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Cria da favela x meia hora de morro: conceitos fundamentais para a análise da disputa territorial no Vidigal e o direito à memória local
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 14, núm. 1, 2017
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 14, núm. 1, 2017

Esta obra está licenciada com Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: O presente trabalho busca definir os conceitos ?cria de favela? e ?meia hora de morro?, adotados como categorias de análise da pesquisa de mestrado ?Vidigal: Narrativas de Memórias?. A narratologia privilegiada é a dos moradores originários do lugar, em detrimento aos recém-chegados. Trata-se de uma análise conceitual e teórica sobre as relações de convivência e disputa territorial, a partir de normas de socialização e relações de poder marcadas pelo pertencimento ao lugar. A fim de aproximar tais conceitos a abordagens já realizadas em ciências sociais, essas categorias de moradores serão, respectivamente, comparadas aos ?estabelecidos? e ?outsiders?, definidos por Norbert Elias ao discorrer acerca das normas de socialização e relações de poder estabelecidas numa pequena comunidade da Inglaterra.

Palavras-chave: Vidigal (RJ), Relações de poder, favela, gentrificação, narrativas e memória.

Abstract: The present work seeks to define the concepts "cria de favela" (born in favela) and "meia hora de morro" (half an hour at the favela), adopted by the masters research - Vidigal: narratives of memories - as categories of analysis. The privileged narratology focuses the native inhabitants of the place, not the the newcomers. The conceptual and theoretical analysis is based on the coexistence and territorial dispute, considering the norms of socialization and power relations marked by the belonging place. In order to approach such concepts to those already carried out in the social sciences, these categories of residents will be compared, respectively, to "established" and "outsiders" defined by Norbert Elias when he discusses the norms of socialization and the power relations established in a small community of England.

Keywords: Vidigal (RJ), Power relations, favela, gentrification, narratives and memory.

Resumen: El presente trabajo busca definir los conceptos "cria de favela" (crea de favela) y "meia hora de morro" (media hora de morro), adoptados como categorías de análisis de la investigación de maestría - Vidigal: narrativas de memorias. La narratología privilegiada es

la de los moradores originarios del lugar, en detrimento de los recién llegados. Se trata de un análisis conceptual y teórico de las relaciones de convivencia y disputa territorial, a partir de normas de socialización y relaciones de poder marcadas por la pertenencia al lugar. Con el fin de aproximar estos conceptos a enfoques ya realizados en las ciencias sociales, esas categorías de habitantes se compararán, respectivamente, con los "establecidos" y los "outsiders", definidos por Norbert Elias al hablar sobre las normas de socialización y las relaciones de poder establecidas en una pequeña, comunidad de Inglaterra.

Palabras clave: Vidigal (RJ), Relaciones de poder, Favela, Gentrificación, Narrativas y memoria.

I- INTRODUÇÃO



?Logo eu cria de favela, logo eu becos e vielas?

Fonte: (MC Mascote: Cria de favela)

A necessidade de analisar os conceitos que aqui serão apresentados ? cria de favelae meia hora de morro ?surgiu a partir da metodologia adotada no projeto de dissertação de mestrado ?Vidigal: Narrativas de Memórias?. O interesse da pesquisa supracitada é para além do interacionismo simbólico, que propõe estudar as significações da relação entre os indivíduos e seu mundo social. Busca-se o que denominamos de análise implicada, ou seja, a afetação entre o sujeito e objeto não é fruto da pesquisa etnográfica. Não é afetação: é a abordagem e o registro a partir do pertencimento. Afinal, a presente autora é sujeito e objeto do que será descrito. Dessa forma, toda a percepção e formulação a respeito dos conceitos que se deseja analisar é um exercício de junção entre o saber orgânico e o acadêmico. Trata-se de uma metalinguagem; porém, exercida a partir de uma reflexão teórica e metodológica.

Do ponto de vista epistemográfico, todas as instâncias têm direito à razão e ao direito de transmiti-la em igualdade de condições. De outro modo, estaríamos ante uma nova e sutil estratégia de dogmatização e de totemização: para que uma categoria seja válida, deve ela ser sempre única e todo-poderosa (GUTIÉRREZ, 2009: 104).

O grupo social analisado no presente trabalho é da população favelada do Vidigal. Dessa forma, deseja-se falar da identidade coletiva de um grupo marginalizado. Embora, como afirma

Freire-Medeiros (2009), a favela venha passando por uma ressignificação semântica (que a sugere como patrimônio da cidade), a ótica de análise é normalmente exterior aos modos de conduta e vivências nesse território.

