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Para além do espaço/tempo de trabalho: estranhamento e adoecimento no corte de cana
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 14, núm. 1, 2017
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 14, núm. 1, 2017

Esta obra está licenciada com Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: O conceito de estranhamento, proposto por Marx, permite compreender o trabalho como criador de sociabilidade. Assim, apresenta-se neste artigo o aprofundamento do estranhamento nas relações sociais de cortadores de cana adoecidos. A pesquisa é qualitativa e contou com entrevistas semiestruturadas e observação direta em campo empírico - Araçuaí/MG, local de origem desses trabalhadores. Camponeses expropriados são proletarizados e submetidos a condições precárias de trabalho no corte de cana. O cortador de cana, sujeito estranhado, ser genérico cindido, ao adoecer deixa de ser força de trabalho, mas permanece cindido em suas relações. Impedido de vender a força de trabalho, está fora das relações de trabalho, mas permanece dentro de relações sociais mediadas pela mercadoria; não deixa de ser mercadoria, torna-se mercadoria descartada. O estranhamento não desaparece, mas se aprofunda. Esse é um dos processos decorrentes do trabalho nos canaviais, que se estende para fora do espaço/tempo de trabalho.

Palavras-chave: corte de cana, trabalho, sociabilidade, adoecimento, estranhamento.

Resumen: El concepto de extrañamiento, propuesto por Marx, permite comprender el trabajo como creador de sociabilidad. Así, se presenta en este artículo la profundización del extrañamiento en las relaciones sociales de cortadores de caña enfermos. La investigación es cualitativa y contó con entrevistas semiestructuradas y observación directa en campo empírico - Araçuaí / MG, lugar de origen de esos trabajadores. Los campesinos expropiados son proletarizados y sometidos a condiciones precarias de trabajo en el corte de caña. El cortador de caña, sujeto extrañado, ser genérico escindido, al enfermar deja de ser fuerza de trabajo, pero permanece escindido en sus relaciones. Impedido de vender la fuerza de trabajo, está fuera de las relaciones de trabajo, pero permanece dentro de las relaciones sociales mediadas por la mercancía; no deja de ser mercancía, se convierte en mercancía descartada. El extrañamiento no desaparece, pero se profundiza. Este es uno de los procesos derivados del trabajo en los cañaverales, que se extiende fuera del espacio / tiempo de trabajo.

Palabras clave: corte de caña, trabajo, sociabilidad, enfermedad, extrañamiento.

Abstract: The concept of estrangement, proposed by Marx, allows us to understand work as a creator of sociability. Thus is presented in this article the deepening of estrangement in the social relations of cane cutters who are ill. The research, of qualitative character, was based on semistructured interviews and direct observation in an empirical field - Araçuaí/MG, the place of origin of these workers. Expropriated peasants are proletarianized and subjected to precarious working conditions in sugarcane cutting. The sugarcane cutter, a strange subject, a generic divided being, when falls ill stops being a work force while still remaining a divided being within his/her immediate relations. Prevented from selling his/her workforce, is put outside work relations while remaining part of social relations mediated by the commodity; he/her do not cease to be a commodity, he/her becomes a discarded commodity. The estrangement does not disappear but deepens. This is one of the processes arising from working in sugarcane, which extends outside the work space/time.

Keywords: sugarcane cutting, work, sociability, illness, estrangement.

APRESENTAÇÃO

Partindo da reflexão de Marx sobre estranhamento (entfremdung)[2], presente n?Os Manuscritos Econômicos Filosóficos (2010), é possível analisar a atual situação dos cortadores de cana adoecidos no que tange à sua subjetividade. Neste artigo, busca-se apresentar a permanência de relações estranhadas no cotidiano desses trabalhadores adoecidos ? em específico daqueles que perderam a capacidade laboral, para além do espaço/tempo de trabalho, assim como o aprofundamento desse processo. Os dados apresentados são resultado da investigação de doutorado em Sociologia da presente autora.

Procedimentos metodológicos

A pesquisa teve base qualitativa, com observação direta em campo empírico e entrevistas de roteiro semiestruturado. A escolha do município de Araçuaí como lócus da pesquisa foi resultado do acúmulo de trabalhos que apontavam parte da região do Vale do Jequitinhonha (onde está situada Araçuaí, na microrregião do Médio Jequitinhonha), como lugar de intenso fluxo migratório para os canaviais paulistas (SILVA, 1999, LEITE, 2011, 2015, RAMALHO, 2014). A participação da autora no IV Fórum das Mulheres do Vale do Jequitinhonha - atividade desenvolvida no âmbito de um projeto de extensão da UFMG - permitiu um primeiro contato com a região, e a percepção de que o retorno definitivo dos cortadores de cana adoecidos para seus locais de origem trazia outros elementos para a análise. O movimento contrário da migração, o retorno definitivo dos trabalhadores da cana por conta do adoecimento, parecia trazer informações até então não investigadas.

Foi no município de Araçuaí onde se realizou a maioria das entrevistas, mas a observação direta ocorreu também em outras cidades (Minas Novas, Virgem da Lapa, Chapada do Norte, Turmalina, Berilo). A amostragem foi definida por meio do método ?bola de neve?, uma amostragem não probabilística que usa cadeias de referências (VINUTO, 2014). Assim, informantes-chave previamente escolhidos indicam, a partir de suas redes pessoais, sujeitos de pesquisa a ser entrevistados dentro da população geral estudada. Por sua vez, estes indicam outros e, como numa bola de neve, a amostragem cresce. Para a presente pesquisa, estabeleceram-se como informantes-chave membros de serviços de equipamentos públicos que poderiam dar atendimento aos cortadores de cana e suas famílias. Desse modo, buscaram-se o Centro de Referência em Assistência Sociais (CRAS), Centro de Referência Especializada em Assistência Social (CREAS) e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)[3], além do Sindicato Rural, médicos do SUS, e representantes do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).

