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Resistências cultural e política na ditadura militar: o front cultural e a Frente Ampla na luta por democracia (1966-1968)
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 14, núm. 1, 2017
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 14, núm. 1, 2017

Esta obra está licenciada com Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: A Frente Ampla foi uma iniciativa de caráter político e liberal para fazer oposição ao regime ditatorial instaurado com o golpe de 1964. Entre seus representantes estavam intelectuais de diferentes orientações ideológicas e políticos alijados pelo regime. Este artigo apresenta a forma como a Frente Ampla foi constituída e seus principais objetivos, a partir da leitura de três jornais da época, Correio da Manhã, Jornal do Brasil e o alternativo Folha da Semana. As representações intelectuais promovidas por estes periódicos a respeito da Frente Ampla foram analisadas a partir do referencial teórico oferecido por Raymond Williams. Assim, verificou-se que a maneira como os jornais e os intelectuais pensavam a Frente Ampla enquanto forma de resistência esteve inserida no contexto de emergência de uma estrutura de sentimentodos liberais críticos.

Palavras-chave: Frente Ampla, Folha da Semana, resistência cultural, imprensa, intelectuais.

Resumen: El Frente Amplio fue una iniciativa de carácter político y liberal para hacer oposición al régimen dictatorial instaurado con el golpe de 1964. Entre sus representantes estaban intelectuales de diferentes orientaciones ideológicas y políticas alijadas por el régimen. Este trabajo presenta la forma como el Frente Amplio fue constituida y sus principales objetivos, a partir de la lectura de tres periódicos de la época, Correio da Manhã, Jornal do Brasil y el alternativo Folha da Semana. Las representaciones intelectuales promovidas por estos periódicos acerca del Frente Amplio fueron analizadas a partir del referencial teórico ofrecido por Raymond Williams. Así, se verificó que la manera como los periódicos y los intelectuales pensaban al Frente Amplio como forma de resistencia estuvo insertada en el contexto de emergencia de una estructura de sentimiento de los liberales críticos.

Palabras clave: Frente Amplio, Folha de Semana, resistencia cultural, prensa, intelectuales.

Abstract: Ample Front was an initiative of a political and liberal character to oppose the dictatorial regime initiated with the 1964 coup. Among its representatives were intellectuals of differents ideological orientations and politicians separated by the regime. This article presents how the Ample Front was constituted and its main objectives, based on the reading of three journals of that period, Correio da Manhã, Jornal do Brasil and the alternative Folha da Semana. The intellectual representations promoted by these journals about Ample Front were analyzed from the theoretical frame offered by Raymond Williams. Thus, it was found that the way the journals and intellectuals thought the Ample Front as a form of resistance was embedded in the context of the emergence of a structure of feeling of critical liberals.

Keywords: Ample Front, Folha da Semana, cultural resistance, press, intellectuals.

Introdução

Articulada a partir de 1966, a Frente Ampla pretendia reunir intelectuais e políticos de oposição ao regime militar instaurado dois anos antes, com o objetivo de criar um partido que fizesse um enfrentamento eleitoral nas eleições gerais que ocorreriam naquele ano.

O idealizador dessa Frente, o ex-governador da Guanabara[2], Carlos Lacerda, passara a partir de outubro de 1965 para uma situação de gradativo aumento de seu isolamento político. A eleição indireta para a Presidência da República marcada para acontecer em 1966, alijou-o da possibilidade de concorrer como candidato pela União Democrática Nacional (UDN) com apoio dos militares golpistas. A nova situação de bipartidarismo estabelecida com base no Ato Institucional nº 2[3] (AI-2) também contribuiu para o enfraquecimento de Lacerda, uma vez que, antigos companheiros de partido passaram a se filiar à Aliança Renovadora Nacional (ARENA).

Entretanto, não havia para Lacerda a possibilidade de sua filiação ao partido do governo, muito em função do sentimento de ter sido traído pela ?revolução? que ajudara a articular em 1964 como um ?braço? civil ? do golpe. O Movimento Democrático Brasileiro (MDB), por sua vez, exercia uma oposição difusa, marcada pelas nuances ideológicas em seu interior, que contava com liberais, socialistas, comunistas e ex-membros de partidos sufocados pelo AI-2.

À vista das escassas possibilidades de novamente se inserir no cenário político, ?em meados de 1966 Lacerda começou a articular a chamada ?Frente Ampla?, cuja finalidade expressa seria oferecer alternativas à então tímida oposição exercida pelo MDB? (MENDONÇA, 2002, p. 361).

A Frente Ampla foi uma expressão de resistência dos liberais contra o regime, contudo algumas dúvidas ainda pairam sobre sua composição e atuação. Sabe-se que, inicialmente contou com a liderança de Carlos Lacerda, parceria de Juscelino Kubitschek (JK) e apoio não muito entusiástico de João Goulart (NAPOLITANO, 2011, p. 29). Buscaremos nos aprofundar no debate sobre a Frente Ampla através de alguns números do semanário Folha da Semana que nos oferece uma leitura dos acontecimentos sob a perspectiva liberal crítica de sua linha editorial, caracterizada pela resistência ao regime e de crítica às ações e propostas da própria Frente Ampla. A partir da leitura de algumas notícias e editoriais da Folha da Semana será feita uma análise comparativa aos editoriais dos jornais Correio da Manhã (CM) e Jornal do Brasil (JB), que trataram do tema da Frente Ampla a partir de perspectivas político-ideológicas distintas, aquele liberal, e este conservadora.

A Folha da Semana[4] se destacou por ter sido o jornal alternativo a permanecer em atividade pelo maior tempo em relação aos demais da mesma época, de setembro de 1965 a dezembro de 1966. Este periódico foi um veículo muito importante na articulação de artistas e intelectuais a partir de 1965. Diversos intelectuais que se deligavam do CM, por motivos de censura e perseguições encontraram na Folha da Semana um espaço de representação institucional para promoverem uma forma de resistência ao governo Castelo Branco. Procurava ser um informativo político, mas também concedia um espaço significativo para a editoria de cultura.

Com isso, levantaremos a partir de três fontes primárias com orientações ideológicas distintas, o histórico de formação da Frente Ampla e de suas propostas e impacto político. A importância deste trabalho reside em oferecer uma contribuição analítica, sob a perspectiva sociológica de Raymond Williams, sobretudo ao propor que a Frente Ampla esteve inserida numa estrutura de sentimento específica de uma parcela das resistências, que era a liberal crítica; e histórica, a partir do mapeamento dos nomes dos envolvidos, além de analisar, por meio destes referenciais, as representações intelectuais nos jornais acima citados.

