Recepção: 02 Abril 2023
Aprovação: 07 Abril 2023
Resumo: Livros didáticos são o principal suporte utilizado por professores da educação básica e, no entanto, têm conteúdo generalista, incapazes de abordar a diversidade que o Brasil apresenta em termos de biodiversidade, geografia física e cultura. Esta é uma pesquisa documental de abordagem qualitativa que teve como fonte de dados três livros didáticos de Ciências da Natureza do 6º ano do Ensino Fundamental adotados em escolas públicas na região da Serra do Espinhaço Meridional, Minas Gerais. O objetivo da pesquisa foi de identificar nos livros conteúdos científicos que oportunizam uma aproximação com o contexto e a história de vida dos alunos quanto à natureza da Serra do Espinhaço. Identificamos e discorremos sobre os conteúdos e elaboramos sugestões para que os professores, ao abordarem os processos e conceitos científicos expostos nos livros, explique-os e exemplifique-os por meio de temas afins à natureza da Serra do Espinhaço. Reconhecemos que este não é um processo isento de desafios, transpô-los, no entanto, é necessário para alcançar uma aprendizagem significativa, uma formação crítica e o efetivo engajamento dos educandos na resolução de problemas socioambientais locais.
Palavras-chave: Currículo, Educação básica, Ensino de Ciências, Livro didático, Serra do Espinhaço.
Abstract: Textbooks are the main support used by school teachers, however, they express generalist content and do not show all the diversity that Brazil presents in terms of biodiversity, physical geography and culture. This is a documental research with a qualitative approach that investigated three textbooks of Natural Sciences of the 6th year of Elementary School adopted in public schools in the region of Serra do Espinhaço Meridional, Minas Gerais. The objective was to identify scientific contents in those textbooks that provide an approximation with the context and the life history of students and the nature of Serra do Espinhaço. We identified and discussed the contents and made suggestions so that teachers, when approaching the scientific processes and concepts exposed in the textbooks, explain and exemplify them through themes related to the nature of Serra do Espinhaço. We recognize there are many challenges but overcoming them is necessary to achieve meaningful learning, critical formation and effective engagement of students in solving local socio-environmental problems.
Keywords: Basic education, Curriculum, Serra do Espinhaço, Science learning, Textbook.
1. Introdução
Livros didáticos são o principal suporte utilizado por professores da educação básica, em especial das escolas públicas brasileiras (Frison et al., 2009; Silva, 2012). No país, o desenvolvimento de programas e políticas públicas para produção dos livros didáticos teve início em 1929 e consolidou-se em 1985 com a criação do Programa Nacional do Livro Didático, ainda hoje responsável pela distribuição gratuita, sistemática e regular dos exemplares na rede pública de ensino. Por meio deste Programa, uma equipe multidisciplinar pré-seleciona coleções de livros didáticos de editoras distintas que são enviados para escolas que, por sua vez, escolhem qual coleção e/ou títulos específicos serão adotados nos anos subsequentes. Embora os livros didáticos sejam diversificados no que tange a maneira de expor e organizar o conteúdo, o conteúdo em si de livros destinados ao público de cada nível específico (cada ano do Ensino Fundamental, por exemplo) é semelhante, pois todos precisam atender às determinações de diretrizes curriculares, como a atual Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento normativo dos conteúdos e habilidades necessárias para o planejamento da educação básica no Brasil (Brasil, 2018; 2021) que se afunila no Currículo Referência, a nível estadual (Minas Gerais, 2018).
As diretrizes curriculares e currículos estaduais propõem garantir uma educação igualitária a todos os estudantes de diferentes partes do país e estados, mas são duramente criticados, entre outras coisas, por não haver possibilidade de se estabelecer um conteúdo único para um público tão grande e diversificado e que seja, de fato, igualmente relevante para a formação de cada um (Oliveira et al., 2019). A BNCC, de maneira geral, controla e homogeniza o currículo da educação básica (Oliveira et al., 2019) e tais características repercutem, naturalmente, em livros didáticos generalistas e pouco articulados com a realidade vivenciada pelos alunos (Franco e Munford, 2018).