As primeiras entrevistas foram com assistentes sociais, psicólogas, médicos, e peritos do INSS. As entrevistas foram de roteiro semiestruturado e diferenciadas para cada grupo de entrevistados. Assim, com os representantes dos serviços públicos da saúde, assistência e previdência social, tratou-se sobre o panorama geral da situação dos adoecidos da cana, suas demandas e a capacidade de resposta do Estado frente a elas. A partir desses informantes, foi possível chegar aos familiares e ao cortadores de cana em si. Com os familiares (esposas e mães), o roteiro de entrevista teve o intuito de compreender a (re)organização das relações de gênero após o adoecimento do cortador de cana. E, com estes em específico, foram trabalhados os eixos trabalho,saúde/doença e aposentadoria. Ao todo, realizaram-se 29 entrevistas; os dados apresentados são análises parciais desse material.

Para que seja possível estabelecer uma reflexão sociológica sobre o que se chama de estranhamento aprofundado é preciso contextualizar historicamente o trabalho no corte de cana de açúcar. O artigo se dividirá em três partes, a primeira retomará os principais autores que trataram sobre o trabalho no corte de cana e sua característica migratória, a segunda apresentará os principais aspectos do conceito de estranhamento em Marx, por último, a reflexão sobre o aprofundamento do estranhamento dos cortadores de cana adoecidos. Pretende-se demonstrar que a vivência do adoecimento não cessa as relações estranhadas, mas as aprofunda, já que as relações sociais e o próprio sujeito permanecem cindidos.

1. MIGRAÇÃO, TRABALHO E ADOECIMENTO NO CORTE DE CANA

Os cortadores de cana são, em maioria, migrantes, que saem de suas terras em busca de melhores condições financeiras. O lócus da pesquisa foi o município de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, região que contou com intenso fluxo migratório para os canaviais paulistas. As relações sociais e produtivas no território denominado Vale do Jequitinhonha representaram desafios penuriosos para alguns de seus habitantes, resultado de uma construção exploratória do espaço - algo presente na região desde a época da mineração no século XVIII. Defende-se que a formação histórica, social, política e econômica do território produziu a migração - entendida não como direito de ir e vir, mas mobilidade produzida por necessidade, o que configura uma liberdade negativa (GAUDEMAR, 1977).

Gaudemar (1977) elabora, a partir da reflexão de Marx sobre a mercadoria força de trabalho, o que denominou de mobilidade forçada. Neste conceito, mais do que uma relação de livre venda e compra da mercadoria força de trabalho (liberdade positiva), há uma despossessão tamanha que o possuidor da mercadoria não tem outro meio de reprodução que não a venda de sua força de trabalho (liberdade negativa). A venda da força de trabalho se torna indispensável à manutenção da vida. Nesses dois tipos de liberdade, positiva e negativa, há uma dupla determinação: ?o trabalhador dispõe livremente da sua força de trabalho, mas tem absoluta necessidade de a vender? (1977, p.190). Essa dupla determinação da liberdade permite compreender a construção social da mobilidade capitalista do trabalho - a mobilidade do trabalho é produzida historicamente.

O que tem a aparência de uma relação de troca entre proprietários (da força de trabalho e dos meios de produção) subjaz relações de violência e expropriação, condições necessárias à própria constituição da força de trabalho. A liberdade de venda da força de trabalho é a essência de sua própria exploração, pois essa venda só é feita de acordo com as necessidades do capital. A mobilidade não é dos sujeitos, mas dos corpos produtivos. Mobilidade forçada e construída a fim de garantir a reprodução do capital (GAUDEMAR, 1977). É desse modo que podemos entender a migração para o corte de cana, menos como escolha - já que não há opção -, e mais como necessidade. Cabe uma breve apresentação sobre o local de origem dos cortadores de cana foco dessa análise, Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, para que vejamos a concretude da mobilidade forçada.

1.1 Breve histórico do Vale do Jequitinhonha


Figura 1
Microrregiões Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais
Portal Polo Jequitionhonha-MG

Apresenta-se aqui brevemente a história da região que se convencionou chamar de Vale do Jequitinhonha, local de origem de muitos cortadores de cana, para onde devem retornar na entressafra e onde permanecem definitivamente após o adoecimento. Houve dois movimentos de ocupação no Vale do Jequitinhonha, um na área do Alto Jequitinhonha (região de Diamantina e Capelinha), explorando ouro e diamantes[4], e o segundo, que decorre do declínio dessa exploração, que desceu ao Médio e Baixo Jequitinhonha (sentido Estado da Bahia) (MAIA, 2000, BOTELHO, 1999). No decorrer do rio, pequenos povoamentos se organizavam, desenvolvendo agricultura de subsistência e criação de gado, que servia também como fornecimento de alimentos para aqueles que transitavam pelo rio. Muitos bandeirantes se fixavam na região, tornando-se criadores de gado em grandes fazendas adquiridas por meio da concessão da Coroa Portuguesa (BOTELHO, 1999). A posse da terra no território ao longo da bacia do rio Jequitinhonha ocorreu em três movimentos: pela concessão de cartas de sesmaria; pela posse consentida - agregados e sitiantes ocupavam a terra sob os domínios da grande fazenda; e pela posse desassistida - ocupação do território de maneira independente (BOTELHO, 1999).

