenciam aquela ciência que precisa sofrer contextualização na escola para as diferentes relações que podemos estabelecer entre os sensos comum e científico. Os alunos devem desenvolver “as competências necessárias para sua atuação como cidadão que precisa dominar um saber indispensável para melhorar sua qualidade de vida e o mundo do trabalho da sociedade sofisticada e complexa” (Alarcão, 2001, p. 74).
Intencionalmente, grifei as preposições para enfatizar que a escola tem a sua responsabilidade na significação da cultura científica para as relações que se estabelecem em nossa vida. O Conhecimento Químico Escolar não é finalidade, mas mediador, instrumento de uma formação que nos conecta a uma visão mais integrada da realidade (Maldaner; Frison, 2014).
Como professores, precisamos construir meios de os conhecimentos científicos serem ensinados na escola e isto é uma tarefa complexa, pois exige que conheçamos os objetos com que dialoga a ciência Química e quais são adequados para o ensino na Educação Básica. Ademais, exige a compreensão do desenvolvimento histórico da ciência, as relações com outros campos de conhecimento e o contexto discente que pode ser melhor compreendido e transformado quando alunos fazem uso da linguagem Química para interpretação do mundo material.
Nos momentos de discussão sobre o que escolhíamos ensinar, as prioridades e exclusões, muitas questões foram levantadas e eu escolhi narrar algumas para ilustrar a importância do processo para a nossa formação, sobretudo, para a legitimidade do nosso trabalho de produção autoral.
Discuto aqui a importância de refletirmos sobre o excesso de conteúdos de Química no Ensino Médio, pondo em questão a necessidade de repensar a programação do componente curricular de Química escolar como um todo. Quero, contudo, ressaltar que, diferente da inserção precipitada e irrefletida por acomodação para atendimento a fins de acúmulo de informações desconexas, o nosso processo de exclusão demandou tempo, reflexão e justificativa a respeito de cada uma das razões que nos inclinaram à supressão de determinados conteúdos tradicionalmente ensinado no primeiro ano.
Tradicionalmente, o programa de Química do primeiro ano do Ensino Médio contempla um número elevado de informações desconexas, pautadas na memorização de regras, resolução de expressões matemáticas ou sequências mnemônicas (Lopes, 1999). Contrários a esta perspectiva, assumimos um compromisso de repensar a razão da permanência de alguns conteúdos no programa, refletindo sobre os conceitos e relevância à formação dos estudantes em um movimento intenso de reconstrução.
Esta reconstrução é um processo de criação, de orientação e de correções de equívocos que só pode se estabelecer quando o professor tem clareza a respeito de suas próprias teorias e concepções sobre ensino, aprendizagem e conhecimento químico (Maldaner; Frison, 2014).
Nos excertos que seguem, Murilo levanta uma questão sobre a finalidade de alguns conteúdos tradicionalmente ensinados no primeiro ano do Ensino Médio e, a partir dessa fala, se posiciona criticamente contra a manutenção destes no programa em construção.
Murilo: E em relação a esta parte de isótopos, isóbaros, isótonos... Eu também não trabalho mais estes conceitos.
Joyce: Por que você decidiu não trabalhar mais estes conceitos?
Murilo: Estes conceitos não contribuem tanto para a formação do aluno e, se você for analisar, os modelos de exercícios estão voltados à matemática e pouco raciocínio químico, ai eu acabo não trabalhando. Tem livro que ainda traz, boa parte dos livros ainda traz, mas eu não.
Joyce: Você fez a opção por excluir do seu programa?
Murilo: Sim, este é um dos conteúdos que eu optei por retirar do meu programa.