Por esse motivo, considerando a mundialização que inibe o purismo das coletividades, apontarei para modos de socialização que se reajustam devido ao território favelado. O texto apresentará dois grupos identitários que ocupam o Vidigal e as subjetividades geradas a partir da disputa pelo território. Afinal, como afirma Dodebei (2008), ?o patrimônio existe como valor necessário à produção de subjetividades e à garantia da diversidade, ao mesmo tempo em que é uma possibilidade de resistência à globalização cultural? (p. 12).

II - A FAVELA RESSIGNIFICADA

Antes de discorrer a respeito das categorias que serão analisadas, faz-se necessário contextualizar o território que motiva a discussão.

Atualmente, 23% da população da cidade do Rio de Janeiro vive em favelas, segundo o IBGE/2010. Isso corresponde a 1,4 milhões de pessoas vivendo em ?aglomerados subnormais? ? de acordo com a definição do mesmo órgão para esse território[2]. Dados do SABREN (Sistema Multimídia sobre os Assentamentos de Baixa Renda do Município do Rio de Janeiro) apontam que há, apenas na cidade, 752 favelas. É preciso considerar que, muitas vezes, o que se contabiliza são os complexos e não as unidades de favela; logo, esses dados podem ser mais elevados. Apesar desses números, a história dessas localidades está inserida na disputa pelo território e nas inadequações sobre o espaço.

Devido aos eventos esportivos de grande porte sediados por essa cidade, a favela virou assunto privilegiado nas salas de poder. Porém, durante muito tempo houve uma invisibilidade sobre sua existência. Os noticiários só davam conta de fatos ligados à violência. A política de segurança do governo do estado do Rio de Janeiro para os territórios eufemisticamente chamados de ?comunidades carentes? vem desenhando um novo perfil de moradores de morro. Fenômeno que vive um processo de desaceleração em várias favelas, devido à violência ou à crise econômica.

A pacificação desses lugares ? antes tidos como perigosos e inóspitos ? possibilitou que indivíduos oriundos de outros espaços da cidade passassem a frequentar e residir as/nas favelas. É claro que o convívio harmônico entre morro e asfalto colabora para aceitação das diferenças e a diminuição das iniquidades dessa ?cidade partida?[3]. Todavia, esse entrosamento entre aqueles que não se viam como pares gera conflitos de interesses e de identidades. (DA ROSA, 2017, p. 60)

É preciso destacar que nem todas as favelas pacificadas despertaram o interesse dos estrangeiros e da classe média. Algumas favelas experimentaram o ?voyerirmo?, a comercialização da pobreza (Freire-Medeiros, 2009). Outras atraíram o interesse devido aos apelos naturais. A vista para o mar e para boa parte da zona sul faz do Vidigal uma espécie de mirante para o asfalto, o que contribui para o interesse das elites pelo lugar.

Favelas que oferecem paisagens e localizações semelhantes observam uma queda no turismo e no mercado imobiliário. Isso também é vivenciado no Vidigal. Ainda assim, embora seja percebida uma diminuição na compra de casas por parte de indivíduos externos ao local, os que adquiriram imóveis permanecem, e os visitantes continuam frequentando a localidade. Isso motiva, inclusive, a crença na ?UPP[4] que deu certo? _ como dizem seus entusiastas.

Segundo Farage (2009, p. 10), a separação existente entre os distintos espaços da cidade, não se dá apenas pela questão geográfica, mas sim pela construção e legitimação de lógicas distintas de organização desses territórios. A presença da classe média na favela do Vidigal resulta em uma mudança nos padrões de convívio, no aumento dos preços de bens e serviços e, principalmente, na especulação imobiliária.

Toda essa alteração é camuflada pela celebração do rompimento das barreiras sociais e pelo proclamado fim da dicotomia favela X asfalto. Porém, ao contrário do que a mídia divulga ostensivamente, essa dinâmica de convívio não permite a mobilidade social dos favelados do Vidigal. É claro que o comércio local passou a lucrar mais devido à presença de um maior número de consumidores oriundos de outras partes da cidade (e do mundo). Ainda assim, os maiores investidores na favela não são favelados, não têm suas origens na classe oprimida. São ? na maioria ? indivíduos com capital para investir em hotel, pousadas, restaurantes, bares, festas etc. (como: Hotel Alto Vidigal e Bar Da Laje). Pessoas (muitos estrangeiros) com expertise na lógica de mercado e que perceberam o potencial de territórios como o aqui descrito.