A produção de subsistência esteve presente na região desde a época da mineração, como fornecimento de alimento às lavras, aos pequenos centros urbanos que se formavam ou como produção autônoma de subsistência, e se manteve nos demais períodos. A relação dos camponeses com a natureza era simbiótica, baseada não na delimitação de propriedade privada, mas no uso comum da terra, ocupando os espaços das chapadas, grotas e veredas como meios de viabilizar a subsistência. Os camponeses que ali habitavam plantavam milho, feijão e arroz nas grotas, colhiam raízes, caçavam, e soltavam o gado nas chapadas, e ainda pegavam barro nas veredas para produção de artesanato, caracterizando um ?modo de vida secular assentado nas relações homem-natureza, no direito costumeiro da posse pessoal e da terra comum e na existência de uma história da natureza? (SILVA, 1999, p.45).

Entretanto, para os projetos modernizadores que vinham se formando desde o período colonial, a região carecia de desenvolvimento e em diferentes momentos se buscou estratégias para sua realização. No decorrer do período colonial, imperial e republicano, planejamentos e ações de figuras políticas e religiosas de Diamantina ou Minas Novas se dedicavam a seminários, reuniões e grupos de trabalho com a perspectiva de tornar o Vale do Jequitinhonha mais produtivo e competitivo em suas atividades econômicas. Contudo, por detrás do discurso do desenvolvimento, havia a proposta de que o Vale do Jequitinhonha fosse local de intervenção estatal, retomando termos como pobreza e miséria para representar a ?região? e fazê-la carente dessa intervenção (LEITE, 2015). Já no período do regime militar, a atuação estatal ia na via do projeto capitalista de desenvolvimento, que buscava a modernização, industrialização e integração nacional. Nesse sentido, a bacia do rio Jequitinhonha se tornou a região Vale do Jequitinhonha em 1964.

A bacia do Vale do Jequitinhonha torna-se uma região delimitada político-administrativamente, com características analisadas segundo interesses estatais (nem sempre públicos), [?] uma articulação proposta a partir de atores e racionalidades específicas que buscam, via políticas estatais, a regionalização do território nacional. Estava criada uma ?região-problema?. Estava criada aí, e em especial a partir daí, o Vale do Jequitinhonha (SERVILHA, 2012, p.51).

Criou-se um discurso de homogeneização da pobreza e do subdesenvolvimento sobre o Vale do Jequitinhonha. Essa construção discursiva seria argumento para a implantação de um projeto político para o local, como a cessão de crédito subsidiado para: a implantação da cafeicultura comercial e de larga escala, a produção de florestas homogêneas e modernização da produção pecuária. A Ruralminas - Fundação Rural Mineira - ?regulamentou? a ocupação das terras não tituladas, ignorando o uso comum das chapadas. ?Esse processo resultou no condensamento da pequena propriedade, desapropriação de camponeses sem posse e títulos de terras e destruição de formas tradicionais de relações de trabalho, como a agregação? (MAIA, 2000, p.42).

O projeto de desenvolvimento modernizador - expresso nas políticas de regularização das terras, incentivos ao reflorestamento, à pecuária extensiva e à cafeicultura -, tirou dos camponeses seus meios de vida, empurrando-os para outras formas de reprodução social. A destruição e fraudulenta compra das terras dos camponeses os expropriou de seus meios de reprodução, tendo a venda da força de trabalho como único meio de sobrevivência ? eis a mobilidade forçada baseada na liberdade negativa preconizada por Gaudemar (1977). O assalariamento aparece como única opção de sobrevivência: constitui-se o bóia fria (LEITE, 2011). O campesinato teve no trabalho migratório temporário a única opção para garantia de condições de subsistência. Migrar não se mostra tanto como opção, já que não há alternativas (de trabalho) para se escolher; trata-se de uma migração forçada que impôs um violento processo de proletarização ao campesinato expropriado. Assim, inicia-se a migração desses camponeses para o trabalho em outras culturas, como colheita de café, laranja e corte de cana, que se torna permanentemente temporária uma vez que ocorre paulatinamente no decorrer dos anos (SILVA, 1999).

Percebe-se que a migração do Vale do Jequitinhonha para o corte de cana não é um fenômeno que ocorre estanque às condicionalidades sociais e históricas. A migração é efetivada no bojo da expropriação camponesa, levada a cabo pelo Estado sob a justificativa de promoção de desenvolvimento que, na prática, buscava favorecer as classes dominantes. Esses expropriados tornam-se mão de obra assalariada nos canaviais paulistas, de camponeses transformam-se em bóias frias. O modo de vida das famílias camponesas passa a ser organizado pelo tempo da safra, o tempo da produção capitalista. Passam por um processo de desenraizamento (SILVA, 1999). Nesse sentido, cria-se uma massa de assalariados despossuídos não só de suas terras, mas de si mesmos, pelo próprio processo de proletarização.

1.2 O trabalho nos canaviais paulistas

Na produção de cana de açúcar a situação é de constante ?burla dos direitos no trabalho? (ANTUNES, 2013). Os cortadores de cana são selecionados no local de origem, onde são arregimentados por gatos[5]. Migrantes, camponeses expropriados que saem de suas terras em busca de melhores condições financeiras, encontram uma realidade laboral penosa - pagamento por produção, alojamentos precários, alimentação deficiente e ritmo de trabalho exaustivo, vencem a safra ano após ano; sendo superexplorados[6], acompanham o desgaste de seus corpos.

