EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
Recepção: 18 Setembro 2021
Aprovação: 09 Outubro 2021
Publicado: 04 Novembro 2021
Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar o desenvolvimento de uma atividade de Modelagem Matemática sob a ótica de Popper (1967), acerca do conhecimento objetivo. Assim, realizamos uma pesquisa qualitativa, a partir de dados oriundos do Laboratório Experimental de Modelagem Matemática. A atividade selecionada, intitulada “solução de água e sal”, pertence às descrições de Menezes, Braga e Espírito Santo (2019), e foi analisada segundo confluências entre as etapas de Modelagem Matemática de Bassanezi (2011; 2012), e os elementos do esquema de ampliação do conhecimento de Popper (1967). As aproximações desses teóricos permitiram inferir que o processo de Modelagem Matemática e a dinâmica de idas e vindas do contexto real para o contexto matemático, de suas etapas, caracterizam-se como sendo pertencentes ao conhecimento objetivo definido por Popper (1967).
Palavras-chave: Atividade de Modelagem Matemática, Ampliação do Conhecimento, Conhecimento Objetivo.
Abstract: The objective of this work is to analyze the development of a Mathematical Modeling activity from the perspective of Popper (1967), about objective knowledge. Thus, we carried out a qualitative research based on data from the Experimental Laboratory of Mathematical Modeling. The selected activity entitled “Solution of water and salt”, belongs to the descriptions of Menezes, Braga and Espírito Santo (2019), and was analyzed according to confluences between the steps of Mathematical Modeling by Bassanezi (2011; 2012), and the elements of Popper's (1967) knowledge expansion scheme. The approximations of these theorists allowed us to infer that the Mathematical Modeling process and the dynamics of comings and goings from the real context to the mathematical context of its stages are characterized as belonging to the objective knowledge defined by Popper (1967).
Keywords: Mathematical Modeling Activity, Expansion of Knowledge, Objective Knowledge.
Resumen: El objetivo de este trabajo es analizar el desarrollo de una actividad de Modelación Matemática desde la perspectiva de Popper (1967) sobre el conocimiento objetivo. Así, realizamos una investigación cualitativa, basada en datos del Laboratorio Experimental de Modelación Matemática. El título de la actividad seleccionada fue 'Solución de agua y sal', y pertenece a las descripciones en Menezes, Braga y Espírito Santo (2019), Además, fue analizada según las confluencias entre los pasos de la Modelación Matemática de Bassanezi (2011; 2012), y los elementos del esquema de expansión del conocimiento de Popper (1967). Las aproximaciones de estos teóricos permitieron inferir que el proceso de Modelación Matemática y la dinámica de idas y venidas, desde el contexto real al contexto matemático de sus etapas, se caracterizan por pertenecer al conocimiento objetivo definido por Popper (1967).
Palabras clave: Actividad de Modelación Matemática, Expansión del conocimiento, Conocimiento objetivo.
1. INTRODUÇÃO
O processo de Modelagem Matemática comumente é iniciado a partir de uma situação-problema contextualizada na realidade. Ou seja, é elencada uma situação-problema a ser investigada a partir de conteúdos matemáticos e em seguida as repostas encontradas são discutidas no contexto que originou essa situação-problema. São vários movimentos que atravessam contextos da realidade e de conteúdos matemáticos. Dessa maneira, “a modelagem consiste, essencialmente, na arte de transformar situações da realidade em problemas matemáticos cujas soluções devem ser interpretadas na linguagem usual” (BASSANEZI, 2011, p. 24).
