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Discriminação e desigualdade na invenção do Brasil
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 14, núm. 1, 2017
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 14, núm. 1, 2017

Esta obra está licenciada com Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: O objetivo do artigo é investigar alguns aspectos envolvidos na invenção da cultura nacional e do território brasileiro a fim de compreender melhor dois fenômenos característicos nessa história: a discriminação e a desigualdade social. Nessa tarefa procura-se combinar aspectos sincrônicos (crítica de teorias e pensamentos) e diacrônicos (contextualização histórica). O tema da mestiçagem foi escolhido como eixo articulador da discussão, pois sua elaboração ocupa um importante espaço no debate conhecido como ?interpretações do Brasil?. Ao final, constata-se que os grupos historicamente discriminados foram também relegados às posições economicamente mais fragilizadas e se hoje as leis e os discursos punem essas práticas, esses grupos ainda precisam se mobilizar para conseguirem sobreviver com dignidade e preservar suas culturas. A discriminação e a desiguldade social, apesar de não se confundirem, andam de braços dados na estrutura social brasileira ? uma reforçando a outra.

Palavras-chave: Racismo, Mestiçagem, Desigualdade Social, Discriminação, Cultura.

Abstract: The objective of this paper is to investigate some aspects involved in the invention of national culture and Brazilian territory in order to better understand two phenomena characteristic in this history: discrimination and social inequality. In this task we try to combine synchronic aspects (criticism of theories and thoughts) and diachronic (historical contextualization). The theme of miscegenation was chosen as the articulating axis of the discussion, since its elaboration occupies an important space in the debate known as "interpretations of Brazil?. In the end, it is observed that historically discriminated groups have also been relegated to the most economically fragile positions and, if laws and discourses punish these practices today, these groups still need to mobilize to survive with dignity and preserve their cultures. Discrimination and social inequality, although not confused, go hand in hand in the Brazilian social structure - one reinforcing the other.

Keywords: Racism, Miscegenation, Social inequality, Discrimination, Culture.

Resumen: El objetivo del artigo es investigar algunos aspectos acerca de la invención de la cultura nacional y del território brasileño para entender mejor dos fenómenos característicos de esa historia: la discriminación y la brecha social. En esa tarea se busca combinar los aspectos sincrónicos (crítica de las teorías y los pensamientos) y diacrónicos (contextualización histórica). Para este estudio, el tema del mestizaje fue elegido como el eje articulador de la discusión, ya que su elaboración ocupa un espacio importante en el debate acerca del tema conocido como ?interpretaciones sobre Brasil?. Al final, se constata que los grupos históricamente discriminados fueron también relegados a las posiciones económicamente más fragilizadas. Por otro lado, si hoy, las leyes y los discursos punen esas prácticas, esos grupos aún necesitan movilizarse para lograren sobrevivir con dignidad y preservar sus culturas. Por tanto, la discriminación y la brecha social, a pesar de no se confundiren, van de la mano en la estructura social brasileña ? pues una refuerza a la otra.

Palabras clave: Racismo, Mestizaje, Brecha Social, Discriminación, Cultura.

Introdução

Uma característica importante na formação dos países subdesenvolvidos é que seu espaço é organizado para atender a interesses distantes. O planejamento é uma ferramenta presente em toda história do capitalismo, o que acontece é que algumas regiões possuem maior força para impor suas agendas e interesses sobre as demais. As peripécias envolvidas na organização do espaço brasileiro não foram poucas e os já conhecidos trabalhos de Francisco Iglesias (1993) e Caio Prado Júnior (2012) mostram os diversos Tratados e interesses externos aos quais as organizações e reorganizações territoriais brasileiras atenderam no longo de sua história.

Juntamente com os territórios, as diversas populações são submetidas a esse planejamento (que atende a interesses distantes) e forçadas a se deslocarem ou a reorganizarem seus modos de vida em função das diretivas da vez. A pobreza, um problema qualitativo, passa a ser tratada como um problema quantitativo e os líderes (religiosos, políticos, cientistas, empresários etc.) passam a produzir justificativas para a nova situação (SANTOS, 2011).

Nesse contexto, a formação dos Estados-nação modernos no decorrer do século XVIII é uma chave de leitura importante para o entendimento do mundo contemporâneo, mais precisamente, ?[...] os últimos dois séculos da história humana do planeta Terra são incompreensíveis sem o entendimento do termo ?nação? e do vocabulário que dele deriva? (HOBSBAWM, 2011, p. 11).

A(s) cultura(s) do Brasil e sua respectiva nacionalidade formam objeto de inúmeros estudos e abordagens. Dentre esses trabalhos, interessam aqui as contribuições de alguns autores que ajudam a problematizar o discurso da mestiçagem como elemento constituinte da brasilidade, já que esse tema (mestiçagem) é fundamental para se compreender alguns dos elementos reconhecidos e outros ocultados no processo de invenção da cultura nacional.

