Artigos de fluxo contínuo
Recepção: 26/06/20
Aprovação: 15/08/20
Resumo: Este artigo, resultante de uma pesquisa bibliográfica, objetiva refletir sobre o potencial de contribuição do fenômeno religioso chamado Cristianismo de Libertação e seu braço teórico-filosófico – a Teologia da Libertação – para os pressupostos formativos de líderes comunitários no ambiente das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica - CEBs, que tiveram seu período de maior efervescência entre as décadas de 1970 e 1990. A relevância da pesquisa situa-se na possibilidade de entendimento de um fenômeno religioso libertário e seu eventual potencial formativo e educativo a partir de uma perspectiva ética e política. Assim, realizou-se uma análise dos teóricos que investigam os temas pertinentes ao Cristianismo de Libertação para identificar, a partir de um caso concreto – o da Comunidade Eclesial de Base (CEB) Nossa Senhora das Mercês do Bairro Macaúbas da Paróquia São José no município de Muzambinho (MG) – como este pensamento contribui de forma pedagógica para a formação de lideranças e para o desenvolvimento comunitário. Para tanto, a pesquisa proposta apropriou-se, inicialmente, de um referencial teórico embasado pela obra de Michael Löwy – cientista social que empenha esforços na compreensão de tal fenômeno. A proposta é entretecer tal referencial ao pensamento educacional de Paulo Freire e ao referido estudo de caso, constituído a partir de entrevistas semiestruturadas, depoimentos e juntada de documentos referentes à CEB Nossa Senhora das Mercês, onde o engajamento de sua líder comunitária foi crucial no desenvolvimento de projetos coletivos – associativos, cooperativos e solidários – que produziram impactos sociais naquela localidade. A análise dos resultados do estudo de caso, feita à luz do referencial teórico proposto, responde como o pensamento teórico e a concretude confirmam a presunção sobre o potencial educativo das práticas do Cristianismo de Libertação como formativas de líderes comunitários engajados em causas sociais e o encontro de tais práticas com a pedagogia libertária de Paulo Freire.
Palavras-chave: Comunidades Eclesiais de Base, Teologia da Libertação, Líderes Comunitários.
Keywords: Basic Ecclesial Communities, Liberation Theology, Community Leaders
O encontro da pedagogia do oprimido com a teologia da libertação nas comunidades eclesiais de base: formação de lideranças em perspectiva ética e política The meeting of the pedagogy of the oppressed with the theology of release in the basic ecclesial communities: formation of leadership from an ethical and political perspective
Resumo
Este artigo, resultante de uma pesquisa bibliográfica, objetiva refletir sobre o potencial de contribuição do fenômeno religioso chamado Cristianismo de Libertação e seu braço teórico-filosófico – a Teologia da Libertação – para os pressupostos formativos de líderes comunitários no ambiente das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica - CEBs, que tiveram seu período de maior efervescência entre as décadas de 1970 e 1990. A relevância da pesquisa situa-se na possibilidade de entendimento de um fenômeno religioso libertário e seu eventual potencial formativo e educativo a partir de uma perspectiva ética e política. Assim, realizou-se uma análise dos teóricos que investigam os temas pertinentes ao Cristianismo de Libertação para identificar, a partir de um caso concreto – o da Comunidade Eclesial de Base (CEB) Nossa Senhora das Mercês do Bairro Macaúbas da Paróquia São José no município de Muzambinho (MG) – como este pensamento contribui de forma pedagógica para a formação de lideranças e para o desenvolvimento comunitário. Para tanto, a pesquisa proposta apropriou-se, inicialmente, de um referencial teórico embasado pela obra de Michael Löwy – cientista social que empenha esforços na compreensão de tal fenômeno. A proposta é entretecer tal referencial ao pensamento educacional de Paulo Freire e ao referido estudo de caso, constituído a partir de entrevistas semiestruturadas, depoimentos e juntada de documentos referentes à CEB Nossa Senhora das Mercês, onde o engajamento de sua líder comunitária foi crucial no desenvolvimento de projetos coletivos – associativos, cooperativos e solidários – que produziram impactos sociais naquela localidade. A análise dos resultados do estudo de caso, feita à luz do referencial teórico proposto, responde como o pensamento teórico e a concretude confirmam a presunção sobre o potencial educativo das práticas do Cristianismo de Libertação como formativas de líderes comunitários engajados em causas sociais e o encontro de tais práticas com a pedagogia libertária de Paulo Freire.
