Ensaios Críticos
Recepção: 20 Novembro 2020
Aprovação: 10 Fevereiro 2021
Resumo: As potências de um corpo negro – imaginário - em busca de formas e lugares próximos à sua ancestralidade.
Palavras-chave: Amazônia Negra, cabeça de negro, barbadianos.
Resumen: Las potencias de un cuerpo negro - imaginario - en busca de formas y lugares cercanos a su ancestralidad. Palaras clave: Amazonia Negra; cabeza de negro; barbadianos.
Palabras clave: Amazonia Negra, cabeza de negro, barbadianos.
Abstract: The powers of a black body - imaginary - in search of forms and places close to its ancestry.
Keywords: Black Amazon, black’s head, Barbadians.
Ao Negro? Uma poesia;
Escravidão, Capitalismo, Pandemias
Ao Negro, Outra poesia;
Navio, escuridão, Sem direito. A despedida, Mar a dentro, Se foi.
Ao Negro, Uma
outra poesia;
Muitos que continuaram Sequer enxergaram A luz do dia.
Ao negro, Mais essa poesia;
Será o fim Dos tempos? Ou outro meio De morte A cada dia?
Ao negro, Uma última poesia;
Quando tudo Passar, O que será Da pele escura; Já que achava Que era dia?
Fonte: Marcela Bonfim[3]
Ao Negro, o Brasil
Ao Negro, nascer e crescer no Brasil, tem significado tanto no tempo, quanto nos espaços vazios desse corpo-imagem-continente, traumáticas e violentas experiências de vida e de morte; atravessadas por deformidades e barreiras enxertadas nas lacunas básicas da memória e do refletir [-se] negro; cá, elucidadas a partir de um remonte de imagens; ora visíveis, ora invisíveis; curadas e estabelecidas a partir de um juízo estrutural; racializado e parcial; agora, discernido nitidamente no particular de governos, sociedades e da própria economia global; tendo na regulação ordinária das imagens tidas sujeitas, a conservação de um modelo de capital lastreado por contrastes; num forjado sistema de distinção de Cor; agrupando inúmeras identidades à uma dita raça negra; esta sobrevivente até aqui.
Ao Negro, a sobrecarga das imagens (in)visíveis da Cor
Possuindo uma história interrompida; e dali forjada entre remotos acordos e outras estórias; as traumáticas experiências do corpo-imagem-continente negro no Brasil, embora pautadas e problematizadas com mais frequência e propriedade nos dias atuais, ainda padecem sob uma espécie de “branco” às sombras de suas próprias origens, ultrajadas e subalternizadas, por camadas (in)visíveis latentes, impactadas desde o fenótipo, aos labirintos embranquecidos de uma cabeça de negrx; alvo e ambiente de propagação das tantas violências contra sua própria pele; na maioria das vezes sem perceber ao longo de seus percursos esses estigmas impingindo a nossos corpos pretos, negros, escuros ou o que?
A exemplo de uma criança negra recém-nascida no Brasil; que nasce pesando nas costas uma sobrecarga – conceitual, imaginária, imagética? – com mais de 300 anos de deterioração, além dos martírios acumulados em seus vazios, devorados por um convívio histórico com a violência e a marginalização; tanto ocasionais aos estigmas associados a sua pele, quando apreendidos mais tarde por seus inconscientes ideais; perfazendo da sua autoimagem negra grandes distâncias internas ao longo de suas vidas; reproduzidas explicitamente entre abismos; tal como se enxerga as distâncias entre a imagem de uma jovem mãe negra, com a de uma Madona cristã; isto é, as construções morais referentes a imagem de uma santa mãe ou esposa; até hoje reproduzidas e cultivadas socialmente; tendo seus filhos as mesmas projeções; e polarizados destinos.
* Carol e Heitor Grumble, descendentes de imigrante da Guiana inglesa.
Foto: Marcela Bonfim [Porto Velho - RO | 2014].
Madona Negra;
Do cinza,
Viu o verde brotar
Aiaiai...
Não sabia nada
Sobre o Medo e o Mar
Feito fogo afoito
Foi terra buscar
Bebeu tanta Água
Que virou Luar...
Metade Negra;
Metade Dor
Ás vezes Sereia;
Às vezes Cor
Metade Negra;
Metade Cor
Ás vezes Serena
Ás vezes Dor..
Fonte: Marcela Bonfim [4]
Ao Negro, a “cabeça de branco”
A cortes profundos e contínuos; da carne negra foi sacada aos baques o direito à identidade, à memória e aos espaços; às experiências de liberdade, afeto, prazer e dignidade; numa violação total de sua condição de humanidade, força de trabalho e propriedades intelectuais; ainda estilhaçadas por todos os cantos do mundo; aos poucos (re)conhecidas e resgatadas em diversos campos e cantos; sobretudo; assimiladas e geridas pelo pensar (e pesar) de homens brancos.
Ao Negro, além dos Navios & Senzalas, a cabeça de branco, desde a literatura às artes em geral; atravessando inclusive as dimensões da aparência e dos papeis sociais; com a camada implícita de comportamentos convencionais aos baús de sutilezas; recriando ao negro uma forma de açoite velado; agora, ocorrido na cabeça; preservando os espaços já garantidos a uma pequena parcela que mal representa a própria branquitude; ainda frequente em instituições privadas e públicas; acadêmicas, cientificas, jurídicas, artísticas; todas sob domínios patriarcais.