Nas seções seguintes serão tratadas, sobretudo, de questões que relacionam a invenção da cultura nacional brasileira à discriminação racial e à desigualdade social. Na discussão parte-se dos grupos que são apontados como formadores dessa cultura (negros, indígenas e brancos) para problematizar esse ?fenômeno?.

Uma única cultura em um único espaço: a invenção da nacionalidade brasileira

A obra de Gilberto Freyre marca um momento importante na história do pensamento brasileiro por conseguir formular o mito fundador da identidade nacional. Baseando-se na ideia de mestiçagem e trabalhando-a como uma realidade virtuosa que caracterizaria o Brasil, sua obra Casa-grande e senzala se coloca como um clássico nos estudos sobre o país. Naquela época (primeira metade do século XX), a língua e a etnia eram dois elementos importantes para as nacionalidades, e Freyre consegue dar os dois ao país: a língua portuguesa e a etnia ?mestiça? (apesar das dezenas de línguas e etnias indígenas existentes).

No ambiente teórico anterior à obra freyreana, final do século XIX e início do século XX, os intelectuais brasileiros buscavam identificar as raízes e as características definidoras de seu país, um momento povoado de ideias e abordagens nos estudos das sociedades. Os esforços de autores ligados ao romantismo no Brasil estavam sendo deixados de lado e alguns novos nomes se destacavam no debate brasileiro, entre eles, Oliveira Vianna e Silvio Romero (representantes do racismo científico) e também, apesar de não obterem a mesma projeção, foram importantes os trabalhos de Manoel Bomfim e Alberto Torres, representantes do historicismo. O primeiro grupo entendia que o desafio principal para que o país se tornasse ?grande? era a questão genética (poucos brancos, mestiçagem etc.); o segundo grupo entendia que eram questões sociais (educação, erradicação da miséria etc.).

Posteriormente, as interpretações sobre o Brasil se multiplicaram e avançaram nas mais diferentes linhas de pesquisa. Um tópico desse desenvolvimento que interessa aqui ressaltar diz respeito à carga depreciativa que se disseminou entre a intelectualidade brasileira, tratando sempre de comparar a ?realidade? (ruim) tupiniquim à ?realidade? (boa) de alguns países selecionados (SOUZA, 2015). Houve entre a intelectualidade uma espécie de ressaca: os discursos edênicos, que durante os primeiros séculos caracterizam nossa região, são agora utilizados para caracterizar outros países (os desenvolvidos, os ricos, os bonitos, os países de ponta!).

Não obstante essa mudança de sinal, ainda hoje o discurso dominante sobre a identidade nacional brasileira tem na ideia de mestiçagem a sua pedra angular. Apesar de, sob o ponto de vista biológico, saber-se que não há pessoa que não seja mestiça e que, do ponto de vista histórico, as culturas são sempre uma invenção social (HOBSBAWM; RANGER, 2012), ainda assim, a mestiçagem (na forma da democracia racial) continua sendo defendida pelo senso comum nacional como uma característica apenas dos brasileiros ? aquilo que os distingue dos demais.

Além disso, pode-se falar em mistura e mestiçagem apenas quando há algumas ?raças? ou diferenças definidas a priori; caso contrário, misturar o quê? De qualquer maneira, venceu a ideia de que o característico do brasileiro é sua mistura e, por isso, a afirmação de diferenças, que alguns grupos reivindicam, será sempre vista como uma espécie de pecado ou negação do ser brasileiro. Toda invenção na cultura segue também convenções e é nesse par dialético que o evolver histórico acontece: ?Inventamos para sustentar e restaurar nossa orientação convencional; aderimos a essa orientação para efetivar o poder e os ganhos que a invenção nos traz? (WAGNER, 2012, p. 141).

No processo de invenção da cultura brasileira contemporânea, a figura de Gilberto Freyre foi importante e seu trabalho recebeu bastante notoriedade (2003; 2012). Não obstante a influência do pensamento de Franz Boas em seus escritos e a crítica ao racismo científico, ele conserva em sua obra diversas passagens em que utiliza conceitos valorativos para comparar os grupos (adiantados, atrasados, superiores), além de dar margem para que se verifique em sua obra Casa-grande e senzala, traços do racismo cultural (com marcas evidentes de antissemitismo). Referindo-se a alguns padres do período colonial, ele escreve: ?Não fossem eles bons portugueses e talvez até bons semitas, cuja tradicional tendência para a mercancia não se modificara sob a roupeta de jesuíta nem com os votos de pobreza seráfica (FREIRE, 2003, p. 225)?. Ou ainda, sua referência aos semitas em Portugal: ?Técnicos da usura, tais se tornaram os judeus em quase toda parte por um processo de especialização quase biológica que lhes parece ter aguçado o perfil no de ave de rapina [...] Capazes só de amealhar? (FREIRE, 2003, p. 305).

Em Freyre, o conceito de raça foi substituído pelo conceito de cultura e a miscigenação é a síntese caracterizadora da civilização brasileira. Para poderem progredir, os povos indígenas e negros deveriam abandonar suas tradições e resistências, dobrando-se a essa nova realidade: deveriam desenvolver a mesma plasticidade que os portugueses desenvolveram.

