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USO DE NARRATIVAS EM PESQUISAS SOBRE REFORMULAÇÃO CURRICULAR EM LICENCIATURAS DE CIÊNCIAS
USE OF NARRATIVES IN RESEARCH ON CURRICULAR REFORMULATION IN SCIENCE LICENCIATURES
REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, vol.. 6, núm. 2, 2018
Universidade Federal de Mato Grosso

Artigos

REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
ISSN-e: 2318-6674
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 6, núm. 2, 2018

Recepção: 10 Janeiro 2018

Aprovação: 14 Junho 2018

Os direitos autorais são mantidos pelos autores, os quais concedem à Revista REAMEC –Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática -os direitos exclusivos de primeira publicação. Os autores não serão remunerados pela publicação de trabalhos neste periódico. Os autores têm autorização para assumir contratos adicionais separadamente, para distribuição não exclusiva da versão do trabalho publicada neste periódico (ex.: publicar em repositório institucional, em site pessoal, publicar uma tradução, ou como capítulo de livro), com reconhecimento de autoria e publicação inicial neste periódico. Os editores da Revista têm o direito de proceder a ajustes textuais e de adequação às normas da publicação.

Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: O presente texto tem por objetivo relatar pesquisas que fizeram uso de narrativas de formadores de licenciaturas da área de ciências naturais da Amazônia, em processos de reformulação curricular dos projetos pedagógicos dos cursos em que lecionam. São quatro pesquisas relacionadas em um programa de pesquisa do Laboratório de Ensino de Ciências (EDUCIENCIA): a primeira autora defendeu sua tese no Instituto de Psicologia da USP e usou narrativas autobiográficas para caracterizar e analisar contribuições de professores de um curso de Ciências Biológicas em Rondônia e a segunda autora deu continuidade a este trabalho. As duas outras foram conduzidas por orientandos de doutorado em suas instituições de ensino superior.

Palavras-chave: Formação de professores de ciências, Reformulação curricular, Narrativas.

Abstract: The present text has the objective of reporting researches that have made use of narratives of undergraduate trainers from the area of natural sciences of the Amazon, in processes of curricular reformulation of the pedagogical projects of the courses in which they teach. The first author defended her thesis at the Institute of Psychology of USP and used autobiographical narratives to characterize and analyze contributions of professors of a Biological Sciences course in Rondônia and the second author gave continuity to this work. The other two were conducted by doctoral advisers in their higher education institutions.

Keywords: Training of science teachers, Curricular reformulation, Narratives.

1. INTRODUÇÃO

Dentre os(as) psicólogos(as) que direcionaram muitos de seus esforços de pesquisa para o campo da educação, encontra-se o norte-americano Jerome Bruner, considerado um dos líderes da “Revolução Cognitiva”, movimento intelectual que, na década de 1950, opôs-se ao Behaviorismo norte-americano. Nas palavras de Bruner (1997, p. 15), essa revolução “visou trazer a mente de volta às ciências humanas, após um longo e frio inverno de objetivismo”. Com o passar do tempo, entretanto, Bruner se converteu em um crítico dos rumos que o Cognitivismo seguiu, ao tornar-se, segundo ele, “fragmentado e tecnicizado” e afastar-se de seu “impulso originário” (BRUNER, 1997, p. 17 e 18). Defendeu, desde então, uma abordagem mais interpretativa da cognição e interessada na produção de significados, propondo uma abordagem culturalista para a mente humana, que ele denominou Psicologia Cultural.

Um pressuposto básico desta abordagem requer a compreensão de que a cultura molda a mente e nos instrumentaliza para “construir não só os nossos mundos, mas também nossas reais concepções sobre nós próprios e sobre as nossas faculdades” (BRUNER, 2000, p. 10). Em uma abordagem psicocultural, concebe-se que a educação é “a mais importante concretização do estilo de vida de uma cultura, e não apenas uma preparação para ele” (BRUNER, 2000, p. 32). Assim, para esse pesquisador, viver em uma determinada cultura consiste em equilibrar as versões de mundo construídas sob influência institucional e as que são oriundas das histórias pessoais.

