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Fronteira(s): entre-lugar(es) de dor, potência e de produção de pensamento nômade
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol.. 17, núm. 1, 2020
Universidade Estadual de Montes Claros

Resenhas

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 17, núm. 1, 2020

Recepção: 20 Janeiro 2020

Aprovação: 20 Janeiro 2020

Resenha

COSTA, João Batista de Almeida. Mineiros e Baianeiros: a configuração do englobamento, da exclusão e do entre-lugar em Minas Gerais. Montes Claros: Editora Unimontes, 2017.

Fronteira(s): entre-lugar(es) de dor, potência e de produção de pensamento nômade

Feche os olhos. Pense em Minas Gerais. Se sua imaginação e memória são gustativas como a minha, queijos, pão de queijo e quitandas[2] devem ter aparecido de imediato na sua cabeça, acompanhado de outras imagens de montanhas, vales e cidades históricas da região aurífera. São alimentos, paisagens e lugares que se cristalizaram como representantes da identidade mineira, ou daquilo que se convencionalmente é chamado como mineiridade [3].

Mas o que acontece com outros alimentos, paisagens e lugares que escapam daquilo que se encontra cristalizado no imaginário popular? Esta é justamente uma dentre inúmeras perguntas que a obra em questão ilumina para a construção de possíveis respostas. Se, na sociologia, Maria Arminda do Nascimento Arruda (1990) desenvolve um estudo teórico-histórico para entender os elementos históricos, políticos e literários que contribuíram no processo formativo da identidade mineira edificando-a como mito, no campo antropológico, João Batista de Almeida Costa realiza uma pesquisa etnográfica-histórica que contribui para a compreensão das consequências do caráter ideológico presente neste(s) processo(s) identitário(s).

Mineiros e baianeiros apresenta os resultados da pesquisa desenvolvida pelo autor durante o doutorado em Antropologia realizado na Universidade de Brasília (UNB), de 1999 a 2002. O problema central da pesquise centra-se no(s) processo(s) identitário(s) que abarca(m) a região norte-mineira, uma vez que sua identidade é atravessada por uma ambiguidade: ao mesmo tempo em que esta região é incluída na totalidade identitária de Minas Gerais é também por ela excluída. Compreender esse processo de englobamento, de exclusão e também as suas consequências é o objetivo central da obra.

Para entender a hierarquia existente entre as minase os geraisna composição identitária de Minas Gerais, o autor seleciona duas localidades distintas: a primeira apresenta as minas geratriz de profundidade histórica e colonial no processo de expansão da sociedade mineradora ? a cidade de Mariana; a outra, por sua vez, representa os gerais profundo, o sertão mineiro, a sociedade pastoril ? a cidade de Matias Cardoso.

Nesse estudo comparativo, a etnografia dialógica é o principal método e sua construção é auxiliada a partir da utilização de fontes diversas, tais como documentos históricos, científicos, obras literárias e também outras etnografias produzidas a partir de diferentes lugares de fala, por paulistas, mineiros e norte-mineiros. O trabalho de campo em Mariana foi realizado de janeiro a junho de 2001 e em Matias Cardoso, de julho a dezembro também de 2001.

O campo teórico construído pelo trabalho também apresenta heterogeneidade. De clássicos como Émile Durkheim e Marcel Mauss a contemporâneos como Frantz Fanon e Homi Bhabha, diversos intelectuais antropólogos, sociólogos, historiadores, filósofos, críticos literários, dentre outros são mobilizados neste trabalho, fazendo com que a transdisciplinaridade seja uma de suas marcas. No entanto, aquilo que se apresenta como um dos seus diferenciais é também o seu ponto fraco, uma vez que a densidade academicista utilizada na escrita dificulta o acesso da obra a uma gama diferenciada de leitores. Além disso, um trabalho de editoração feito com maior zelo poderia ter evitado certos erros de digitação e ortográficos que acabam atrapalhando um pouco sua leitura, visto que o próprio sumário apresenta problemas na numeração das páginas.

Estes aspectos não minimizam a importância da obra. O campo teórico se apresenta como um verdadeiro empreendimento, uma vez que mobiliza diferentes perspectivas acadêmicas para a compreensão do problema de pesquisa. No entanto, há um eixo teórico e conceitual que se faz mais relevante para o trabalho: a teoria da hierarquia e na ideia de englobamento do contrário desenvolvidas pelo antropólogo Louis Dumont (1992), a relação expressa entre estabelecidos e outsiders desenvolvida por Norbert Elias e Scotson (2000) e o conceito de entre-lugarconstruído por Homi Bhabha (1998).