É notório que o mestiço é filho do estupro, mas isso deve ser esquecido, em benefício do novo que está sendo construído. Também que negros e indígenas foram privados das condições para afirmarem sua cultura e aquilo que conseguiram conservar se deve a uma resistência árdua e perseverante; contudo, isso deve ser apagado na memória afetiva ?característica da brasilidade. A miscigenação foi uma imposição dos donos do poder aos negros e indígenas, sem consulta e sem reciprocidade. É por isso que o trabalho de Kabengele Munanga (2008), discordando da visão freyreana, utiliza o conceito de assimilacionismo para caracterizar essa identidade mestiça: uma identidade construída por uma elite de perspectiva eurocêntrica que sempre se esforçou por inibir as autoafirmações de indígenas e negros.

Como contraponto a essa repressão identitária, os indivíduos desses grupos discriminados aprenderam o ?jogo? brasileiro: a ideologia da mistura. O negro é aceito no Brasil porque se espera que no longo prazo ele clareie e não porque se considere a possibilidade de que ele se afirme enquanto negro. Os grupos indígenas precisam abandonar seu Modo de Produção Doméstico que lhes permite viver sem produzir excedente ? necessitando de uma jornada diária de quatro a seis horas ?, e se modernizar. Como Florestan Fernandes bem formulou, as vítimas são transformadas em algozes a partir do momento em que procuram preservar sua memória ou assegurar os meios para uma vida decente no interior da sociedade: ?Mas, quando ele estava tentando impor a si mesmo e aos brancos indiferentes a ?Segunda Abolição?, a tentativa foi recusada e condenada, como manifestação de ?racismo?? (FERNANDES, 2007, p. 88).

Isso gerou neste segmento de tez escura (negros e pardos) a falta de coesão e solidariedade necessárias para uma consciência coletiva, capaz de organizar-se politicamente para lutar por uma maior participação na distribuição da riqueza social. Por esse motivo, o esforço atual de luta pelo direito de existir desses grupos passa pelo resgate de sua cultura suprimida: história, religião, cor da pele, saberes etc. E essa iniciativa encontra muitas resistências, pois contradiz o ?dado? fundamental desse grande mosaico chamado Brasil: a mistura, que se tornou um consenso e que gera alguns argumentos curiosos, do tipo: nosso racismo [o brasileiro] é melhor, porque se baseia na aparência, ou ainda, na escravidão que aqui tivemos os negros e indígenas não sofreram tanto.

Fica difícil aceitar a celebração dessa síntese ou miscigenação quando se olha para o comportamento da distribuição da riqueza sob a perspectiva da raça e a posição de pretos e pardos nela, ou quando se sabe que há povos indígenas em situação de miséria e fome ou que cometem suicídio devido às condições a que são submetidos. A sugestão de Munanga (2008), de falar em ?colcha de retalhos?, parece mais próxima da realidade observada, já que, para escaparem do ostracismo e invisibilidade, os grupos discriminados precisam lutar para não terem de assumir o ideal do branqueamento (melhores salários, poder e prestígio) que vem encoberto no véu da mestiçagem.

Além disso, apesar de a intelectualidade brasileira ter idealizado a ?pureza racial? e a coesão social de alguns países e regiões, a permanência de conflitos e reivindicações identitárias em todos os cantos do planeta desmentem essa argumentação. As lições ensinadas por Benedict Anderson (2006) e Eric Hobsbawm (2011) ainda têm validade: os grupos inventam suas tradições e imaginam pretextos para sua coesão.

Daí a relevância dos conceitos utilizados por Pierre Clastres para falar sobre dois elementos sempre presentes na formação e expansão dos Estados: genocídio e etnocídio. O genocídio é a eliminação física de um grupo, já o etnocídio é a eliminação de sua alma: ?[...] é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição... Ele tem em comum com o genocídio uma visão idêntica do Outro: o Outro é a diferença, certamente, mas é sobretudo a má diferença? (CLASTRES, 2011, p. 79). Essa é a herança não nomeada em Casa-grande e Senzala, e nas obras que celebram a mestiçagem, há diversas descrições, pormenores e detalhes que nos permitem compreender o que estava acontecendo, mas faltava um conceito que abarcasse esse conjunto: etnocídio.

Novamente: isso não é uma singularidade da história brasileira, isso é recorrente nas histórias dos Estados nacionais. Um elemento importante do etnocídio é que ele geralmente vem acompanhado de boas e puras intenções: historicamente seus praticantes são pessoas preocupadas em melhorar a raça, em fazer a nação avançar, são os missionários ?salvando almas? e os cientistas e governantes comprometidos com o PIB e com sacralidade da propriedade privada.