A contribuição de Bruner para a educação é relevante, sendo percebida em publicações que versam sobre desenvolvimento cognitivo, ensino, currículo, pensamento narrativo, construção de significados, entre outras. Para Bock, Furtado e Teixeira (2001), Bruner formulou uma teoria de ensino que preconizava a organização dos conteúdos escolares de modo eficiente e significativo para os(as) estudantes, no qual a estrutura dos conteúdos e não sua extensão é o aspecto principal.

É em decorrência da relevância atribuída à estrutura que Bruner formulou um conceito importante de sua obra: o currículo em espiral. Através de sua difundida frase - “Qualquer assunto pode ser ensinado com eficiência, de alguma forma intelectualmente honesta, a qualquer criança, em qualquer estágio de desenvolvimento” (BRUNER, 1978, p. 31) – o psicólogo propunha que os conteúdos de ensino partissem de conceitos gerais e essenciais para, então, alcançar os mais complexos e particulares, a partir de um aumento gradativo de informações. (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 2001). Dessa forma, os mesmos conteúdos reapareceriam com complexidade crescente nos mais variados níveis de ensino (KRASILCHIK, 2004) e os alunos e alunas modificariam, gradativamente, suas representações mentais à medida que se desenvolvesse sua capacidade de categorizar, conceitualizar e representar o mundo. (GUILAR, 2009).

De acordo com Guilar (2009), as ideias pedagógicas de Bruner podem ser compreendidas se considerarmos dois momentos distintos: a Revolução Cognitiva, marcada pelas pesquisas mais antigas desenvolvidas na Universidade de Harvard (entre os anos de 1952 e 1972) e a Revolução Cultural, que corresponde a estudos mais recentes, elaborados em Oxford e Nova Iorque (a partir do ano de 1972 até 2016, ano de seu falecimento). O conceito do currículo em espiral foi concebido na etapa da revolução cognitiva. Também a essa etapa foram atribuídas as ideias de aprendizagem por descoberta, com evidente influência dos estudos de Piaget, e de que os conteúdos de aprendizagem devem apresentar-se de uma forma adequada à estrutura cognitiva dos(as) estudantes.

A etapa da Revolução Cultural foi marcada por profundas mudanças na obra de Bruner. Na década de 1960, no governo de John Kennedy, Bruner propôs e implementou um projeto de Ciências Sociais, intitulado MACOS – Man, a Course of Study, que focalizava na natureza do homem e no seu papel na humanidade. Em 1972, após a extinção do programa, o psicólogo deixou a Universidade de Harvard. Nesse período, ocorreu um arrefecimento das relações com Piaget e as ideias de Vygotsky cresceram em relevância (GUILAR, 2009). Desvaneceu, paralelamente, o cognitivismo e os interesses pedagógicos centrados nos processos de representação dos(as) estudantes. Emerge, então, a Psicologia Cultural, a qual admite que os seres humanos desenvolvem dois tipos de pensamento: o pensamento narrativo e o pensamento paradigmático.

Consideramos que este trabalho se justifica devido a um grande potencial para estudos na área de ensino de ciências e matemática, bem como na formação de professores nesta área.

Neste trabalho, apresentamos resultados de quatro pesquisas que utilizam o pensamento narrativo na avaliação e (re)construção do currículo de Licenciaturas de Ciências Biológicas, dentro de um programa de pesquisa desenvolvido no grupo de pesquisa Laboratório de Ensino de Ciências (EDUCIENCIA) da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).

O trabalho está organizado em cinco seções, com a primeira tratando do conceito de pensamento narrativo e seu uso em processos de avaliação e formação de professores e as demais relatando uma das pesquisas acima referidas. A primeira pesquisa ocorreu no doutorado da primeira autora e a segunda no mestrado da segunda autora, em uma universidade federal da Amazônia; as outras duas foram realizadas no doutorado da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática (REAMEC), tendo como lócus institutos federais amazônicos.