Cabe pontuar que a legislação estabelece que a base comum deve ser complementada em cada escola por uma parte diversificada do currículo de acordo com as características regionais e locais (Brasil, 1996). E, como bem colocado por Batista e Bezerra (2020), a existência de uma base que define prioridades de conteúdos e o seu sequenciamento, não deve inibir ou impedir que o professor traga problematizações que situem os educandos nas condições existenciais concretas em que vivem. Porém, é fato que a BNCC traz um discurso pedagógico que dificulta adaptações temáticas e de métodos de acordo com a cultura local, cabendo à escola e, geralmente, ao professor individualmente, buscar meios para adequar, inserir e englobar a realidade local (Batista e Bezerra, 2020). Esta é mais uma demanda que sobrecarrega o professor das escolas públicas que, devido à muitas limitações e desafios, muitas vezes tem no livro didático o único recurso utilizado para preparação e desenvolvimento das aulas, abordando fielmente e unicamente os conteúdos presentes nestes (Vasconcelo, 2004; Uhmann e Oliveira, 2019; Frison et al., 2009). Como resultado, frequentemente a parte diversificada dos currículos é precária e redundante, quase inexistente nas práticas pedagógicas das escolas (Pereira e Souza, 2016).
O cenário se torna ainda mais desafiador quando temas afins à biodiversidade e ao uso e conservação de recursos naturais estão em pauta, pois é necessário legitimar neste conteúdo escolar a heterogeneidade que o país apresenta, para, de fato, proporcionar uma aprendizagem significativa e fortalecer a formação cidadã e o engajamento na resolução de problemas socioambientais locais. Neste sentido, este trabalho tem como objetivo de investigação, identificar nos livros os conteúdos que oportunizam uma aproximação com o contexto e a história de vida dos alunos quanto à natureza da Serra do Espinhaço. Para tanto, desenvolvemos uma pesquisa em livros didáticos de Ciências da Natureza do 6º ano do Ensino Fundamental em três escolas públicas na região. Logo, esta pesquisa se justifica por buscar contribuir para a melhoria deste cenário, especificamente na Serra do Espinhaço Meridional, Minas Gerais.
2. Material e Métodos
2.1 Caracterização da pesquisa
Esta é uma pesquisa documental cuja fonte de dados primários são livros didáticos. É uma pesquisa de abordagem qualitativa, que tem finalidade exploratória descritiva já que, a partir da exploração dos conteúdos dos livros didáticos, apontamos oportunidades e descrevemos desafios e possibilidades de abordagem da natureza da Serra do Espinhaço.
2.2 Área de Estudo
A Serra do Espinhaço se estende de Minas Gerais até a Bahia e representa uma importante região biogeográfica pelo encontro de dois hotspots mundiais, a Mata Atlântica e o Cerrado, biomas de relevante biodiversidade e seriamente ameaçados por atividades humanas (Myers et al., 2000). A importância da Serra do Espinhaço tem sido destacada em muitos estudos de priorização de áreas para a conservação da biodiversidade (Drummond et al., 2005; Silva et al., 2008) e desde 2005 ela é reconhecida como Reserva da Biosfera (UNESCO/MaB, 2005). A região como um todo padece com muitos conflitos e ameaças mas, por outro lado, apresenta grandes oportunidades de conservação, como o Mosaico de Áreas Protegidas do Espinhaço: Alto Jequitinhonha - Serra do Cabral, um instrumento de gestão territorial que busca compatibilizar a presença da biodiversidade, a valorização da sociodiversidade e o desenvolvimento sustentável no contexto regional (Azevedo et al., 2015).
Na porção meridional do Espinhaço estão inúmeras nascentes de água que constituem as cabeceiras de rios das mais importantes bacias hidrográficas do leste brasileiro: as bacias do Rio São Francisco, Rio Jequitinhonha e Rio Doce. Tais nascentes são frequentes em ecossistemas muito peculiares e ainda pouco estudados no Brasil, as turfeiras. As turfeiras armazenam água na estação chuvosa e mantém o fluxo dos rios na estação seca, prestando um serviço ambiental essencial para a sociedade. Na região está em curso o Programa Ecológico de Longa Duração - Turfeiras da Serra do Espinhaço Meridional, que desenvolve pesquisas que visam contribuir para que a produção de conhecimento científico esteja integrada às necessidades da sociedade, como a narrada no presente artigo.