No trabalho, o cortador deve abraçar certa quantidade de cana com um braço e com a outra mão golpear a cana com o podão ao rés do chão. Esse movimento exige a total curvatura do corpo. São desferidos vários golpes de facão e depois a cana deve ser lançada nas leiras[7]. Laat (2010) concluiu que, em média, os cortadores de cana desferem 3.498 golpes de facão, realizando 3.080 flexões de coluna, cortando em média 12,9 toneladas por dia, um esforço que Alves (2007) comparou a de um atleta corredor fundista. Além de todo este dispêndio de energia, andando, golpeando, contorcendo-se, flexionando-se e carregando peso, o trabalhador sob o sol utiliza uma vestimenta pesada e quente (botina com biqueira de aço, perneiras de couro até o joelho, calças de brim, camisa de manga comprida com mangote de brim, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e pescoço e chapéu, ou boné), o que faz com que suem em abundância e percam bastante água. Junto com o suor, perdem sais minerais, e a perda de água e sais minerais leva à desidratação e à frequente ocorrência de câimbras (ALVES, 2006). Scopinho et al (1999) demonstraram o aumento da ocorrência de doenças cardiovasculares, psicossomáticas e do sistema gastrointestinal entre cortadores de cana. O estudo de Laat (2010) aponta que a atividade do corte de cana é penosa pelo tamanho curto do ciclo da realização da tarefa que exige força, atenção e destreza. Os ciclos inferiores a 30 segundos configuram possibilidade de lesões osteoarticulares, no corte de cana, o tempo do ciclo é de 5,7 segundos para o corte de três ruas, e de 4,36, para o corte de uma rua.

É consenso que o corte da cana é um trabalho estafante, que pode gerar (e gera) uma série de debilidades físicas, quando não a morte[8]. Uma vez que o salário pago aos cortadores de cana é calculado a partir de sua produtividade, pode-se dizer que seu ganho, ou seja, o aumento da produção, e a consequente ?melhoria? na sua condição de vida, vão depender justamente de sua capacidade física (NAVARRO, 2006, ALVES, 2006). Na pesquisa de Verçoza (2016), realizada em Alagoas, vemos as consequências físicas do trabalho no corte de cana durante uma safra. Os cortadores de cana ingerem grande quantidade de água, em média 8 litros em um dia de trabalho em que cortam 7 toneladas de cana, com um gasto médio de 3.518 calorias, caminhando até 10 quilômetros. Os batimentos cardíacos chegam a 200 por minuto. A maior parte dos trabalhadores nessa atividade extrapola a carga cardiovascular limite, ou seja, tem uma grande sobrecarga na frequência cardíaca. Em Alagoas, é frequente o relato dos cangurus, nome dado às câimbras que tomam o corpo inteiro dos trabalhadores, que faz com que percam o controle dos movimentos, encolhendo os braços, como um canguru. Em São Paulo, a mesma sensação é chamada pelos trabalhadores de birôla (SILVA, 2008) e em Araçuaí, de canguarí.

No caso dos cortadores de cana se afirma que o ?esforço realizado pelos trabalhadores é decorrente do processo de trabalho combinado com a forma de pagamento? (ALVES, 2008, p. 2). O pagamento por produção garante à empresa a intensificação do trabalho e aumento das jornadas de trabalho, uma vez que para garantir maiores ganhos os trabalhadores se submetem a altos níveis de esforço laboral físico. Apesar de o aumento no ritmo de trabalho garantir maior faixa salarial, já que o pagamento é calculado por produção, o salário não corresponde de fato ao valor efetivo do trabalho. O salário dos cortadores de cana encontra-se abaixo do valor da força de trabalho, configura-se uma superexploração. A própria reprodução da força de trabalho se torna precária (GUANAIS, 2016).

Prazeres (2010) apontou que a força de trabalho só pode ser vendida (e explorada) na medida em que há ?saúde? para executar o trabalho. Nesse sentido, não é a saúde do trabalhador em si o que importa, e sim aquela necessária à produção (RIBEIRO, 1999). Lourenço (2013, p.185) afirma que ?a alta produtividade do trabalho tem sido acompanhada do saque da vida dos trabalhadores?, sendo essa categoria (saque da vida) resultado da expropriação do trabalhador de sua própria capacidade de trabalho, que o torna imprestável precocemente para o trabalho e suas exigências no sistema capitalista. Compreende-se que os problemas de saúde dos trabalhadores não devem ser considerados como questões individuais, mas inseridas em um quadro social e cultural, isto é, não são meramente ocupacionais, mas reflexo das relações sociais e organização do trabalho (LAURELL e NORIEGA, 1989, SILVA, 2008, ALVES, 2008, VERÇOZA, 2016, GUANAIS, 2016).

Os cortadores de cana, migrantes, camponeses expropriados e proletarizados têm sua saúde e vida saqueadas. Dentro da linha teórica que orienta a presente reflexão, entende-se que tornam-se estranhados. Essa reflexão será aprofundada no seguinte tópico a partir da elaboração de Marx sobre o conceito de estranhamento. Uma vez que compreendemos o trabalho estranhado no corte de cana, podemos dar o próximo passo para o aprofundamento, decorrente do adoecimento, desse processo. Podemos, assim, visualizar que esse processo está para além do espaço/tempo trabalho, permanece nas experiências e relações dos sujeitos.

2. TRABALHO ESTRANHADO EM MARX

Marx apresenta sua reflexão sobre estranhamento na obra Os Manuscritos Econômicos Filosóficos. É frequente que o conceito de estranhamento seja confundido com alienação, mas, defende-se aqui, no esteio de Ranieri (2001), que são faces diferentes de um mesmo processo. Enquanto alienação (entäusserung) pode ser entendida como exteriorização, relacionada à atividade trabalho e vinculada com o objeto da produção, o estranhamento (entfremdung) é associado ao próprio ser social. As relações que levam à alienação e ao estranhamento são decorrentes da transformação do ser social em mercadoria força de trabalho. Marx (2010) apresenta as contradições da propriedade privada e da separação entre terra, trabalho e capital, demonstrando que a sociedade passa a ser dividida em dois grandes grupos: os proprietários e os trabalhadores (sem propriedade nenhuma a não ser a mercadoria força de trabalho). É na relação de troca capitalista de compra e venda da mercadoria força de trabalho que o sujeito, ser genérico, é cindido em suas relações com o meio, com outros sujeitos e consigo mesmo, em resumo, torna-se estranhado.