Desta forma, partindo desse entendimento de Modelagem Matemática e em contato com discussões sobre conhecimento objetivo e subjetivo de Popper (1967) em uma disciplina do curso de doutorado[1], percebemos aproximações possíveis de serem feitas. Então, este artigo tem como objetivo analisar o desenvolvimento de uma atividade de Modelagem Matemática sob a ótica de Popper (1967), acerca do conhecimento objetivo e o seu intitulado Mundo 3.[2]
Assim, considerando tecer essas aproximações, organizamos o artigo em seis seções, a contar desta introdução, dispostas na seguinte ordem: na segunda seção apresento concepções referentes à Modelagem Matemática, do modelo matemático e do processo gerador desse modelo; na terceira seção elucido discussões emergidas a partir do estudo do texto de Popper (1967); na quarta seção descrevo características metodológicas do trabalho; na quinta seção, considerando os teóricos adotados e a atividade desenvolvida, traço discussões evidenciando aproximações do processo de Modelagem Matemática com as ideias defendidas por Popper (1967); e na sexta seção, pontuo algumas considerações do estudo realizado.
2. MODELAGEM MATEMÁTICA NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
Trazida para o contexto da Educação Matemática, a Modelagem Matemática ganha força no movimento, ao possibilitar o ensino de conteúdos matemáticos via aplicações, que emergem de situações fictícias ou reais. Bassanezi (2012), que foi um dos precursores no uso desse método/estratégia nas aulas de Cálculo Diferencial e Integral, a entende como:
[...] uma estratégia utilizada para obtermos alguma explicação ou entendimento de determinadas situações reais. No processo de reflexão sobre a porção da realidade selecionamos os argumentos considerados essenciais e procuramos uma formalização artificial (modelo matemático) que contemple as relações que envolvem tais argumentos (p. 10-11).
Sobre essa formalização artificial, Almeida e Vertuan (2014) pontuam que:
Em Matemática, usamos e construímos modelos – modelos matemáticos – para explicar, representar e fazer previsões para situações e torná-las presentes usando matemática. O modelo matemático é então um sistema conceitual, descritivo ou explicativo, que é expresso por meio de uma linguagem ou uma estrutura matemática e que tem por finalidade descrever ou explicar o comportamento de outro sistema, em geral, não matemático (p. 02).
Neste sentido a Modelagem Matemática gera, durante o perpassar das etapas que constituem seu processo, um modelo matemático. Assim, parte-se de um contexto externo a Matemática, no qual se retira dados/informações possíveis de serem mensurados, para serem então analisados sob a ótica de conteúdos matemáticos, daí a ideia de formalizar artificialmente características extraídas da situação ou da problemática investigada. Configurando dessa forma o produto final desse processo, o modelo matemático.
Percebemos no exposto por Bassanezi (2012), e por Almeida e Vertuan (2014), que a Modelagem Matemática permite que o modelador transite ora entre recortes de situações reais, ora entre conceitos/teoremas/estruturas de conteúdos matemáticos. Sendo que, mesmo trazendo temáticas/problemáticas externas a Matemática para serem trabalhadas sob o viés de conteúdos matemáticos, ao término do processo esse produto final (modelo matemático), retorna ao seu contexto, sendo validado por características do meio de origem.
Essas idas e vindas ficam evidentes na descrição que Bassanezi (2012) faz do processo de Modelagem Matemática na perspectiva da Educação Matemática. Segundo o autor:
O início de uma modelagem se faz com a escolha de temas – Faz-se um levantamento de possíveis situações de estudo as quais devem ser, preferencialmente, abrangentes para que possam propiciar questionamentos em várias direções. Por exemplo, se o tema escolhido for vinho pode-se pensar em problemas relativos à vinicultura, fabricação, distribuição, efeitos do álcool no organismo humano, construção de tonéis, entre outros. Se for abelha, poderão surgir problemas de dinâmica populacional, dispersão de colmeias, forma dos alvéolos, comercialização do mel, comunicação dos insetos, interação com plantações etc. De qualquer modo, se um tema escolhido for desconhecido ou “novo”, o professor deve, antes de mais nada, procurar temas correlacionados e buscar uma analogia entre os fenômenos ou, pelo menos, entre as tendências de seus valores (p. 11).
