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DIMENSÕES POLÍTICAS DAS RELIGIOSIDADES ESCRAVAS NAS MINAS DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII
Caminhos da História, vol. 27, núm. 2, pp. 168-173, 2022
Universidade Estadual de Montes Claros

Resenha

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 27, núm. 2, 2022


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

A obra em questão vem a lume dezesseis anos após a sua apresentação como tese de doutoramento em História, defendida pelo autor em 2004, na UFMG, sob orientação da professora Carla Anastasia. Nesse intervalo muita coisa se escreveu a respeito da história mineira no século XVIII.[1] O trabalho de Renato da Silva Dias, Professor de História na Universidade Estadual de Montes Claros, não se preocupou em antecipar modismos e talvez por isso, recolocado no contexto atual, tenha preservado sua originalidade. Tributário da riquíssima historiografia que, nas décadas de 1980 e 1990, reescreveu a história de Minas Gerais no período colonial, Para a Glória de Deus e do Rei? explorou, em grande parte, as peculiaridades que tornaram a experiência mineradora um evento histórico singular no âmbito da América Portuguesa.

O tema investigado foi o das dimensões políticas do catolicismo luso penosamente imposto aos súditos de Minas. Em especial, Dias preocupou-se em avaliar de que forma a religião católica foi apropriada e reelaborada por africanos detentores de enormes diversidades étnicas, culturais, religiosas e políticas. Aprisionados na terra natal, traficados para a América Portuguesa e revendidos a senhores situados nos arraiais mineradores e em seus respectivos campos e currais, esses trabalhadores sofreram as consequências do escravismo colonial. Estilhaçados seus antigos vínculos e pertencimentos sociais, eles foram obrigados a adotar uma nova religião (no caso dos africanos oriundos de partes não cristianizadas), pelo menos a um nível formal. Também estiveram submetidos aos ditames da escravidão, cujos fundamentos se assentavam em frágeis – porém duradouras – justificativas teológicas. A expansão/imposição do catolicismo foi, sem dúvida, uma das bases sobre as quais se apoiou não só a escravidão moderna, em si, mas ainda o complexo sistema de trocas e de arranjos econômicos e políticos que instituiu o tráfico negreiro em África, em prol de reinos cristãos europeus e de suas respectivas sociedades senhoriais na América. Todavia, se inicialmente fora pensada como ferramenta de dominação a serviço da monarquia, da Igreja e de senhores lusos (intenção maior do que o autor denomina Ação Gloriosa), a religião católica deu brechas que foram exploradas, alargadas e subvertidas pelos novos fiéis que tentava catequizar. Africanos e seus descendentes crioulos e mestiços recriaram, nas Minas, um catolicismo peculiar, repleto de africanismos muitas vezes inseridos de modo dissimulado ou furtivo e, noutras, assumidos abertamente, a exemplo das iniciativas protagonizadas pela poderosa irmandade do Rosário do Alto da Cruz, na freguesia de Antônio Dias, em Vila Rica, com sua capela onde um “papa negro” pontificou no teto do altar-mor, a observar búzios, tartarugas e símbolos fálicos iorubanos esculpidos na talha de altares laterais, e com suas efusivas festividades em homenagem a reis e rainhas negros, celebradas em Palácio próprio, a desfilar pelas íngremes ruas da capital (SILVA, 1995, 69-71; DELL´AIRA, 2009, 137-47). Além dos africanismos, essa religiosidade forjada e remodelada por escravizados ajudou a conquistar, garantir e ampliar direitos usufruídos por seus pares, a fim de “viver melhor” – expressão cara ao autor – naquela sociedade escravista que, de outra forma, lhes negava o acesso à liberdade e a outras benesses sociais almejadas. Certos elementos desse catolicismo híbrido serviram de suporte, inclusive, para aqueles que ousaram fomentar ou empreender ações mais ousadas, como a fuga direcionada (ou não) aos quilombos (não por acaso esses foram muitos nas Minas) e até a conspiração de revoltas.