Portanto, trata-se de mostrar de que forma estas fontes primárias ofereceram, nos anos 1960, uma representação sobre o que era a política brasileira até a publicação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), sobre como políticos e intelectuais poderiam intervir nessa política, a partir da organização ? pouco compreendida ? de uma resistência composta por intelectuais e políticos cassados pela ditadura, e a maneira pela qual a própria imprensa representava um polo de engajamento possível diante da censura e demais ataques do governo de Castelo Branco.

Mapeamento histórico da Frente Ampla e sua contribuição para as resistências: utilização das fontes primárias

As eleições gerais de 1966 ocorreram, em primeiro lugar, por influência do AI-2; e segundo, sob as disposições do AI-3, que dispôs sobre as eleições indiretas e nomeação de prefeitos das capitais dos Estados. No âmbito do executivo federal, ocorreram eleições indiretas para vice-presidente e presidente da República, no dia 03 de outubro; no legislativo federal, foram escolhidos de forma direta os deputados e senadores ? MDB e ARENA ?, em 15 de novembro; no executivo estadual as eleições para governador ocorreram de forma indireta nos onze estados restantes em 1965, no dia 03 de setembro; os deputados estaduais foram eleitos de forma direta, em 15 de novembro, juntamente com os prefeitos, vice-prefeitos e vereadores.

No mesmo mês em que ocorreram as eleições indiretas para a Presidência da República, ?em outubro de 1966, Carlos Lacerda publicava um manifesto na Tribuna da Imprensa, lançando a Frente Ampla. Na época do lançamento do manifesto, no entanto, ele ainda estava sozinho? (CHAMMAS, 2012, p. 73). Sozinho, pois Lacerda ambicionava as assinaturas, sobretudo, de Juscelino Kubitschek e João Goulart. No intuito de consolidar o projeto da Frente Ampla e conseguir os aliados acima mencionados, Lacerda partiu ao encontro de Kubitschek em Portugal.

A edição de número 64 ? 24 a 30 de novembro de 1966 ? da Folha da Semana estampou a seguinte manchete em sua capa: O que há por trás do acordo de Lisboa; e a matéria completa na página 03 do jornal levava o título: JK e Lacerda querem tirar partido da Frente. A palavra ?partido?, apesar das possibilidades de interpretação neste contexto, fazia referência à criação mesmo de um novo partido político capaz de fazer frente ao regime e impedir a eleição indireta para presidente da república no ano seguinte. Na ótica da Folha da Semana a reunião entre Lacerda e JK foi um ?passo à frente dado no sentido de unir as forças que se opõem ao Governo Castelo Branco? (FOLHA DA SEMANA, 1966, p. 3).

Do encontro dos dois políticos em Lisboa foi lançada a Declaração de Lisboa com o objetivo de ?unir-se frente ao inimigo comum, o Governo Castelo Branco? (FOLHA DA SEMANA, 1966, p. 3). Mais à frente a matéria resume o plano geral da Declaração como uma proposta que ?reclama uma política de paz e liberdade para retomar e acelerar o desenvolvimento sem o qual a Nação é condenada a viver entre a submissão e o desespero.? (FOLHA DA SEMANA, 1966, p. 3).

Informação importante assinalada pelo semanário é o avanço representado pelo encontro entre JK e Lacerda e, consequentemente, pela Declaração de Lisboa, em relação ao manifesto da Frente Ampla divulgado por Carlos Lacerda na ocasião das efemérides de um ano do AI-2.

Ainda durante o encontro foi estabelecida a proposta de criação de um novo partido, que conforme os dizeres da Declaração seria um ?partido popular para a reforma democrática?. Para o jornal

Isso quer dizer que o antigo Presidente cassado pela ?revolução? e o antigo Governador que corre agora o risco de ser igualmente cassado pela mesma ?revolução? estão convencidos de que o movimento de 1º de abril agoniza. Daí a pressa em criar o instrumento de arregimentação política que lhes há de permitir atuar na evolução da vida brasileira (FOLHA DA SEMANA, 1966, p. 3).

O governo Castelo Branco não conferiu uma reação imediata ao documento que lançava oficialmente a Frente Ampla. Na matéria do periódico há menção a isso informando que o governo ainda não tinha um plano efetivo contra o que vinha ocorrendo, pois não sabia se punia Lacerda ou se evitava intervir na situação com o intuito de não haver maiores repercussões. A única reação do governo foi culpar o ditador Salazar por não ter evitado o encontro em Lisboa e a divulgação do documento (FOLHA DA SEMANA, 1966, p. 3).

Na sequência o jornal trouxe a sua breve análise do que representava a criação da Frente Ampla. O parágrafo assume grande importância por explicar um pouco das motivações políticas de JK ao firmar uma aliança com um antigo opositor político como fora Carlos Lacerda. Com esta análise o jornal passou a se posicionar a respeito da Frente Ampla e a colocar apontamentos críticos, sobretudo afirmando que eles não deveriam almejar a posição de únicos representantes de uma Frente, dado que existiam forças lutando desde o início pelo restabelecimento da democracia.

Seja como for, não há como desconhecer o significado político da decisão dos Srs. Kubitschek e Lacerda. Sobretudo o antigo Presidente vê a sua posição fortalecida, já que o ideário anunciado em Lisboa reproduz praticamente toda a sua filosofia política e a sua pregação depois que lhe cassaram o mandato. No entanto, não se deve imaginar que o novo partido programado pelos dois signatários da ?Declaração de Lisboa? venha a substituir a frente de todas as forças democráticas e populares existentes no Brasil. O partido que os Srs. Kubitschek e Lacerda desejam criar pode ser uma parte dessa frente, mas nunca a própria frente. Isso porque existem forças ponderáveis, desde o começo da luta contra a ditadura, engajadas na batalha da democratização, que dificilmente aceitariam, a esta altura, integrar o partido em questão (FOLHA DA SEMANA, 1966, p. 3).