Bassanezi (2012) recomenda que essa escolha deve ter a participação do aluno, pois ele precisa querer investigar o tema em questão. Mas a decisão final fica a cargo do professor, que assume o papel de conduzir o diálogo acerca da viabilização, ou não, da temática escolhida. Por último, o autor aconselha que “para a escolha de um tema a regra é bastante simples: não tenha medo e escolha algo que você gostaria de entender melhor” (p. 13). Este professor pontua ainda, que para a investigação de determinada situação ou problema real por meio da Modelagem Matemática, segue uma sequência de etapas, sendo elas: Experimentação, Abstração, Resolução, Validação e Modificação.
A Experimentação configura-se como o momento da coleta de dados qualitativos ou numéricos. Com a escolha do tema precisa-se encontrar informações sobre ele, sendo essa busca realizada de diferentes formas: entrevistas, pesquisas bibliográficas, realização de experimentos. O que vai definir o método da coleta de dados será a temática a ser investigada. Na Abstração introduzem-se os ferramentais matemáticos, que irão auxiliar na construção do modelo. A determinação desses entes matemáticos dependerá da natureza dos dados coletados. Esta etapa é dividida em quatro momentos, sendo eles: seleção de variáveis, problematização, formulação de hipóteses e simplificação. Na terceira etapa, Resolução, ocorre a construção do modelo com a intenção de responder os questionamentos levantados. Faz-se também, em alguns casos, previsões para a problemática elencada. Na Validação ocorre a interpretação das respostas geradas a partir do modelo, possibilitando por meio delas avaliar se o modelo é adequado ou não para a situação-problema investigada. A última etapa é a Modificação. Alguns fatores ligados à situação-problema podem ocasionar a rejeição do modelo. Nesses casos, busca-se as causas desse evento, para que se possa corrigi-las e adequá-las segundo a temática investigada, reformulando desta forma o modelo matemático.
Assim, percebemos que o processo de Modelagem Matemática se inicia fora da Matemática (escolha do tema) , originando-se de um recorte retirado de um contexto datado histórica/temporal/espacial/social/culturalmente, para em seguida ser investigado pelo viés de estruturas/teoremas/algoritmos matemáticos (experimentação e abstração), que permitem encontrar/construir um modelo matemático, que represente o recorte investigado (resolução), e assim este retorna para ser testado no ambiente que o originou (validação).
3. O CONHECIMENTO OBJETIVO E O MUNDO 3
Popper (1967) aponta distinções entre conhecimento subjetivo e objetivo, e para isso ele traça argumentos acerca do conhecimento objetivo e do Mundo 3. Antes de conceituar esse Mundo 3, o autor faz uma distinção entre os dois mundos ou universos que considera anteriores, Mundo 1 e Mundo 2. Segundo Popper (1967) o Mundo 1 é onde se encontra a matéria, ou como ele mesmo descreve “o mundo dos objetos físicos ou dos estados físicos” (p.57). Assim, pode-se considerar como pertencente a esse mundo tudo aquilo que é externo ao homem, visível ou invisível, animado ou inanimado. O Mundo 2, segundo o autor, caracteriza-se por ser “o mundo dos estados de consciência ou dos estados mentais, ou talvez, das predisposições comportamentais à ação” (p.57). Nesse contexto é possível considerar como pertencente a esse mundo tudo aquilo que é pensado ou sentido pelo homem, do mais trivial ao mais inusitado, suas emoções e os sentimentos que emergem delas. O Mundo 3 é “o mundo dos conteúdos objetivos do pensamento, em especial dos pensamentos científicos e poéticos e das obras de arte” (p.57). Assim, Popper (1967) remete a esse mundo produtos objetivos da mente humana como hipóteses, teorias e argumentações, acerca de algo.
Percebe-se nas descrições do autor relativas aos Mundos uma separação do conhecimento subjetivo, que se dá no Mundo 2, do conhecimento objetivo, que pertence ao Mundo 3. As distinções entre os Mundos elencadas por Popper (1967), em um primeiro momento, aproximam-se do que concebia Platão (1981) sobre o Mundo Sensível e o Mundo Inteligível. Porém, os pontos comuns terminam quando Platão (1981) defende seu Mundo Inteligível como detentor de uma verdade absoluta, perfeita e imutável, enquanto que no Mundo 3 de Popper (1967) se tem produtos da mente humana (teorias e hipóteses) submetidas a argumentações e críticas, que os modificam e aprimoram, ou seja, mutáveis por essência.