O cenário atual de violência na favela da Rocinha, vizinha do Vidigal, somado à crise econômica, tem acanhado o comércio local. Ainda assim, enquanto os moradores e comerciantes nativos se alarmam nas redes sociais e clamam por prudência diante de um possível confronto entre grupos criminosos rivais, estabelecimentos voltados para o público externo insistem em divulgar através das mídias um clima de harmonia e paz. Há uma disputa de narrativas virtuais motivada pela disputa pelo espaço territorial entre os ?crias de favela? e os ?meia hora de morro? ? conceitos que serão definidos posteriormente.

III - CRIA DE FAVELA: UMA ASSINATURA

Os moradores de favela sempre pertenceram à dinâmica de desenvolvimento e crescimento das cidades, haja vista que em sua maioria são trabalhadores que residem próximo aos centros de emprego. Inclusive, essa aproximação foi o que originou diversas favelas. Porém, o desenvolvimento da cidade não alcançava o morro, que sofria com a indiferença do Estado e das classes mais abastadas diante à falta de infraestrutura.

No entanto, aqueles espaços que eram motivos de repulsa, atualmente despertam o interesse daqueles que o repeliam. No caso do Vidigal, especificamente, há apropriação dos espaços e repulsa pelos seus ocupantes. Favela sim; favelado não! Essas transformações são frutos do processo de gentrificação[6] que esse território está vivendo e que afeta diretamente a juventude local, pois impede práticas de lazer constituintes da identidade do jovem, devido ao elevado custo dos preços praticados ou por intervenção policial (como a proibição dos bailes funks).

Essa juventude local compõe o grupo social que definiremos como ?cria da favela?. A partir da epistemografia de Gutiérrez, adotarei a visão da desclassificação para tratar desse conceito e do outro que será apresentado: ?meia hora de morro?. Isso porque intenciona-se acolher ?o conhecimento excluído, devolvendo-lhe a legitimidade negada pelos processos convencionais de reconhecimento e ordenação? (GUTIÉRREZ, 2006, p. 106). O autor acredita na organização horizontal e interativa do conhecimento e da exomemória; princípios também adotados na presente análise. Além disso, esses conceitos subvertem a calma classificatória da lógica dominante, implicando uma reclassificação. Aliás, sugere uma etiqueta classificatória subjetiva, porém, autonarrativa; logo, de práticas existentes (como defende Gondar ao discutir o conceito de memória social).

Em outros termos, um conceito não surge do aprimoramento das ideias, mas da emergência de um campo problemático que exige novas categorias de pensamento que lhe façam face. Só se criam conceitos em função de problemas, e eles se transformam do mesmo modo que os problemas aos quais se supõe que eles respondam. (GONDAR, 2016, p. 21)

As classificações partem de escolhas éticas e políticas que trazem ?consequências para a vida que se leva e se pretende levar? (GONDAR, 2015, p. 14). O interesse em conceituar tal

termo deve-se a sua importância dentro da dinâmica de poder da favela, logo à dinâmica de resistência. Uma vez que ?a memória coletiva é um instrumento de poder? (LE GOFF, 1990, p.

470) e que o objetivo da pesquisa em desenvolvimento é pautado nas ?memórias subterrâneas? (POLLAK), tal grupo de moradores fornecem as narrativas que serão apreciadas. A proposta é conferir o direito à memória local através da narratologia, ou seja, ?do discurso oral como forma de memória coletiva, por meio da qual os sujeitos encontram fundamentos para construir sua identidade e repensar o presente (BESSA, 2008, p. 81).

Admitindo que as perspectivas assumidas no campo de memória social são parciais, resultados de decisões políticas que definem quem tem direito à memória, a postura aqui adotada procura valorizar o conhecimento sobre o lugar a partir de narrativas daqueles que têm a legitimidade forjada na experiência e no pertencimento. Le Goff afirma que: ?devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não servidão do homem? (1990, p. 471). Coerente a essa visão, a pesquisa que vem sendo desenvolvida no projeto de dissertação ?Vidigal: Narrativas de Memória? acredita ser a figura do cria a categoria capaz de acionar a memória como estratégia de combate às demandas do presente. Afinal, segundo o estudioso que une o marxismo ao pós-estruturalismo: ?O portador do método científico é o militante? (NEGRI, 2003, p. 245).