Com este excerto, a Folha da Semana afirmava o seu lugar entre as resistências, que conforme se observa no decorrer dos editoriais a respeito da Frente Ampla, será sempre reafirmada. O semanário se posicionava como uma das forças que lutou desde o início, se não pela representação institucional conferida pelo jornal Folha da Semana, que nasce em 1965, ao menos através de seus integrantes, que de maneira difusa e articulados a outras formas de representação também se puseram a defender a democracia e a ilegalidade do governo golpista. Na edição nº 58 ? 13 a 19 de outubro de 1966 ? por exemplo, no editorial já se fazia menção ao trabalho de denúncia do caráter antinacional do regime militar. Elenca-se os principais atores desse processo, como os intelectuais, estudantes e trabalhadores. A Folha da Semana, portanto, pensava a Frente Ampla paralelamente ao que vinha acontecendo. O próprio título deste editorial era A Frente Ampla e tinha, a rigor, um chamado à luta contra o regime, em defesa da democracia.

Outro aspecto que começa a se revelar com esta passagem da matéria, diz respeito ao modo como diferentes vertentes ideológicas e práticas políticas se organizavam na resistência ao regime. A Folha da Semana representou uma formação cultural[5] gestada a partir de uma estrutura de sentimento de diversos núcleos, como a própria Frente Ampla e formações culturais que compartilhavam posicionamentos e intenções muito próximos, ainda que não houvesse, em muitos casos, uma linearidade nas lutas e formas de praticar a resistência. Como veremos, a Frente Ampla, na maneira como foi abordada pela Folha da Semana indicou uma possibilidade de compreensão no entorno de suas práticas políticas, alianças e inserção política naquele contexto, que ainda foi pouco explorada e que nos leva ao conceito de estrutura de sentimento. Entretanto, devemos explorar mais a respeito da formação e propostas da Frente Ampla, a fim de comprovarmos esta hipótese e apresentarmos este conceito em seus pormenores.

Ainda na matéria da edição nº 64, após se colocar criticamente frente à Declaração de Lisboa, o semanário passou a pontuar a maneira como ele mesmo se inseria numa frente mais geral, conforme a citação anterior. Sua defesa é de uma frente que se integre ?na base de um programa mínimo que garanta o efetivo estabelecimento de um regime democrático no Brasil.? (FOLHA DA SEMANA, 1966, p. 3). Deixa claro que sua luta não se faz tergiversando às propostas da Frente Ampla, mas clamando por um programa que contenha ?reivindicações concretas que levem à reparação dos crimes cometidos nestes 32 meses de ?revolução?.? (FOLHA DA SEMANA, 1966, p. 3). E, para que se caminhasse nesse sentido, o programa ideal, de acordo com a matéria, deveria conter as seguintes pautas: anistia; restabelecimento dos direitos trabalhistas; fim do arrocho salarial; uma política econômico-financeira autônoma, para garantir a retomada do desenvolvimento; revigoramento dos direitos e das franquias abolidas ou reduzidas pelo golpe; reconhecimento dos direitos estudantis; preservação da soberania nacional; estabelecimento de uma política externa independente e de paz (FOLHA DA SEMANA, 1966, p. 3). Reivindicações que, segundo o jornal, expressava a forma pela qual a maioria do povo brasileiro se integrava à Frente Ampla. Por fim, eles transcreveram o documento assinado por JK e Lacerda em Lisboa, em 19 de novembro de 1966.

No que tange ao encontro de Lisboa há ainda a possibilidade de aprofundar as visões a partir de outras fontes ? jornais da grande imprensa ? que relataram o acontecimento e se posicionaram em seus editoriais, são os casos novamente do Correio da Manhã e Jornal do Brasil.

No dia 20 de novembro de 1966, dia seguinte ao encontro de JK e Lacerda as manchetes foram: Juscelino e Lacerda lançam partido da reforma democrática, por parte de Correio da Manhã; e, Juscelino e Lacerda lançam partido, no Jornal do Brasil. Além da notória diferença nos títulos, em que se observa a supressão da palavra ?democrática? por parte do Jornal do Brasil ? jornal mais alinhado com a ditadura ? há, segundo Chammas (2012) diferenças ainda mais ressaltadas entre os editoriais dos respectivos jornais.

O Correio da Manhã já vinha de um lento processo de afastamento do regime desde que se soube das primeiras ações arbitrárias e repressoras dos militares e, se acentuou a partir das eleições de 1965, principalmente com o advento do AI-2. A partir dessa consideração compreende-se um pouco melhor o editorial do dia 20 de novembro de 1966 sob o título Declaração, no qual tece elogios à proposta de Frente Ampla.

Não se pode menosprezar as implicações políticas desse encontro. Ele inclusive, juntamente com o manifesto que o antecedeu, traduz as convergências de pontos de vista de grande parte da opinião pública e das correspondentes lideranças, independente das dissidências que existem sobre o tratamento prático dos assuntos brasileiros. [...] O que se deseja em linhas gerais são fatores básicos que não podem faltar à tarefa: eleições diretas, com voto secreto; reforma dos partidos, pois ninguém aceita as aberrações que aí estão à guia de agremiações políticas; respeito à ordem jurídica, fator inarredável como garantia de estabilidade de qualquer regime democrático [...]. Ao presidente da República restam ainda opções. Pode entender, marcialmente, que a reunião de correntes não contra o governo, mas a favor da democratização, é um fato novo subversivo. É agir com a estreiteza revelada em dois anos e meio. Pode, contrariamente, acordar para o fato de que a união do país contra esse estado de coisas merece e exige uma abertura que é de seu dever conceder (CORREIO DA MANHÃ apud CHAMMAS, p. 74, itálico, sublinhado e negrito nosso).

De imediato nota-se algumas convergências de temas aqui levantados com os que foram abordados pela Folha da Semana, entretanto, o histórico de proximidade com o golpe por parte do Correio da Manhã, não nos permite aproximar os dois jornais em demasia. A própria Folha da Semana surgiu como meio de resistência cultural no ano seguinte ao golpe. O editorial do Correio da Manhã não oferece nada de novo em relação à matéria sobre o mesmo assunto do periódico Folha da semana. Há a premissa de que a população, denominada no texto como ?opinião pública?, compartilhava dos principais pontos levantados pela Declaração de Lisboa e ressaltados pelo editorial na parte em itálico. Assim, tal como pudemos verificar na Folha da Semana, o Correio da Manhã também ofereceu indícios de uma estrutura de sentimento no plano das resistências. Sua ênfase é na opinião pública, que no caso, se referia a uma parte da população que era leitora deste jornal e que aderiu a uma visão crítica ao regime acompanhando as próprias mudanças que a linha editorial do Correio da Manhã vinha passando desde 1º de abril de 1964, portanto, uma visão que talvez fosse, como diz o editorial ?não contra o governo, mas a favor da democratização? e liberal, ou como coloca Napolitano (2011, p. 29) as ?vozes moderadas?.