Palavras-chave: Comunidades Eclesiais de Base. Teologia da Libertação. Líderes Comunitários
Abstract This article, resulting from bibliographic research, aims to reflect on the potential contribution of the religious phenomenon called Liberation Christianity and its theoretical-philosophical arm - Liberation Theology - to the formative assumptions of community leaders in the environment of CEBs - Ecclesiastical Communities of Base of the Catholic Church, which had its period of greatest effervescence between the 1970s and 1990s. The relevance of the research lies in the possibility of understanding a libertarian religious phenomenon and its eventual formative and educational potential from an ethical and policy. Thus, an analysis was carried out of the theorists who investigate the themes pertinent to Liberation Christianity to identify, from a specific case - that of the Ecclesial Base Community (CEBs) Nossa Senhora das Merçês of Bairro Macaúbas da Paróquia São José in the municipality de Muzambinho (MG) - how this thought contributes in a pedagogical way to the formation of leaders and to community development. Therefore, the proposed research initially appropriated a theoretical framework based on the work of Michael Löwy - a social scientist who endeavors to understand this phenomenon. The proposal is to interweave such reference to the educational thought of Paulo Freire and to that case study, constituted from semi-structured interviews, testimonies and documents related to CEB Nossa Senhora das Mercês, where the engagement of its community leader was crucial in the development of collective projects - associative, cooperative and solidary - that produced social impacts in that location. The analysis of the results of the case study carried out in the light of the proposed theoretical framework answers how the theoretical thinking and concreteness confirm the presumption about the educational potential of Liberation Christianity practices as training community leaders engaged in social causes and the encounter of such practices with Paulo Freire's libertarian pedagogy. Keywords: Basic Ecclesial Communities. Liberation Theology. Community Leaders
Introdução
Esta pesquisa nasce a partir da experiência existencial de seus proponentes. Cada um a seu modo, viveu o momento de efervescência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Igreja Católica inseridos no interior delas e esta vivência teve influência decisiva na experiência como educadores, tanto na Igreja quanto na Universidade. As CEBs significaram uma espécie de mistura de aspirações socialistas e valores cristãos novidadeiros, apartados da teologia tradicional, que levou-nos a construir projetos, militância, experiências coletivas e trajetórias individuais e comunitárias interessantes: associações comunitárias, emissoras de rádio comunitárias, clubes de ciência, companhias teatrais mambembes, fábricas comunitárias, carreiras políticas, carreiras eclesiásticas, pequenos movimentos sociais e tantas outras expressões de um tempo e de um povo que pudemos presenciar no microcosmo em que estivemos inseridos na juventude e, de certa forma, até hoje. As CEBs produziram mudanças na cultura, na economia e na política num momento histórico que coincidiu com a redemocratização do Brasil. Essa efervescência libertária alimentou grandes utopias em que muita gente, inclusive nós, em toda a América Latina. De verdade, parecia que seria possível, a partir de iniciativas populares, de padres, negros, mulheres e adolescentes, trabalhadores, como nós, tomar as rédeas de nossa própria história e mudá-la.
Surgem, então, as questões: a religião pode servir à libertação de homens e mulheres? O fenômeno religioso pode ter caráter educativo e emancipatório? Na busca de elucidação, parece inevitável o caminho das Comunidades Eclesiais de Base, expressão mais concreta do fenômeno religioso progressista conhecido como Cristianismo de Libertação, que mobilizou parte significativa da Igreja Católica em toda a América Latina, sobretudo, entre os anos de 1960 e 1990.
Nesta perspectiva, temos como caso concreto o município de Muzambinho, com 20 mil habitantes, no interior sul de Minas Gerais, que experimentou a difusão do Cristianismo de Libertação no final da década de 1980 com a chegada à paróquia local de dois padres diocesanos, depois de aquela comunidade religiosa ter sido comandada por mais de 60 anos por sacerdotes da ordem religiosa franciscana. Os novos líderes católicos encontraram, nas aglomerações periféricas do município, solo fértil para aplicação das ideias libertárias que traziam consigo. Nesses espaços, com o impulso de um projeto religioso que optasse preferencialmente pelos pobres, a dinâmica de CEBs se tornou instrumento de educação libertária, pois, essas comunidades passaram a reunir-se para a reflexão bíblica, mas também, a partir de instrumentos norteadores conseguiam, pelo debate, entender suas necessidades, sua situação perante o mundo, suas carências, bem como seus potenciais e condições de ação. Tudo isso num processo que, não raro, resultava na solução de diversos problemas locais: desde uma estrada cascalhada até a construção de uma escola ou de um posto de saúde, por exemplo. As capelinhas, que os moradores construíram com mutirões e esforços próprios, além de templos religiosos, passaram a ser palco de palestras, de campanhas de vacinação, de reuniões políticas e de festas.
A hipótese, que orientou a pesquisa, foi que este processo modificou a geografia e a história daquela pequena localidade. Logo, a partir da investigação da trajetória da Líder de uma das Comunidades fundadas na Paróquia de Muzambinho, a proposta buscou demonstrar o potencial crítico e formativo da experiência em CEBs, compreendendo-a como educativa pela perspectiva de Paulo Freire. Aliás, a teologia da libertação e a pedagogia freireana se influenciaram mutuamente, partindo da mesma perspectiva de colocar como sujeitos da história os excluídos, como proclama Gustavo Gutierrez, na bela expressão “a força histórica dos pobres”. Assim, com o entendimento de que a possível comprovação da hipótese, por meio de um processo empírico diante do caso da Comunidade Eclesial de Basse de Nossa Senhora das Mercês, no Bairro rural de Macaúbas, no município de Muzambinho, e de posse de um arcabouço teórico justaposto aos dados obtidos pela observação, delineou-se como objetivo desta pesquisa a análise dos teóricos que investigam os temas pertinentes ao chamado Cristianismo de Libertação e seus desdobramentos, bem como sua relação com processos pedagógicos, para identificar, a partir da observação de um caso concreto, como este pensamento contribui para a formação de lideranças e para o desenvolvimento comunitário sob uma perspectiva ética e política.
Fundamentação Teórica
A proposta deste trabalho, como se vê, foi compreender um modelo de articulação existente: o caso da formação de lideranças no seio das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. Para esta compreensão, buscou-se, incialmente, algumas obras acadêmicas com potencial para situar a pesquisa em contexto amplo: O que é Cristianismo de Libertação: religião e política na América Latina, de Michael Löwy (2016), O que é Comunidade Eclesial de Base, de Frei Betto (1981), Da ética da Libertação à ética do Cuidado: uma leitura a partir do pensamento de Leonardo Boff, de Vanderlei Barbosa (2009) e a obra de Paulo Freire (2016), Pedagogia do Oprimido.