Deve-se, antes de tudo, entender que para Marx (2010) o trabalho significa mais do que mero dispêndio de energia, é criador de sociabilidade, aparece como relação histórica entre homem e natureza, como mediador, e não só como mero emprego. O trabalho é a própria base sob a qual a atividade do homem se realiza, sua atividade vital. É no objeto produto desse trabalho que se realiza o ser, enquanto ser genérico. Diferente dos outros animais, que elaboram seus produtos (ninhos, habitações, etc) exclusivamente para atender suas necessidades físicas de sobrevivência, o homem produz para além dessa carência física; produz livremente. E, ?[?] na elaboração do mundo objetivo é que o homem se confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico? (MARX, 2010, p. 85).

É na relação com o produto do trabalho e com o ato de produção em si que o ser se realiza enquanto tal. A natureza pode ser entendida como corpo inorgânico do homem, pois é apenas por meio do que é oferecido pela natureza que é possível ao homem efetivar sua atividade.

Fisicamente o homem vive somente destes produtos da natureza, possam eles aparecer na forma de alimento, aquecimento, vestuário, habitação, etc. Praticamente, a universalidade do homem aparece precisamente na universalidade que faz da natureza inteira o seu corpo inorgânico, tanto na medida que ela é um meio de vida imediato, quanto na medida em que ela é objeto/matéria e o instrumento de sua atividade vital (MARX, 2010, p.84).

A atividade produtiva se efetiva em sua conexão com esse meio, corpo inorgânico. ?Tudo se resolve portanto na relação do homem com suas condições naturais de existência, e na maneira pela qual tais pressupostos, ao serem expostos pelo trabalho, de naturais se transformam em históricos? (GIANNOTTI, 1984, p.119). O trabalho deve ser entendido em sua dimensão histórica.

É no produto do trabalho que se objetiva a existência subjetiva do homem ? ser genérico. O objeto do trabalho é a materialização da concepção subjetiva do homem, e as relações entre os homens são estabelecidas também a partir das relações de produção. A sociabilidade mediada pelo trabalho seria um ?elemento ineliminável do progresso humano? (RANIERI, 2001, p.37), uma vez que é o trabalho que estabelece as relações do homem consigo mesmo, como seu objeto da produção, com o seu meio e com os outros homens. Contudo, o que se tem com as relações de troca capitalista - em que o ser genérico converte-se em mercadoria, e o produto do trabalho é apropriado por um terceiro - é uma sociabilidade do capital. As relações passam a ser mediadas pelo capital (MARX, 2010). O objeto resultado do trabalho do sujeito não lhe pertence, pois essa atividade produtiva também não lhe pertence, mas àquele que comprou sua força de trabalho.

No trabalho alienado o indivíduo não se apropria do resultado de sua atividade vital, transfere a energia vital gasta ao objeto - ?que se torna coisa no sentido de ter adquirido vida própria, um poder autônomo: o estranhamento, o alheamento? (SILVEIRA, 1989, p.50). Então, a energia vital despendida e apropriada nos resultados, que levaria ao processo de subjetivação, leva, na realidade, ao processo de coisificação, uma vez que a coisa se apropria do que era próprio do sujeito. Sendo ele próprio mercadoria, coisa, entende os outros também como coisas. As relações estão, em consequência, coisificadas. Nesse sentido, quanto mais mercadorias o trabalhador produz, mais ele produz a si mesmo enquanto mercadoria. E quanto mais se produz enquanto mercadoria, mais se cinde, mais coisifica a si e às suas relações, mais se estranha.

A apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento (entfremdung) que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital. [?] quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, e tanto menos o trabalhador pertence a si próprio (MARX, 2010, 81).

Quanto mais se valoriza o mundo das coisas, mais se desvaloriza o mundo dos homens. Os sujeitos se relacionam conforme a apropriação dos meios de produção. Sob o capitalismo, não há mais relação indivíduo-indivíduo, e sim entre proprietários - dos meios de produção, da força de trabalho e da terra. Essa relação é organizada a partir da forma como cada sujeito se apropria do objeto do trabalho (GIANNOTTI, 1984).

Na relação estranhada o homem vai considerar o outro a partir do critério em que está inserido, a partir do padrão em que se encontra, que, no capitalismo, é como força de trabalho. Então, a dimensão interna do sujeito, subjetiva, entende-o como trabalhador, força de trabalho, portanto, mercadoria. É a partir dessa subjetividade cindida que o sujeito se relaciona com os outros. Há uma generalização do estranhamento e da alienação nas relações intersubjetivas, inter humanas e inter classes. Se o homem, ser genérico, não se reconhece, não tem condições de reconhecer o outro, ?não há identidade genérica entre indivíduos submetidos ao trabalho estranhado? (RANIERI, 2001).

Assim, quando torna-se mercadoria, o homem estranha-se; estranhamento de si mesmo, dos seus e do meio (corpo inorgânico) - há uma cisão interior ao próprio sujeito. A perspectiva ontológica, calcada no ser genérico, permite entender a alienação para além de uma visão estritamente material, isto é, vai além da alienação do produto e da atividade. Articulando esses dois níveis, Marx mostra ?os efeitos das relações capitalistas em uma estruturação dos próprios sujeitos? (SILVEIRA, 1989, p.44). É precisamente sobre a subjetividade humana que o conceito de estranhamento trata. ?A questão de que o homem está estranhado do seu ser genérico quer dizer que o homem está estranhado do outro, assim como cada um deles está estranhado da essência humana? (MARX, 2010, p.86).