A discriminação é, portanto, um mecanismo social para a justificação da exclusão social imposta a certos grupos ou indivíduos e se manifesta de várias formas, como: segregação, aprisionamento, extermínio e, como é característico no Brasil, o silenciamento. Por essa razão, torna-se frívola a proposta de suprimir a palavra raça das análises sociológicas, por ser ela uma categoria biológica. Apesar de raças biológicas não existirem, as raças sociais existem e são bem operantes no Brasil; a negação da existência do racismo apenas beneficia quem tira vantagem da suposta democracia racial brasileira (BARROS, 2009). O racismo como categoria das ciências biológicas teve nascimento, desenvolvimento e morte. Todavia, isso não ocorreu com o racismo social, pois a classificação dos humanos esteve sempre a serviço da justificação da dominação de alguns grupos sobre outros.

Além disso, o racismo como categoria social utilizada para hierarquizar as pessoas e justificar os privilégios no interior da sociedade ainda está vivo. O racismo é a atitude de quem discrimina o diferente sob o pretexto da raça, daí a dificuldade das políticas públicas, as quais devem permitir que as diferenças possam existir com condições dignas e, ao mesmo tempo, coagir as discriminações.

As necessidades de políticas públicas emergem, então, como coordenação das diferenças que existem na sociedade. Os governantes são representantes das populações e têm suas origens, normalmente, nelas mesmas. Eles são, portanto, representantes das classes e grupos que já interagem naquele espaço, além de (virtualmente pelo menos) buscarem a implementação das regras e normas que possibilitem um melhor aproveitamento do território nacional.

Um único país e um único território: espaços e territórios regionais

As nações, de modo geral, se vinculam a territórios bem localizados geograficamente, por esse motivo a discussão sobre a nacionalidade sempre acaba tocando no tema da territorialidade; esse é um assunto de caráter eminentemente interdisciplinar e por isso os estudos podem receber contribuições das mais diversas áreas. Destacam-se a Geografia, a História e a Sociologia que, juntamente com a Economia, procuram verificar quais fatores contribuem para a melhor escolha locacional dos agrupamentos humanos em busca de subsistência e as relações de poder que se estabelecem nesse processo.

Na história brasileira a integração do território ocorreu no decorrer de vários séculos, mas apenas consolidou-se com o desenvolvimento dos transportes e vias de acesso a locais ?distantes?. Cada um desses locais ?distantes? possui sua própria história de contato e transações habituais com outros países e continentes, algumas vezes intensas, como é o caso da região amazônica (SOUZA, 2001; ARRAIS, 2007; IGLESIAS, 1993).

Se no período colonial algumas regiões foram integradas à economia nacional pela mineração, deslocamento devido às secas e ciclos produtivos e extrativistas, o século XX viu a ascensão do sudeste e do sul do país como dinamizadores das atividades econômicas. Tanto em um período, quanto em outro, a lógica da concentração e a carência de planejamento integrador estão presentes: a região dinamizadora do momento se desenvolve mais rapidamente e a região dinamizada tenta se associar à primeira ou ligar-se ao estrangeiro. Temos, assim, a persistência, em um mesmo país, de regiões com altos índices de desenvolvimento e regiões com altos índices de carência.

Nas primeiras décadas dos anos 1900 já se delineia o debate entre regionalistas e nacionalistas. Os primeiros buscavam nas especificidades regionais aquilo que era o mais genuinamente nacional, essa foi a estratégia de afirmação da nacionalidade seguida por Gilberto Freyre, como destaca o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2009). Os segundos, a exemplo de Mário de Andrade, procuraram nas regiões os elementos comuns do todo maior que é o país e, dessa forma, pretendiam afirmar um ideal, a orientação brasileira: uma contribuição genuína à universalidade das civilizações.

Concomitante à ascensão do sudeste como centro econômico e modernizante do país, ocorre a invenção do nordeste, como região geográfica do atraso, da seca. Esta se tornou mais tarde também a região do barroco, do candomblé e das praias, local da mistura entre a fome e a fartura: ?A identidade regional permite costurar uma memória, inventar tradições, encontrar uma origem que religa os homens do presente a um passado, que atribuem um sentido a existências cada vez mais sem significado? (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009).

Quando a questão é estudar as regiões, o problema inicial passa pelo que se entende pelo conceito ?região?. Não há uma definição consensual, unânime entre os estudiosos do assunto. Normalmente adota-se a classificação que melhor se adeque ao objeto de pesquisa. Por isso há a região da bacia hidrográfica, a região do semiárido, a região metropolitana, a região sul, a região agrícola, região industrial etc.

A distinção fundamental e tradicional entre espaço e região é a noção de contiguidade. As regiões são contínuas, enquanto os espaços podem apresentar descontinuidades. Os espaços são mais amplos que as regiões, podendo englobá-las. É possível pensar em temporalidade e interdependência nos espaços. Nas regiões, entretanto, o conceito de contiguidade precisa estar presente.

Por isso David Harvey (2005) fala em integração espacial e anulação do espaço pelo tempo. Na modernidade, o passado é visto como depositário de arcaísmos a serem superados, o domínio da natureza, e o futuro é visto como uma tarefa, a fonte de promessas a serem construídas através das técnicas e das ciências. A aceleração do tempo anula o espaço, tudo acontece cada vez com maior rapidez, pois a questão passa a ser o desenvolvimento de mecanismos que poupem tempo e possibilitem a circulação mais veloz de capitais.