É sob a égide desses pensadores que se procura explorar o que está além da aparência das coisas, isto é, refletir sobre a condição humana a partir da ótica da pobreza colocada, por eles, como questão ética e epistemológica[3]. O pensamento crítico latino americano encanta porque não se restringe à especulação teórica de fazer um diagnóstico sobre os condenados de forma meramente descritiva e analítica, mas, ao despertar a consciência, de forma propositiva, acentua práticas e provoca mudanças.
O trabalho de Michel Löwy é um ponto de partida sólido para qualquer pesquisa proposta sobre os acontecimentos no campo de força político-religioso da América Latina que constituem o chamado Cristianismo de Libertação, pois o autor realiza uma análise do conteúdo cultural deste movimento e suas consequências políticas e sociais. Para Michel Löwy, a América Latina experimentou desde o final da década de 1950 a propagação de um fenômeno religioso de grandes proporções, que foi capaz de mobilizar muitos espaços sociais religiosos, mas também políticos, a partir de uma aproximação com os pobres e os marginalizados e de propostas de enfrentamento da pobreza, das injustiças sociais e dos processos de exclusão e marginalização tão característicos do continente. Trata-se de um fenômeno religioso que, em seu momento de maior efervescência, reuniu homens e mulheres, religiosos e leigos, padres e bispos em busca de uma experiência religiosa de tomada de conhecimento e de sentimento de solidariedade com as condições de vida difíceis das camadas de base da pirâmide social, especialmente nas periferias das regiões urbanas e nos rincões sertanejos (LÖWY, 2016). Para Löwy, os desdobramentos dos acontecimentos oriundos dessa mobilização deixaram claros os contrapontos entre a perspectiva de libertação almejada por seus agentes e as estruturas de opressão vigentes. Esta tensão gerou uma espécie de contraofensiva de setores conservadores católicos e protestantes, o que, por sua vez, teve como consequência, um visível arrefecimento da propagação do fenômeno religioso progressista. Entretanto, a importância do Cristianismo de Libertação para os processos políticos e sociais da América Latina é considerada crucial para significativo número de pensadores.
Nesta perspectiva, é possível inferir que o Cristianismo de Libertação e a corrente teológico-filosófica que dele deriva, a Teologia da Libertação, têm importância para a produção acadêmica, para os desdobramentos políticos e eleitorais de diversos países e, de maneira especial, para a experiência dos movimentos sociais latino-americanos, muitos dos quais, sabe-se, concebidos em contextos sociorreligiosos de influência deste pensamento (LÖWY, 2016, p. 255). Além disso, há um aspecto particular deste fenômeno religioso que parece ser interessante para quem se propõe a realizar pesquisas científicas sobre processos educacionais – ainda mais aqueles que concebem a educação como Paro (2014), para além dos bancos escolares, como processo de troca de experiências, de construção de conhecimento, de apropriação da cultura e de mudança de realidade, avançando para os espaços de formação que não possuam o reconhecimento social oficial, ou seja, o diploma, mas que são responsáveis por verdadeiras transformações nas vidas de milhares de indivíduos: no seio do Cristianismo de Libertação encontram-se a concepção e o desenvolvimento das Comunidades Eclesiais de Base, ou simplesmente CEBs, que para Löwy formaram, a partir da década de 1970, o instrumento de maior difusão do Cristianismo de Libertação entre os católicos brasileiros, sobretudo as pessoas reunidas nas periferias das grandes cidades ou nos sertões do interior. “O sofrimento comum (a pobreza) e a esperança de salvação eram os componentes principais da cultura política/religiosa das comunidades eclesiais de base” (LÖWY, 2016, p. 152).
As CEBs representaram uma nova experiência pastoral, na medida em que proporcionavam um protagonismo leigo na Igreja e uma espécie de descentralização das atividades pastorais paroquiais. Mais que isso, as CEBs tiveram colaboração decisiva para a criação de uma cultura política conhecida como Democracia de Bases. Löwy explicita que esta nova cultura política foi responsável pelo enfrentamento ao autoritarismo militar, mas, também ao clientelismo, ao populismo e ao verticalismo – na sua visão, as três tradições principais da política brasileira.
Frei Betto (1981) ocupou-se de explicar de maneira didática o conceito de CEBs concebendo-as como pequenos agrupamentos que se formam em torno de uma igreja ou uma capela por iniciativas de padres ou bispos, que são lideranças religiosas, mas, também, por iniciativas de leigos, ou seja, da própria população moradora das localidades. De maneira que, seja porque formadas por pessoas que estão na base da pirâmide social ou por pessoas que estão na base da hierarquia católica, as CEBs representaram, para Frei Betto, o crescimento de uma perspectiva de prática religiosa assentada na realidade de um povo e, em inúmeros casos, também a tomada de consciência dessa realidade.
O advento das Comunidades Eclesiais de Base passou a dar contribuição determinante para participação social, já que os trabalhos e a formação social verificados eram vetores da politização dos sujeitos participantes, estimulando, inclusive, a ascensão política, sindical ou mesmo revolucionária de muitos desses sujeitos. Para Guimarães (2011) é consenso entre vários autores que diversas lutas importantes pela democracia e pela emancipação social na América Latina nos últimos vinte e cinco anos só foram possíveis graças a contribuição das CEBs e do Cristianismo da Libertação.