É preciso pontuar que o conceito de ?cria de favela? não está restrito a uma faixa etária, muito embora seja também representado pela juventude local. Isso porque essa categoria define aqueles que nasceram e se desenvolveram dentro da favela, ou lá vivem desde a infância. Logo, abarca algumas gerações ? considerando que a ocupação do Vidigal data em torno de 75 anos. Esse termo é comum em espaços periféricos como designação de um grupo de moradores, devido às relações interpessoais estimuladas pela nova configuração social no Vidigal, tal posição vem sendo reivindicada. Atitude afirmativa dessa identidade foi imperiosamente registrada na fachada de uma casa desse morro.




a autora

Essa frase evidencia a importância de ser ?cria? dessa favela. Quem é assim designado ordena o comportamento dos demais, é mais respeitado. A metonímia serve, inclusive, como assinatura. O pertencimento ao Vidigal exibido na frase imperativa indica um grupo identitário ? o ?cria?. Aquele indivíduo que estabeleceu laços sócioculturais e afetivos com a favela em questão e que sobreviveu às mazelas impostas pela sociedade desigual.

Mauro Wilson de Souza, em sua obra ?O pertencimento comum midiático: a identidade em tempos de transição?, levanta que:

A motivação subjetiva do pertencimento na verdade repousa na busca de constituição de um todo, ou seja, naquilo que, como um fim, faz do pertencer um meio e uma necessidade, matriz de algo que se define como um comum. A mediação desse ?comum? é que de fato dá sentido a esse sentimento subjetivo e implica a sua objetivação. (2010, p. 37).

É importante ressaltar que essa imagem está exibida numa área vidigalensedenominada ?Bad Boy?, extensão de outra chamada de ?314?. Esta é uma localidade composta pelos primeiros moradores do Vidigal, aqueles que desejaram remover na década de 1970[7]. Podemos considerá-los como os primeiros ?crias da favela"

Acredito também, por também ser criado Vidigal, que esse pertencimento ultrapassa o aspecto físico, delimitado geograficamente, pois: ?a necessidade da busca do pertencimento é tão complexa como o da objetivação que fundamenta essa mesma necessidade? (SOUSA, 2010,

p. 34). Há uma motivação subjetiva de interesses compartilhados que determinam esse pertencimento, o estar e fazer parte de um lugar, ou seja, constituí-lo e construir-se constantemente. Os indivíduos que compõem esse grupo carregam em sua bagagem experiências violentas impostas pela sociedade desigual. Portanto, representam uma resistência e sagacidade dignas de respeito no contexto da favela.

As atitudes de intervenções possíveis praticadas pelos moradores comuns no cotidiano são também orientadas pelas interpretações feitas, desde criança, acerca das relações de poder, sociais e políticas que se estabelecem na favela. Tais práticas muitas vezes interpretadas e categorizadas, por aquelas pessoas que não conhecem bem os processos e as relações sociais internas do lugar, como prática que se enquadram numa lógica de racionalidade que não é moralmente aceita pela sociedade ?formal?. No entanto, faz-se mister reforçar que as decisões cotidianas são também balizadas pelas memórias (SILVA, 2012, p. 23).

IV - VIDIGAL: A WINSTON PARVA CARIOCA

A fim de comparação, uma vez que como já afirmado anteriormente, as categorias comumente utilizadas nos estudos em memória social não abarcam os conceitos aqui apresentadas (cria de favela\ meia hora de morro), aproximarei a presente análise às categorias formuladas por Nobert Elias. O autor alemão, erradicado na Inglaterra, publicou em 1965 uma obra etnográfica a respeito da cidade fictícia de Winston Parva. A base de análise buscou entender como aquela cidade se organizava socialmente.

Parva é dividida em três zonas e cada uma é composta por um grupo social. Aquele que habita há mais tempo a localidade tem maior legitimidade sobre os demais. Ainda assim, tal abordagem não nos é paradigma. Isso porque em Winston Parva as distinções intergrupais são quase nulas. Todos os indivíduos mantém certa coerência religiosa, social, racial, étnica, econômica e nacional. Não há discrepâncias e as divergências são irrelevantes. Características coesivas destoantes das observadas no Vidigal.

