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Desigualdades e discriminações étnico-raciais
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 18, núm. 1, 2021
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 18, núm. 1, 2021

Recepção: 22 Janeiro 2021

Aprovação: 08 Fevereiro 2021

Desigualdades e discriminações étnico-raciais

O aumento da produção acadêmica nas Ciências Sociais e áreas afins sobre raça e racismo no Brasil nos últimos anos[3] demonstra a consolidação de um campo de pesquisa e de debate acadêmico relevante em termos sociais, culturais e políticos. Como consequência deste processo de evolução do campo, destacamos o crescimento do volume de artigos publicados que discorrem, de forma analítica, sobre aspectos relacionados às desigualdades e discriminações étnico-raciais através do diálogo constante e crítico com abordagens teóricas nacionais e internacionais que tratam do tema.

Nessa perspectiva, é importante contextualizar a discussão desse campo no Brasil. Conforme destacado por Almeida (2018), a noção de “raça” é carregada de significados. Construída na modernidade quando o indivíduo se torna objeto científico da Biologia e da Física, a raça foi utilizada para classificar seres humanos e, sobretudo, para fortalecer conflitos, poderes e decisões (ALMEIDA, 2018). Desde o período do colonialismo o conceito de “raça” foi central para dividir as pessoas entre dominadores e dominados e como pano de fundo para um ciclo de morte e destruição de povos, tomando, como fundamentos, a religião e um projeto de “civilidade” e “civilização”. Stuart Hall (2011, p. 66), ao aclarar sobre alguns aspectos envolvendo o tema da “raça” e “Etnia”, destaca que “encontramos agora ‘raça’ entre parênteses, ‘raça’ sob rasura, ‘raça’ em uma nova configuração com etnicidade”. Assim sendo, “as diferenças atribuíveis à ‘raça’ humana, numa mesma população, são tão grandes quanto aquelas encontradas entre populações racialmente definidas.” Diante disso, percebe-se que “‘raça’ é uma construção política e social”. Sendo assim, Hall (2011, p. 66) assevera que a raça é a “categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão – ou seja, o racismo”.

Durante um longo período na sociedade brasileira foi possível verificar manifestações de racismo e discriminação de pessoas segundo diferenças atribuíveis às raças em muitos usos cotidianos. Entretanto, nos últimos anos, este tema se tornou uma ideia-chave no discurso diário, bem como na teoria sociológica e demais áreas das Ciências Sociais. Existem diferentes conceitos e atribuições, mas há um entendimento geral de que o racismo é uma prática de fortes cargas negativas que afetam diversos campos, dentre eles o social, o moral e o político. Portanto, declarar que alguém expressou uma opinião racista é denunciá-lo como imoral e indigno. Em suma, o racismo se converteu numa forma de abuso político.

Vale ressaltar que, qualquer definição, não apenas no âmbito acadêmico, mas também para o debate político e moral, possui um significado. À vista disso, ao abordar o racismo, não se pode defini-lo com critérios simples para decidir se um determinado discurso é racista ou não (WETHERELL & POTTER, 1998), uma vez que, na ausência de qualquer definição, o conceito perde o sentido e se opõe ao que de fato é racismo. Por outro lado, se o racismo for definido de forma muito restrita, as consequências podem ser emblemáticas. Por exemplo, se o racismo for banalizado, relativizado ou reduzido a alguns atos individuais, os discursos que de outra forma seriam considerados racistas podem atingir certo grau de legitimidade. Essa perspectiva adquire urgência política ao considerar que as ideologias de extrema direita tendem a se referirem a si próprias como nacionalistas, e não como racistas.

Vale ressaltar que o racismo foi sendo difundido e as formas de classificação foram se efetivando para além dos séculos. É necessário destacar, também, conforme Jurema Werneck (2013) em Racismo Institucional: uma abordagem conceitual (realizado por Geledés – Instituto da Mulher Negra, com apoio do Fundo para a Igualdade de Gênero da ONU Mulheres), que:

O racismo é uma ideologia que se realiza nas relações entre pessoas e grupos, no desenho e desenvolvimento das políticas públicas, nas estruturas de governo e nas formas de organização dos Estados. Ou seja, trata-se de um fenômeno de abrangência ampla e complexa que penetra e participa da cultura, da política e da ética. Para isso requisita uma série de instrumentos capazes de mover os processos em favor de seus interesses e necessidades de continuidade, mantendo e perpetuando privilégios e hegemonias. (WERNECK, 2013, p. 11)

O racismo pode ser compreendido como “uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagem ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertencem” (ALMEIDA, 2018, p. 25). Portanto, o racismo é estrutural, concernente às práticas políticas, institucionais e históricas. Segundo Almeida (2018), o racismo presente nas sociedades contemporâneas deve ser enxergado como parte integrante da ordem social. Além disso, é necessário considerar sua dimensão estrutural que permeia todas as relações (econômicas, políticas, jurídicas e pessoais) existentes na sociedade. Nesse sentido, a sociedade é permeada pelo “racismo de todos os dias” (KILOMBA, 2010) que, a partir de discursos, gestos, ações, imagens, dominações, silenciamento e experiências diárias, coloca as pessoas afrodescendentes no lugar de outsiders (demonização do outro).