Imbricados na região meridional da Serra do Espinhaço, estão os municípios de Felício dos Santos, São Gonçalo do Rio Preto e Diamantina (Minas Gerais). O primeiro está localizado na vertente leste, região com influência da Mata Atlântica. Por lá estão as nascentes do Rio Araçuaí, relevante por abastecer 23 cidades e ser o mais importante tributário do Rio Jequitinhonha (Greco et al., 2021). Em Felício dos Santos não há uma política efetiva para a conservação das nascentes que padecem com impactos especialmente oriundos da criação de gado, como queimadas e pisoteamento (Silva et al., 2023). Na sede deste município está a Escola Estadual Felício dos Santos, com mais de 600 alunos, grande parte proveniente da zona rural, é a única escola na localidade que atende os anos finais do Ensino Fundamental, o Ensino Médio, a Educação de Jovens e Adultos e a Educação Especial (QEdu, 2021).
São Gonçalo do Rio Preto é o município vizinho à Felício dos Santos. Nele nasce o Rio Preto, importante tributário do Rio Araçuaí. Na década de 1990, um movimento de moradores juntamente com o poder público estadual, criou o Parque Estadual do Rio Preto que protege as nascentes do rio homônimo. O Parque tem mais de 12 mil hectares, o que representa mais de um terço do território do município, e é reconhecido pela importância da sua biodiversidade. O extrativismo mineral, vegetal e a criação de gado são as principais atividades econômicas exercidas no município e delas decorrem diversos impactos ambientais (IEF, 2020). A Escola Estadual Dom João Antônio dos Santos, está na sede deste município, com mais de 300 alunos, grande parte proveniente da zona rural, é a única que atende os anos finais do Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação Especial (QEdu, 2021).
Cerca de 50 km a oeste de São Gonçalo do Rio Preto está Diamantina, cidade histórica fundada durante o ciclo do ouro e do diamante que pela sua arquitetura, cultura e natureza foi reconhecida em 1999 como Patrimônio Cultural da Humanidade. É uma cidade maior do que as anteriormente apresentadas, com mais de 10 escolas que atendem os anos finais do Ensino Fundamental e Médio, entre públicas e particulares, localizadas na sede municipal e nos distritos. A Escola Estadual Joaquim Felício dos Santos atende alunos de vários bairros da cidade e também provenientes da zona rural adjacente. São mais de 400 alunos de todos os anos do Ensino Fundamental e da Educação Especial (QEdu, 2021).
Esta pesquisa decorre de uma investigação anterior realizada junto aos professores dessas mesmas escolas (S. C. Amorim, dados não publicados) que mostrou a relevância dos livros didáticos para planejamento das suas aulas, embora os professores reconheçam a limitação dos mesmos e a insuficiência de materiais didáticos que abordam a natureza da Serra do Espinhaço.
2.3 Objetos de Análise
Foram analisadas as versões “manual do professor” de livros didáticos de Ciências da Natureza adotados nas turmas de 6º ano do Ensino Fundamental nos anos de 2022 e 2023 nas três escolas descritas anteriormente. O 6º ano foi escolhido por representar o ingresso na nova etapa de ensino e pelo nível de desenvolvimento dos alunos que, geralmente, ainda apresentam a curiosidade tão marcante na infância e já têm maturidade necessária para compreensão de conceitos e processos científicos mais complexos. Os livros analisados estão indicados no Quadro1.