O livro é dividido em cinco capítulos. O primeiro Flânerie na paisagem: está no nome o segredo do englobamento em Minas Gerais, Costa se utiliza da perspectiva de flâneriedesenvolvida pelo filósofo Walter Benjamin (1994) para a descrição das paisagens observadas no trajeto entre Belo Horizonte e Mariana e entre a capital mineira e o norte mineiro representado por Matias Cardoso.

Qualquer pessoa que teve a oportunidade de conhecer estas regiões, isto é, a capital mineira, a região de Mariana e Ouro Preto e também o norte-mineiro certamente se identificará com as descrições das montanhas que produzem um horizonte belo, da arquitetura colonial, das chapadas do sertão, da caatinga, dentre outros aspectos estabelecidos pelo autor. Entretanto, mais do que um observador, ao assumir a atitude de flâneur, o autor mergulha nas paisagens para a compreensão dos sentidos construídos, tratando-as como um texto em que é preciso decifrar não somente seus principais traços, mas também aquilo que fica em suas entrelinhas.

Entre a sociedade mineradora e a sociedade pastoril sinais diacríticos se contrastam. Enquanto a primeira região é representada por um relevo montanhoso, cuja elite se assemelha aos colonizadores portuguesas sendo frequentemente caracterizadas como brancas, esguias, altas e magras e compartilha com o restante da população certa sobriedade representada pelo jeito ensimesmado, introvertido, cético e desconfiado de ser; a segunda se difere dela, uma vez que é entrecortada ecologicamente pelo cerrado, caatinga e mata atlântica, justificando-se aí as diferenças culinárias do consumo frequente da carne de sol e de frutas como o pequi e o umbu, característicos do cerrado e caatinga respectivamente. Sua população se difere nos modos, costumes e também na cor, uma vez que fenotipicamente apresenta traços resultantes da mestiçagem entre indígenas, negros, paulistas, nordestinos e mineiros que se apresentam de forma mais aberta, sendo a extroversão e a comunicação um de seus pontos fortes.

O resultado desta hermenêutica é a apreensão de dois cenários que apresentam paisagens, relevos, realidades históricas, culturas e identidades diversas e opostas, o que, por sua vez, já revela o caráter ideológico da mineiridade. Entre Mariana e Matias Cardoso é possível perceber a existência de traços comuns aos jogos identitários estabelecidos por representações construídas sobre o litoral e o sertão ou então sobre a cidade e o campo. Enquanto que em Mariana ?valorizaram-se a civilização do ouro, por sua cultura urbana e por sua identidade tornada hegemônica?, em Matias Cardoso, nos ?Currais do São Francisco suas especificidades ao serem vinculadas à barbárie, à natureza e à poluição, pela mistura de culturas vivenciadas por sua situação de fronteira que propiciou sua desvalorização? (COSTA, 2017, p. 61).

O segundo capítulo Mariana, berço da sociedade mineradora, apresenta o trabalho de campo executado na cidade de Mariana. A etnografia foi construída não somente através de uma observação participante, mas também por meio do estudo de obras diversas, historiográficas, científicas e também literárias, nas quais memorialistas, romancistas, contistas e poetas que foram tratados pelo autor como parceiros do diálogo, seja por meio do auxílio na desconstrução das imagens construídas pelas pessoas nativas das localidades investigadas, como também no seu reforço.

Desse empreendimento, Mariana emerge como Urbs mea cellula mater, isto é, a célula mãe de uma grande civilização, enunciação dada pelo poder colonial (Portugal e Igreja Católica). Tal glorificação ainda é entoada na contemporaneidade, questão que pode ser percebida não somente no movimento que resultou na elevação da cidade como monumento histórico nacional em 1945, como também nos monumentos, faixas e discursos políticos que buscam destacar que a cidade é primeira em tudo (foi primeira vila, primeira cidade, primeira capital, primeiro bispado) ela se torna a mãe de todas as minas, a ?minas? geratriz e é defendida por grande parte de suas pessoas nativas como berço da cultura e civilização mineira.

No estudo das relações sociais, raciais, políticas, religiosas e ritualística presente em Mariana, Costa decodifica o fato social total da cidade, isto é, o ethos e eidos dessa sociedade: a tradição. Essa configuração resulta-se do controle colonial e religioso exercidos pelo governo português e Igreja Católica respectivamente. As hierarquias sociais estabelecidas a partir da questão racial é um exemplo desse processo, pois a tradição é mais resistente à hibridez, tornando frequente a requisição de uma espécie de ancestralidade de lugar que diz respeito não somente a um lugar social, mas também ao vínculo que as pessoas estabelecem com o passado e com a tradição. Esse requisito tende a segregar as pessoas nos espaços que a elas são delimitados, fazendo com que os trabalhos manuais ainda sejam vistos a partir da ótica preconceituosa de que devem ser executados por pessoas de camadas sociais inferiores ou então pela ótica racista de que são trabalhos de preto.