2. NARRATIVAS E SEU PAPEL FORMATIVO EM EDUCAÇÃO

Para a Psicologia Cultural há duas modalidades de pensamento que nos permitem ordenar as experiências e construir a realidade: o pensamento lógico-científico e o pensamento narrativo (BRUNER, 2000). Ambos estão presentes nas diversas formas de cultura, ainda que privilegiados de formas distintas. Para o psicólogo, entretanto, representamos as nossas vidas, para nós mesmos e para os outros, através da forma historiada, narrada. As narrativas são imprescindíveis, dessa forma, à produção de significados: de quem somos, do nosso mundo e de qual é nosso lugar nele, ou seja, da nossa identidade e visão de mundo. Assim, a capacidade de construção narrativa e de inteligência narrativa é crucial para construirmos a nossa vida e um lugar próprio no mundo.

Além da importância atribuída às narrativas, destacamos outros legados de Bruner à educação: a ideia de que o ensino e a aprendizagem precisam desenvolver-se através de práticas cooperativas de trabalho em grupo e a proposição de que os professores(as) devem adequar a forma de ajuda ao nível de competência do(a) estudante, estimulando a responsabilidade e autonomia à medida que ocorre o domínio do instrumento, conceito e/ou conhecimento. Essa última proposição aproxima-se muito do conceito vigotskiano de zona de desenvolvimento proximal (GUILAR, 2009), ao qual Bruner faz referência (BRUNER, 2001).

Em decorrência da contribuição dos estudos de Bruner para a educação, especialmente no que se refere ao ensino de Ciências, temos utilizado esta teoria nas orientações desenvolvidas em programas de pós-graduação (mestrado e doutorado) e neste artigo relatamos quatro delas. Elas têm em comum o fato de conceberem o currículo enquanto uma forma de “política cultural” e destacarem seu caráter histórico, social e ideológico e por utilizarem narrativas de professores formadores, enquanto sujeitos ativos na construção e reformulação dos currículos de licenciaturas da área de ciências naturais.

O uso de narrativas autobiográficas ou histórias de vida em pesquisas educacionais vem sendo feito por vários estudiosos como Clandinin e Connelly (2011) e Nóvoa e Finger (2010), os quais têm influenciado vários pesquisadores brasileiros. Segundo essa abordagem, o processo de formação do professor inicia-se mesmo antes de o aluno entrar no curso de licenciatura e perdura durante toda a sua vida profissional, num processo de formação permanente.

Bueno (2002) argumenta sobre a dimensão formativa das narrativas, pois os professores refletem sobre sua profissionalização e reconstroem os significados de suas práticas docentes ao narrarem experiências de vida do passado e do presente. Cunha (1997) alerta para o fato de que a pessoa relata sua trajetória dando-lhe novos significados e muitas vezes destacam situações, suprimem episódios ou acontecimentos, negam etapas, reforçam determinadas influências ou lembranças, e a compreensão dos significados atribuídos por elas podem ser explorados para fins pedagógicos ou de pesquisa.

Ao dar o direito de fala aos professores, instaura-se um mecanismo em que os professores podem representar-se por si mesmos e é uma forma destes mostrarem o que pensam sobre as questões educacionais que vivenciam, pois, muitas vezes não são “convidados” para participarem das decisões sobre tais questões. Segundo Goodson (1992), vivemos uma crise nas reformas educacionais, pois “os administradores ignoram, de modo geral, o que os professores sentem e pensam a respeito do que é proposto e realizado” (BUENO, 2002, p. 22).

Assim, admite-se que as narrativas possuem caráter formativo e contribuem para o aprimoramento da prática dos professores, pois, à medida em que o docente “[...] organiza suas ideias para o relato – quer seja escrito ou oral - ele reconstrói sua experiência de forma reflexiva, o que acaba promovendo uma autoanálise e assim cria novas bases de compreensão para sua prática” (CUNHA, 1997, p. 187).