Adotamos a Análise de Conteúdo, “um instrumento de exploração interpretativa de documentos [...] que visa à organização e à sistematização de unidades textuais para a evidenciação de núcleos de sentido [...], importante estratégia de subsídio à pesquisa interpretativa em Ensino de Ciências” (Ferreira e Loguecio, 2014). Proposta inicialmente por L. Bardin na década de 1970, a Análise de Conteúdo é adaptada para diferentes contextos e por diferentes autores, nesta pesquisa seguimos os procedimentos conforme Ferreira e Loguecio (2014).
a) Pré-análise: fizemos a leitura do conteúdo integral de cada um dos livros, incluindo o texto principal, orientações didáticas ao professor, atividades propostas e recursos adicionais. Recursos visuais como figuras, gráficos e outros também foram analisados.
b) Exploração do material: selecionamos enquanto unidades de registro os títulos dos capítulos (e/ou título das unidades ou dos tópicos – conforme a nomeação dada por cada livro) que representam temas do Ensino de Ciências que consideramos potencialmente dialogar com a natureza da Serra do Espinhaço. As unidades de contexto foram trechos dos textos descritivos desses títulos, que representam a relação entre eles e o potencial diálogo com a natureza da Serra do Espinhaço.
c) Tratamento dos resultados: consolidamos interpretações do conteúdo explícito das unidades de registro e de contexto e elaboramos sugestões para professores promoverem uma abordagem desses conteúdos de forma a proporcionar um diálogo com temas afins a natureza da Serra do Espinhaço. Nesta etapa analítica também fizemos inferências sobre conteúdos de interesse não expressos nos livros didáticos.
3. Resultados e discussão
Diversos conteúdos dos livros didáticos dialogam direta ou indiretamente com a natureza da Serra do Espinhaço. No entanto, este diálogo não está explícito nos livros, cabendo ao professor promover as articulações necessárias para que o Ensino de Ciências esteja contextualizado com a cultura e com os elementos da natureza regional. A seguir, destacamos algumas especificidades de cada um dos três livros didáticos analisados.
No livro Teláris reconhecemos em praticamente todos os capítulos a existência de temas que dialogam com a natureza da Serra do Espinhaço. Tais capítulos representam as unidades de registro e de contexto da Análise de Conteúdo e estão indicados na Tabela 2. Para cada um desses capítulos, elaboramos sugestões para que os professores possam efetivamente promover o diálogo entre os conceitos e processos científicos descritos nos livros e os aspectos da natureza regional, da história de vida dos alunos e suas comunidades (Quadro 2).
No texto principal do livro Teláris, a menção ao Cerrado é quase ausente, mas os recursos que complementam o texto principal frequentemente dialogam diretamente com a abordagem do bioma e/ou com outros temas afins à natureza da Serra do Espinhaço, como por exemplo reportagens que complementam o tema solo, sobre uso de calcário e adubação verde no Cerrado. O livro traz uma mensagem clara de que ele não deve ser adotado como único recurso didático, incentivando que mais informações sejam buscadas pelos professores. Mas, neste processo, o próprio livro auxilia, trazendo orientações, como:
É importante que os estudantes analisem os prejuízos causados por agricultura, pastagens ou cidades aos ecossistemas locais. Se possível, utilize exemplos do município em que a escola está situada ou próximos a ele, discutindo propostas individuais e/ou coletivas para minimizar esses danos (Gewandsznajder e Pacca, 2018, p.41).
No Quadro 3 está a análise do livro Araribá que, em alguns pontos, traz boas informações como a proposta de uma atividade de elaboração de uma teia alimentar considerando seres vivos especificamente do Cerrado, uma ótima oportunidade que deve ser valorizada pelos professores. Por outro lado, o livro não traz um conteúdo adequado sobre queimadas no bioma, colocando de forma vaga apenas a seguinte afirmativa: “Essas queimadas costumam causar menos impactos e são até essenciais para alguns ecossistemas, como o Cerrado” (Carnevalle, 1998, p. 96). Este é um tema muito complexo e importantíssimo para a conservação da natureza da Serra do Espinhaço, considerando, em especial, as nascentes e os ecossistemas de turfeiras. Queimadas, portanto, representam um tema que precisa ser abordado com profundidade para além dessas informações superficiais do texto deste livro que, postas de forma isolada, passam uma ideia errada de que é correto e até mesmo desejável promover queimadas no Cerrado.