Apesar de não haver estimativas oficiais, é possível encontrar, tanto na obra de Löwy (2016) como na de Frei Betto (1981), um cômputo de que nos anos de 1980 existiam cerca de 80 mil Comunidades Eclesiais de Base no Brasil, com a participação de cerca de dois milhões de pessoas “crentes e oprimidas” (BETTO, 1981, p. 7). No entanto, para além dos números, as CEBs parecem ter sido germinadoras de lideranças sociais que viriam a fundar movimentos, partidos políticos e sindicatos que representaram a expressão política do Cristianismo de Libertação no Brasil (GUIMARÃES, 2011). Já para Barbosa (2009), o que se sobressai desta experiência é o caráter pedagógico do movimento para os processos emancipatórios verificados na rede de interrelações do Cristianismo de Libertação no Brasil. Para o autor, as Comunidades Eclesiais de Base constituíram verdadeiras escolas não formais em que as ações de libertação promoviam ensino e aprendizagem – uma escola vinculada à prática social.
Verifica-se, portanto, que há aqui um processo educativo e emancipatório que brotou no seio de um fenômeno religioso, mesmo a religião tendo sido historicamente entendida, seja em Marx, Kant, Heder, Feuerbach, Bruno Bauer ou Heinrich Heine, como um sustentáculo do obscurantismo e do conservantismo (LÖWY, 2016). No que tange a Igreja Católica, esta reflexão toma uma dimensão paradoxal quando se leva em conta o entendimento de que a Igreja é uma instituição formada por uma diversidade de blocos ideológicos que comporta em seu interior muitas e profundas contradições (BARBOSA, 2009).
A ideia de que a experiência em CEBs pode ser entendida como um processo educativo de cunho libertário nos leva, invariavelmente, à obra de Paulo Freire – para muitos, o mais notável dos educadores brasileiros. Este encontro de Teologia da Libertação com a pedagogia freireana não é uma ideia nova. O contexto histórico do Cristianismo de Libertação já foi associado à obra do educador Paulo Freire, o que denota a importância do fenômeno religioso para a seara educacional. Autores estudiosos[4] do tema, como Jardilino (2007, p. 1), propõem que a trilogia das pedagogias de Freire – do Oprimido, da Esperança e da Autonomia – está localizada num tempo/espaço em que foi germinado no continente esse pensamento teológico, o que gerou uma inevitável aproximação do Cristianismo de Libertação com as ideias do educador. Ainda na seara educacional, o Cristianismo de Libertação é marcado pela atuação de educadores populares que, como entende Moreira (2012, p. 39), a partir da proposição de uma mudança de lugar social, alcançaram a promoção de uma proximidade não apenas física, mas também afetiva e intelectual em relação aos sujeitos historicamente colocados à margem da sociedade. Entretanto, compreender este encontro de pedagogia e teologia no espaço das CEBs permitirá mais do que a simples aferição de coincidências terminológicas, mas, também o surgimento de possibilidades educacionais.
A mais superficial análise da obra de Paulo Freire permitiria afirmar de maneira inequívoca sua preocupação com a causa de populações desfavorecidas e seu entendimento de que a educação constitui instrumento de libertação de tais povos e, ao mesmo tempo, de que as instituições educacionais e as práticas de educação, quando acessíveis aos pobres, são inadequadas. É na existência dessas comunidades e sujeitos que Paulo Freire aposta suas fichas. E aqui temos mais uma aproximação do pensamento de Freire com a Teologia da Libertação, pois, se para esta nova teologia, a opressão é um “pecado estrutural” da sociedade, para Freire a dinâmica estrutural social conduz para a dominação das consciências (FREIRE, 2016). As estruturas da sociedade, dominadas por grupos privilegiados, levam não só à opressão, mas, também, à alienação, ou seja, a uma opressão severamente sentida, entretanto, dramaticamente não percebida: a naturalização da opressão. E neste sentido, tanto a corrente teológica quanto as propostas de Freire estão preocupadas com a tomada de consciência. Freire (2016, p. 96) defende “um permanente esforço de reflexão dos oprimidos sobre suas condições concretas”, inferindo que a reflexão conduz à prática. Enquanto isso, nas CEBs, um dos métodos pedagógicos mais utilizados é o “ver-julgar-agir” (BETTO, 1981, p.11), onde, conjuntamente, debatem-se os problemas, julgam os mais urgentes e propõem ações sob uma perspectiva bíblica. Aqui, a ação pela percepção bíblica, muito especialmente pela ótica do exemplo da vida de Cristo narrada nos evangelhos, é uma colaboração da prática do Cristianismo de Libertação com uma das mais severas preocupações de Freire: o oprimido não se tornar um opressor.
Todavia, ainda é possível aproximar as propostas de Freire com a prática de uma Comunidade Eclesial de Base ao analisarmos a concepção bancária de educação como pressuposto da opressão. Na obra de Freire (2016) há uma crítica incisiva à tônica preponderante nos processos educacionais, que é a da narração e da dissertação. Narrações, diga-se de passagem, alheias à experiência existencial dos educandos, que não dão significados aos termos, que apenas depositam informações nos educandos. Ao fazer uma análise como essa, ao mesmo tempo em se fala de religiosidade católica, é impossível não fazer analogia do se chama educação bancária com as práticas da tradicional catequese católica. Paulo Freire diz “que o educando fixa, memoriza, repete, sem perceber o que realmente significa quatro vezes quatro” (FREIRE, 2016, p. 103). Ou seja: quantos católicos sabem o que é “epifania”, “paráclito”, “pródigo”? Entretanto, é exatamente na prática proposta pelas concepções dos teólogos do movimento religioso libertário que a religião também deixa de ser “bancária” e passa a ser “problematizadora”. É nesta proposta que o leigo deixa de ser um mero ouvinte e passa a ser protagonista da prática religiosa em prol da mudança social.