As narrativas contribuem para que os professores conheçam a si próprios, em um processo emancipatório para gerir a sua própria formação:

A narrativa provoca mudanças na forma como as pessoas compreendem a si próprias e aos outros. Tomando-se distância do momento de sua produção, é possível ao “ouvir” a si mesmo ou ao “ler” seu escrito, que o produtor da narrativa seja capaz, inclusive, de ir teorizando a própria experiência. Este pode ser um processo profundamente emancipatório em que o sujeito aprende a produzir a sua formação, autodeterminando a sua trajetória. [...] (CUNHA, 1997, p. 188).

Ao mesmo tempo que vão narrando suas experiências, os professores vão anunciando novas possibilidades, sonhos, projetos, porque as pessoas constroem e reconstroem histórias a partir de várias referências, “[...] como a história familiar, a trajetória escolar e acadêmica, sua convivência com o ambiente de trabalho, sua inserção cultural no tempo e no espaço” (CUNHA, 1997, p. 189).

Para Bruner, há dois universais relacionados com a maneira como o ser humano se orienta em relação ao passado e à cultura, que são a reflexividade humana e a capacidade de visualizar alternativas.

O primeiro é a reflexividade humana, nossa capacidade de nos debruçarmos sobre o passado e alterarmos o presente sob sua luz ou, em contrapartida, de alterarmos o passado à luz do presente. Nem o passado, nem o presente, permanecem fixos diante dessa reflexividade. O imenso repositório dos nossos encontros passados pode ser salientado de diferentes modos à medida que os revisamos reflexivamente, ou podem ser mudados por reconceituação. O segundo universal é a nossa capacidade intelectual para visualizar alternativas e conceber outros modos de ser, de agir, de engajar-se. (BRUNER, 1997, p. 96).

Atualmente, fala-se muito sobre o desenvolvimento profissional dos professores e Christopher Day (2013) defende a utilização de narrativas como mecanismo para descrever e aperfeiçoar a experiência profissional de docentes. Para o autor, os professores, ao relatarem suas histórias de vida pessoais e profissionais, refletem sobre experiências passadas, os contextos e circunstâncias em que ocorreram, o que pode levar à mudança de direção e desencadear processos de superação de si próprios.

3. NARRATIVAS E SEU USO EM AVALIAÇÃO DE CURRÍCULO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A pesquisa que deu origem ao programa que ora apresentamos se iniciou no momento em que o sistema educacional brasileiro iniciava um movimento de reforma, isto é, meados da década de 1990, na qual se destacam a produção de legislação estabelecendo diretrizes e parâmetros na área de currículos e a implantação de um sistema nacional de avaliação do sistema em todos os níveis de ensino. (MARTINES, 2000; 2005).

O programa se insere numa práxis de avaliação e (re)construção de currículos de formação de biólogos, incluindo a formação de professores, a partir de um estudo de caso de uma IES amazônica, utilizando como referencial teórico o pós-colonialismo e a Psicologia Cultural, para analisar o currículo em processo num contexto específico (de tempo e espaço) e em diferentes níveis de análise. A este seguiram-se outros três estudos orientados pela primeira autora.

As pesquisas permitiram 1) documentar o não documentado oficialmente, 2) dar voz aos agentes institucionais silenciados historicamente, 3) contribuir para a descolonização através da descrição e ampliação dos registros da trajetória do currículo de cursos de Ciências Biológicas de universidades amazônicas, 4) a implementação de medidas que foram se fazendo necessárias no entendimento dos agentes institucionais e de avaliadores externos, 5) adequar-se às mudanças na legislação sobre a área e nível de ensino considerado.

Foi possível também, no âmbito desses trabalhos, sistematizar questões já resolvidas na (re)construção do currículo estudado e as questões que ainda estavam na dependência de solução, mas que já tinham sido percebidas ou antecipadas à luz de referencial teórico que ajudou a apontar soluções.