No Quadro 4 está a análise do livro Inspire que, assim como o da coleção Teláris, oferece oportunidades de diálogo entre seu conteúdo e aspectos da natureza da regional mais frequentemente por meio dos materiais complementares do que pelas informações que constam em seu texto principal. Dentre estes materiais, destaca-se a recomendação para uso de vídeos, como Ilha das Flores, já bastante usado e analisado no contexto educacional (Fiuza, 2008). O curta retrata a cadeia de produção do tomate do início ao fim, bem como dos elementos essenciais para que essa cadeia exista, fazendo adendos de outros assuntos problematizadores, numa linha do tempo da história humana, que parte da bonança à miséria (Fiuza, 2008). Ele induz diversas possibilidades de discussões sobre sociedade e natureza e pode promover importantes reflexões também sobre uso dos recursos naturais locais, bem como justiça e desigualdade. Outro vídeo sugerido por este livro didático é “Como os lobos mudam os rios”, interessante por problematizar a importância dos predadores de topo de cadeia alimentar na estruturação da comunidade e sua influência no ecossistema como um todo. Baseado no vídeo, é interessante discutir a realidade do Cerrado como um todo e especificamente na região, onde predadores de topo de cadeia alimentar são raros e ameaçados de extinção (como felinos e canídeos: onça, lobo guará, raposa e outros). Assim, é possível proporcionar uma reflexão sobre o impacto do declínio das populações desses predadores no ecossistema no qual estão inseridas as próprias escolas e comunidades.
Em todos os três livros analisados, conteúdos sobre litosfera e hidrosfera são apresentados de maneira ampla, sem passar por informações essenciais para a compreensão das peculiaridades da natureza da Serra do Espinhaço. Na apresentação sobre os diferentes tipos de rocha, por exemplo, é essencial que o professor inclua o quartzito em sua exposição, pois esta é a rocha matriz da Cadeia do Espinhaço que forma os afloramentos tão abundantes na paisagem local e cuja existência não é mencionada nos livros. As rochas quartzíticas são amplamente utilizadas na construção civil em ornamentações, por possuírem alta resistência e beleza, porém a sua extração traz prejuízos ambientais irreversíveis e em larga escala (Santos et al., 2014). Quanto aos recursos hídricos, é importante apresentar o ciclo da água tendo como exemplo as bacias hidrográficas que banham as próprias comunidades e escolas, o que é imprescindível para a aprendizagem significativa. Neste contexto, cabe explorar também informações sobre as nascentes dos rios em ecossistemas de turfeiras e uma característica muito importante na região é o nome dos rios em alusão à cor escura de suas águas, consequência dos ácidos orgânicos das turfeiras, como por exemplo: Rio Preto, Rio Pardo, Rio Vermelho e Rio Paraúna (nome que significa rio de águas escuras, em Tupi) (Silva et al., 2023).
Nos três livros didáticos analisados há diversos conteúdos que podem ser abordados pelo professor tecendo considerações com uma leitura crítica da realidade local. Há conteúdos que não dialogam de maneira evidente com os aspectos da natureza da Serra do Espinhaço, marcadamente os conteúdos relacionados a anatomia e fisiologia do corpo humano. Porém, mesmo para esses, é importante que o professor busque nas vivências e cotidiano dos alunos, elementos para debate-los, sempre de forma a aproximar a ciência da realidade de todos (Sasseron, 2015).
Nesta pesquisa, partimos do cenário narrado por Silva (1996):
Costumo dizer que, para uma boa parcela dos professores brasileiros, o livro didático se apresenta como uma insubstituível muleta. Na sua falta ou ausência, não se caminha cognitivamente na medida em que não há substância para ensinar. Coxos por formação e/ou mutilados pelo ingrato dia-a-dia do magistério, resta a esses professores engolir e reproduzir a ideia de que sem a adoção do livro didático não há como orientar a aprendizagem (Silva, 1996 p. 11).