O editorial do Correio da Manhã não se posicionou com propostas à Frente Ampla como o fez a Folha da Semana, mas sim, retomou as propostas expressas no manifesto da Frente Ampla, anterior à Declaração de Lisboa, ou seja, o jornal não ampliou seus horizontes sobre as resistências e associou as propostas do manifesto ? parte sublinhada ? às demandas de uma parte da resistência, que incluía basicamente seus próprios leitores. O que há de proximidade, neste caso, entre o Correio da Manhã e a Folha da Semana é a compreensão liberal que ambos possuíam. Observa-se isso por meio do endossamento que o Correio da Manhã fez das propostas do manifesto, e as novas ideias propostas pela Folha da Semana, mesmo que, por parte deste, houvesse certo tom crítico, além da compressão da existência de vários polos de resistência.

O trecho do editorial marcado em negrito também é um ponto de convergência com o texto publicado pela Folha da Semana, haja vista, a ausência de resposta por parte do regime. Ambos os jornais apenas conjecturaram as ações futuras que poderiam vir de Castelo Branco.

Ora, o que fica claro a partir deste editorial é que o Correio da Manhã aderiu à Frente Ampla, sem ressalvas ou críticas ao conteúdo do manifesto ou da Declaração. Somado a isso ?o CM retoma as suas diferenças com a ditadura desde o AI-1, ao falar da ?estreiteza revelada em dois anos e meio? que poderia marcar o entendimento da Frente Ampla como ?novo fato subversivo?? (CHAMMAS, 2012, p. 74).

Em contrapartida, o Jornal do Brasil não publicou um editorial no dia 20 de novembro de 1966 para tratar do encontro entre JK e Lacerda, que resultou na Frente Ampla. Contudo, evoca as eleições para o Congresso recém-ocorridas e escreve um texto elogioso ao regime, no qual menciona que, apesar das cassações e impugnações, o povo foi às urnas podendo fazer uma escolha de inspiração e vontade democráticas (CHAMMAS, 2012, p. 74). Mas o principal questionamento do editorial do Jornal do Brasil se dirigiu aos principais líderes políticos do Brasil no pré-golpe e que constituem a Frente Ampla.

A mística do desenvolvimento por acaso foi suficiente para fazer do ex-presidente Juscelino Kubitschek um líder verdadeiro; ou por ventura se afere a força de um líder pelas suas horas de voo ou pelas suas qualidades de simpatia pessoal? [...] O título de derrubador de presidentes chega para conferir ao ex-governador Carlos Lacerda o registro e a imagem do líder nacional? E que dizer do ex-presidente João Goulart, líder forjado na área doméstica de Vargas e depois imposto aos trabalhadores, por culpa de quem o Brasil chegou à beira da comunização e da guerra civil? (JORNAL DO BRASIL apud CHAMMAS, 2012, p. 74-75).

Provavelmente, no intuito de não dar visibilidade ao lançamento da Frente Ampla, o editorial não a citava nominalmente nem comentava sobre o encontro ou a Declaração, mas criticava os seus três principais representantes.

A respeito da participação de João Goulart na Frente Ampla é necessário ponderar que o ex-presidente não atuou de forma direta, pois do seu exílio no Uruguai ele apenas firmou apoio e adesão à Frente. A Folha da Semana na edição nº 60 ? 27 de outubro a 02 de novembro de 1966 ? noticiou como matéria de capa: Jango manda carta de apoio à Frente Ampla e na página 03 intitulou a matéria como: Carta de Jango dá adesão à Frente Ampla. A notícia dizia, no entanto, que João Goulart não teria se firmado no manifesto, mas deu seu apoio ao programa político.

Uma das maiores dúvidas que pairam sobre a Frente Ampla diz respeito a sua composição. A princípio sabe-se da atuação direta de Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek, e indireta por parte de João Goulart até agosto de 1967, quando, segundo Chammas (2012, p. 75) optou por ?se juntar às duas lideranças políticas em prol da redemocratização?. Jorge Ferreira (2011, p. 610) menciona alguns nomes importantes que teriam participado de algumas reuniões, são os casos de Ênio Silveira, Mario Pedrosa, Flávio Rangel (teatrólogo), alguns políticos ligados ao ex-governador Ademar de Barros ? que tivera seus direitos políticos cassados ? além de militares também cassados, como Nelson Werneck Sodré.

A Folha da Semana também não chega a explicitar novos componentes da Frente Ampla ao longo dos editoriais, mas cita nomes de pessoas ? políticos e militares ? que passaram da condição de apoiadores do golpe a de opositores. São citados, além de JK ? que na época deste editorial da edição nº 58, que abrangeu de 13 a 19 de outubro de 1966, ainda não firmara vínculos com Lacerda ? outros nomes, como Ademar de Barros, Mal. Mourão Filho, Mal. Amauri Kruel e Gal. Peri Bevilacqua. Contudo, não temos outras fontes que possam confirmar que estas pessoas estivessem diretamente ligados à Frente Ampla. Ferreira (2011, p. 610) ainda cita o nome do diretor do Correio da Manhã Edmundo Moniz, o que para Chammas (2012, p. 75) deixa ainda mais evidente o alinhamento editorial do jornal com a Frente Ampla, notado na cobertura que o CM deu à Declaração de Lisboa?.

O jornalista Hélio Fernandes, relatou na Tribuna da Internet[6] que as duas primeiras reuniões para tratar da Frente Ampla aconteceram em sua residência e as outras seis na casa do empresário Alberto Lee. Segundo Hélio Fernandes, as pessoas que trataram da questão da Frente Ampla teriam sido ele e Rafael de Almeida Magalhães, além de Sandra Cavalcanti, que teria conversado com Juscelino Kubitschek na Europa antes mesmo de acontecer a o encontro do ex-presidente com Carlos Lacerda. Tomando por base as declarações de Hélio Fernandes, a proposta de uma Frente Ampla teria surgido quando Lacerda ainda ocupava o cargo de governador da Guanabara e, que as reuniões se iniciaram ainda no ano de 1965. Em sua declaração ele afirma que:

Uma noite, ainda no governo, Carlos Lacerda chamou Rafael e a mim para conversar sobre os encontros, que estavam para começar. (Ninguém chamava de Frente Ampla, isso foi denominação dada pelos jornais, depois que Lacerda leu na redação da Tribuna da Imprensa, o documento que ia ser assinado por ele, João Goulart e Juscelino) (FERNANDES, 2011)[7].