Sendo assim, entendo que o Mundo 2, dos conhecimentos subjetivos, nutre-se da interação do ser humano com o meio (Mundo 1) no qual está inserido. Possibilitando, a partir dessa interação, fundamentar a formulação de conhecimentos objetivos, que por sua vez, se consolidam passando por métodos como a argumentação, a crítica, o erro (Mundo 3). Desta maneira conseguindo manterem-se até que outro conjunto de problemas surgidos da interação de conhecimento objetivo (Mundo 3), com o Mundo 2 e com o Mundo 1 se erga e o confronte, mantendo assim, um ciclo contínuo de mudança.
Claro que muitos se opuseram a essa ideia referente à existência de um Mundo 3, alegando que o Mundo 3 de Popper (1967) está imerso no Mundo 2, não havendo uma separação. Desta forma, conhecimento objetivo e conhecimento subjetivo transitam no mesmo mundo, no caso, Mundo 2. Este pensamento é complementado quando seus opositores afirmam que o Mundo 3 de Popper (1967), ou seja, as teorias, os argumentos, as hipóteses sobre algo, não passam de representações simbólicas de estados mentais subjetivos, ou talvez de pensamentos que antecedem o agir.
Popper (1967) rebate esses argumentos afirmando que o Mundo 2 não consegue abarcar tudo, conhecimento objetivo e subjetivo, e justifica seu ponto de vista utilizando experimentos que defendem a existência independente do Mundo 3. Sendo assim, Popper (1967) considera dois experimentos imaginários:
Experimento (1). Todas as nossas máquinas e ferramentas são destruídas, bem como todo o nosso saber subjetivo, inclusive o nosso conhecimento subjetivo das máquinas e ferramentas e de como usá-las. Mas as bibliotecas e nossa capacidade de aprender com elas sobrevivem. É claro que, depois de muito sofrimento, nosso mundo poderá recomeçar a funcionar. Experimento (2). Tal como antes, as máquinas e ferramentas são destruídas, assim como nosso saber subjetivo, inclusive nosso conhecimento subjetivo das máquinas e ferramentas e de como usá-las. Dessa vez, porém, todas as bibliotecas também são destruídas, de modo que nossa capacidade de aprender com os livros torna-se inútil (p. 58).
Nos experimentos supracitados pelo autor tem-se explicitamente formada umas das ideias centrais do Mundo 3, que consiste no fato de ele existir independentemente do Mundo 2 e do Mundo 1. O autor aponta certa autonomia do Mundo 3, mesmo tendo seus elementos constituídos inicialmente no Mundo 2, via conhecimento subjetivo.
Sobre essa ideia de autonomia do Mundo 3, aliás uma das centrais, Popper (1967) argumenta que mesmo sendo um produto humano, o Mundo 3 acaba criando seu próprio campo de autonomia. Por exemplo, o autor cita a criação dos números naturais, quando foram criados não se tinha em mente diferenciar números pares de números ímpares, ou então, não se pensou que nesta sequência existia um subconjunto composto por números primos. Assim, o homem cria a sequência dos números naturais, mas ela cria novos problemas autônomos, que independem do problema inicial que a resultou.
No exemplo dos números naturais, a criação dessa sequência resultou na investigação de novos problemas, que resultaram em novas criações ou construções, no caso, os números pares, ímpares e primos, e assim, por diante, evidenciando uma capacidade de realimentação constante dos objetos conferidos a dimensão do Mundo 3. Sobre essa capacidade Popper (1967) acrescenta que “há outro efeito realimentador importantíssimo de nossas criações para nós, ou seja, do Mundo 3 para o Mundo 2: os novos problemas emergentes nos estimulam a novas criações. (p. 69)”. O autor representa esse processo por meio do seguinte esquema:
Em que,
P1: problema inicial;
TT: solução ou teoria provisória (podendo estar errada no todo ou em parte);
EE: eliminação de erros (debates críticos ou testes experimentais);
P2: novos problemas surgem de nossa atividade criativa.