Importante, por fim, o diálogo que Paulo Freire (1978) estabelece com o Cristianismo de Libertação na obra Os cristãos e a libertação dos oprimidos. Ao interpretar a Teologia da Libertação como revolucionária Freire reconhece a contribuição dos teólogos do movimento para a transformação social e a libertação dos oprimidos, convergindo sua proposta de liberdade – ou libertação – com a proposta dos teólogos, quando insiste na ressalva de que apenas os oprimidos podem protagonizar tal transformação.
Procedimentos Metodológicos
Como procedimento para delinear o percurso desta pesquisa optou-se pela utilização de dois instrumentos, a exemplo do que sugere Yin (2001, p. 133): o arcabouço teórico, já apresentado, e o estudo de caso realizado na Comunidade de Macaúbas, em Muzambinho, com enfoque no papel de sua líder comunitária no processo verificado no local. Para o estudo de caso foram utilizados dois expedientes: as entrevistas semiestruturadas[5] individuais - realizadas com a líder comunitária de Macaúbas, com o Pároco fundador da CEB Nossa Senhora das Mercês e com um extensionista da EMATER-MG – e a juntada de documentos produzidos por instituições e entidades relacionadas aos acontecimentos descritos.
A meta das entrevistas: vislumbrar na experiência dos entrevistados a experiência coletiva que se deu em Macaúbas, sendo que a “experiência” é aqui entendida como propõe o teórico crítico Walter Benjamin em sua definição de Erfahrung: “experiência é matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva. Forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que com dados acumulados, e com frequência inconscientes, que afluem à memória” (BENJAMIN, 1994, p. 103).
De outra parte, utilizou-se o recurso das fontes documentais que se tornaram imperiosas para o estudo de caso, pois, por meio delas foi possível contextualizar a história que se pretendia resgatar e agregar informações que, não raro, complementam ou confirmam os conteúdos das entrevistas. Para o nosso estudo, especificamente, foram consultados: o Livro de Ata da Associação Comunitária dos Moradores de Macaúbas, lavrado entre os anos de 1996 e 2009; o Livro do Tombo da Paróquia São José de Muzambinho, fundadora da Comunidade Eclesial de Macaúbas, lavrado entre os anos de 1971 e 2002; além de documentos da EMATER-MG de Muzambinho, que acompanhou e registrou os projetos de desenvolvimento empreendidos na comunidade. Também foram usadas reportagens de jornais e dados de institutos estatísticos e do Museu Municipal Francisco Leonardo Cerávolo de Muzambinho. Estes últimos para auxiliar na contextualização geográfica da comunidade estudada.
Como método de análise, também a partir do que propõe Yin (2001, p. 136), optou-se pela construção de uma explanação. Assim, o modo de apresentação textual da pesquisa se dá a partir da interposição entre os dados coletados – documentais ou pela memória e sentimento dos entrevistados – e o referencial teórico proposto, o que produz um entretecimento da teoria ao estudo de caso realizado, podendo responder, em primeira instância, no caso particular, em que medida um elemento reflete no outro e, e em segunda instância, como pensamento teórico e concretude confirmam – ou não – a presunção inicial sobre o potencial do Cristianismo de Libertação como formativo de líderes comunitários.
Apresentação e discussão dos resultados
A Comunidade de Nossa Senhora das Mercês de Macaúbas, na zona rural do município de Muzambinho, experimentou um processo vultuoso de transformação social entre os anos de 1989 e 2009. A localidade, que se restringia a um aglomerado de casas e de famílias campesinas, assumiu a condição de bairro rural do município, criou uma associação comunitária de moradores, construiu espaços físicos de convivência comunitária – tais como capela, barracão de festas, telecentro e centro comunitário – e, no final da década de 2000, desenvolveu projetos coletivos de economia solidária, como a construção de um tanque comunitário de resfriamento de leite e uma fábrica comunitária de beneficiamento de polvilho e outros derivados de mandioca, inaugurada em 2009. O extensionista da Emater-MG que foi ouvido para esta pesquisa afirma que o que ocorreu foi um processo tão significativo para os padrões da região, que “a comunidade passou a ser visitada por outras lideranças locais e de lugares distantes, bem como tornou-se rota de políticos e de veículos de imprensa” (Extensionista. Entrevista realizada em 20 de janeiro de 2019). O entrevistado também tem a resposta para explicar o sucesso dos empreendimentos do bairro, sobretudo o da Fábrica Comunitária de Polvilho, um empreendimento que, segundo documentos da Emater-MG, envolveu mais de 380 mil reais em recursos. Ele lembra o papel da líder comunitária desde o período em que tudo era apenas uma ideia e uma reunião foi realizada no bairro, no ano de 2002, para debater o projeto:
Olha, ela foi de porta em porta. Tanto pra convidar as famílias pra reunião e depois também, pra explicar para quem não tinha ido do que se tratava. Foi com o trabalho de convencimento dela que a gente conseguiu juntar as 21 famílias pra participar do projeto. Porque se houvesse uma adesão pequena, a coisa não ia sair não. (Extensionista. Entrevista em 20 de janeiro de 2019)
A reunião em questão está registrada no Livro de Ata da Associação Comunitária dos Moradores de Macaúbas. A ata foi lavrada pela própria líder comunitária, que era presidente da Associação à época, e no registro fica claro o entendimento que a comunidade precisava criar oportunidade de trabalho para as mulheres e para os jovens, sendo que para estes últimos havia a preocupação de se evitar o êxodo rural.