Nessa leitura, criticada por Harvey, o planejamento econômico/social é baseado na mecânica: previsível, reversível e neutro para o meio ambiente. Exatamente o contrário da realidade observável: imprevisível, irreversível e que gera impactos sobre o meio ambiente e as populações existentes. Daí que as preocupações com o ecossistema e com a manutenção da diversidade das diferentes culturas e formas de vida não possam se furtar a essas questões.

A noção de espaço serve bem para explicar as transformações que o evolver capitalista gerou nas diferentes paisagens. Apesar disso, as noções de região, paisagem e território são importantes para a percepção dos efeitos desse processo e, inclusive, das resistências e alternativas para sobreviver a esse fenômeno, os quais são originados em contextos específicos e, normalmente, possuem caráter transregional.

Associado a isso, as transformações espaciais também mostram a importância da discriminação e do silêncio como estratégias para a manutenção de privilégios. No trabalho de Roberto Pompeu de Toledo (2003), podemos acompanhar a metamorfose de São Paulo: uma região distante de tudo no período colonial, local de gente bárbara e sem refinamento, a qual ascende no século XX à condição de centro gerador das novas riquezas e preconceitos que abastecem o país. Toledo também mostra algumas dinâmicas sociais da época em que já aparecem algumas discriminações e desigualdades: tanto as que serão superadas (contra italianos e estudantes universitários), quanto as que serão perpetuadas (contra negros e indígenas).

Se avançamos um pouco mais na análise do caso brasileiro, vemos que no interior das regiões há essa relação entre opulência versus miséria e entre aqueles que possuem mecanismos para escapar versus aqueles aos quais esses mecanismos são obstados. Os ritos cotidianos desenvolvidos no processo de criação do espaço nacional são responsáveis por aquilo que os grupos e classes enxergam e aquilo que não está em seu campo visual, não faz parte de sua realidade (DAL LAGO, 1995). É oportuno destacar aqui o relato do antropólogo Claude Lévi-Strauss sobre seu contato com diplomatas brasileiros na década de 1930 (durante seus preparativos para a viagem ao Brasil). O embaixador brasileiro em Paris advertiu: ?Índios? Ai! Meu caro senhor, já desapareceram há muitos lustros! Oh! É uma página bem triste, bem vergonhosa da história do meu país [...], mas deixe de pensar em índios, pois não mais encontrará nenhum...? (LÉVI-STRAUSS, 1957, p. 44).

Esse tipo de leitura decorre do afã em modernizar-se e mostrar um país descolado de seu passado ?primitivo? (atrasado), um confronto entre diferentes cosmologias (paradigmas), que também ocorreu em outros lugares. Diferentes noções de tempo e modos de relacionamento com o meio ambiente que foram transplantadas por formas mais produtivas e geradoras de excedente, de tal modo que hoje é possível estar em São Paulo ou no Oiapoque e perceber continuidades. No entanto, para distanciar esse argumento de uma leitura homogeneizadora, é bom lembrar que a história e os hábitos em um e outro lugar sempre aparecem através das instituições, formais e informais, de cada nível espacial (MCDOWELL, 1994; BENKO, 2001).

A ideia de nível espacial foi utilizada porque é uma conceituação capaz de abranger melhor as dinâmicas que precisam ser observadas nos estudos regionais atuais, quais sejam as dinâmicas mundiais, supranacionais (blocos de países), nacionais e regionais. Dessa forma, os territórios passam a ser encarados de forma complexa na rede de relações que caracteriza as últimas décadas: fruto das várias convenções que foram estabelecidas e das novas estratégias de poder que foram criadas. As tecnologias da informação são capazes de superar distâncias físicas e aproximar os extremos geográficos, tornando possível que pessoas que moram num mesmo edifício não se conheçam e, no entanto, tenham relações muito próximas com pessoas de outros continentes.

A compreensão das regiões virtuais segue essa lógica. As cadeias produtivas possibilitam que a interação entre localidades não contíguas seja mais forte que localidades vizinhas. A contiguidade física parece perder importância frente à conectividade. Algumas empresas situadas em São Paulo, por exemplo, têm pouca interação com outras empresas localizadas no Brasil, prestando serviços diretamente a seus clientes no exterior. Ou os call centers localizados em Nova Delhi que atendem clientes da Europa e dos Estados Unidos: sua interação e desenvolvimento dependem da situação de outro continente.

Como já mencionado acima, o espaço nacional brasileiro nasce em um contexto de disputa entre interesses divergentes que se chocavam e aconteciam em local muito distante (era o século XVI). Os navegadores que primeiro chegaram ao continente pensaram que chegavam às Índias, por isso a forma como até hoje nos referimos aos diferentes povos que aqui estavam é um atestado de sua (im)perícia. Os discursos edênicos sobre o território que encontraram perdurou séculos e um de seus sucedâneos é a ideia de mestiçagem.