O que teria motivado Lacerda a articular uma frente de resistência política ao regime militar, na visão de Hélio Fernandes fora sua presunção de que Castelo Branco e a cúpula do governo já estariam tramando seu distanciamento da possibilidade de concorrer à Presidência da República em 1966. Fernandes relata isso em seu blog, no qual mantem uma série de textos relembrando passagens de sua atuação como jornalista durante os anos da ditadura:

No início de 1965, Lacerda me disse com ar de lamentação: ?O presidente Castelo Branco me chamou e me convidou para embaixador na ONU. Compreendi que não era um convite e sim um veto antecipado a qualquer pretendida candidatura minha a presidente. Recusei na hora? (FERNANDES, 2015)[8]

Sabendo disso, Fernandes abriu sua casa para as primeiras reuniões que culminariam na Frente Ampla. A partir do depoimento de Hélio Fernandes, compreende-se que em 1965, Lacerda não tinha uma estratégia pensada sobre como resistir aos militares. Fernandes comenta que comunicou a Carlos Lacerda sobre os encontros em sua residência e passou-lhe uma lista de pessoas que estariam presentes:

Falei, o coronel-Ministro da Saúde de Jango, Wilson Fadul, torturadíssimo, o Brigadeiro Teixeira, grande líder da Aeronáutica, o editor Ênio Silveira, tão comunista que seu primeiro filho se chama Miguel Arraes da Silveira, Flávio Rangel, notável jovem que acabara de fazer com Millôr, o maior espetáculo depois do golpe, ?Liberdade. Liberdade?, ele me interrompeu, ?Eu vou? (FERNANDES, 2015)[9].

As informações e nomes levantados até aqui não nos garante que a Frente Ampla teria surgido por iniciativa do jornalista Hélio Fernandes em receber em sua própria casa uma série de pessoas que de algum modo resistiam à ditadura. Nota-se que há casos de pessoas que estavam rompendo com o regime quando se viram preteridos por ele, como Lacerda, e casos de pessoas que desde o princípio combateram o golpe, como se observa pela presença de Ênio Silveira, citado tanto por Fernandes como pelo historiador Jorge Ferreira.

As declarações de Hélio Fernandes merecem ser ponderadas por se tratar de um resgate de sua própria memória acerca dos fatos por ele narrados. Outro aspecto importante é a imensa proximidade que o jornalista possuía com Carlos Lacerda, amigos íntimos e com contatos profissionais importantes, sobretudo por meio do jornal Tribuna da Imprensa. Numa das passagens de seu depoimento sobre Lacerda e a Frente Ampla, Fernandes se refere ao amigo com a passagem que segue:

O golpe e a tomada do Poder, em 1º de abril de 64, já em 1965 Lacerda recusava ser embaixador na ONU, participava de reencontros com adversários. Todos perseguidos pela ditadura, como podem dar tanta ênfase e importância à sua participação no golpe? (FERNANDES, 2015)[10].

O julgamento pessoal de Fernandes não contribui para completarmos o imenso quebra-cabeça de fatos e personagens que compuseram a Frente Ampla. Apesar de sua contribuição ao revelar nomes de pessoas que circularam por aquele contexto, ficam algumas lacunas que não explicam, por exemplo, a própria iniciativa de se criar uma frente de resistência reunindo tantos cassados pelo regime, ou seja, não atribui nenhum significado ao impacto do AI-2 sobre a vida política de Lacerda. A problematização sobre esta questão deve ser tomada partindo da própria atuação de Carlos Lacerda durante os anos de 1966 e 1967, conforme constatamos nos periódicos da época.

A Folha da Semana publicou um editorial em tom de crítica a algumas ações e objetivos de Lacerda. A explanação do semanário nos possibilita identificar o ex-governador sustentado sobre um projeto aliancista que extrapolava os membros civis e militares opositores ao regime, que compunham a Frente Ampla, além de se utilizar de uma tática conciliatória com os militares. Ora, o número 65 ? 1º a 7 de dezembro de 1966 ? afirmava que Carlos Lacerda fazia declarações de que o partido que pretende criar ?não fará oposição ao substituto de Castelo Branco, o que pressupõe uma diferença essencial entre os dois governos. Essa diferença não existe?. Na análise do próprio jornal esta declaração visaria um acordo de Lacerda com Costa e Silva.

No mesmo editorial, a Folha da Semana nos permite observar de forma muito mais clara como se formou a estrutura de sentimento da resistência ao regime, pois dizia que toda a aliança de forças heterogênea, como era o caso da Frente Ampla se manifestava numa luta entre forças aliadas. Dessa maneira: ?Cada uma dessas forças procura, naturalmente, canalizar todo o potencial da frente em favor de seus interesses e pontos de vista?. O editorial terminava com um chamado à luta, algo constante no semanário:

A frente ampla contra o regime de abril é um fato positivo, pois ajuda a isolar o Governo ?revolucionário? e favorece a união e articulação das forças oposicionistas. Mas a frente só tornará possível uma solução democrática para a crise nacional quando os que mais sofrem sob o peso da opressão ? os trabalhadores, os servidores públicos, os estudantes, os intelectuais ? exercerem influência decisiva nos acontecimentos, através de suas organizações e de seus líderes (p. 2).

Em 1967, a Folha da Semana não era mais publicada, entretanto, por meio do Jornal do Brasil e Correio da Manhã ainda é possível acompanhar os passos de Lacerda na construção da Frente Ampla.

O Jornal do Brasil se manteve num posicionamento crítico aos opositores do regime, tanto que em 27 de setembro de 1967, publicou o editorial Além da Fronteira questionando as contradições e incoerências das ações de Lacerda, além de frisar sua antiga ambição de se tornar presidente. Chammas (2012, p. 76) sintetiza a opinião do jornal afirmando que ?o personalismo de Lacerda e sua fixação pela presidência são o principal objeto de análise, crítica e discussão nos editoriais do JB, sem que o fato político mereça qualquer olhar mais cuidadoso?.

O Correio da Manhã, por sua vez, mesmo tendo apoiado a Frente Ampla, até mesmo pela citada participação de seu diretor Edmundo Moniz nas reuniões, não poupava Lacerda de críticas sobre sua postura parasitária como líder da Frente.

Uma das críticas se dirige ao fato de que o único beneficiado pela ?bandeira das eleições diretas? seria Carlos Lacerda, o único dos líderes não cassado. Outra se dirige ao fato de que nenhum dos dois [Lacerda e Jango] têm uma ficha pregressa de respeito à democracia, e que ?o ciclo de crises entre 1946-64 ocorreu sob o signo desses dois demagogos? (CHAMMAS, 2012, p. 76).