Analisando o caso dos cortadores de cana a partir da reflexão sobre estranhamento em Marx, pode-se compreender que, ao dedicarem-se ao corte de cana, os trabalhadores - mercadoria força de trabalho - alienam-se da atividade vital, pois não é deles o produto do trabalho, não podem se apropriar daquilo que, efetivamente, lhes pertence. Essa desapropriação do produto de seu trabalho, de sua atividade vital, os aliena; alienam-se do próprio ser genérico, estranham-se. Verçoza (2016) destaca que os cortadores de cana não apenas não se reconhecem nas atividades desenvolvidas durante o trabalho, mas quando vivenciam as caimbras, cangurus/birolas/canguaris e perdem o controle dos corpos, tem-se tal dimensão do estranhamento que o próprio corpo parece não pertencer ao trabalhador.

Essa exposição sobre estranhamento serve para que se entenda que o cortador de cana, ao adoecer, já se encontra estranhado de si, dos seus e da natureza (corpo inorgânico). Enquanto despossuído de seu ser genérico, o adoecimento aparece como uma segunda despossessão: da força de trabalho. Esse sujeito, por ter se tornado força de trabalho, afasta-se de si, e por ser força de trabalho superexplorada, perde a própria característica de força de trabalho.

3. O ESTRANHAMENTO APROFUNDADO DOS CORTADORES DE CANA ADOECIDOS

Não poder carregar peso ou realizar atividades no cuidado da roça causa uma sensação de incapacidade nos cortadores de cana adoecidos, representando até uma reorganização nas relações familiares. Se antes as mulheres ? chamadas viúvas de marido vivo, eram as responsáveis pelos cuidados com filhos, casa e roça quando o homem estava trabalhando na safra, a volta desse homem adoecido representa mais um cuidado pelo qual a mulher torna-se responsável. O sentimento, no geral, é d

O cortador de cana, estranhado de si, dos seus e da natureza - pela própria condição de força de trabalho e pelo adoecimento -, volta a sua cidade natal sem a capacidade laboral. Impossibilitado de trabalhar por problemas osteoarticulares e cardíacos, antes aquele que voltava trazendo as mercadorias ou a expectativa de compras na cidade, retorna como ?descartado?. Guanais (2016) mostrou a importância do dinheiro da cana na vida das famílias migrantes. Os cortadores de cana enviam parte do salário para as famílias na cidade de origem e, ao fim da safra, a quantia recebida pode viabilizar a compra de eletrodomésticos, moto, reforma das casas, terreno ou animais. Na tentativa de alcançar maior produtividade, os cortadores de cana podem adoecer ? em Araçuaí o relato mais comum foi de lombalgia, hérnia de disco e doença de chagas. Esse adoecimento os reposiciona no espaço social, uma vez que o sentido simbólico de vencer a safra é permanentemente impossibilitado.

Não poder carregar peso ou realizar atividades no cuidado da roça causa uma sensação de incapacidade nos cortadores de cana adoecidos, representando até uma reorganização nas relações familiares. Se antes as mulheres ? chamadas viúvas de marido vivo, eram as responsáveis pelos cuidados com filhos, casa e roça quando o homem estava trabalhando na safra, a volta desse homem adoecido representa mais um cuidado pelo qual a mulher torna-se responsável. O sentimento, no geral, é de dó dos maridos, como podemos analisar no relato de Daiane:

Então, ele caminha mancando. Ele não aguenta. Ele senta, ele fica assim, incomodado. Ele não aguenta sentar, ele levanta quatro horas da manhã, tem hora que ele levanta e deita ali no sofá pra ver se passa a dor um pouquinho, que ele não aguenta ficar deitado. Então, ele é uma pessoa, coitado, que, sinto muito, mas... eu tenho dó dele por causa disso, porque a coluna é uma coisa muito braba mesmo. [...] Ele não dorme, tem que tomar dipirona - e é muita - pra ver se ele consegue dormir e mesmo assim, coitado, ele não aguenta.

As relações familiares são reorganizadas, na medida em que aquele que anteriormente era o esteio da família torna-se um coitado. Há uma reconfiguração das próprias relações sociais de gênero, toda a masculinidade e virilidade associada a vencer a safra, ou enfrentar o eito, é desconstruída[9]. Não são raros os relatos de depressão associada a problemas de coluna, como afirmou o médico ortopedista atendente do SUS. Esse médico afirma que os adoecidos, principalmente aqueles que não conseguem nenhum tipo de auxílio previdenciário, enfrentam uma marginalização social.

Para Boltanski (1979, p.167), as ?regras que determinam os comportamentos físicos dos agentes sociais [...] são produto das condições objetivas que elas traduzem na ordem cultural, ou seja, conforme o modelo de dever-ser?. Na mesma via, Ferreira (1994) afirma que o corpo é emblema dos processos sociais nos quais o sujeito está engajado, sendo reflexo da sociedade. Entendemos que o corpo, em classes submetidas a um trabalho superexploratório, é apenas força de trabalho, na medida em que seu uso é destinado quase exclusivamente à produção de mais valor[10]. O adoecimento retira o cortador de cana dessa relação, mas ele permanece emaranhado em relações estranhadas com outros e consigo mesmo.