Diversos brasileiros interessados em entender seu país incorporaram elementos do discurso edênico, apesar de também haver formulações contrárias e discordantes, ou dele sofreram influência. Rosana Bignami (2002) relata a significativa associação entre esses elementos edênicos com o corpo da mulher brasileira (no singular mesmo) que é feita para atrair turistas ao país. Esse corpo (o da mulata) foi ?vendido? no exterior como imagem do Brasil para atrair visitantes e até hoje muita gente enxerga isso quando as vê (BALLERINI, 2011). Podemos ver aí alguns dos reflexos da abordagem monoculturalista e monoterritorial no estudo do país.

Um único povo e uma única raça: mestiçagem e multiculturalismo

Diferentemente do monoculturalismo, a abordagem multiculturalista entende que nenhuma cultura tem ou adquire o direito de impor-se sobre as demais. É um tratamento político, institucional, das diferenças que existem na sociedade, uma forma de tratamento que possui uma trajetória própria no interior da história das ideias (WIEVIORKA, 1996). É uma postura que se empenha na preservação da diversidade cultural, o que acaba por dificultar os esforços feitos no sentido de moldar as relações sociais para torná-las flexíveis e produtivas. Igualmente, o multiculturalismo está associado a sociedades democráticas que procuram ver a diversidade como algo positivo e procuram conciliar as diferenças individuais com valores universais.

Essa busca procura articular, ao invés de opor, os valores universais à preservação do pluralismo. Por esse motivo, procura-se evitar tanto o comunitarismo, como o universalismo abstrato. O primeiro gera a impossibilidade de indivíduos se afirmarem no interior de seu grupo, já que a diferença é um atributo daquele grupo ao qual pertence; e o segundo, o universalismo abstrato, permanece em prescrições formais, sendo estéril em gerar mudanças reais na vida social concreta. A articulação de valores universais com as diferenças não possui modelos prontos, devendo ser realizada dentro de cada espaço e como resposta às demandas que ali apareçam.

Entendemos que o direito à diferença decorre sempre da resistência e das lutas concretas daqueles que não têm poder, ele não resulta de uma suposta evolução do Espírito humano abstrato. Como as lutas dos indígenas brasileiros demonstram, sua cultura e seus saberes são desqualificados como mentiras, apesar de isso não ocorrer tão explicitamente e sim eufemisticamente, através dos conceitos de ?lenda?, ?mito? e ?folclore? que se lhes atribui.

Da história também aprendemos que sempre há desequilíbrios nos espaços onde um grupo ou uma cultura possui capacidade de projeção de força. Essa projeção é feita através de armas, bases militares e mecanismos de controle econômico (KENNEDY, 1989). Esses grupos, essas culturas, historicamente, afetam os demais e nesse processo geram adesões, confrontos e resistências. Sempre surgiriam teóricos e cientistas que buscam justificar, consciente ou inconscientemente, a dominância, justificar etnocídios e genocídios de determinados grupos e culturas sobre as demais (BARBOSA, 2002; SANTOS, 2011). No passado isso foi feito através de conceitos como raça, cultura superior, povos evoluídos, avançados e outros, hoje essa postura ganha novos conceitos, como países avançados, ocidente, economias de ponta, valores liberais etc.

Além disso, pode-se observar que a formalização de direitos foi apontada como solução para essa desigualdade entre grupos e regiões. No caso brasileiro, os estados da federação entre si e as pessoas são iguais perante o ordenamento jurídico correspondente. Isso, no entanto, não resolve as reais assimetrias que são observadas, é apenas um bom negócio para aqueles que usufruem dessa situação. Algumas dessas assimetrias são citadas para ilustração: algumas regiões concentram a maior parcela da riqueza material e simbólica, enquanto outras carecem da infraestrutura elementar para a subsistência e manutenção da população; o código penal é aplicado a pessoas representadas por equipes de advogados e pessoas que não possuem advogado algum.

Nesse sentido, o próprio multiculturalismo pode ser utilizado para eludir os problemas concretos que impedem ou dificultam a existência de grupos e regiões diferentes: acesso à propriedade (violência econômica) e a uma inserção decente e digna na vida social (violência simbólica). A padronização formal de leis e regras de tratamento como escopo é apenas uma aparência que esconde as dificuldades concretas que existem nas sociedades: a sobrevivência da desigualdade e do preconceito através de novas roupagens.

Vejamos alguns dados sobre as diferentes condições entre negros e brancos:




As informações ajudam a perceber o quão eficiente foi o discurso da mestiçagem como ideologia nos diversos momentos históricos para não mexer na situação real da desigualdade brasileira. As tecnologias, culturas (no plural), conhecimentos, valores e as próprias vidas dos africanos e indígenas foram e ainda são submetidas à política do deixar morrer ? através do silenciamento, extermínio e assimilacionismo das diferenças.