Estão nos visitando os extensionistas da EMATER (...) Finalidade da reunião: Projeto Agroindústria Comunitária dos derivados do polvilho. Foi convidada toda a comunidade, as cinquenta famílias desde, de dezoito de fevereiro de dois mil e dois. Houve mobilização para o treinamento e capacitação de mão-de-obra em polvilho (...) todos gostaram do curso e estão acreditando no projeto, embora sabendo das dificuldades (...) Por que estamos planejando investir no polvilho? Porque o leite e o café não são mais fonte de renda, precisamos de diversificação. E queremos evitar maior êxodo rural e criar oportunidade de trabalho para as mulheres. (Livro de Ata da Associação Comunitária do Moradores de Macaúbas, 1999-2009, fls. 09)
Quando a líder comunitária de Macaúbas é indagada sobre o processo que se deu no bairro e sua participação neste processo, ela tem respostas claras: “Antes de sermos associação, nós somos Comunidade. Comunidade Eclesial de Base” (Líder Comunitária. Entrevista Realizada em 19 de janeiro de 2019).
A resposta da Líder Comunitária de Macaúbas nos leva até o Livro do Tombo da Paróquia São José (1971-2002, fls. 103), que aponta a realização de Missões Redentoristas na Paróquia no ano de 1989 e, segundo o registro, estas foram responsáveis por um grande levantamento territorial realizado na localidade e, a partir desse levantamento, se deu a fundação das Comunidades Eclesiais de Base. A própria Líder Comunitária de Macaúbas, que participou do processo desde o início situa as Missões Redentoristas como marco da fundação da comunidade de Nossa Senhora das Mercês:
A comunidade foi fundada a partir das missões. Foi muito difícil porque a gente fez um barracão de lona para celebrar as missas e dava aquelas rajadas de vento na lona (...) Ficou um padre aqui três dias e os padres que estavam na região revezavam e vinham pra cá. Naquela época nossa comunidade era pequenininha. Eram 15 casas. A partir disso a gente começou a construir a Igreja. O povo construiu a capela. Não pagamos nenhum pedreiro. (Líder Comunitária. Entrevista realizada em 19 de janeiro de 2019)
Ao pesquisar o papel de lideranças femininas nas Comunidades Eclesiais de Base e movimentos da Igreja Católica, a pesquisadora Gabrielle dos Anjos propôs uma definição para a líder comunitária que tomo como referência neste momento. Anjos (2008, p. 515) entende que “nesse universo social, ‘líder’ é a qualificação usada para designar as mulheres de classes populares que desempenham continuamente atividades nessas formas associativas”. É o trabalho contínuo, portanto, que caracteriza a liderança. “Essa qualificação expressa uma diferenciação entre os membros da própria comunidade e implica na existência de uma hierarquia entre os fiéis, baseada em certas capacidades da líder”, como as de organização e planejamento de ações. Para Anjos (2008), liderança significa também militância, sendo esta entendida como adesão a determinada causa e engajamento continuado em nome dela. Esses pressupostos de liderança são caros, pois, constituem características verificadas na atuação da Líder de Macaúbas: 26 anos de ação contínua, capacidade de organizar e planejar as ações da comunidade – sejam as eclesiais ou as atividades econômicas associativas – e um engajamento que ela mesma chama de “paixão”. Daí que o processo de formação de liderança parece ter sido essencial na vida desta mulher. Ela mesma conta que sua vida, até mesmo depois de casada, foi marcada pelo isolamento: “Eu mesma, eu tinha ido na cidade umas três vezes na vida (...) A gente tinha uma vergonha! (...) Aí, com a chegada dos Padres, eu ia com a minha sapatilha preta. E ia a pé”. (Líder Comunitária. Entrevista realizada em 19 de janeiro de 2019).
A chegada dos padres foi, certamente, um divisor de águas na atividade religiosa dessa líder comunitária. Logo que eles chegaram à cidade, ela participou, na cidade de Paraguaçu (MG), de um encontro regional sobre a implantação da catequese, ao lado de outros paroquianos de Muzambinho e das freiras franciscanas que faziam trabalhos pastorais na cidade no final dos anos de 1980. Também passou a participar de cursos na área de saúde ministrados pela Secretaria Municipal de Saúde do Município de Muzambinho e dos cursos relacionados ao desenvolvimento da agricultura familiar que eram ofertados pela EMATER-MG.
Esses pequenos cursos de formação para a catequese e ações pastorais da Igreja ou para questões de saúde e outras questões sociais que faziam parte do cotidiano das CEBs, sobretudo na primeira metade dos anos 1990, são considerados por Anjos (2008, p. 520) como pressupostos formativos das lideranças comunitárias. É o que a autora chama de “capacitação de lideranças”. Isso porque, por vezes, há apenas a vontade e a força de vontade, mas as mãos estão vazias para o trabalho comunitário. Assim, “em cursos e palestras como formação da Pastoral da Criança, teologia popular, de Bíblia, Violência contra a Mulher, cursos de fitoterapia, de xaropes e pomadas, propiciados pela Igreja ou por setores próximos” é que vão se formando os domínios de percepção e apreciação em obra na ideologia coletiva, o domínio do falar em público perante a comunidade e domínio de tantos outros recursos salutares ao papel de líder.