Enquanto sujeito sujeitado, isto é, aquele que internalizou em sua subjetividade o reconhecimento de si mesmo enquanto coisa, o trabalhador percebe o adoecimento como vergonha. Desse modo, a elaboração de Dejours (1987) sobre a ideologia da vergonha ajuda a compreender esse processo. O autor mostra que há um consenso social que condena a doença e o doente. O corpo aceito nas classes empobrecidas é o corpo que trabalha, o corpo produtivo. Estar fora da esfera produtiva é motivo de vergonha, nesse sentido, não se trata de evitar a doença, mas sim de domesticá-la, conviver com ela para manter a força de trabalho (DEJOURS, 1987). Mas, no caso do corte de cana, a degradação do corpo faz parte do cotidiano de trabalho. As dores cotidianas do trabalho eram naturalizadas pelos cortadores de cana, os entrevistados afirmaram esconder pequenos acidentes ou recorrer aos analgésicos ao fim do dia para lidar com as dores no corpo resultado de um dia de trabalho.

As dores vivenciadas durante o trabalho eram justificadas como necessidade para o sustento da família, era preciso viver aquilo para ao fim da safra levar alguma quantia de dinheiro de volta à região de origem. Entretanto, a convivência com as dores crônicas depois do descarte não se enquadram na justificativa do trabalho. São vivenciadas num cotidiano de sofrimento, como Wagner e a esposa Gil relatam:

[?] esses dias eu fiquei quase trinta dias sem poder andar direito.

Gil: Mas ele ficou sem poder pegar um balde d?água. E na hora que ela começa mesmo, não tem jeito? ela não para de doer.

Wagner: Trava e eu nem consigo levantar.

Gil: E ele fica inquieto? no chão não tá bom, na cama não tá bom. Ele fala que dói mesmo, que às vezes até manca.

Wagner: Quantas vezes eu fiquei a noite toda sem dormir. Deitava e não conseguia, não tinha jeito. Levantava também? aí eu ia aí pra fora, ficava aí e o povo dormindo?

Dejours (1987) afirma que junto com o sofrimento físico advindo da exploração da força de trabalho, deve-se levar em conta que a exploração também passa pelo aparelho mental. Gil, em conversa longe do marido, afirmou que o mesmo enfrentou período de depressão ao vivenciar as limitações do corpo. Wagner tinha em 2015, época da entrevista, 50 anos.

Deve-se atentar para o adoecimento em sua dimensão não somente física, mas psíquica também. O adoecimento é oriundo não só do desgaste e fadiga do corpo, mas também da alma (Weil, 1996). As psicólogas entrevistadas relataram o adoecimento psíquico dos cortadores de cana. Além da depressão, há ainda a manifestação de transtornos mentais. Somado à predisposição para alguns transtornos mentais, o gatilho para a manifestação de alguns desses transtornos são situações traumáticas - no caso, o trabalho nos canaviais. O tipo de trabalho no corte de cana representa uma carga de estresse que, muitas vezes, é pesada demais para se aguentar. Nesse sentido, pode ocorrer a manifestação de algum transtorno mental, como esquizofrenia. Então, o desenvolvimento de esquizofrenia, assim como neuroses, psicoses e a dependência química, por exemplo, pode estar associado ao trabalho.

A psicóloga Camila afirmou que as principais reclamações dos ex-cortadores são as condições desumanas de trabalho e que "a forma de trabalho influencia na saúde mental". O caso mais intenso observado em campo nesse sentido foi o de Sérgio, de 22 anos, ex-cortador de cana e diagnosticado com esquizofrenia.

Ele não pronunciava as palavras e falava sempre com a mão na frente da boca, o que dificultava a compreensão de sua fala. [?] não conseguia responder as coisas diretamente, muitas vezes dizendo que não poderia responder àquela pergunta. Depois a psicóloga me explicou que isso era uma característica de mania de perseguição que a esquizofrenia tem.

Trecho do diário de campo

O caso de Sérgio foi marcante, pois por meio dele se pode visualizar o alcance do estranhamento na superexploração: é a subjetividade humana sendo degradada. Entende-se que contar com a reflexão sobre alienação e o estranhamento não encerra o sujeito apenas em relações produtivas, pelo contrário. É na compreensão da cisão do ser genérico e de suas relações, de sua subjetividade, de sua própria humanidade, que é possível compreender a complexidade do adoecimento no corte de cana e o aprofundamento do estranhamento. O esgotamento progressivo do cortador de cana não vem só de seu desgaste físico, mas também da sobrecarga psíquica, há uma esfera subjetiva que é impactada. Se o ser social já se encontra cindido enquanto força de trabalho, ou seja, reconhecendo-se nas relações de trabalho capitalista, fora dela qual a dimensão dessa cisão do sujeito? Ele não deixa de ser estranhado depois do adoecimento, o estranhamento permanece; porém a sociabilidade não é a mesma.

O cortador de cana, sujeito estranhado, ser genérico cindido, ao adoecer deixa de ser força de trabalho, mas permanece cindido em suas relações. Quando perde a capacidade laboral, fica impedido de vender a força de trabalho, torna-se força de trabalho descartada, degradada. Enquanto força de trabalho, esteve apartado da natureza, de seu corpo inorgânico. Ao adoecer, deixa de ser força de trabalho, mas ao invés de voltar a uma relação não estranhada com seu exterior, com seu corpo inorgânico, encontra-se sem disposição física para simples atividades. Está incapacitado fisicamente de se objetivar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para as usinas, o trabalhador deixa de ser útil quando adoece. Não tem mais força de trabalho, logo, está fora das relações de troca capitalista. Não pode gerar mais-valia, então é descartado. Entretanto, apesar de o trabalhador não ter mais a força de trabalho para trocar, permanece como estranhado. A força de trabalho que se troca não existe independente da figura do trabalhador, e este se reconhece como mercadoria, apesar de não mais tê-la/sê-la após o adoecimento. O sujeito físico, sujeitado às relações impostas pelo capital, é força de trabalho no sentido de que seus níveis subjetivos, suas relações, estão pautados pela lógica da mercadoria. E, mesmo que tenha sido destituído da característica força de trabalho, sua subjetividade e relações permanecem mediadas pelo dinheiro. Então, adoecer é não ter mais força de trabalho, mas subjetivamente viver como se a tivesse no sentido de as relações já estarem coisificadas. A perspectiva preconizada por Marx de que o trabalhador sente-se junto a si quando fora do trabalho não se aplica com o adoecimento. O sujeito está fora das relações de trabalho, mas dentro de relações sociais mediadas pela mercadoria; não deixa de ser mercadoria, torna-se mercadoria descartada. O estranhamento se aprofunda.