Sendo assim, as discussões e pesquisas sobre raça e racismo representam um compromisso com o antirracismo em um momento em que os discursos racistas parecem ter avançado significativamente e de maneira sofisticada.

Salientamos, ainda, que o racismo, o preconceito e a discriminação racial são aspectos cruciais que envolvem a questão em análise. Por isso, é importante deixar claro que o preconceito racial e a discriminação possuem conceitos diferentes do racismo. O preconceito racial é fundamentado nos estereótipos do “grupo racializado”, e pode ou não ter consequências discriminatórias (ALMEIDA, 2018, p. 25). Já a discriminação racial é a “atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados. Portanto, a discriminação tem como requisito fundamental o poder” (ALMEIDA, 2018, p. 25).

É necessário destacar, também, que as demarcações em torno das desigualdades e discriminações étnico-raciais têm levado representantes de órgãos governamentais e não governamentais a armazenar conhecimentos teóricos e metodológicos capazes de ajudar no aclaramento das diversas facetas do racismo. A ênfase dada por esse conteúdo armazenado, muitas vezes, tem privilegiado aspectos que envolvem a abordagem clássica e contemporânea a partir de múltiplos olhares, dentre eles aqueles que dialogam com os elementos econômicos, sociais, culturais, políticos e jurídicos - possibilitando, assim, meios para que seja possível discutir, refletir e combater qualquer retrocesso no que diz respeito às conquistas já alcançadas.

O dossiê ora apresentado se insere em tal discussão explorando, nesta apresentação e nos artigos a seguir, debates sobre questões da vida do ser humano na sociedade e que compõem o quadro das desigualdades clássicas e contemporâneas enraizadas na sociedade, recolocando-as em evidência. As desigualdades vitais, existenciais, materiais ou de recursos ganham cada vez mais terreno ao tomarem como horizonte situações e dinâmicas em escala mundial (THERBORN, 2010). Compreender tal engrenagem ou as “novas desigualdades” requer um mergulho em realidades marcadas por sofrimentos diversos: pobreza, violência, discriminação, desrespeito, intolerância e preconceito. (DUBET, 2001/2003). Desse modo, revisitá-las tem sido o propósito de um grande grupo de estudiosos e estudiosas de modo geral e, especialmente, de pesquisadoras negras e pesquisadores negros.

Na mesma ponta, é necessário chamar atenção para as desigualdades[4] que, apesar das “mudanças normativas e tecnológicas” e de um processo de diminuição ou atenuação, são persistentes na sociedade (ROMERO & MARGOLIS, 2005). Registra-se que na contemporaneidade as interpretações no campo das desigualdades têm apontado para as chamadas desigualdades categoriais, concretizadas nas seguintes variáveis: etnia, classe social, idade, gênero, raça, nível educacional, identidade cultural, dentre outras. (TILLY, 2005)

Em relação a esse tópico, a principal contribuição deste dossiê está na ênfase sobre a infância, a juventude, a moradia, a identidade, a educação, a religiosidade, a cultura, a justiça, o acesso à cidade, a violência, a criminalidade, o acesso aos direitos, à proteção social e o reconhecimento, dentre outros marcadores relacionados às análises das desigualdades e das discriminações étnico-raciais. Essas questões vêm demandando esforços dos pesquisadores e diversos sujeitos no campo das práticas cotidianas das agências governamentais, não governamentais, dos movimentos sociais e de alguns partidos políticos na busca de enfrentamentos e produção de conhecimentos capazes de garantir avanços significativos nas áreas das políticas sociais, culturais, econômicas e no campo jurídico.

Assim, é possível depreender dessa questão que “passamos de um regime de representação das desigualdades sociais, muito ancorado na questão da “classe social”, em direção a um regime onde se veem as desigualdades a partir da questão da ‘discriminação’.” Deste modo, “a discriminação torna-se uma grande figura das desigualdades.” (DUBET, 2015, p. 158-159).

Este dossiê pretende contribuir para uma reflexão sobre o estado atual das desigualdades raciais no Brasil, contemplando diferentes temas que estão inseridos neste fenômeno. Para além das qualidades individuais das autoras e dos autores, buscamos certa representatividade de pesquisadoras negras e pesquisadores negros para este dossiê. Temos, então, artigos que abordam raça e comunidade na conexão com o cuidado, sendo este o caso do artigo escrito por Luciana Pinto, que buscou contemplar anseios, vivências e o “lugar de fala” de jovens negras e negros em suas comunidades no semiárido nordestino, além dos desafios enfrentados e a solidariedade aos mais vulneráveis no contexto da COVID/19; é também o que ocorre com o texto de Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão, que analisaram a situação do acesso e implementação da Política de Assistência Social de algumas comunidades Quilombolas certificadas pela Fundação Cultural Palmares, no território do Vale do Mucuri, em Minas Gerais, verificando suas identidades, culturas e condições econômicas e sociais e demonstrando uma falta de percepção da dimensão dos territórios quilombolas.