Ainda assim, lançarei mão das categorias ?estabelecidos? e ?outsiders? para discutir os conceitos de ?cria de favela? e ?meia hora de morro?, no que diz respeito ao pertencimento sobre o território. A descrição feita por Elias evidencia que a maior coesão entre as zonas 1 e 2 ? compostas por moradores com mais tempo na localidade, por isso tidos como ?normais? ? facultava a exclusão e estigmtização dos membros da zona 3 ? constituída por ocupantes tardios.

Conhecemos a partir de categorias supostamente consistentes, ou seja, filtradas pelo principio da não contradição. Pois bem, muito pouco sabemos sobre a microfísica, os intercâmbios e as emanações entre essas categorias (GUTIÉRREZ, 2009: 107).

A divisão socioeconômica entre moradores do Vidigal é algo comum em todo o seu processo histórico. Afinal, essa localidade é constituída por proprietários legalizados e ocupantes do território ocioso. Os primeiros, durante muito tempo, subjugaram aqueles desprivilegiados economicamente. A fim de representar institucionalmente os anseios de cada grupo, havia dois órgãos coexistindo: Associação de Amigos do Vidigal e Associação de Moradores da Vila do Vidigal. Os objetivos, por muitas vezes, eram divergentes e conflitantes.

Os moradores que tinham a propriedade legalizada não se identificavam como moradores de favela, mas de um território, infelizmente, marginalizado. Havia um preconceito intergrupal que motivava a estigmatização social. No entanto, segundo Elias, o normal e o estigmatizado não são exatamente pessoas, mas perspectivas situacionais. Um mesmo indivíduo, a depender do contexto proporcionado pelo contato social, pode ocupar um ou outro papel.

Atualmente, os dois grupos anteriormente constituintes do Vidigal fundiram-se em um: o ?cria?. Esse grupo desenvolve estratégias subjetivas e padrões de conduta que o distingue dos novos moradores: os definidos como ?meia hora de morro?.

Afinal, o Vidigal virou grife! Antes era necessário ocultar o endereço, negar o pertencimento para assim garantir uma vaga no emprego ou aceitação social. Hoje há quem pague R$ 127,00 em uma camiseta que ostenta o nome do morro, vendida por uma marca famosa. A favela também virou destino privilegiado daqueles que desejam parecer descolados, visitando ou residindo numa ?outra realidade? ? ainda que próxima fisicamente da classe social originária desses indivíduos. Esses são os denominados ?meia hora de morro?.

Defino essa última categoria como a denominadora daqueles que não têm o Vidigal como seu local de origem e identidade, mas aqui residem. Esses podem até exercer a topofilia[8] com o Vidigal, porém não tiveram sua identidade forjada na trajetória histórica e social da favela. Logo, não possuem o pertencimento ao lugar, embora nele atuem.

Há uma valorização de quem é cria em detrimento aos outsiders, os ?meia hora de morro?. Como conseqüência, é exigida uma postura social e o cumprimento dos códigos de conduta compartilhados pela coletividade. A transgressão às normas pode acarretar o afastamento do membro do grupo, o escárnio por parte dos outros integrantes, ou sanções ainda mais severas. É preciso lembrar que, em muitas vezes, quem serve como juiz desses ?delitos? comportamentais é o tráfico.

A participação na superioridade de um grupo e em seu carisma grupal singular é, por assim dizer, a recompensa pela submissão às normas específicas do grupo. Esse preço tem que ser individualmente pago por cada um de seus membros, através da sujeição de sua conduta a padrões específicos de controle dos afetos. O orgulho por encarnar o carisma do grupo e a satisfação de pertencer a ele e de representar um grupo poderoso ? e, segundo a equação afetiva do indivíduo, singularmente valioso e humanamente superior ? estão funcionalmente ligados à disposição dos membros de se submeterem às obrigações que lhes são impostas pelo fato de pertencerem a esse grupo (ELIAS, 2000, p. 26).

Já do ?meia hora de morro? não há grandes expectativas quanto ao comportamento, hábitos e códigos de conduta ? o que na favela se chama de ?proceder?, ou seja o respeito às normas estabelecidas. Sabe-se que será destoante dos demais. Tal dicotomia é o que afirma a posição superior do cria e motiva o deboche em relação ao recém-chegado. Sendo ele estrangeiro, tais comportamentos dos ?crias? são potencializados. Isso porque a nacionalidade distinta enfatiza as diferenças culturais e, provavelmente, socioeconômicas.