O livro conta com prefácio de autoria de André Figueiredo Rodrigues – destacado especialista em história colonial mineira – e está dividido em introdução e seis capítulos. O diálogo com a historiografia e a constante crítica teórico-metodológica no questionamento das fontes acompanham toda a obra, sendo mais intensos nos dois primeiros capítulos, que apresentam ao leitor o contexto geral e as principais problemáticas que a pesquisa irá desenvolver. Algumas peculiaridades da colonização portuguesa nos distritos auríferos foram importantes: de um lado, a proibição de ordens religiosas primeiras e segundas e, de outro, a multiplicação de confrarias leigas; a grande presença de clérigos seculares nem sempre dedicados à função religiosa; a incipiente experiência urbana vivenciada nos arraiais e nas principais vilas; a variedade e diversidade dos grupos africanos ali escravizados; a desorganização político-administrativa dos primeiros tempos, que requereu esforço de ordenamento por parte do Estado e da Igreja, a desafiar, tantas vezes, a autonomia de potentados paulistas e emboabas. A monarquia regulou a construção e a reforma de templos e capelas, interferiu em diversos aspectos do culto e das festividades católicas. O rei fez-se presente no auxílio, na promoção e no patrocínio a diversas atividades religiosas, a fim de, por meio de sua Ação Gloriosa, atrair para si o amor e a submissão daqueles vassalos. No entanto, essas mensagens que conjugavam fé e poder foram percebidas de formas distintas conforme a multiplicidade de grupos que compunham a sociedade mineradora.

O terceiro capítulo avaliou o perfil e a atuação do clero nas Minas e, a esse respeito, o autor relativizou, com razão, a visão negativa que documentos de época e analistas transmitiram acerca dos religiosos ali atuantes: se muitos, de fato, desempenharam papéis corrosivos, no afã de enriquecer, a desencaminhar os quintos, a explorar com taxas abusivas ou a desinteressar-se da salvação de seus rebanhos, ou ainda a liderar motins e revoltas, também existiram párocos e capelães ciosos de seus deveres pios. Os limites e fragilidades da catequese deveram-se antes a fatores estruturais: o desconhecimento das línguas e das culturas africanas diminuiu a eficácia do catecismo direcionado aos escravizados; a desorganização dos serviços e dos pagamentos devidos a vigários e religiosos no contexto anterior à fundação do bispado em Mariana empurrou muitos ao exercício de atividades paralelas, etc. No limite, apesar dos discursos oficiais a justificar a escravidão e a própria expansão portuguesa como se fossem cruzadas evangelizadoras, a verdade é que comerciantes e senhores envolvidos no tráfico negreiro e na exploração de grandes propriedades tiveram pouca ou nenhuma preocupação com a cristianização dos milhares de trabalhadores escravizados que, a cada ano, subiam às Minas. A começar pelos bizarros cerimoniais de batismo em massa, realizados no litoral africano ou nos portos do Brasil, o desleixo perpetuou-se em atitudes nada cristãs por parte dos que, ironicamente, seriam os agentes da salvação. Senhores vetavam a seus cativos o descanso dominical e nos dias santos, a fim de obrigá-los ao trabalho, inviabilizando suas participações em missas e desobrigas; a preferência senhorial por escravizados homens e adultos levou a graves desproporções de gênero nos plantéis e nas demografias locais, a dificultar a formação de famílias cristãs e a provocar comportamentos desviantes contrários à doutrina católica.

Embora sempre minado e contrariado por interesses materiais mesquinhos, o ideal teológico salvacionista exerceu certa influência na ação evangelizadora da Igreja. O autor discutiu em pormenor o pensamento de cinco ideólogos católicos lusos acerca da escravização de africanos: os padres Antônio Vieira, Jorge Benci, Antonil e Manuel Ribeiro Rocha; e ainda Nuno Marques Pereira, autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Não obstante as divergências entre esses escritores, prevaleceu consenso em torno da legalidade jurídico-teológica do transplante forçado de africanos e de sua utilização compulsória como trabalhadores escravizados no Brasil. Saliente-se, todavia, e o autor chamou a atenção do leitor para esse ponto, que em todo o período colonial inexistiu qualquer texto doutrinário escrito em língua falada no continente africano. E mesmo em português, houve um único, breve e simplório modelo de catecismo direcionado especificamente aos escravos a constar nas Constituições do Arcebispado na Bahia (p. 249). Fica-se com a impressão de que o investimento doutrinário da Igreja portuguesa foi sobremaneira débil nessa matéria, mesmo em comparação com a catequese indígena, na qual notaram-se esforços mais consistentes.