No primeiro trabalho, defendeu-se a tese de que o currículo real é o currículo possível construído nas condições específicas de uma dada instituição, recebendo influências das diretrizes curriculares nacionais e políticas públicas mais amplas; das condições institucionais e regionais, construídas historicamente; das trajetórias de formação, fases da carreira e experiências vicárias dos/as professores/as; do perfil do corpo discente; da produção acadêmica no campo do currículo e das especialidades ou disciplinas relacionadas com o curso. Concluiu-se desafiando as universidades a assumirem junto às IES mais periféricas e às escolas de Educação Básica, papéis e funções mais adequados à uma ética do cuidado e do acolhimento e que se distanciem da ética do sobrevivente do mínimo eu, na qual a construção de singularidades comprometidas com a emancipação e a democracia está cada vez menos valorizada na prática.

4. A CONTINUIDADE DA PESQUISA

A pesquisa de Martines (2005) teve continuidade dez anos depois, quando ocorreu a separação dos cursos da Licenciatura e do Bacharelado em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e foi desenvolvida pela segunda autora. Estes cursos foram criados em 1995 como um curso único que oferecia a possibilidade de o estudante cursar uma ou as duas modalidades e suas “grades” curriculares passaram por diversas alterações ao longo dos anos. O currículo, objeto desse estudo, foi concebido para aperfeiçoar o Curso de Licenciatura, a partir da separação desta do Bacharelado, e adequá-lo às novas legislações educacionais e modelos emancipatórios de formação de professores(as).

A separação dos cursos passou a vigorar no ano letivo de 2015 e o novo Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura apresentou inovações, tais como a proposta de organização do currículo em eixos temáticos e a inserção, no interior das disciplinas, de parte da carga horária destinada à prática de ensino. Daí o interesse pelo seu estudo, dando continuidade à pesquisa da orientadora por ocasião de seu doutoramento (MARTINES, 2005).

Sendo assim, o objetivo principal desse trabalho foi analisar dentro da abordagem da Psicologia Cultural os significados construídos no processo de reestruturação curricular do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Rondônia, na perspectiva de docentes que participaram do referido processo. (KUHN, 2018).

As narrativas do(as) docentes trouxeram importantes elementos para a compreensão desse processo, em especial quanto a aspectos relacionados aos esforços de planejamento do novo currículo pelo coletivo de professores(as), à inserção, no interior das disciplinas, de parte da carga horária destinada à prática de ensino, aos distanciamentos entre os cursos de licenciatura e bacharelado.

A resistência à mudança por parte de alguns professores, a dificuldade em remodelar o que sempre foi feito, a procrastinação, a objeção em alterar a carga horária das disciplinas fizeram parte da caminhada de reestruturação do currículo, demonstrando sua complexidade. Além disso, a hierarquização do curso de bacharelado sobre o de licenciatura reflete valores, culturalmente arraigados, de desprestígio social dos cursos de formação de professores e professoras no Brasil. A construção de um novo currículo requerer dos(as) docentes novos saberes, posturas, objetivos, conteúdos, estratégias e formas de avaliação, a fim de que a prescrição contida nos documentos curriculares se converta em práticas pedagógicas críticas e comprometidas com a formação de futuros(as) professores e professoras.

5. OUTRAS PESQUISAS RELACIONADAS

Mais duas pesquisas foram desenvolvidas dentro do programa aqui relatado, por orientandos da primeira autora: um no Instituto Federal do Maranhão (IFMA) e outra no Instituto Federal de Rondônia (IFRO), ambas dentro do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática (PPGECEM) da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática (REAMEC).

5.1. A pesquisa narrativa e a reformulação de currículos de licenciaturas de ciências

Com a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia e a carreira do Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT), um novo cenário emerge para a formação de professores no Brasil. Os Institutos Federais passam a ofertar cursos de formação de professores para a educação básica, sobretudo nas áreas de ciências e matemática. (CAVALCANTI, 2016).