Júlia: Quando Murilo estava falando, eu estava pensando nesse sentido, por exemplo, esta parte dos números quânticos, do modelo quântico é importante. Mas esta parte de isóbaros, isótonos, isoeletrônicos, a gente pode explorar lá em Radioatividade, porque faz mais sentido para o aluno [se referindo aos isótopos radioativos], porque você vai falar da aplicação. Mas a gente sempre fica nesta dúvida, eu coloco aqui e aprofundo lá, ou eu não coloco aqui e só falo no segundo ano quando chegar o tema de Radioatividade. Então esta questão do tempo e da organização dos conteúdos é desafiadora para todo mundo (Excerto dos diálogos nos encontros de formação, 2022).
Numa direção complementar ao pensamento de Murilo, Júlia concorda que a localização desses conteúdos no primeiro ano é carente de significados formativos básicos, não apresentando clareza em sua finalidade e potencial para instaurar processos reflexivos nos alunos. No entanto, levanta uma questão importante de viabilidade na conexão desses conteúdos em outra etapa de formação dos alunos no Ensino Médio por exemplo, no segundo ano, quando trabalhamos o conteúdo de Radioatividade.
Outro destaque que faço no excerto transcrito diz respeito ao fato de que, como assinala Júlia no final de sua fala, o processo de seleção dos conteúdos, que acaba por provocar exclusão de conceitos, é desafiador porque levanta dúvidas sobre a coerência e as implicações de nossas decisões.
Em grande parte, essa preocupação demonstra a percepção da responsabilidade em elaborar um programa de ensino que funcione como uma opção de formação para nossos alunos. Contudo, não devemos negligenciar o fato de que essa preocupação também reflete a incerteza gerada pela falta de experiência em exercer essa responsabilidade de escolha. Tanto a estrutura que estamos apresentando é algo inédito, quanto a capacidade de fazê-lo também é uma novidade.
Não estou defendendo aqui, no entanto, que não teríamos fora desta pesquisa, condições de viver esta experiência – inclusive de forma individual – mas me empenho em demarcar as dificuldades do processo, que me inspiram a assegurar a necessidade de criar condições para a realização de pesquisa por professores e em coletivos organizados.
Nossa discussão não contemplou apenas inserções/exclusões, mas processos de ressignificação que pensamos serem legítimos para o trabalho de conceitos importantes da Química no Ensino Médio. É o caso dos modelos atômicos que, tradicionalmente, são discutidos como evolução dos modelos explicativos para a estrutura atômica e suas subpartículas.
Júlia: Eu queria fazer um comentário sobre o que o Murilo disse, ele falou sobre o modelo Rutherford-Bohr, alguns livros trazem: modelo de Rutherford traço Bohr. Mas são dois modelos diferentes, se você for estudar realmente o conceito, vai perceber que são modelos diferentes, alguns livros trazem como se fossem um único modelo, mas eles são teóricos e tem um referencial diferente. Por conta dos livros e da formação que a gente recebe também, consideramos que são complementares, mas são duas teorias distintas.
Joyce: [...] Hoje a gente já tem outro pensamento do comportamento e da energia do mundo corpuscular. Mas muito material, ainda interpreta como se fossem o mesmo modelo, e que Bohr tivesse realizado um “pequeno” ajuste, mas é um detalhe que muda tudo (Excerto dos diálogos nos encontros de formação, 2022).
Os modelos explicativos para o átomo eram repassados com suas características em um processo de linearidade cronológica, sem muita preocupação com o processo de evolução conceitual realizada pelo aluno que, muitas vezes, recorria às representações simbólicas para expressar o que significava o átomo para cada um dos cientistas estudados.
Complexificar o processo evolutivo da estrutura atômica pode contribuir para a superação rasa do entendimento de uma ciência estanque, com suas “descobertas” e verdades absolutas. Nesta linha de pensamento, se fortalece a compreensão de que o conhecimento está em constante transformação e que os conceitos fundamentais ajudam a estruturar novas construções teóricas (Machado; Mortimer, 2020).