A Líder de Macaúbas acredita que sua vontade de saber chamou a atenção dos novos padres, que passaram a investir em sua formação. A primeira grande experiência formativa foi um Curso de Aperfeiçoamento Teológico realizado no Instituto Pio XI, em São Paulo.
Eu tinha sede de conhecimento e eles perceberam. Eu tinha um interesse muito grande, uma vontade de organizar e ver que aquele Cristo não era só dentro de quatro paredes. De mostrar esse Cristo vivo que está ao lado da gente todos os dias. Eu tinha sede. Eu não sei se é isso e nem sei porque eu fui escolhida. (Cida. Entrevista realizada em 19 de janeiro de 2019)
O curso foi realizado durante três janeiros. Eram 22 dias ininterruptos de estudos. Ela conta as dificuldades que enfrentou para concluir o curso em São Paulo. Sobretudo porque nunca tinha ficado longe dos filhos, que eram pequenos na época, e nem do marido.
Eu nunca tinha saído pra dormir fora da minha casa. E era muito apegada aos filhos e eles todos pequenos. Pra eu ir eu tive que arrumar roupa emprestada porque eu nem tinha roupa que pudesse ir pra São Paulo e ficar tantos dias lá. Porque por três Janeiros eu passei 22 dias em São Paulo. E o meu marido ia na Paróquia pra ligar pra mim. Aí a gente se falava quanto ele ia lá e quando ouvia minha voz começava a chorar. O Padre ria e perguntava se ele queria um lençol pra enxugar as lágrimas. Foi muito difícil pra mim, mas foi muito bom. Eu cheguei com mais ânimo de trabalhar, sabendo que a Igreja tem muita coisa boa, mas que a Igreja tinha grandes barreiras. Aquele conhecimento pra mim, foi muito importante, porque quando surgiam os problemas eu sabia mais ou menos o que fazer. (Cida. Entrevista realizada em 19 de janeiro de 2019)
A realização desse curso de aperfeiçoamento teológico se deu, como dito, a partir de um convite dos padres. O Padre entrevistado para esta pesquisa conta porque a Líder de Macaúbas foi escolhida:
Poderíamos levar apenas uma pessoa da Paróquia inteira e a gente enxergou na Cida um grande potencial de multiplicação. Também enxergávamos na comunidade de Macaúbas, como um todo, uma força e uma vontade muito grande de crescer junto. Desde o início, a comunidade como um todo se destacou muito no trabalho pastoral. E ela era muito engajada, não tinha medo de nada. Ela não dizia não. (Padre. Entrevista realizada em 18 de janeiro de 2019)
Aqui fica evidente a importância do olhar do líder religioso e sua percepção sobre os potenciais dos membros da comunidade. Para Anjos (2008, p. 518) a ação dos agentes religiosos constitui as causas, as estruturas organizacionais e os modelos de militância dos membros e líderes de comunidades e movimentos ligados à Igreja. Para a autora, o “modo de organização e ação proposto pelos agentes religiosos pode ser descrito como mediação de ideologias, de técnicas, de repertórios de ação e de ampliação de redes de relações”. É pelos agentes religiosos que esses líderes comunitários acessam outras instituições que não apenas a Igreja e não apenas a comunidade em que estão inseridos, mas também, partidos políticos, burocracias estatais, organizações não governamentais e outros. Este entendimento encontra consonância com os irmãos Boff (2010), que apontam a existência de um saber teológico mais elaborado, como o de Gustavo Gutiérrez, Jon Sobrino ou Pablo Richard, que são expoentes da Teologia da Libertação. Mas, também a existência, nas bases da Igreja – como nas CEBs ou nos círculos bíblicos – de toda uma reflexão de fé que, naquele momento, também poderia ser qualificada como Teologia da Libertação. Entretanto, entre essa teologia mais elementar das bases e a mais elaborada dos teólogos profissionais, há o campo em que “se situa a reflexão dos pastores: bispos, padres, irmãs e outros agentes de pastoral. Este nível é como uma ponte entre a Teologia da Libertação mais elaborada e a reflexão libertadora das bases cristãs” (BOFF & BOFF, 2010, p. 24). Esta mediação se fez presente em vários episódios da experiência de Macaúbas, como no caso do projeto para financiamento da construção da Fábrica de Polvilho, em que os padres intervinham junto às agências financiadoras e a EMATER-MG dava o suporte burocrático necessário. Anjos (2008, p, 518) postula que “esse acesso aporta saberes e recursos específicos à ação coletiva, como fontes de financiamento para suas ações; permite também a constituição de certo capital social, com o engajamento nas comunidades de advogados, engenheiros, jornalistas, sociólogos, educadores (...) médicos, psicólogos e nutricionistas”.