Ao branco, a Cabeça de Negro
Ao expor a “Cabeça de Negro” de Jesuá Johnson, reconhecido como Bubu; filho de pais afro-antilhanos, e nascido em 1951, na cidade de Porto Velho, em Rondônia; onde enraizaram seus avôs no início do Século XX, colaboradores da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré {EFMM}; remontamos as possíveis imagens e impactos das quebras de um imaginário social particular – aos poucos irradiado por fissuras; na própria dinâmica do pensar as imagens negras dessa época – uma vez que os corpos escuros ainda padeciam radicalmente às violentas pressões e limites de um período recente a pós-escravidão.
*Bubu Johnson
Foto: Marcela Bonfim [Porto Velho – RO | 2014]A chegada dessa grande diáspora negra, além provocar recorrentes rupturas no fluxo das imagens sujeitas, trazia também a curiosidade de saber quem eram aquelas identidades que se apresentavam por si próprias? Inclusive, bastante notadas de posições para um negro da época; aos poucos encaixados por si, na métrica e nos espaços da cidade; num tempo em que a Amazônia viveu às margens do soul e do blues.
À Cabeça de “barbadiano”, a cabeça local [5]
Os fluxos das diversas populações afro-antilhanas espalharam-se, sobretudo, pelo norte do país; chegando a Rondônia associadas à imagem do “barbadiano”. Maloney, Johnson, Holder, Blackman, Shockness, Harley, Grumble, Scantbelruy; todos, trazendo além de suas identidades, o atravessamento de suas qualificações e dos diferentes costumes; rapidamente visíveis nas vias de acesso da pequena cidade surgindo.
O processo de instalação dessas populações; a princípio identificadas como “barbadianas” – e atualmente ressignificadas como populações afro-antilhanas pela historiadora, Cleidenice Blackman[6] – ocorreu às margens direita do Rio Madeira; sudeste da Amazônia; ponto inicial da {EFMM}; culminando na fronteira entre Brasil-Bolívia com a edificação de um reduto chamado de Barbedian Town; rapidamente notado como um ponto de referência dessas populações, inclusive por conta das manifestações culturais; além dos costumes e da própria convivência entre essas famílias; contudo, rejeitado por parte conservadora da cidade; atacando-o de “Alto do Bode”.
À cabeça local, a cabeça de “barbadiano”
Maior que as dificuldades e as barreiras apresentadas ao cotidiano dessas famílias afro-antilhanas; era a postura e o engajamento dessas mulheres e homens; na exaustiva comprovação de suas habilidades; além da superação das barreiras da língua e da cultura; sempre tendo como norte o acesso dos filhos à educação, atravessando duas gerações numa puxada jornada à base de seus próprios limites.
Senhora Elvira e senhor Norman Johnson, pais do Bubu, aos poucos, formaram 13 dos 16 filhos, nas principais instituições públicas de ensino do Brasil – todos retornados para contribuir com a cidade, em suas formações acadêmicas e atitudes politizadas.
Na década de oitenta, Bubu Johnson; terceira geração; formava-se em Educação Física, na cidade de Cuiabá, no Mato Grosso; no mesmo período em que seu irmão, Norman JohnsonJúnior, tornava-se bacharel em matemática, no Rio de Janeiro; para onde as viagens podiam durar semanas; sendo um desafio ampliado aos jovens netos dessa diáspora, que migravam, agora, estudantes a outras capitais, encontrando-se também com outras narrativas negras engajadas em movimentos de afirmação da identidade negra no Brasil.
A efervescência dos encontros entre os jovens negros recém-formados e egressos a Porto Velho, trouxe aos anos 80, a nítida imagem de um “ corpo negro- pulsante”, agora, sintonizado à cabeça enegrecida; de onde ecoava as potências artísticas, no levantar de um movimento ressignificado de “Cabeça de Negro” – dando origem às iniciais gerações ativistas negras do Estado.
Nesse aspecto, os anos oitenta transcorreu como um marco a essas representatividades negras, demarcadas de outras raízes como do Maranhão, Pará, Matogrosso, Bahia, Ceará, Mato Grosso, Rio de Janeiro, São Paulo e tantas outras localidades; convergidas em busca de seus potenciais e dignidade; perfazendo fluxos próprios de imagens-referências, e inspirando outros corpos negros chegados à terra.
Do Atlântico-Azul, à Amazônia Negra
Com o tempo, as aproximações entre a cabeça local e a cabeça afro-antilhana, passou a reflexionar significativamente na dignificação desses corpos; gradativamente (re)conhecidos em suas potencialidades; antes não associadas à pele escura; e acessadas desde os tabloides ingleses locais; até as frequências das rádios antilhanas; ampliando as relações entre o espaço e sua nova raiz antilhana.
Ocorrendo, assim, entre a fluência e a turbulência; as alterações no espaço desse cotidiano amazônico tiveram nas imagens e na presença afro-antilhana as quebras necessárias; partidas e remontadas de um corpo negro pulsante a tantos outros impulsos, perdidos e reorganizados nesse espaço amazônico que enegrece a cada quebra de imaginário; sendo o suficiente para atravessar o Rio Madeira, e as tantas nações indígenas; de Atlântico-azul-mar.
Ao Negro,
O Pulsar
De um Corpo
Negro
Ao Negro,
O colorir
Do Mar
Azul:
Azul:
Da Cor
O Mar:
É
Negro-Azul
Orum!
A pele
Do Mar:
É
Negro-Azul...
Fonte: Marcela Bonfim [7]
Notas
Autor notes