Promover mudanças a partir do programa de ensino de Química que desenvolvemos foi um desafio intenso, exigindo uma profunda reflexão sobre as transformações que almejamos implementar em nossas salas de aula. Adotamos o programa como uma oportunidade para modificar nossas práticas, comprometendo-nos com uma reflexão direcionada, com o desejo de reestruturar o conteúdo escolar de Química que abordamos e, acima de tudo, reconhecendo que o trabalho colaborativo que realizamos representa uma chance de nos apoiarmos mutuamente nessa mudança. Isso nos permite contar com a colaboração de outros professores da mesma área, que compartilham as dúvidas e ansiedades que surgem ao longo do processo.
Dando continuidade ao processo de seleção dos conteúdos químicos para constituição do programa de ensino, esbarramos na compreensão de que boa parte dos conceitos estudados no primeiro ano serão revisitados em outras séries do ensino médio o que os condiciona na posição de fundamentais.
Joyce: Quanto à questão da localização desse conhecimento no final do programa do primeiro ano, eu sou a favor, para que o aluno compreenda este conceito, ele precisa ter aprendido sobre ligações, porque quando a gente fala de reações, temos que explicar que existe aí o rompimento das ligações das substâncias reagentes para a formação de novas ligações que resultarão nos produtos. Desse modo, eu entendo que ligações é um conteúdo que precisa anteceder reações. O que vocês acham?
Maria: Não somente para o primeiro ano, você e Júlia falando sobre estes conteúdos que são base, eu percebi com a pandemia como alguns conteúdos do primeiro ano fazem falta em outros conteúdos de séries seguintes. Como no terceiro ano, quando voltamos para as aulas presenciais, peguei muitos alunos que tiveram o primeiro ano remoto, então quando eu comecei a falar sobre carbono, ligações, [...] eu senti que eles não compreendiam muitos conceitos, ai durante um mês eu tive que falar sobre isso, como se dão as ligações químicas para formar as moléculas orgânicas (Excerto dos diálogos nos encontros de formação, 2022).
Nessa interação com Maria viso demarcar a compreensão que tivemos, em muitos momentos dos encontros de formação, sobre a importância do programa de ensino do primeiro ano para a formação geral discente no Ensino Médio. Quando selecionei esta série para ser trabalhada na pesquisa, já concebia a relevância pelas experiências individuais que tive com meus alunos. Ter a possibilidade de ouvir outros professores, suas experiências em seus contextos de trabalho, reforça a necessidade do trabalho coletivo não apenas para o primeiro ano do Ensino Médio, mas entendendo que muitos conceitos trabalhados são basilares e fundamentais para outros conteúdos a serem trabalhados em séries seguintes, conforme demarcamos no excerto.
Realizamos o movimento de revisitar todos os conteúdos, norteados pela preocupação de uma seleção que leve em consideração o potencial desses conteúdos em instaurar processos cognitivos transformadores da consciência de mundo do aluno. Tudo isto buscando interpretações de fenômenos e materiais para fundar novas possibilidades de intervenção crítica na realidade onde os discentes se inserem, se opondo à perspectiva ingênua de “quanto mais informação, melhor”, que norteou os currículos de Química escolar (Maldaner; Zanon, 2019).
Fomos em direção a um programa que posicione o aluno em condição de selecionar informações e enxergar possibilidades de fazer bom uso nas relações que estabelece no seu cotidiano, nas esferas sociais, econômicas, políticas, ambientais e tecnológicas.
Assim, pensamos na construção de um programa por Conexões Temáticas, que são expressões dos conteúdos químicos escolares dentro de perspectivas históricas, sociais, tecnológicas, ambientais, políticas e ideológicas concretas do cotidiano discente. Visando a compreensão de problemas reais para o enfrentamento com soluções inovadoras e criativas.
As Conexões Temáticas são compostas por duas abordagens (possibilidades de discussão e possibilidades de estratégias). A respeito da organização do programa em conexões temáticas, ocorreu o diálogo transcrito a seguir:
Joyce: Na verdade, eu acho que estas conexões [temáticas] me ajudaram a ter clareza do programa. Eu confesso a vocês que, por muitas vezes, sentei diante das análises, lendo e relendo muitas vezes nossos diálogos, com o objetivo de transcrever nossas ideias e devolver a vocês, sem muita clareza de como isso ia se materializar como formação para os alunos.