O ponto culminante da obra se dá nos dois capítulos finais, em que a problemática do catolicismo escravo, especialmente entre os africanos, foi avaliada. Mostra-se que a religião cristã imposta por colonizadores portugueses sofreu adaptações, releituras e redirecionamentos em sua penetração junto aos grupos neófitos. Sujeitos ativos de suas histórias, os diferentes conjuntos populacionais escravizados nas Minas fizeram daquele instrumento de dominação – idealizado por governadores, senhores e autoridades eclesiásticas – uma gama de resistências. “Devido ao seu poder de aglutinação desses estrangeiros desenraizados”, argumentou o autor, o catolicismo praticado nas confrarias negras, por exemplo, possibilitou a retomada de relações e laços sociais, a reconstrução de identidades culturais, a obtenção de ajudas e auxílios, a abertura de espaços próprios de convivência infensos à vigilância senhorial. Ensejou a participação em festividades autopromovidas nas quais irmãos e irmãs negros eram protagonistas e atores principais. Ritos católicos fundamentais, como batismos, casamentos e cerimoniais fúnebres, ganharam novas funções sociais, novos significados culturais, novas conotações políticas sintonizadas à labuta cotidiana, à sobrevivência e à resistência daqueles fiéis submetidos ao escravismo colonial. A incessante busca pela liberdade (que tornou a obtenção de alforrias um verdadeiro fenômeno social nas Minas, a ponto de impactar, em pouco tempo, o perfil demográfico da população existente na capitania do ouro, cada vez mais crioula, forra e liberta, conforme o século XVIII avançava) dependeu de arranjos e de negociações realizados por meios religiosos, como o compadrio e o “parentesco espiritual”.

Embora o autor reconheça a presença e a relevância de diversas “nações”, etnônimos ou procedências no interior da comunidade africana, tendo destacado nuances culturais e religiosas possuídas por certos grupos e também seus paralelismos e aspectos em comum, o foco da análise prendeu-se à totalidade do conjunto social escravizado (“à coletividade escrava”, p. 320), superando, assim, de modo feliz, a intrincada discussão acerca das segmentações identitárias e rivalidades étnicas, que tem se tornado tema de interesse historiográfico mais amplo cujos delineamentos iniciais apontam, no entanto, para a singularidade de sua manifestação nas Minas setecentistas. Ali, até meados da centúria, diferentemente do que ocorreu em outras praças da América portuguesa, as irmandades negras, especialmente as do Rosário – entre as quais a paradigmática confraria do Alto da Cruz – acolheram em seu interior uma enorme diversidade de grupos africanos distintos, sem que fissuras ou rivalidades endógenas tenham impedido ou dificultado a sobrevivência dessas instituições. Ao contrário, há indícios de que esse ecumenismo típico teria jogado, ao contrário, um papel decisivo no crescimento, fortalecimento e poderio alcançados por certas associações – a reforçar, nesse caso, o ponto de vista desenvolvido por Dias. A capacidade de articulação, de adaptação e de resistência às adversidades mostrou-se, mais uma vez, decisiva na defesa dos interesses daqueles trabalhadores. Foi especialmente cuidadosa e pertinente a forma como o autor definiu as variáveis envolvidas nas múltiplas percepções religiosas.[2]

São instigantes as reciprocidades que essa religiosidade popular estabeleceu com rebeldias escravas, fugas de cativos e a formação de quilombos. Lendo à contrapelo os registros de época, o autor viu na pródiga legislação repressiva e na constante reedição de normas de controle – fontes que formam boa parte da célebre Secretaria de Governo, fundo documental a conter a documentação de natureza político-administrativa expedida na capitania de Minas Gerais – a prova de que, em vez de vítimas passivas da violência estatal e senhorial, aqueles cristãos rebeldes, fujões e quilombolas foram antes sujeitos ativos da história política regional.[3] Redes de apoio e contato, o usufruto de autonomia no gerenciamento de tempos, pessoas, espaços e recursos financeiros próprios, entre outras vantagens auferidas por meio dessas associações religiosas escravas subsidiaram movimentos como a conspiração de 1719, cujo planejamento intentara aproveitar-se do feriado da Semana Santa por estopim de levante escravo. Quilombos mineiros, como os existentes nos sertões do Campo Grande (considerados os maiores da história da capitania, contaram-se talvez entre as principais experiências congêneres depois de Palmares) valeram-se de informações estratégicas, de parcerias comerciais e de outros auxílios externos, obtidos também junto à comunidade cativa.

Por crivo crítico, o trabalho peca no cometimento de tautologias e redundâncias e no emprego insistente de documentação legada pelo Conde de Assumar, ao passo em que não faz uso de outros fundos documentais que seriam relevantes ao desenvolvimento do tema – como as séries de registros paroquiais ou as fontes produzidas no âmbito das inúmeras irmandades negras havidas em Minas no contexto estudado.