O trabalho no corte de cana é alienado e estranhado. Ao adoecer, perde-se a capacidade laboral, isto é, deixa-se de ter força de trabalho. Apesar de não mais ter a força de trabalho, a construção subjetiva do sujeito físico - sujeito sujeitado, ser genérico cindido - permanece. Mesmo não tendo mais força de trabalho, os sujeitos ainda se encontram em relações mediadas pela mercadoria. Então, mesmo fora das relações de troca capitalista, ainda estão submetidos à lógica de funcionamento do capital, o estranhamento permanece, mas aprofundado. Perder a capacidade laboral se torna uma vergonha. O corpo aceito socialmente é o corpo produtivo e não cumprir essa demanda representa uma vergonha. Cabe aos cortadores de cana (sobre)viver com as agruras que trouxeram dos canaviais: incapacidade laboral, dores cotidianas, estigma. Quando o homem não pode mais trabalhar, grande parte de sua vida social é ceifada, até mesmo pelo estigma e marginalização que pode sofrer por sua condição. As consequências do trabalho na experiência e subjetividade do sujeito não se restringem ao eito, vão além do espaço/tempo trabalho.

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Notas

[1] Doutoranda em Sociologia no PPGS-UFSCar, bolsista CNPQ e membro do grupo TRAMA (coordenado pela orientadora, Profa Maria Aparecida de Moraes Silva), tem se dedicado a estudos sobre as consequências sociais e subjetivas do adoecimento no corte de cana.
[2] Silveira (1989) e Ranieri (2001) se dedicaram a problematizar a diferença entre estranhamento (entfremdung) e alienação (entäusserung) na obra de Marx, conceitos comumente confundidos como equivalentes. Para o primeiro, o estranhamento (entfremdung) estaria na dimensão ontológica da alienação (entausserung), enquanto que para o segundo, alienação e estranhamento contariam com uma unidade conceitual. No esteio desses autores, defende-se que alienação e estranhamento são distintos, mas faces de um mesmo processo. Processo esse ao qual estão submetidos os cortadores de cana
[3] O CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) é uma ?unidade pública estatal descentralizada da política de assistência social, sendo responsável pela organização e oferta dos serviços socioassistenciais? (BRASIL, 2016). O CREAS (Centro de Referência Especializada de Assistência Social) é ?uma unidade pública da política de Assistência Social onde são atendidas famílias e pessoas que estão em situações de risco social ou tiveram seus direitos violados? (BRASIL, 2016). O CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) é uma instituição destinada a ?acolher os pacientes com transtornos mentais, estimular sua integração social e familiar, apoiá-los em suas iniciativas de busca da autonomia, oferecer-lhes atendimento médico e psicológico? (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2016).
[4] A exploração aurífera teve forte resistência dos indígenas locais, os botocudos. Os bandeirantes, além de buscar ouro e pedras preciosas, também apreendiam índios para vendê-los como escravos em São Paulo. A mão de obra utilizada nas expedições era, muitas vezes, indígena e negra escravizada. (SILVA, 1999, RAMALHO, 2014).
[5] São chamadas de ?gato? as pessoas que fazem o contato entre usina e cortador de cana na região de origem do trabalhador.
[6] Entende-se o pagamento por produção como meio de superexploração, uma vez que o salário pago ao trabalhador é menor que o valor de sua força de trabalho, ou seja, não garante efetivamente a reprodução da força de trabalho, submetendo-o a uma reprodução precária (GUANAIS, 2016).
[7] O eito, área do canavial que cada trabalhador deve cortar, é composto por cinco linhas de cana plantada, as ruas. O trabalho inicia-se pela linha central, onde conforme o corte se realiza, cria-se uma fileira de cana cortada, a leira. As canas das demais ruas devem ser também depositadas na leira.
[8] No período de 2004 até 2007 foram registradas 21 mortes nos canaviais paulistas, supostamente por excesso de trabalho. Mortes, acidentes e mutilações são recorrentes no corte de cana. Médicos afirmam que a perda excessiva de potássio na sudorese pode levar à parada cardiorrespiratória. (SILVA, 2008).
[9] O debate sobre a articulação entre trabalho no corte de cana, adoecimento e gênero, pode ser mais bem aprofundado no artigo de Reis (2017).
[10] Na região do Vale do Jequitinhonha, onde se localiza o município de Araçuaí/MG, há a realização de diversas festas culturais - católicas ou de origem quilombola -, o que mostra que quando o regime de trabalho está em suspenso (na entressafra), o uso social do corpo pode se destinar a outro tipo de atividade que não só a produtiva. Pode-se entender a manutenção de tradições culturais como uma forma de resistência que posiciona o sujeito não só como força de trabalho, mas como portador de cultura (WILLIAMS, 2000, ECHEVERRIA, 2011)


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