De acordo ainda com uma pesquisa do IPEA (2011), temos o seguinte quadro:




Dessa forma, retomando a crítica formulada no contexto dos estudos feministas: ainda hoje os homens brancos adultos são os herdeiros de privilégios seculares e, é importante destacar, isso ocorre não apenas no Brasil. Colocar no ordenamento jurídico formulações que afirmem a igualdade e a tolerância como princípios e criar formas de tratamento politicamente corretas não mudam o fato de terem os negros e os indígenas obstaculizado o seu acesso à propriedade e riquezas na vida social; seguindo a formulação lampedusiana, mudam-se as formas para que tudo continue igual.

O cultivo da elegância e refinamento nas relações pode coexistir com a dominação e privação de condições mínimas à existência de grupos inteiros. Esses grupos, às vezes, até podem aparecer como folclore ou atrativo cultural em festas, já que, como nos lembra Alfredo Bosi, ?o consumidor culto é um voyeur enfastiado, um perverso [...] A cultura erudita quer sentir um arrepio diante do selvagem? (BOSI, 1992, p.330). Em sociedades fundadas sobre o racismo, sobre a desigualdade no acesso à riqueza e sobre o sexismo, não é preciso que todos os indivíduos tenham sentimentos ou pensamentos racistas, conservadores ou sexistas; numa sociedade racista, conservadora e sexista, basta que as pessoas não façam coisa alguma e essa estrutura será reproduzida e perpetuada.

Os estudos das professoras Dal Moro, Longhi e Santos (2006) sobre a educação nas colônias de italianos no Rio Grande do Sul dão um exemplo histórico que ilustra bem esse mecanismo de reprodução. Nessas colônias, as escolas foram construídas com o apoio de religiosos e funcionavam como locais de alfabetização e preservação da cultura dos imigrantes (quer dizer, manutenção de sua religiosidade). Os nacionais (negros e indígenas) somente poderiam frequentar esses espaços se abrissem mão de sua religião e conseguissem romper as barreiras simbólicas da época (eugenismo). Referindo-se ao analfabetismo no Rio Grande do Sul, observam que este é ?sobretudo, o legado daqueles que, não sendo descendentes de europeus, historicamente, foram ignorados como sujeitos de direitos e sua cultura étnica, tratada como ?não-cultura?? (DAL MORO; LONGHI; SANTOS, 2006, p. 331).

As mesmas autoras, baseadas em investigações feitas sobre escolas localizadas nos ambientes de imigração italiana, asseveram: ?havia, ao lado da inclusão étnica, uma condescendência religiosa que possibilitaria a inclusão: para serem incluídos, os que não pertenciam ao grupo tinham de se submeter à condição inapelável de converter-se?. (DAL MORO; LONGHI; SANTOS, 2006, p. 332) A criação de um sistema social que buscava a afirmação identitária no isolacionismo cultural e na valorização do trabalho individual acabou por reforçar o habitus de discriminação naquela sociedade de origem italiana. Soma-se a isso outro elemento que destacamos como recorrente: o silêncio sobre os ?outros?.

A obra de Freyre e de alguns intérpretes reconhecem os traços da influência indígena e negra na música, dança e culinária, mas nem todos avançam para compreender também sua influência na tecnologia, técnicas de trabalho, pensamento e visões de mundo. Na arte, por exemplo, o teatro possui uma longa história na luta contra a escravidão: desde Luis Gama até as obras de Lima Barreto e Abdias do Nascimento. Também aqui as possibilidades eram restritas, já que apenas o corpo do homem branco saudável era aceito, era ?o corpo universal?, que poderia encarnar qualquer personagem; os corpos de negros e negras serviam apenas para papel de negros (leia-se, papeis subalternos). No teatro tradicional, o negro era o outro, daí não ser surpresa que no aparecimento do Teatro Experimental do Negro, o branco interpretar o papel desse outro. O mesmo processo ocorre nos demais campos da vida social, onde os desafios dos brasileiros indiferenciados são uns e os desafios dos brasileiros negros e indígenas são outros (o primeiro deles é não ser morto ou encarcerado pelo Estado). Depois de quinhentos anos de extermínio, sobrevivem hoje no Brasil trezentos e cinco etnias e duzentos e setenta e cinco línguas indígenas, como destaca Spensey Pimentel (2012).

Com o desenvolvimento das pesquisas históricas sobre o Brasil, sabemos hoje um pouco mais sobre o processo de integração das pessoas que conseguiram sair da condição de escravidão no final do século XIX (FERNANDES, 2008). No entanto, ainda persiste uma tendência em tratar todos os não proprietários dos meios de produção através do mesmo denominador comum de trabalhadores, como se os desafios que homens, mulheres, transexuais, brancos, negros e indígenas enfrentassem fossem os mesmos: ?a tez da pele, os sobrenomes, os cabelos encaracolados, ou como diz a canção, ?longos e negros como o luar?, dos que se apresentam para as entrevistas revelam que os analfabetos, em sua maioria, são negros, caboclos e índios? (DAL MORO; LONGHI; SANTOS, 2006, p. 330).