Embora haja uma curiosidade mútua sobre os modos de sociabilidades dos? crias? e dos ?meia hora?, os primeiros são os que ditam as regras sobre o espaço. Segundo Freire-Medeiros (2009): ?Muitas vezes, a vitrine se inverte e os moradores lançam seu olhar investigativo aos turistas, fazendo comentários jocosos a seu respeito, criticando o que percebem como posturas intrusas? (p. 69).

Estratégias de manutenção das práticas de lazer e hábitos sociais são elaboradas constantemente, a fim de legitimar o pertencimento dos ?crias?. Cito como exemplo o crescente movimento da batalha de rimas em substituição aos bailes funks. Os jovens funkeiros estão aderindo ao movimento do hip hop e lotando o Largo do Jesus e a Praça do Vidigal(localidades desse morro).

Essa juventude é impedida de freqüentar os espaços de lazer promovidos na favela, porque não são destinados aos favelados. Os elevados preços demarcam o público que se deseja atingir: a classe média e os estrangeiros, ou seja, os ?meia hora de morro?. Ainda assim, há a vontade de ocupar aqueles espaços. Uma vez existindo esse recalque, os jovens criam uma forma de viver esse lazer. Cotizam a compra de bebidas, as põem num isopor com gelo e vão para a porta do estabelecimento que realiza as festas (onde inclusive o funk é permitido). É importante ressaltar que esse mesmo comportamento não ocorre na porta de estabelecimentos da zona sul, vizinha desses endereços. Logo, evidencia-se o desejo de ocupar um ambiente que os segrega dentro do seu lugar de pertencimento.

Além dessas ações próprias dessa geração de ?crias?, os mais maduros vêm promovendo encontros de moradores antigos ? ?reencontro dos crias? ? e eventos que buscam preservar e difundir a memória local. Essa última estratégia é bastante exercida pela pesquisa que desenvolvo. Há o interesse pessoal em utilizar a memória como instrumento de resistência (sou ?cria? da favela em questão), e a observação da pesquisadora da memória social.

Vale ressaltar que a manutenção dessa identidade aqui conceituada como ?cria? não se dá por temor da perda ou por sofrer ameaça, mas como capital simbólico, de acordo com Bourdieu. Há um orgulho desse pertencimento e o desejo de preservá-lo. Como afirma Jô Gondar:

Produzir identidade e mantê-la não é fácil tarefa. Trata-se de um esforço constante, exigindo que se ?esqueça? ? que se exclua, segregue ou recalque ? tudo aquilo que se mostra em desacordo com a imagem que se tenta preservar (2016: 38).

V - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Gutiérrez (2009) defende que classificar é ocultar conhecimentos. Toda classificação é arbitrária e conjectural. O que se pretendeu aqui foi expor um conhecimento ao tentar conceituar um grupo social marginalizado e considerado subalterno em relação à sociedade hegemônica. Não desejei com isso criar guetos, mas descrever identidades que se apresentam e se relacionam em determinado contexto territorial.

Tais conceituações foram necessárias, pois apontam para aqueles que serão os narradores das memórias que se deseja preservar e difundir na pesquisa em curso. Dodebei (2017) utiliza a abordagem denominada memoração a fim de abarcar várias categorias e renovar a concepção patrimonial. Dessa forma, trata a memória social como um processo que se analisa a partir da relação com o tempo, o espaço, a linguagem e a criação. As práticas sociais e os saberes compartilhados são manifestados nesses contextos através de narrativas várias. Para Dodebei (2017), o coletivo é pressuposto como conceito de memória social. Por isso ser importante descrever os indivíduos detentores da memória do lugar.

As análises aqui levantadas evidenciam uma relação de poder vivenciada no Vidigal. Enquanto ?os meia hora de morro? se sobressaem a partir do poder aquisitivo, os ?crias de favela? se sobrepõem através da identidade e do pertencimento. É preciso não se distanciar do fato que o Vidigal, mais uma vez, é motivo de disputa não só identitária, mas também territorial. Negri fala de singularidades capazes de lutar contra o império ? metonímia do poder no mundo globalizado. Esses formariam a multidãocomposta, entre outros indivíduos, por aqueles que foram historicamente marginalizados. Dessa forma, a resistência partiria de baixo para cima, pois existe uma potência resultante de mazelas cotidianas que anima o combate.