A autonomia do Mundo 3 e a capacidade de realimentação do Mundo 3 são entendidas por Popper (1967) como sendo os principais fatos, que contribuem para a ampliação do conhecimento.
4. ASPECTOS METODOLÓGICOS
Tradicionalmente, pesquisas em Educação Matemática são conduzidas por abordagens qualitativas. Malheiros (2004, p.57) comenta que “as pesquisas desenvolvidas na área de Educação, entre elas as de Educação Matemática, baseiam-se frequentemente pela abordagem qualitativa”. Assim, a proposta deste trabalho consiste em tecer discussões acerca do desenvolvimento de uma atividade de Modelagem Matemática, com foco em seu processo, numa perspectiva popperiana da criação/construção do conhecimento.
Sobre a atividade de Modelagem Matemática, esta foi retirada das descrições de Menezes, Braga e Espírito Santo (2019), que trouxeram em seu trabalho três atividades desenvolvidas no Laboratório Experimental de Modelagem Matemática (LEMM), por graduandos do curso de Matemática. As atividades são: Resistência física homem x mulher; solução de água e sal; e Ponte do rio Moju/PA. Dentre essas, optamos por analisar a atividade “solução de água e sal”, por ser a única que apresentou em sua descrição o desenvolvimento da maioria das etapas do processo de Modelagem Matemática.
O processo de Modelagem Matemática tem início com uma problemática retirada da realidade (Mundo 2), e por meio de ferramentas matemáticas (conhecimento objetivo) o modelador chega a um modelo matemático (solução transitória, podendo estar errado no todo ou em parte), que a princípio soluciona a problemática inicial. A partir disso, o modelo matemático é testado e validado (submetido a argumentação, críticas, eliminação de erros), no intuito de verificar a sua adequação à problemática inicial. Partindo desse contexto, apresentamos na Figura 1 um esquema que mescla etapas do processo de Modelagem Matemática de Bassanezi (2011), com momentos do esquema de realimentação do Mundo 3, de Popper (1967). O referido esquema serviu de base para a análise de uma atividade de Modelagem Matemática segundo a perspectiva popperiana.
5. A ATIVIDADE “solução de água e sal”
Esta seção foi organizada em duas subseções. A primeira, consiste na descrição da atividade de Modelagem Matemática. E na segunda, analisa-se essa atividade de Modelagem Matemática a partir de uma perspectiva popperiana, via esquema da Figura 1 apresentado na seção 4.
5.1. Descrição da atividade “solução de água e sal”
A atividade foi desenvolvida por quatro alunos do curso de Matemática, que escolheram o tema pela proximidade que um dos alunos tinha com a temática de solução, em uma vivência anterior ao investigar um assunto semelhante. Em um primeiro momento o grupo de alunos decidiu transformar uma quantidade de água salgada em água potável. Porém, esse primeiro objetivo ficou para trás, considerando o tempo que esse processo levaria e sobre os ferramentais e estratégias necessárias para comprovar que a água, a princípio salgada, estaria ao final do processo própria para o consumo.
Em um segundo momento, os alunos decidiram investigar a variação de concentração de sal em um fluxo contínuo de entrada e saída de água de um recipiente. Para esse objetivo foi necessário uma coleta de dados a partir da improvisação de materiais disponíveis no LEMM que culminou na construção de um sistema de entrada e saída de água representado pelos alunos na Figura 2.