Júlia: Sobre esta parte das conexões, eu compreendi que é realmente o que concretiza nosso programa, tudo aquilo que discutimos, porque a gente falou muito de pensar o mundo quimicamente, como eu vou fazer isso? Quando eu vejo o programa construído eu entendo como faremos isso. Uma das coisas que mais me agrada é a flexibilidade, não estar como orientação, obrigação, eu entendo que se for aplicado um dia, ela é flexível para as diferentes realidades.
Murilo: Na verdade eu entendo tudo isso como necessário, porque você tem que propor também... De certa forma, você propõe um conteúdo para ser trabalhado, você deve propor também como trabalhar e por quê (Excerto dos diálogos nos encontros de formação, 2022).
Conforme expressamos em nosso diálogo, o programa de ensino que construímos não é impositivo, mas propositivo. A ideia é sugerir abordagens para os conteúdos selecionados, de modo que eles, integrados, permitam uma compreensão mais complexificada dos conceitos químicos.
Se concentrarmos nossos esforços e atenção na apreensão do conteúdo por meio da valorização da informação, estaremos contribuindo para que a escola permaneça como um espaço que trabalha o conhecimento científico sem qualquer tratamento ou reelaboração. Essa abordagem pode perpetuar uma obscuridade em relação à Ciência para as classes populares, beneficiando os interesses das classes dominantes que buscam garantir que as contribuições científicas e tecnológicas sirvam para reforçar a segregação social, a qual a escola poderia ajudar a desestabilizar (Freire, 2009).
O grupo de professores-autores se estabelece nesta pesquisa, realizando este movimento gradativo e contínuo que parte da reprodução de programas em direção à Autoria Reflexiva Coletiva. Porque compreende ser necessária a reconstrução do Conhecimento Químico Escolar em uma perspectiva dinâmica, situada.
Há uma cultura escolar em funcionamento, que ocupa um espaço social, possuindo sua própria ética, valores e condicionantes. Além disso, há interesses externos que alimentam essa dinâmica e se beneficiam da falta de autonomia dos professores na escolha dos conteúdos a serem trabalhados na escola.
É necessário investir em novas maneiras de ser e atuar como educadores na Educação Básica, o que requer a sistematização de propostas formativas que considerem o conhecimento específico dos professores, construído nas experiências práticas. Quando o docente ressignifica o conteúdo da química para diferentes contextos, ele facilita a aproximação do pensamento dos alunos aos conceitos que ensina e realiza uma análise reflexiva dos resultados de sua abordagem pedagógica (Zanon; Maldaner, 2019).
As Conexões Temáticas emergem como expressão da nossa concepção coletiva de como este conhecimento químico pode ser trabalhado de forma integrada aos interesses e relações que se estabelecem no mundo real. Para exemplificar a estrutura das Conexões Temáticas, recorro a uma das indicações que fazemos em nosso programa:
Uso de diferentes tecnologias e sua relação com o mundo corpuscular, a importância de conhecer as propriedades dos materiais para entender o funcionamento de muitos recursos tecnológicos que fazemos uso no dia a dia (sensores; detectores de sinais, conversores de energia; telas e monitores em LED; sistemas remotos inteligentes; etc.).
Possibilidades de discussão:
- Quais os principais constituintes químicos de aparelhos elétricos e eletrônicos?
- Qual a relação entre as propriedades desses materiais e seu uso nas diferentes frentes tecnológicas (armazenamentos de informação; comunicação; acesso remoto; sensores etc.)?
- Como o descarte inadequado de resíduos de equipamentos elétricos e eletrônicos (REEE) pode afetar a água e o solo de uma região?