Converge para essa mesma percepção os resultados da pesquisa de Carlos Alberto Almeida (2007). Nela foram feitas diversas perguntas para verificar como os brasileiros se posicionam diante de vários assuntos; no que se refere ao racismo, foram apresentadas diversas fotos de pessoas com tons de pele diferentes (do mais claro ao mais escuro) e constatou-se que as imagens de pessoas com pele mais clara sempre foram associadas a maior prestígio, virtude, poder e riqueza, sendo as imagens de pessoas com pele mais escura associadas ao contrário disso. Não obstante a enorme capacidade de luta e sobrevivência revelada por pessoas negras e indígenas no Brasil, ninguém no país quer ser flagrado em indiadas [3] ou negragens 2.

Florestan Fernandes já havia destacado os mecanismos sociais que impedem aos brasileiros o reconhecimento de seu racismo. Um fator importante é o ethos resultante da tradição católica, o qual reputa atualmente como condenável as ações discriminatórias, não obstante sua conivência no passado com o escravismo e extermínio ostensivo. Mais evidente é a herança dos anos de escravização dos indígenas e negros, cuja abolição formal nunca foi acompanhada de medidas efetivas que realizassem uma abolição real.

Considerações Finais

A discriminação baseada na raça se expressa nas dimensões ética, econômica, política e subjetiva, constituindo um dos aspectos de nossa normalidade cotidiana. Daí o caráter estrutural do racismo e o porquê de se dizer que o Brasil é racista, assim como se sabe que ele é também machista. Sempre existiram diferenças entre as pessoas, mas a forma como essas diferenças são tratadas depende das escolhas que as sociedades fazem. No Brasil, foi feita uma escolha pelo silêncio ou, no máximo, pelo tratamento abstrato dessa questão. O discurso da monocultura mestiça serviu para esconder o ideal de branqueamento e a manutenção de negros e indígenas no extremo de maior precariedade social, obstando seu acesso à riqueza e aos bens sociais. É interessante observar que na própria historiografia, a abolição da escravatura e o reconhecimento dos povos indígenas foram contados como resultado do compadecimento de pessoas de pele branca e não como conquista da luta incessante desses grupos.

Entendemos que as análises e métodos que se propõem perscrutar as raízes das formas sociais para melhor compreendê-las, mas passam ao largo da questão da discriminação, padecem de uma fraqueza importante: não explicam um mecanismo fundamental da dinâmica das relações sociais no Brasil. Há manifestações individualizadas de racismo, como é recorrentemente observável, mas sua dimensão estrutural apenas é percebida após o esforço em compreender as dinâmicas da sociedade. ?O aspecto da situação racial no Brasil, que mais impressiona, aparece sob a negação incisiva de qualquer problema ?racial? ou ?de cor?? (FERNANDES, 2011, p. 81).

A diversidade cultural viva e atuante que pode ser observada no país é uma característica importante, apesar de sua desvalorização e dos esforços assimilacionistas. Falar que há diversidade, a Constituição já o faz, mas isso não ameniza as investidas contra as culturas e as pessoas que ousem afirmar suas diferenças e denunciar a discriminação a que são submetidas. Os estrangeiros (brancos) foram e são sempre bem vindos ao Brasil, pois o verdadeiro ?outro? desse Brasil embranquecido (que deprecia a si mesmo) são os índios e negros, são estes últimos os que representam a ameaça, são eles os selvagens, aquilo que não se quer ser (senzala, aldeia, maloca, macumbeiro, favela...).

Na busca por uma maior participação na distribuição da riqueza, material e simbólica, o primeiro passo que os grupos precisam dar está relacionado à sua própria consciência enquanto grupo e sobre sua posição na sociedade. Historicamente, no Brasil, o conceito de mestiçagem operou como um grande véu que permitiu escamotear o racismo contra negros e indígenas, além de servir como argumento para obstaculizar as iniciativas de construção de reivindicações desses grupos. Parafraseando o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, podemos dizer que ?no Brasil todo mundo é mestiço, exceto quem não é?.

Os direitos individuais são reconhecidos e resguardados ? são sagrados ? mas o reconhecimento das coletividades culturais gera medo, receio, ameaça à ?unidade?, ao nacional. É um limite que reside no bojo de um modo de pensar que não entende a diversidade como sendo a verdade do real e por isso a ignora, intelectual e afetivamente. Não há dificuldade alguma em se dizer que a diferença é aceita, já foi até consagrada constitucionalmente essa fórmula, não obstante o cotidiano e a estrutura das relações sociais permanecerem profundamente desiguais e discriminatórios.

Por isso, as chamadas ações afirmativas, as lutas pelo reconhecimento de terras indígenas e quilombolas possuem um impacto positivo sobre a sociedade e seus valores; sobre as raças socialmente constituídas e diferenciadas no Brasil. Essas ações colocam em evidencia a desigualdade e o racismo que se quer esconder. Elas procuram corrigir um pouco dos efeitos de uma longa história de discriminação e silenciamento a que parcela da população foi e é submetida, representam um esforço em tornar as igualdades de oportunidade (das formulações legais) em igualdades de fato (BARROS, 2009).

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