O professor EBTT passou a atuar na educação básica e no ensino superior. É nesse contexto de mudanças e reconfigurações institucional e docente que se situa a pesquisa ora apresentada. Seus objetivos foram: identificar o perfil docente dos formadores de professores de ciências; discutir a visão de educação e ciência na configuração da identidade docente; analisar e interpretar a construção discursiva da identidade docente dos professores formadores.

Trata-se de uma pesquisa qualitativa na modalidade narrativa que teve como locus o Instituto Federal do Maranhão Campus São Luís Monte Castelo, com a participação de professores formadores das licenciaturas em Física, Química e Biologia. O corpus de pesquisa foi construído por entrevistas, reuniões com os participantes e projetos pedagógicos dos cursos.

Para o procedimento analítico adotou-se a Análise Textual Discursiva (MORAES; GALIAZI, 2006; 2007) e defendeu-se a tese de que em processos de mudança socioinstitucional novos significados são (auto)atribuídos à docência, que ora tendem em suas concepções e práticas para a conservação e o tradicional, ora tendem para a mudança e o novo, implicando que o que define a tendência para um polo ou outro não é tanto o que é instituído por modelos institucionais, mas pelo sentimento de pertença e confirmação ou validação de um corpo docente.

Assim, um significado se consolida ou não na configuração da identidade docente de acordo com o grau de partilha de práticas e discursos numa dada instituição educacional. A tese é tecida em forma de cenários que se entrecruzam, intencionando demonstrar os vários lugares, contextos, discursos e atores envolvidos na narrativa.

A narrativa leva a considerar que: a identidade docente é construída num processo dinâmico e contínuo de identificação e diferenciação, de construção e reconstrução das práticas, dos valores, das relações estabelecidas com os outros e o ambiente de trabalho. As mudanças não são instituídas como cópias fiéis dos discursos reguladores, há sempre adequações e mutações postas em movimento pelos professores, que na prática docente imprimem o ritmo de aceleração ou retardo, legitimação ou negação das mudanças.

A mudança implementada na carreira do magistério nos institutos federais é causa de “mal-estar docente” entre professores EBTT e professores universitários; a partir da atuação do professor EBTT, existe a possibilidade de aproximação entre os níveis de ensino no próprio processo de formação docente.

Coexistem duas linhas discursivas (pragmática e crítica) que fazem confluir as visões de educação, ciência e pesquisa na formação e identidade docentes; emergem “silêncios” relativos à Educação em Ciência, que podem denotar a permanência de resquícios de uma tendência bacharelesca de formação; há um descompasso entre a rapidez com que as mudanças estatutárias são realizadas e a lentidão com que as condições de trabalho são garantidas, permanecendo obstáculos internos relativos à infraestrutura e ao trabalho coletivo.

5.2. A avaliação emancipatória do currículo de licenciatura em Ciências Biológicas

Outra pesquisa (em andamento, com previsão de defesa para final de 2018), situa-se na intersecção dos campos da avaliação educacional, do currículo e da formação de professores, no contexto de mudanças paradigmáticas e de políticas educacionais que vem ocorrendo no Brasil e atinge os cursos de formação de professores em todo o país. (MARTINES, 2005; SOUSA, 2010; 2017).

O objetivo geral desta pesquisa foi avaliar colaborativamente o currículo de um curso de Licenciatura em Ciências Biológicas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (IFRO) de forma a contribuir com a reformulação do projeto pedagógico do curso, levando em consideração a situação institucional e as reais condições de trabalho na mesma.

O locus da pesquisa é o curso de Licenciatura em Ciências Biológicas do IFRO, Campus Colorado de Oeste localizado na zona rural do município de Colorado do Oeste, sul do Estado. O método utilizado foi a avaliação emancipatória do currículo (SAUL, 1988; MARTINES, 2005) que propõe processos de intervenção com objetivo de emancipar os participantes, tornando os professores e pesquisadores profissionais mais autoconscientes de seu fazer-educacional.