- Por que a logística reversa de REEE é tão complexa e pouco realizada no Brasil?
Possibilidades de estratégias:
- Experimentação (teste de chama) para discutir a transição de níveis de energia proposta pelo modelo atômico de Bohr e suas implicações em tecnologias disseminadas no cotidiano;
- Construção de um espectrômetro com material alternativo;
- Levantamento sobre os principais elementos químicos constituintes de equipamentos eletrônicos (condutores, semicondutores, isolantes) e suas finalidades para funcionamento dos equipamentos elétricos e eletrônicos (Excerto do programa de ensino, 2023).
A Conexão Temática manifestada no excerto acima foi construída pelo grupo de professores-autores para trabalhar conceitos importantes para o primeiro ano do ensino médio: Teoria/estrutura Atômica e Tabela Periódica. Construímos esta Conexão Temática a partir das discussões do grupo de formação, considerando as experiências que já vivemos em sala de aula, como os estudos que realizamos a partir do processo de formação para construção do programa de ensino.
Os alunos utilizam diversas tecnologias em suas atividades diárias, pois esses dispositivos servem a múltiplos propósitos, como controle remoto de equipamentos, comunicação, acesso à informação e segurança. Embora grande parte do funcionamento desses dispositivos esteja ligada ao conhecimento químico, muitos estudantes de nível básico têm dificuldade em entender a conexão entre os conteúdos aprendidos na escola e as tecnologias que utilizam no dia a dia.
Foi sobre este conhecimento que nos debruçamos para construção de um programa coletivo visando ensinar Química no primeiro ano do Ensino Médio. As discussões e análises que realizamos no grupo, lidaram com os processos de reconstrução do conhecimento químico, à medida que passamos a ressignificar este conhecimento para a escola. Nas Figuras 2 e 3 apresento o programa produzido pelo coletivo e sua organização em Conexões Temáticas.
Defendo que a construção do programa de ensino de Química foi processo de desenvolvimento profissional dos professores-autores, faço isto levantando aspectos relevantes identificados ao longo da análise dos resultados, que se relacionam à concepção dos professores-autores sobre o processo de Autoria Reflexiva Coletiva e como esta foi se constituindo a partir dos encontros e das pequenas decisões que assumimos para o programa, conforme expressam:
Joyce: E vocês compreendem que nós caminhamos até um produto autoral?
Murilo: Se você voltar um pouco e refletir sobre as nossas discussões em outros encontros, entrou muito aí a nossa experiência, a nossa vivência já de professores com muito tempo de sala de aula, a gente ia colocando tanto as dificuldades que enfrentamos, quanto a evolução do que fomos aprendendo com a experiência em vários aspectos durante este percurso como professor. Inclusive nos encontros, muitas vezes, externando experiências que desenvolvemos e que a gente acredita que deu certo e que valeria a pena compartilhar, isso foi se somando e fez com que a autoria acontecesse, porque partiu das discussões das nossas vivências como professores.
Júlia: E complementando o que o Murilo falou, é bem isso mesmo, quando a gente olha para tudo o que fez e “ah, eu sinto falta disso...” a gente foi colocando, a gente olhou para as lacunas dentro do currículo que a gente trabalha há um tempo e em cima desses pontos a gente começou, o ponto de partida começou aí (Excerto dos diálogos nos encontros de formação, 2022).
Tratando especificamente de professores experientes, discutindo em um espaço de formação continuada, este desenvolvimento do Conhecimento Químico Escolar não está totalmente apartado das experiências que vivemos em sala de aula, mesmo com as lacunas, distorções e ausência de significados. Partir dessas experiências nos situou em muitos momentos de conflito, de dúvidas e angústia sobre a qualidade da produção que realizamos.
Com esta análise, pretendo registrar que a produção curricular por parte dos professores da educação básica ainda se configura como uma atividade pouco realizada e que, como revelam os resultados desta pesquisa, precisa ser considerada um componente indissociável da formação e do trabalho docente. Pois, é dessa forma que o currículo implementado no cotidiano das salas de aula pode se aproximar do currículo legislado.