É essa visão que me norteia. Acredito na convergência entre o saber e a ação capaz de constituir um sujeito antagonista, ou seja, consciente da produção e da exploração. Assim, será possível o surgimento de outras formas de militância. Logo, as narrativas de memórias dos ?crias do Vidigal? podem servir de ferramentas de combate à gentrificação, pois atualizam a resistência a movimentos expulsatórios[9] que caracterizam o lugar.

Referências:

BATALLER, Maria Alba Sartagal. O estudo da gentrificação. Revista Continentes (UFRRJ), ano 1, n. 1, 2012

BESSA FREIRE, José Ribamar. Patrimônio, língua e narrativa oral. Revista Morpheus, In: DODEBEI, Vera; ABREU, Regina (org). O que é memória social. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2016.

BORGES, Jorge Luis. Outras inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

DA ROSA, Barbara Cristina Nascimento. Produções textuais implicadas à memória do Vidigal e à afirmação do pertencimento. In: NICODEMOS, Alessandra (org). Saberes e Práticas Docentes na Educação de Jovens e Adultos. São Paulo: Paco Editorial, 2017.

DODEBEI, Vera. Memoração e patrimonialização em três tempos: mito, razão e interação digital: In: TARDY, Cécile; DODEBEI, Vera (orgs.). Memória e Novos Patrimônios, Ed. Open Edition, Saint Hilaire, 2015.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

FARAGE, Eblin. As favelas cariocas e sua sociabilidade: diferentes formas de apropriação do espaço urbano . XIV Congresso Brasileiro de Sociologia. 28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro : IPPUR\UFR, 2009. Disponível em: <www.sbsociologia.com.br/portal/index.>. Acesso em 20 de setembro de 2017.

FREIRE-MEDEIROS, Bianca. Gringo na Laje: Produção, circulação e consumo da favela turística. FGV Editora, Rio de Janeiro: 2009.

GONDAR, Jô. Cinco proposições sobre memória social. Morpheus: revista de estudos interdisciplinares. In: GONDAR, Jô; DODEBEI, Vera. O que é memória social?. Rio de Janeiro: UNIRIO, v. 9 , n.15, p. 11 ? 28, 2016.

GUTIÉRREZ, García A. Desclassificar la identidad. In: La identidad excessiva. Madrid: Biblioteca Nueva, 2009.

Cientificamente favelados: uma visão crítica do conhecimento a partir da epistemografia. TransInformação,Campinas, 18(2):103-112, maio/ago., 2006.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade.Tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopez Louro. 9. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2004.

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento e Silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

SILVA, Jailson Souza (org.). Seminário: O que é favela, afinal? In: Observatório de favelas do rio de janeiro. Rio de Janeiro: 2009.

SILVA, L. A. M. Afinal, qual é a das UPPs? 2008. Disponivel em: . Acesso em 12 de setembro de 2017.

SOUSA, Mauro Wilton de. O pertencimento ao comum midiático: a identidade em tempos de transição. Significação | nº34 | 2010, Eca, USP.

TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: DIFEL, 1980.

VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

Notas

[1] Mestranda em Memória Social (PPGMS\UNIRIO).
[2] Essa definição data de 1950 e ainda é a usada pela instituição citada.
[3] Expressão difundida pelo livro homônimo de Zuenir Ventura
[4] Unidade de Polícia Pacificadora
[5] Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Disponível em: . Acesso em: nov. 2016.
[6] ?Caracteriza-se normalmente pela ocupação dos centros das cidades por uma parte da classe média, de elevada remuneração, que desloca os habitantes da classe baixa, de menor remuneração, que viviam no centro urbano. O deslocamento vem acompanhado de investimentos e melhorias tanto nas moradias (que são renovadas ou reabilitadas) quanto em toda área afetada, tais como comércio, equipamentos e serviços? (Bataller, 2012, p. 09).
[7] Em 1977, o governo do Estado pretendeu remover os moradores do Vidigal para Antares. Devido à mobilização popular, o intento não foi concretizado.
[8] Ver: YI-Fu Tuan (1980), geógrafo sino-americano estudioso do conceito.
[9] Considera-se como ?expulsatórios? todos os movimentos que tentaram ou acarretaram a\na retirada da população favelada do Vidigal: remoção de 1977, guerras pelo domínio do tráfico e a gentrificação.


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