A Frente Ampla como estrutura de sentimento dos liberais críticos: análise sociológica de um setor das resistências

O que vimos são três formações culturais com posições diferentes entre si, ainda que entre a Folha da Semana e o Correio da Manhã houvesse frágeis pontos de convergência, tornando-os núcleos de resistência ao regime e o Jornal do Brasil como braço civil apoiador ao mesmo regime. De certa forma, Folha da Semana e Correio da Manhã revelaram muito da importância que teve a Frente Ampla no processo de organização de algo que acontecia paralelamente à sua construção, que foi a formação da rede de intelectuais, através de suas representações nos jornais e revistas. Além disso, os jornais faziam convergir e reforçar a noção de amplitude da Frente Ampla ao se afirmarem na resistência no campo cultural, enquanto a Frente atuava basicamente na intervenção política direta, ou seja, os periódicos ressaltavam e expunham a reorganização da oposição.

É interessante colocar em debate que a proposta da Frente Ampla não visava uma união de classes. Seu objetivo imediato era a organização de uma resistência que estava difusa e não vinculada aos partidos existentes ? ARENA e MDB ? a fim de garantir inserção e influência no cenário político-partidário que se instalou após o AI-2.

Com esse quadro e apoiado nas informações contidas em todos os números analisados da Folha da Semana verificamos a emergência de uma estrutura de sentimento que se manifestou pela maneira que uma formação cultural como a Folha da Semana retratou e representou (-se) a e na Frente Ampla, inclusive apontando para os seus limites enquanto organizadora de uma oposição, e não se atendo a uma visão meramente jurídico-político e eleitoral, como fazia o CM. Os editoriais da Folha da Semana mesmo que buscasse recuperar aspectos da proposta frentista do Partido Comunista Brasileiro (PCB), expressavam ao mesmo tempo uma defesa dos valores jurídico-políticos e eleitorais da Frente Ampla, por se colocar favorável à sua pauta, por outro lado, reforçava a sua própria condição e relevância no fragmentado cenário das resistências e oposições ao regime ditatorial. O amplo contingente de intelectuais amparados institucionalmente por este semanário permitiu uma aproximação sem receios com a Frente Ampla, dada uma cultura frentista entre estes intelectuais que olhou com generosidade para a proposta, mesmo vinda de Carlos Lacerda.

Portanto, a noção de Frente Ampla é aqui tomada pela leitura realizada nos editoriais e demais textos do semanário, não deixando de reconhecer as contribuições dos periódicos estudados por Eduardo Chammas.

Metodologicamente, o conceito estrutura de sentimento formulado por Raymond Williams é uma ?hipótese cultural? de especial relevância para a arte e literatura (WILLIAMS, 1979, p. 134-135), contudo, pautado em nossa análise que se ampara numa formação cultural ? Folha da Semana ? é possível encontrar neste espaço empírico e em suas práticas uma forma de superação dos limites do conceito e compreendermos a Frente Ampla, uma organização de caráter político sui generis, através da noção de estrutura de sentimento. Muito embora a Frente Ampla não tivesse a perspectiva de resistência cultural, a maneira pela qual, formações culturais do porte da Folha da Semana e Correio da Manhã se posicionavam a seu respeito é o que nos permite situá-la de tal modo. Haja vista, a maneira como estes jornais aderiram a uma campanha ? cada um seguindo a sua linha editorial ? de defesa e até mesmo ampliação da Frente Ampla e, o modo como ela mesma serviu de amparo a certas práticas empreendidas por intelectuais numa relação entre si, ou seja, os intelectuais que se projetavam e se legitimavam através das formações culturais, isso é, no plano da cultura, puderam se apoiar na Frente Ampla como seu instrumento de participação política mais direta. Assim, vemos que estes intelectuais puderam ampliar seus espaços de comunicação e atuação tendo como pano de fundo a Frente Ampla, mas se legitimando institucionalmente pela via do mercado, dos jornais e revistas, que consagraram-se pela proposição de discussões em torno do engajamento e do comprometimento social dos intelectuais, fomentando um conjunto de mudanças na organização dos intelectuais no espaço público, propiciando, por sua vez, a construção de sua representação social no mercado de bens culturais ? indicando um quadro mais complexo no qual estas questões estavam encerradas. Destarte, temos que a Frente Ampla se apresentou como algo mais complexo do que seria se fossemos estudá-la por um viés apenas político-ideológico. O que ela proporcionou, de certa forma, foi a ampliação da intervenção do intelectual no espaço público de debates, visto a presença de importantes intelectuais que participavam das reuniões sobre a Frente Ampla e, que tinham objetivos próximos que os levaram a compartilhar experiências, visões de mundo e valores que eram sentidos e vividos ativamente no campo mais geral, que era o das resistências. Em suma, a Frente Ampla, por sua composição, estabeleceu um elo com a cultura. Isso, não de forma direta, com a intenção, mas devido a sua composição heterogênea de intelectuais que em torno dela gravitavam.

Defendo a ideia de que Raymond Williams nos oferece esta possibilidade de ampliarmos o conceito, dado que se deve partir de determinada realidade empírica, portanto, propondo o conceito a posteriori, sem perder a noção de totalidade ao invés de tomá-la através de um modelo pronto, de forma apriorística, que necessitaria de adaptações a cada objeto de estudo.

O erro, como ocorre com frequência, está em tomar os termos de análise como termos de substância. Falamos, assim, de uma visão de mundo ou de uma ideologia predominante, ou de uma perspectiva de classe, com frequência com evidências adequadas, mas nessa inclinação regular para um tempo verbal de passado e uma forma fixa, supomos, ou mesmo nem sabemos que temos de supor, que elas existem e são vividas de forma específica e definitiva, em formas singulares e em desenvolvimento (WILLIAMS, 1979, p. 131-132).

O termo estrutura de sentimento não está tratando de ideologia ou visão de mundo, pois não é a isso que se refere a ideia de "sentimento". Mesmo considerando crenças sistemáticas, o "sentimento" leva em conta os significados e valores no modo como são sentidos ativamente, além das relações entre os significados e valores. A expressão é usada ?para ressaltar uma distinção dos conceitos mais formais de ?visão de mundo? ou ?ideologia?? (WILLIAMS, 1979, p. 134). Ideologia e visão de mundo são historicamente variáveis. Variam em relação aos aspectos que vão da aprovação ou desaprovação até a interação mais diversificada das ideologias e das visões de mundo, portanto, se alteram no tempo e nas apropriações.