Os alunos construíram esse sistema tentando manter constante o volume dos recipientes. Segundo eles:
[...]o desafio era manter o volume do recipiente II constante, mas para isso notamos que o volume do recipiente III que abastece o recipiente II também teria que ser constante, então incluímos o recipiente IV para abastecer o recipiente III, e assim manter o volume e a vazão do recipiente II constante” (MENEZES, BRAGA e ESPÍRITO SANTO, 2019, p. 156).
Na Figura 2 é possível perceber que no recipiente II estava a solução com 100g de sal diluído em 1 litro de água, por onde entrava água potável e saía simultaneamente por outro orifício água com sal. Por essa última saída de água os alunos coletaram amostras de água com sal, permitindo aferir a quantidade de água com sal existente nos copos e o tempo que levou para encher cada copo, como mostra a Tabela 1.
Os alunos determinaram a média dos tempos correspondente ao enchimento de cada copo e a média do volume de água com sal contida nesses copos, para poderem calcular a vazão de saída. Essa vazão, por sua vez, foi determinada pelo quociente da média do volume com a média do tempo, incidindo assim, em uma vazão de 6,5 ml/s. Como os volumes dos recipientes eram constantes, os alunos concluíram que a vazão de entrada era igual a vazão de saída. Esses apontamentos levaram os alunos a construírem o modelo 1 (o asterisco[*] representa a operação de multiplicação).
V. Entrada*C. Entrada-V. Saída*C. Saída (1)
Ao substituírem os valores correspondentes das vazões e das concentrações, os alunos manusearam a equação via regras de derivação, e pelo Método do Fator Integrante, direcionando-os ao modelo 2.
(2)
Com esse modelo os alunos puderam gerar dados referentes à quantidade de sal que ficava no recipiente, e a quantidade de sal que saía em um fluxo contínuo de tempo. Esses dados foram organizados na Tabela 2.
A partir dos dados da Tabela 2, os alunos construíram e utilizaram dois gráficos: um referente à quantidade de sal que permanecia na solução do recipiente II (azul) e outro sobre a quantidade de sal que saía do recipiente II (verde), como mostra a Figura 3.
Os gráficos mostram como foi o comportamento do fenômeno da variação de sal no sistema de entradas e saídas construído pelos alunos. Desta forma, com o modelo matemático e com as previsões feitas a partir dele, os alunos puderam comprovar se o modelo encontrado era adequado ao experimento desenvolvido e representava o fenômeno investigado. Para fazer isso os alunos utilizaram a destilação da primeira amostra de solução coletada, conforme ilustrado pelos alunos na Figura 4.
O valor encontrado na destilação foi diferente do valor encontrado pelo modelo 2 ilustrado na Tabela 2 (em 21 segundos saíram 12,76g de sal). A diferença entre a quantidade real encontrada no processo de destilação e a quantidade gerada pelo modelo 2 é de 6,6g de sal. Segundo os alunos essa diferença pode ter ocorrido devido à falta de precisão durante a realização do experimento, como problemas na pesagem do sal, ou então sobras de água na mistura destilada. Para representar a margem de erro do modelo 2 os alunos construíram o gráfico da Figura 5.
5.2. A atividade “solução de água e sal” segundo a perspectiva popperiana
Tanto no processo de Modelagem Matemática, como no esquema do processo de ampliação do conhecimento de Popper (1967), tem-se incialmente a delimitação de um problema inicial de investigação. Mesmo o grupo de alunos não tendo pontuado claramente uma pergunta a respeito do tema “solução de água e sal”, percebe-se nas descrições que essa pergunta ficou subentendida nos objetivos traçados pelo grupo.
O tema externo a Matemática foi escolhido segundo a afinidade que um dos alunos nutria pela temática. No esquema de Popper (1967) esse início se dá no Mundo 2, ou seja, inicialmente essa temática ainda está sendo tratada exclusivamente como conhecimento subjetivo, e esse tratamento subjetivo dado à temática “solução de água e sal” está evidenciado quando os alunos deparam-se com a mudança de objetivos. Antes um objetivo influenciado pelo conhecimento subjetivo que um dos participantes tinha acerca dessa temática, e depois, diante da impossibilidade de cumprir esse objetivo, auxiliados por pesquisas na Internet, o grupo resolveu, ao invés de tornar água salgada em água própria para o consumo, optar por verificar a variação de concentração de sal de uma solução. Segue abaixo, na Figura 6, um esquema que relaciona e sintetiza esses momentos inicias.