Não desenvolvemos aqui a tentativa de mudar este cenário de forma radical, reconhecendo a importância do livro didático também por ser o principal suporte para os alunos, que na falta de outros recursos, o utilizam para consulta, pesquisa e realização de todas as atividades educativas (Rosa, 2017). Freitas e Rodrigues (2008) colocam a importância do livro didático para o aluno, contribuindo de forma significativa na sua formação e atuando como “mediador na construção do conhecimento” e ressaltam:
O meio impresso exige atenção, intenção, pausa e concentração para refletir e compreender a mensagem, diferente do que acontece com outras mídias como a televisão e o rádio, que não necessariamente obrigam o sujeito a parar. O livro, por meio de seu conteúdo, mas também de sua forma, expressa em um projeto gráfico, tem justamente a função de chamar a atenção, provocar a intenção e promover a leitura (Freitas e Rodrigues, 2008, p.1).
É fato que os livros de Ciências da Natureza trazem conteúdo denso e é um desafio abordá-los em uma carga horária geralmente restrita a 3h/aula semanais no Ensino Fundamental II. Com isso, os professores raramente ousam ir além do conteúdo principal descrito nos livros didáticos e mesmo atividades extras e reflexões complementares propostas pelos próprios livros nem sempre são utilizadas (Rosa e Artuso, 2019).
Embora o cenário seja desafiador, sugerimos que, partindo dos conteúdos de ciências originais dos livros, os professores apresentem e debatam os processos e conceitos científicos buscando explicá-los e exemplificá-los por meio de temas afins à natureza da Serra do Espinhaço. Naturalmente, ir além do livro didático não é uma proposta isenta de desafios pois, primeiramente, cabe aos professores a tarefa de definir e desenvolver estratégias apropriadas para a abordagem de cada tema sugerido, tendo exposição dialogada como possibilidade, mas não exclusividade, pois rodas de conversa, atividades práticas, pesquisa e projeto, bem como aulas de campo são também importantes. Cabe ressaltar que o uso de estratégias de ensino que sobressaem o convencional, permitem um maior envolvimento dos alunos e assim uma melhor assimilação e contextualização do tema abordado (Nicola e Paniz, 2016).
Também cabe aos professores se formarem e se apropriarem dos temas afins à natureza regional que nem sempre estão facilmente acessíveis. No processo de construção do conhecimento, os professores devem contar com a participação dos próprios alunos e dos outros membros das comunidades, reconhecendo como relevantes as vivências e o conhecimento de cada um (Oliveira et al., 2007). Quando necessário, deve ser considerado proporcionar atividades de pesquisa, demandando que os próprios alunos auxiliem na busca por informações. É importante que as informações sejam pesquisadas em fontes confiáveis, como os livros paradidáticos conforme recomendam Neto e Fracalanza (2003). Mas é necessário reconhecer que os livros paradidáticos também têm conteúdos limitados, nem sempre suficientemente próximos à realidade da escola, dos alunos e suas comunidades. Nos cabe, portanto, apontar para a necessidade da elaboração de materiais de apoio mais específicos sobre a natureza da Serra do Espinhaço, materiais estes que não devem ser criados para os professores e os alunos, mas sim com os próprios professores e os alunos. Assim será possível alcançar o processo de aprendizagem mais significativo para o público e que contribua de forma mais efetiva para a conservação da natureza regional.
4. Conclusão
Os livros didáticos analisados apresentam um conteúdo amplo e generalista, mas que em diversos pontos oportunizam um diálogo com temas afins à natureza da Serra do Espinhaço. Nesta pesquisa, indicamos esses conteúdos e apresentamos sugestões para que os professores usuários desses livros promovam contrapontos necessários para problematizar a realidade e colocar em ação um currículo outro, que permita alcançar uma aprendizagem significativa, uma formação crítica e o efetivo engajamento dos educandos na resolução de problemas socioambientais locais.
Agradecimentos
Esta pesquisa foi desenvolvida com o apoio do Programa de Pesquisa Ecológica de Longa Duração - CNPq (processo 441335/2020-9) e Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (processo APQ-03364-21). As autoras agradecem a Geraldo Rocha Fernandes pelas valiosas contribuições.
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