Não se trata, para Williams, de contrapor pensamento a sentimento, mas:

[...] de pensamento tal como sentido e de sentimento tal como pensado: a consciência prática de um tipo presente, numa continuidade viva e inter-relacionada. Estamos então definindo esses elementos como uma ?estrutura?: como uma série, com relações internas específicas, ao mesmo tempo engrenadas e em tensão. Não obstante, estamos também definindo uma experiência social que está ainda em processo, com frequência ainda não reconhecida como social, mas como privada (1979, p. 134, grifo do autor).

Referir-se a estrutura de sentimento como experiência social ?em processo? e ?não reconhecida como social? é compreendê-la como ?experiência viva?, fenômeno que não se manifesta de imediato a quem dela compartilha, portanto não perceptível aos intelectuais e artistas naquele instante. Williams (1979, p. 134-135) explica que a esta experiência são, ?com frequência, mais reconhecíveis numa fase posterior, quando foram [...] formalizadas, classificadas e em muitos casos incorporadas às instituições e formações?.

A Frente Ampla, conforme os editoriais dos jornais e os depoimentos encontrados, era naquele momento ? 1966 até 1968 ? uma experiência privada de um grupo de políticos e intelectuais que visavam promover resistência, cada um à sua maneira, com objetivos e perspectivas diversas. Afinal, seu poder de intervir na política partidária dentre aqueles anos revelou-se muito limitado, porém expressou algo que extrapolava a sua compreensão naquele momento ? ou a auto compreensão que os próprios membros poderiam ter da Frente Ampla ? que foi capacidade de exercer a autonomia que um intelectual poderia ter. Pois, à primeira vista a Frente Ampla se mostra como um reflexo daquele contexto político conturbado, a julgar por seu caráter conciliatório e aliancista, denunciado pela Folha da Semana. Entretanto, de modo mais complexo, ao ter sido uma manifestação da reorganização das oposições, a Frente Ampla se revela como uma resposta que os intelectuais puderam dar ao mesmo contexto, sendo que a estrutura de sentimento ?é a articulação de uma resposta a mudanças determinadas na organização social? (CEVASCO, 2001, p. 153).

Logo, encontramos o ponto fundamental para estabelecer as relações do intelectual ou artista a uma estrutura de sentimento. Relações estas que são forjadas em períodos anteriores aos das mudanças na organização social. O sentimento não surge no exato momento em que se forma enquanto estrutura a fim de responder a alguma mudança. O sentimento possui uma base social, política, cultural e econômica prévia, que por sua vez nos coloca o problema da origem do sentimento que sustentou a Frente Ampla.

Marcelo Ridenti (2005) trabalhou com o conceito estrutura de sentimento aliado à noção de romantismo ? sobretudo sua hipótese que se remete ao romantismo-revolucionário, formulado por Michael Löwy e Robert Sayre, para caracterizar o florescimento cultural e político entre os anos 1960 e 1970 na sociedade brasileira[11]. Segundo Ridenti,

[...] a estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária não nasceu do combate à ditadura, mas vinha de antes, forjada no período democrático entre 1946 e 1964, especialmente no governo Goulart, quando diversos artistas e intelectuais acreditavam estar na crista da onda da revolução brasileira em curso. A quebra de expectativa com o golpe de 1964 ? ainda mais sem resistência ? foi avassaladora também nos meios artísticos e intelectualizados, como atestam o artigo clássico de Roberto Schwarz, publicado pela primeira vez em 1970 na França (2005, p. 85).

Ridenti pôde sustentar a noção de romantismo com base nas tipologias de Löwy e Sayre, que explicam o caráter de duas manifestações românticas mais à esquerda: a revolucionária e a utópica. Ambas encontram no passado alguns importantes valores que teriam se perdido na modernidade, resgata no passado os elementos necessários à superação do capitalismo. A crítica de viés romântico incidiria sobre a modernidade como totalidade complexa, algo que envolve as relações de produção ? centradas no valor de troca e no dinheiro, sob o capitalismo ?, os meios de produção e o Estado (RIDENTI, 2005, p. 83).

A fórmula encontrada por Ridenti na utilização da estrutura de sentimento lhe possibilitou compreender as ?ondas de rebeldia e revolução?, sobretudo nas diferentes expressões artísticas, como no teatro, música, cinema e literatura. Contudo, a ideia de estrutura de sentimento da brasilidade (romântico-) revolucionária (2005, p. 86) proposta pelo autor pouco nos ajuda a categorizar a Frente Ampla em sua expressão, de um lado, política e, de outro, cultural, porém liberal. É factível a afirmação de Paul Filmer (2009) de que o ?conceito de estruturas do sentimento continua a ser a chave metodológica mais apropriada para a elucidação crítica das práticas artísticas através das quais as obras de arte se relacionam sociologicamente aos processos sociais gerais? (p. 374). Não apenas às artes, mas a toda expressão no campo da cultura, como no caso da imprensa e sua capacidade de intervir mais diretamente no campo político, inclusive se tornando uma fomentadora de tensões, visto sua interlocução mais direta com o público, sua linguagem mais elucidativa.

Assim sendo, a fim de solucionar a questão das origens que permitiram a formação da estrutura de sentimento da Frente Ampla, reporto-me às tipologias pensadas por Marcos Napolitano (2011) para se compreender a divisão das resistências durante os primeiros anos do regime militar[12].

Seguindo, portanto, esta classificação fornecida por Napolitano percebe-se que a definição de liberais críticos como o setor da resistência que estava sempre disposta a negociar (2011, p. 28) coincide com aquela análise da Folha da Semana referente ao caráter conciliatório do partido pretendido por Carlos Lacerda através da Frente Ampla. Napolitano reafirma essa característica associando brevemente os liberais críticos à Frente Ampla, explicando que esta teria sido sua maior expressão (2011, p. 29). A despeito da composição heterogênea da Frente Ampla, sabe-se até o momento que não houve participação de pessoas ligadas ao PCB, salvo o caso isolado de Ênio Silveira. Dessa forma, o que poderia ter existido na Frente Ampla de uma estrutura de sentimento da brasilidade (romântico-) revolucionária era a influência indireta exercida pelas formações culturais que a apoiaram e tinham dentre seus quadros intelectuais ligados ao PCB, mas não apenas isso, pois esses quadros compartilhavam valores desta estrutura de sentimento, mesmo sem vínculo direto ao Partido[13].