No caso da Líder de Macaúbas, outros processos formativos ligados à experiência religiosa católica vieram. Ela participou de um curso de formação de lideranças ofertado pela Diocese de Guaxupé, a qual a Paróquia de São José está vinculada, e também atuou, na cidade de Muzambinho, como multiplicadora das experiências para outros agentes de pastorais e membros de Comunidades Eclesiais de Base:
Eu fiz um curso de formação de lideranças em Guaxupé durante três anos. A convite dos padres. Tinha cinco de Muzambinho que ia. (...) Uma vez por mês, o dia todo, a gente ia no antigo seminário (...) Depois teve curso em Muzambinho. Nós que participamos em Guaxupé viemos trabalhar com os outros membros da Paróquia. A gente multiplicava aqui os conhecimentos. E eu multiplicava também na Catequese, porque eu fui coordenadora por 9 anos. Morando aqui na Macaúbas, sem carro, sem moto, sem nenhum cavalo e eu fui coordenadora da catequese de toda a Paróquia. Os meus genros ou alguém que tinha moto, às vezes me levava até na Ponte Preta. Mas na volta eu vinha a pé. (Líder Comunitária. Entrevista realizada em 19 de janeiro de 2019)
Entendo que esta líder se tornou uma referência na sua comunidade. Não apenas na comunidade de base, mas na Comunidade Paroquial de São José de Muzambinho e na sociedade muzambinhense. Depois, sua ação extrapolou os limites do munícipio de Muzambinho, tornando-se representante regional do movimento de Comunidades Eclesiais de Base. Num primeiro momento, representando o setor de Guaxupé nos encontros diocesanos de CEBs. Anos mais tarde, ela passou a ser uma das representantes diocesanas do Movimento de Comunidades Eclesiais de Base, tendo participado do “X Encontro Intereclesial das CEBs”, que aconteceu na cidade de Ilhéus, na Bahia, no ano 2000, distante mais de 1.500 quilômetros de sua terra. Em meio a tantas experiências de formação, a líder comunitária passa a atuar como multiplicadora dessas experiências no contexto da Paróquia de Muzambinho.
E a gente tinha os encontros no salão paroquial para o estudo dos Coordenadores das Comunidades. Eram 32 comunidades. A gente recebia um material que vinha para a Paróquia, mas a gente fazia um estudo enraizado. A gente levava os problemas e trazia novas propostas e até os cantos que a gente aprendia tinham a ver com a nossa realidade. Era muito bom. (Líder Comunitária. Entrevista realizada em 19 de janeiro de 2019)
Mais uma vez, fica claro que a atuação desta liderança sempre esteve em consonância com a dinâmica proposta para a vivência em CEBs, sobretudo o método “ver-julgar-agir”. Ela sempre menciona aquilo que chamada de “problemas”. Mas em todas as ocasiões, também fala em “soluções”. As soluções, dentro do método “ver-julgar-agir”, são sempre almejadas à luz das reflexões sobre o evangelho (BETTO, 1981). Entretanto, como dito, extrapolam os limites eclesiais das comunidades. Não faltam exemplos de líderes comunitários formados numa perspectiva de religiosidade que se tornaram líderes de movimentos sociais ou políticos. Isto está relacionado também à dinâmica de reflexão dessas comunidades. Boff (1994) destaca a inegável função crítica e desmistificadora das CEBs. Na sua visão, na dinâmica das CEBs é impossível continuar escondendo a verdadeira realidade social. Os constituintes da Comunidade de Base passam a entender o que é exploração, o que é tortura, o que é ditadura e as comunidades se apropriam de instrumentos de análise mais sofisticados, antes restritos ao meio acadêmico ou político militante. Esta sede de justiça é que levará a comunidade a outro patamar, que envolverá enfrentamentos às estruturas sociais vigentes. “Se você começa muito, só religião, religião, religião. Não dá certo. A religião tem que ter os pés no chão, enraizada na realidade. Não adianta ter um Deus poderoso e esquecer do Deus crucificado” (Líder Comunitária. Entrevista realizada em 19 de janeiro de 2019). Frei Betto (1981), por sua vez, aponta que as CEBs não se fecham em si mesmas, pois as problemáticas levantadas nas reuniões são, em sua maioria, questão sociais ligadas à sobrevivência do povo. Esta tendência foi verificada em Macaúbas e, sobretudo, na experiência de vida de sua líder. Ela passou a atuar politicamente na região. Atuou no Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS), foi convidada por três vezes, inclusive pelos padres, para concorrer a uma cadeira na Câmara Municipal de Muzambinho (convite que ela nunca aceitou) e, ao lado de outra líder comunitária, formou uma chapa para concorrer à Diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Muzambinho.
Considerações Finais
A trajetória da liderança de Macaúbas nos coloca diante de uma característica cara ao Cristianismo de Libertação, mas também à Pedagogia de Paulo Freire: a inconformidade diante da opressão e da exclusão. Além disso, demonstra um caráter idealizador, que a levou a procurar os caminhos do desenvolvimento social solidário. Esta liderança alçou a comunidade à execução de um projeto de transformação social. Transformação esta que se deu no desenrolar de um processo, sobretudo, educativo.
Esta proximidade entre pedagogia e teologia são ingredientes históricos que muito nos interessam. Dada a convergência dos ideais teóricos e práticos, tanto da Teologia da Libertação quanto da Pedagogia do Oprimido, que partem do princípio de que a transformação social se dá a partir da implementação de uma educação historicamente libertária – seja nas capelas da Comunidade de Base, seja nas escolas ou em quaisquer outros espaços educativos da percepção freireana – os educadores que abraçaram esses ideais e os religiosos que igualmente o fizeram se tornaram propulsores de mudanças significativas e reais no processo de tomada de consciência crítica e de libertação de sujeitos historicamente oprimidos, sendo que um dos principais instrumentos para este acontecimento foi a valorização da cultura e do conhecimento do povo, que passam a ser considerados ingredientes fundamentais no sistema de troca educacional proposto. Mais uma vez, seja para Freire ou para os teólogos libertários, a realidade passa a ser encarada como um tempo e um espaço para que o sujeito seja mais do que é, e para que a sua própria história faça a diferença no processo de emancipação.
Referências
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Notas