Posteriormente, o grupo de alunos realizou um experimento, coletou dados, organizou esses dados em tabelas, usou técnicas de derivação e o Método do Fator Integrante, para chegar ao modelo que lhes permitisse saber a variação de concentração de sal em uma solução. Esses momentos, na Modelagem Matemática, referem-se às etapas de Experimentação, Abstração e Resolução de Bassanezi (2011). Em confluência com o esquema de ampliação do conhecimento de Popper (1967) tem-se a retirada do tema “solução de água e sal” do contexto do senso comum (Mundo 2), dando lugar ao tratamento dessa temática via Matemática, que é constituída de conhecimentos objetivos, sendo pertencente ao Mundo 3. Essa migração de contexto está representada na Figura 7.
O modelo que o grupo de alunos encontrou atende incialmente ao objetivo elencado, considerando que este permitiu aos alunos verificar a variação de concentração de sal em uma solução. O Modelo Matemático é o produto do processo de Modelagem Matemática, resultado da etapa Resolução cunhada por Bassanezi (2011). No esquema de Popper (1967) esse modelo figura como a solução para o problema inicial. Tanto na Modelagem Matemática, como no esquema de Popper (1967) esse modelo/solução não está encerrado/acabado, pelo contrário, esse artefato matemático precisou ser verificado/testado no contexto do experimento. Nesse momento a destilação de amostras reais de solução que saía do recipiente serviu para que o grupo de alunos comparasse essa quantidade de sal real, derivada do processo de destilação, com os dados obtidos a partir do modelo/solução encontrado. Veja a Figura 8:
A validação do modelo/solução encontrado apontou erros. Esses erros, segundo os alunos se deram devido às condições físicas do próprio experimento. Nesse momento do processo de Modelagem Matemática os alunos tinham a opção de permanecer com o modelo matemático encontrado ou refazer o processo, tentando identificar e evitar possíveis erros. A eliminação de erros do esquema de Popper (1967) abarca as etapas de Validação e Modificação de Bassanezi (2011), na medida que propõe que a solução encontrada possa ser submetida à argumentação, debates e até mesmo experimentações, como ocorreu na atividade aqui analisada. Embora com uma margem de erro de 6,6 g de gramas de sal, o grupo de alunos optou por permanecer com o modelo/solução encontrado, já que este se mostrou mais próximo, naquele momento, da situação investigada.
O modelo/solução que o grupo de alunos encontrou, via as etapas propostas por Bassanezi (2011), é um objeto matemático que pertence ao Mundo 3 de Popper (1967) e representa uma situação externa à Matemática, ou seja, retirado do Mundo 2. Assim, esse modelo/solução encontrado em contato com elementos do Mundo 3, ou do Mundo 2 e 1 pode resultar em novos problemas a serem investigados, permitindo assim a ampliação do conhecimento.
6. CONCLUSÃO
Penso que, retomando o intuito deste trabalho, que era de analisar o desenvolvimento de uma atividade de Modelagem Matemática sob a ótica de Popper (1967), referente ao conhecimento objetivo e o Mundo 3, foi alcançado o objetivo. Isto em vista de que a atividade “solução de água e sal”, desenvolvida segundo as etapas de Bassanezi (2011), foi analisada estabelecendo confluências com elementos que constituíam o esquema de ampliação do conhecimento de Popper (1967).
A partir do que pontuam Bassanezi (2012) e Almeida e Vertuan (2014) sobre troca de contextos, e partindo também das análises da atividade “solução de água e sal”, pode-se inferir que o processo de Modelagem Matemática pertence ao Mundo 3, por investigar com ferramentas matemáticas problemas extraídos da realidade, e retornar seu produto final para o contexto que o originou.