Comprovando a centralidade histórica e cultural da religião com o debate sobre raça, Rubens Alves da Silva estabeleceu conexões a partir das dimensões efetuadas por intelectuais brasileiros e estrangeiros que, desde o século XIX, se debruçaram sobre a temática das religiões Africanas no Brasil, revelando os enfrentamentos cotidianos dos seus adeptos para romper com a intolerância, a discriminação étnico-racial e o “racismo estrutural”.

Em artigo sobre a violência e o racismo, Emerson do Nascimento e Luciana Santana desenvolveram uma análise sobre a violência letal contra a população negra em Alagoas, destacando as desigualdades raciais no tocante às taxas de homicídio e às políticas públicas promovidas pelo Estado para reduzir este tipo de violência, quando argumentaram que esta prática vem garantindo maior segurança apenas à população não negra.

Apontando para as ações afirmativas na pós-graduação, Luiz Mello nos brindou com um debate sobre o tema considerando a atuação do Executivo e do Legislativo, destacando o perfil racial dos estudantes de pós-graduação stricto sensu e apresentando uma análise comparativa de iniciativas de cotas adotadas para estudantes negras e negros na pós-graduação em três universidades públicas brasileiras.

Por fim, destacamos duas contribuições que também ajudaram na composição do Dossiê das Desigualdades e Discriminações Étnico-raciais. A primeira delas, a entrevista realizada pelos pesquisadores Antônio Dimas Cardoso, Doriam Borges e Maria Railma Alves com o professor Joaze Bernardino Costa, quando foram discutidos os principais elementos relacionados aos aspectos das desigualdades sociais e as discriminações étnico-raciais que permeiam a nossa sociedade. A segunda contribuição é a participação do artista plástico Sérgio Fabiano Ferreira (Gu Ferreira), que dedicou a produção “MALUNGOS” para ilustrar a capa deste dossiê - captando toda a essência do debate desenvolvido pelas autoras e autores.

Referências

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

DUBET, François. As desigualdades multiplicadas. Revista Brasileira de Educação, n. 17, 2001, p. 5-18.

_______. Desigualdades Multiplicadas. Tradução: Sérgio Miola. Rio Grande do Sul: Ijuí, 2003.

________. Entrevista com François Dubet Estigmas e discriminações – a experiência individual como objeto. in: Educação (Porto Alegre, impresso), v. 38, n. 1, p. 157-161, jan.-abr. 2015.

HALL, Stuart. A Questão Multicultural. In: Da Diáspora – Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG/Humanas, 2011.

KILOMBA, Grada. Quem pode falar. Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. (trad. Anne Caroline Quiangala) Munster: Unrast Verlag, 2010.

POTTER, Jonathan; WETHERELL, Margaret. Social representations, discourse analysis, and racism. The psychology of the social, v. 138, 1998. p. 155.

ROMERO, Mary; MORGOLIS Eric. The Blackwell Companion to Social Inequalities. Blackwell Publishing, 2005.

THERBORN, G. Os campos do extermínio da desigualdade. Novos Estudos - CEBRAP, n. 87, 2010, pp. 145-156.

TILLY, Charles. Historical perspectives on inequality. The Blackwell Companion to Social Inequalities, Malden, Blackwell. 2005. p. 15-30.

WERNECK, Jurema. Racismo institucional: uma abordagem conceitual. Brasília: ONU Mulheres, 2013. p. 1-55.

Notas

[1] Doutor em Sociologia pelo IUPERJ, professor adjunto do Instituto de Ciências Sociais e professor associado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) da UERJ, Brasil. Também é coordenador do Laboratório de Análise da Violência (LAV-UERJ) e pesquisador do QUANTIDADOS: Pesquisa e Análise de Dados e do Núcleo de Estudos de Desigualdade de Gênero (NUDERG-UERJ). E-mail: doriamb@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2109-6534.
[2] Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), professora da Universidade Aberta do Brasil e Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), Brasil, e, também, coordenadora do Observatório das Desigualdades e Discriminações Étnico-raciais, da Unimontes. E-mail: railmalves@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3604-8167.
[3] Em uma busca no SciELO (Scientific Electronic Library Online) pelas palavras “raça” e “racismo” é possível verificar que nos últimos 30 anos houve um aumento exponencial das publicações acadêmicas sobre esses temas no Brasil.
[4] Dentre as desigualdades destacamos gênero, habilidades, orientação sexual e raça.


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