Assim, o professor deixa de ser objeto para ser ator, fazer parte do processo investigativo, aprendendo e transformando o contexto educacional em que atua. A pesquisa contou com 142 colaboradores, sendo: 93 acadêmicos em curso; 37 egressos e 12 docentes que atuam no curso. Foram utilizadas várias técnicas para a produção de dados: pesquisa documental, questionários on line para os egressos, gravação de narrativas autobiográficas dos professores, diagnóstico instrucional por pequenos grupos (DIPG) com os acadêmicos do curso, participação da pesquisadora nas reuniões do Núcleo Docente Estruturante (NDE) do curso.

Os dados resultantes da pesquisa com egressos e estudantes foram discutidos no NDE do curso e as reivindicações dos estudantes e egressos foram contempladas na reformulação do Projeto Pedagógico do Curso, em sua maioria. Para a análise das entrevistas autobiográficas utilizou-se a Análise Textual Discursiva (MORAES; GALIAZI, 2006; 2007) e a tese defendida é que: diante do contexto de mudanças e incertezas nas políticas educacionais, a avaliação emancipatória do currículo pode contribuir para o desenvolvimento do projeto pedagógico do curso, ao mesmo tempo em que contribui para o desenvolvimento profissional dos professores do referido curso, embora apresente alguns entraves de ordem pessoal e institucional.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, apresentamos um resumo de quatro pesquisas correlacionadas, sendo a primeira, uma tese de doutoramento que inspirou a realização de outras três pesquisas por orientandos da primeira autora.

As quatro pesquisas utilizaram narrativas autobiográficas de formadores de professores de ciências e exploraram as contribuições destes professores para a reformulação dos projetos pedagógicos dos cursos, valorizando estes atores sociais que usualmente são desprezados nas reformas curriculares, nas quais se atribui aos mesmos o papel de meros executores de um currículo prescrito por agentes externos à instituição escolar.

As narrativas evidenciam que os mesmos possuem papel central nas reformas curriculares, ao transformarem as prescrições em práticas de sala de aula e podem oferecer resistências aos programas reformadores com os quais não compactuam ou dos quais não se sintam participantes; o próprio ato de narrar suas experiências docentes ou de participação no processo de reformulação curricular oferece oportunidade de reflexão e de alternativas possíveis, contribuindo para o desenvolvimento da identidade profissional do professor e para seu desenvolvimento profissional.

A colaboração de pesquisadores da área de currículo, da filosofia, da psicologia, da geografia, entre outras, é um elemento central nestas pesquisas e sua participação contribui, enquanto especialistas, para reflexões e práticas em torno da formação de professores de ciências e para o aperfeiçoamento do currículo e o desenvolvimento profissional de professores.

Concluímos o presente artigo com a convicção da importância do uso de narrativas autobiográficas nas pesquisas sobre formação de professores e de reformulação curriculares, num contexto em que todas as licenciaturas estão passando por processos de (re)construção dos projetos pedagógicos dos cursos, por determinações legais emanadas do Ministério da Educação, dentro de um movimento de reforma de avaliação institucional, dos cursos e dos professores, em andamento no Brasil e em outras partes do mundo.

REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Professora do Doutorado da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática e da Universidade Federal de Rondônia e do Mestrado de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia.
[2] Professora da Rede Estadual de Educação de Rondônia. Mestre pelo Mestrado de Psicologia da Universidade Federal de Rondônia. E-mail: anacarolinakuhn@gmail.com
[3] Professora do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Estado de Rondônia (IFRO), Campus de Colorado do Oeste. E-mail: aparecida.gasquez@ifro.edu.br
[4] Professor do Departamento de Ciências Humanas e Sociais do Instituto Federal do Maranhão Campus São Luís Monte Castelo. Doutor em Educação em Ciências. E-mail: alberes@ifma.edu.br

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