Ao final da leitura, a tentação de responder à pergunta que dá título ao livro forçará o leitor atento a desenvolver resposta dúbia, porém certeira. A extraordinária expansão do catolicismo levada a cabo nos domínios do império português sem dúvida serviu de glória aos soberanos lusos e fez crescer em número de fiéis e em poderio político-religioso a força da Igreja Católica. Porém, essa religião também foi elástica o suficiente para incorporar, dentro de si, atores, grupos e interesses político-religiosos que, nas Minas, desafiaram ou subverteram conscientemente os dogmas da ortodoxia e os pilares do escravismo e da monarquia de Antigo Regime.

Referências bibliográficas

COSTA, Ana Paula Pereira. Armar Escravos em Minas Colonial: potentados locais e suas práticas de reprodução social na primeira metade do século XVIII. Vila Rica, 1711-1750. Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado, 2010.

DELL´AIRA, Alessandro. “Johann Moritz Rugendas e a lenda de Chico Rei”. Desígnio: revista de história da arquitetura e do urbanismo. São Paulo: Annablume, 2009, n. 9/10 setembro de 2009, p. 137-147.

MAIA, Moacir Rodrigo de Castro. De reino traficante a povo traficado: a diáspora dos courás do Golfo do Benim para as minas de ouro da América Portuguesa (1715-1760). Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013 (Doutorado em História Social)

MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. As múltiplas faces da escravidão: o espaço econômico do ouro e sua elite pluriocupacional na formação da sociedade mineira setecentista, c. 1711 – c. 1756. Rio de Janeiro: Mauad X/FAPERJ, 2012.

RODRIGUES, Aldair. “Quem eram as negras e os negros minas da capitania de Minas Gerais no século XVIII”. In: RODRIGUES, Aldair; LIMA, Ivana Stolze; FARIAS, Juliana (Orgs.). A diáspora Mina: africanos entre o Brasil e o golfo do Benim. Rio de Janeiro: Nau, 2020, p. 323-358.

SILVA, Lázaro. “Conjuração Negra em Minas Gerais”. Revista IFAC, v. 2, 1995, p. 69-71.

Notas

[1] Grosso modo, ganharam destaque na produção mais recente, de um lado, o realce aos elementos de Antigo Regime e, de outro, uma atenção maior às diferenciações étnicas que teriam distinguido ou mesmo dividido os diversos grupos africanos escravizados nas Minas no século XVIII. A historiografia produzida nas últimas duas décadas acerca das Minas setecentistas continuou robusta e diversificada. Trabalhos ilustrativos das tendências referidas podem ser consultados em COSTA, 2010; MATHIAS, 2012; MAIA, 2013; RODRIGUES, 2020, 323-358.
[2] “No caso da percepção do catolicismo pelos africanos e descendentes, isso dependeu, entre outras coisas: das concepções religiosas africanas; do grau de integração do indivíduo na sociedade de origem; da importância simbólica do fato cultural ou da carga emotiva que trazia à comunidade; do seu posicionamento na hierarquia, quando se tratava de sociedades que apresentavam nível mais pronunciado de diferenciação social; do tempo de contato com a outra religião – esta diretamente relacionada à catequese na África –; do grau de coesão grupal, da dimensão e da distribuição das comunidades no Novo Mundo; e da variedade simbólica da antiga religião. No ambiente colonial, esta poderia se alterar segundo o local de residência/atividade do cativo (urbano/rural), o interesse do senhor e a forma com que tratava os cativos, fatores que refletem nas táticas pessoais dos escravos, que buscavam formas que lhes garantissem uma vida melhor” (p. 284-85).
[3] “Os procedimentos das autoridades não espelhariam, mesmo que de forma indireta, a reação, as atitudes políticas dos escravos? Do contrário, por que tão vasta legislação repressiva? Acredita-se que, mais do que afirmar que os escravos sofriam vários tipos de repressão em um meio hostil, o que é um fato inquestionável, dever-se-ia, então, perguntar como alteravam, com sua insistência, os limites do próprio sistema escravista” (p. 301).

Autor notes

i Doutor em História Social pela USP e Professor de História do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais. E-mail: tarcisio.gaspar@muz.ifsuldeminas.edu.br. ORCID https://orcid.org/0000-0001-5811-9184.

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