Assim, outro aspecto importante a ser considerado no processo de Autoria Reflexiva Coletiva, como produto educacional para a formação continuada de professores, diz respeito à aproximação do programa desenvolvido com as orientações legais e os documentos balizadores do ensino de Química na educação básica. A esse respeito, por exemplo, o programa elaborado apresenta uma preocupação com a relação entre o conhecimento químico e o meio ambiente, o que está alinhado com a Política Nacional de Educação Ambiental (PNAE), Lei 9.795/1999, e com as orientações da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de 2018.
Na BNCC, também há orientações acerca da importância da experimentação e da divulgação científica (princípios contemplados nas Conexões Temáticas) para a formação científica dos nossos estudantes, estabelecendo que habilidades e competências estão associadas a esses aspectos.
A Lei 11.645, que torna obrigatório o estudo da história e da cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, assim como a BNCC, está contemplada no programa desenvolvido, na preocupação com um ensino de Química antirracista.
A apresentação e análise dos resultados alcançados com a Autoria Reflexiva Coletiva, direcionada à produção curricular de programas de ensino revela o potencial dessa autoria como produto educacional para a formação continuada de professores de Química, visto que contribui para instaurar processos reflexivos sobre as limitações dos alcances dos professores formados na perspectiva reprodutiva de programas. Mais do que isso, inquieta os sujeitos envolvidos, a partir do questionamento sobre a autonomia cerceada, provocando o desejo de mudança.
Considerações finais
Este trabalho apresentou o processo de construção de um produto educacional voltado à formação continuada de professores de Química, a partir da Autoria Reflexiva Coletiva de um programa de ensino. O produto educacional foi inspirado em etapas da espiral de investigação-ação de Contreras (1994) e, por isso, possui etapas que estimulam os professores a assumirem decisões a respeito do ensino que realizam.
Quando o professor integra pesquisas que o centralizam na definição e autoria do programa de ensino, há desenvolvimento profissional, ressignificação do Conhecimento Químico Escolar, ampliação da autonomia docente e, principalmente, vê-se expandir o seu compromisso com a formação discente, com as possibilidades de transformação das condições de vida dos seus alunos a partir do conhecimento e da formação escolar.
O produto educacional evidenciou que situar a formação continuada em um espaço que permite ao professor decidir coletivamente sobre os objetivos do ensino, os conteúdos a serem ensinados e como serão ensinados, é possibilidade de aprendizagem para a docência no decurso dela. Não numa perspectiva de ensinar algo aos professores, mas na perspectiva de permitir ao professor expor as lacunas e fragilidades em sua docência, problematizá-las e propor caminhos de intervenção nelas (Silva; Azevedo; Azevêdo, 2022).
Por todo o exposto e discutido, assumo que o movimento de ressignificar o conhecimento químico para a escola nos motivou em um processo de estudo, pesquisa e reflexão coletiva comprometida com o repensar estes conteúdos na perspectiva escolar. A construção do programa exigiu bem mais do que uma simples escolha, mas nos conscientizou sobre a responsabilidade de justificar e defender as razões de cada conteúdo que elegemos para compor o programa, revisitando, refletindo e reelaborando o Conhecimento Químico Escolar que lidamos diariamente.
As análises apresentadas me permitem defender a sentença de que a Autoria Reflexiva Coletiva contribui para a construção de significados próprios para a escola, em um processo de reconstrução centrado na ação docente, considerando a importância de conectar o senso comum ao científico e da produção de conhecimento curricular comprometida com a formação discente crítica.
Nesse sentido, o produto educacional se constitui um modelo de formação com potencial para ser desenvolvido com professores da educação básica em diferentes contextos (produção de materiais didáticos, experimentação investigativa, ludicidade, textos de divulgação científica, entre outros) onde a autoria pode ser realizada.
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