A Frente Ampla, pensada por esta ótica, deu origem a outra estrutura de sentimento cuja pré-formação deve ser buscada em valores ligados à democracia e ao populismo dos anos precedentes ao golpe.

Ridenti comenta de que na década de 1960 a revolução ganhava os corações e as mentes e que a democracia só se tornaria o alvo das atenções anos depois, ou seja, a revolução estava presente como característica inata ao romantismo das esquerdas e se somou como valor compartilhado na estrutura de sentimento da brasilidade (romântico-) revolucionária. Sua presença entre artistas e intelectuais dos anos 1960, portanto, não era fortuita, visto que as diferentes manifestações artísticas, por exemplo, com propostas de revolução, marcaram o debate político e estético, especialmente entre 1964 e 1968 (RIDENTI, 2000, p. 44).

A Frente Ampla, dadas suas características, como composição, objetivos e atuação não compartilhou desse desejo revolucionário da estrutura de sentimento da brasilidade (romântico-) revolucionária. Particularmente, a Folha da Semana também não compartilhava, enquanto instituição e linha editorial, apenas por alguns colunistas, intelectuais da esquerda comunista e artistas engajados, que apesar disso merecem um estudo aprofundado.

O núcleo liberal da Frente Ampla conservava valores difusos que iam de um centralismo oscilante ao direitismo, contudo pregando a democracia como discurso comum, ainda que houvesse nuances interpretativas acerca do significado do termo. A exemplo disso, Weffort (2003, p. 56) defende que a queda da ditadura de Vargas em 1945, parecia o início da verdadeira democracia no Brasil, desejo cultivado desde os anos 1920 pelas classes médias urbanas. Esta ambição possuía o aporte institucional da UDN, que no período de luta contra a ditadura varguista, tinha a pretensão não apenas de ser o partido da direita, mas uma ?ampla frente democrática? (WEFFORT, 2003, p. 66). Contudo, para este setor médio tradicional, representado pela UDN, a redemocratização se tornou frustrada, pois nas palavras de Weffort: ?A jovem democracia brasileira terá como fundamento a massa e, como chefes, os líderes populistas? (2003, p. 57). A ala mais à direita dos intelectuais e políticos nos anos pré-golpe ? alguns deles da Frente Ampla ? flertaram com correntes ideológicas, tais como o autoritarismo, nacionalismo de direita, liberalismo-conservador; assim como, os moderados de centro tiveram muita influência do trabalhismo e do populismo.

Podemos, assim, categorizar a Frente Ampla como parte de uma estrutura de sentimento dos liberais críticos, cujos interesses e ideias encontravam alguma isonomia ao se posicionarem como resistência à ditadura militar. Essa estrutura de sentimento dos liberais críticos contava com o suporte de uma parte da grande imprensa e da alternativa, demais formações culturais ? composta por intelectuais de diversos matizes político-ideológicos. Estes intelectuais dotados de autonomia suficiente para reorganizarem as oposições no pós-golpe e, especialmente após a imposição do AI-2, faziam o trânsito de ideias diversas, entre a estrutura de sentimento da brasilidade (romântico-) revolucionária, estrutura de sentimento dos liberais críticos e o público que consumia os jornais aos quais se vinculavam. Podemos, portanto, nos referir a uma estrutura de sentimento oposicionista, difusa e sem programa específico de transição, mas forte como expressão catártica entre os intelectuais, e não necessariamente mobilizadora.

Considerações Finais

Estes jornais ou formações culturais serviram de pontos de conexão da Frente Ampla com a política e a cultura, algo que me possibilitou considerá-la como uma estrutura de sentimento singular, na qual ideias de origem populista, nacionalista, liberal-conservadora e udenista dialogaram com expressões mais à esquerda e liberal crítica ou moderada e, até mesmo pecebistas, a saber, da presença de Ênio Silveira e o grupo Civilização Brasileira que ?abrigava? a Folha da Semana e seus intelectuais. São estes fluxos de representações intelectuais, por meio de diversas formações culturais que nos favorecem identificar a influência direta da Folha da Semana na construção da resistência cultural e seus desdobramentos na resistência política representada na Frente Ampla. Esta que em 1968 seria desbaratada com o advento do AI-5, fechando portando o seu canal de acesso político direto; e pelo fechamento da Folha da Semana, em 1967 e o aumento a perseguição ao Correio da Manhã ? que o levou em 1969 ao arrendamento para outros proprietários de linha editorial governista ? que o impossibilitou de manter uma forma de diálogo com a população, portanto restringindo-o ao campo de visão da população insatisfeita.

Do ponto de vista da organização, os intelectuais envolvidos no projeto editorial da Folha da Semana estiveram sempre empenhados em debater os pressupostos de sua articulação no plano da cultura. Sua legitimação dava-se proporcionalmente na afirmação da importância da figura do intelectual no espaço público, em especial nos meios de comunicação, como um epicentro pelo qual passava em debate os projetos para transformação da sociedade brasileira.

Referências bibliográficas

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CHAMMAS, Eduardo Zayat. A Ditadura Militar e a Grande Imprensa: Os Editoriais do Jornal do Brasil e do Correio da Manhã entre 1964 e 1968. Dissertação (Mestrado) ? FFLCH, Departamento de História. Programa de Pós-Graduação em História Social, São Paulo, 2012.

CZAJKA, Rodrigo. Páginas de Resistência: Intelectuais e Cultura na Revista Civilização Brasileira. Dissertação (Mestrado) ? Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.

FERREIRA, Jorge. João Goulart: Uma Biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

FILMER, Paul. A Estrutura do Sentimento e das Formações Sócio-Culturais: O Sentido de Literatura e de Experiência para a Sociologia da Cultura de Raymond Williams. Tradução de: OLIVI, Leila Curi R. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 14, nº 27, 2009.

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WEFFORT, Francisco. O Populismo na Política Brasileira. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

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Jornais e sites consultados

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Referencias

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Jango manda carta de apoio à Frente Ampla. Folha da Semana, Rio de Janeiro, capa, 7 de out a 02 de nov de 1966.

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JK e Lacerda querem tirar partido da Frente. Folha da Semana, Rio de Janeiro, p. 3, 24 a 30 de nov. 1966.

Os marechais. Folha da Semana, Rio de Janeiro, editorial, p. 2, 1º a 7 de dezembro de 1966.

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