Assim tem-se delimitado, que o processo de Modelagem Matemática inicia no Mundo 2, é investigado/analisado/validado no Mundo 3, e posteriormente volta ao Mundo 2, configurando dessa forma, movimentos de idas e vindas característicos da criação ou construção de conhecimento objetivo, via elementos pertencentes a dimensão do Mundo 3.
Agradecimentos
Agradeço a querida professora Dr.ª Marisa Rosâni Abreu da Silveira (in memorian), cujo exemplo de pessoa, professora e pesquisadora foram e sempre serão inspiração em minha vida e em minhas práticas como professor e pesquisador.
REFERÊNCIAS
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BASSANEZI, R. C. Temas e Modelos. São Paulo: Editora Unicamp, 2012.
BASSANEZI, R. C. Ensino – aprendizagem com modelagem matemática. 3.ed. São Paulo: Contexto, 2011.
PLATÃO. Diálogos: Eutífron ou da religiosidade; apologia de Sócrates; Críton ou do dever; Fédon ou da alma. São Paulo: Hemus, 1981.
POPPER, K. R. Conhecimento subjetivo versus conhecimento objetivo [1967]. In: MILLER, D. (Organização e Tradução). Textos Escolhidos. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora PUC-Rio, 2010.
MALHEIROS, Ana Paula dos Santos. A produção matemática dos alunos em um ambiente de modelagem. 2004. xiv, 180 f. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Geociências e Ciências Exatas, 2004. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/91000. Acesso em: 15 jun. 2019.
MENEZES, R. O.; BRAGA, R. M.; ESPÍRITO SANTO, A. O. do. Cooperação no desenvolvimento de atividades de Modelagem na Educação Matemática. REAMEC - Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, [S. l.], v. 7, n. 1, p. 147-170, 2019. http://dx.doi.org/10.26571/REAMEC.a2019.v7.n1.p147-170.i7966.
APÊNDICE 1
FINANCIAMENTO
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
CONTRIBUIÇÕES DE AUTORIA
Resumo/Abstract/Resumen: Rhômulo Oliveira Menezes
Introdução: Rhômulo Oliveira Menezes
Referencial teórico: Rhômulo Oliveira Menezes
Análise de dados: Rhômulo Oliveira Menezes
Discussão dos resultados: Rhômulo Oliveira Menezes
Conclusão e considerações finais: Rhômulo Oliveira Menezes
Referências: Rhômulo Oliveira Menezes
Revisão do manuscrito: Mauro de Matos Esmeraldino
Aprovação da versão final publicada: Rhômulo Oliveira Menezes
CONFLITOS DE INTERESSE
O autor declara não haver nenhum conflito de interesse de ordem pessoal, comercial, acadêmico, político e financeiro referente a este manuscrito.
DISPONIBILIDADE DE DADOS DE PESQUISA
O conjunto de dados que dá suporte aos resultados da pesquisa foi publicado no próprio artigo.
CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM
Não se aplica.
APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA
Não se aplica.
COMO CITAR - ABNT
MENEZES, R. O. Analisando uma atividade de modelagem matemática sob uma perspectiva popperiana. REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática. Cuiabá, v. 9, n. 3, e21086, setembro a dezembro, 2021. http://dx.doi.org/10.26571/reamec.v9i3.13005.
COMO CITAR - APA
Menezes, R. O. (2021). Analisando uma atividade de modelagem matemática sob uma perspectiva popperiana. REAMEC - Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, 9(3), e21086. http://dx.doi.org/10.26571/reamec.v9i3.13005.
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PUBLISHER
Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Matemática (PPGECEM) da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática (REAMEC). Publicação no Portal de Periódicos UFMT. As ideias expressadas neste artigo são de responsabilidade de seus autores, não representando, necessariamente, a opinião dos editores ou da referida universidade.
EDITOR
Rogerio dos Santos Carneiro
Notas
Ligação alternative
https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/reamec/article/view/13005 (pdf)