Se o disciplinamento de outrora era feito em praça pública diante de delações, na contemporaneidade ele foi internalizado pelos aparelhos do Estado, os quais garantem a continuidade de sua reprodução. Diante da ameaça constante de denúncias, seja no passado como no presente, o tipo social dessa mineiridade não poderia deixar de ser expresso pelo sujeito desconfiado e ensimesmado.

No terceiro capítulo Matias Cardoso: cidade dos encantos e dos esquecimentos, o autor desenvolve empreitada semelhante àquela realizada em Mariana. Costa estabelece uma descrição analítica da sociedade matiense para compreender o lugar da identidade baianeira na hierarquia da mineiridade, avaliando, para tanto, sua ambiguidade, isto é, seu processo de inclusão e exclusão dentro deste processo identitário.

O ethos e eidosmatiense que se coloca como fato social total explicativo desta sociedade centra-se na abertura para o outro,derivada da condição fronteiriça desta sociedade. Ainda que a história do estado seja contada a partir da sociedade mineradora, isto é, de sua expansão a partir da decadência da região aurífera, a formação do norte-mineiro é anterior. Apesar da região denominada de Currais do São Francisco ter sido anexada ao território geopolítico mineiro em 1720, a gênese da sociedade pastoril data-se de antes, do século XVII, com a bandeira paulista liderada por Mathias Cardoso de Almeida. No entanto, se Mariana possui uma gama diversificada de intelectuais nacionais e locais que se empenham na pesquisa e preservação de sua história, memória e tradição, o mesmo não ocorre em Matias Cardoso (cuja elevação como município ocorreu somente em 1992), uma vez que suas fontes historiográficas e memorialistas se apresentam incipientes.

Marcada por uma formação histórico-cultural diversificada ? mineira, baiana, paulista, indígena, negra e ribeirinha ? Matias Cardoso é colocada por Costa como um produto de hibridação. Tal questão reflete-se nas dimensões sociais, políticas, raciais e religiosas desta sociedade. Se em Mariana as hierarquias sociais ainda preservam o componente racial, dado seu conservadorismo expresso pelo apego ao passado, à tradição e manutenção de costumes e produzem um tipo social desconfiado, ensimesmado e fechado para as pessoas que não são nativas da cidade, o oposto ocorre em Matias Cardoso. Enquanto uma sociedade que historicamente se constituiu de forma mais afastada do controle religioso exercido pela Igreja Católica, que preserva uma vida voltada para os seus mínimos vitais, para a solidariedade e reciprocidade, a classificação das relações sociais é dada a partir do grau de subordinação que as pessoas apresentam para garantir sua sobrevivência e, por isso, a sociedade divide-se em fortes (menor subordinação) e fracos (maior subordinação).

Porém, essa hierarquia é válida somente aos grupos internos dessa sociedade, uma vez que ao contracenar com chegantes (pessoas que vieram de outras localidades e fixaram residência ali) e forasteiros (pessoas de fora de Matias Cardoso que ali se encontram de passagem) a classificação se modifica. Enquanto uma sociedade que possui abertura para o outro a pessoa de fora, seja ela forasteira ou chegante é bem vista na comunidade, pois acredita-se que ela pode agregar alguma novidade e/ou solução para auxiliar no desabrochar da cidade de grandes encantos a partir do desenvolvimento e apogeu da cidade da promissão, o que, por sua vez, denota uma projeção desta comunidade mais para o futuro do que o passado como em Mariana.

Prova disso é que os casamentos mais dotados de prestígio social e também os mais realizados dentre a comunidade são estabelecidos entre pessoas nativas e chegantes. Além disso, o nativode Matias Cardoso que, seja por conta dos estudos e/ou de trabalho, fica um tempo fora e depois retorna, passa a ser dotado de prestígio por ter se lançado para a conquista do mundo. Se este for um nativo forte, o seu prestígio passa a ser duplo.

Na questão racial, por ser uma sociedade marcado por pessoas de cor, a hierarquização se constrói a partir da gradação da cor das pessoas, compreendendo do moreno claro ao moreno escuro. Em uma sociedade cuja estrutura alicerça-se pelo racismo, é de se imaginar que quanto mais retinta é a cor da pele da pessoa, mais baixo será o seu lugar nesta hierarquia. Apesar disso, Costa salienta que o fato da pessoa ser chegante ou então ter passado um tempo fora e retornado à sociedade possui um prestígiomaior do que a questão de sua cor. Logo, uma pessoa negra chegante é dotada de maior prestígiodo que uma nativa morena clara.

Uma explicação para essa admiração à novidade, inovação e pessoas de fora parece centrar-se justamente na dor causada pelo processo de exclusão que as pessoas do norte-mineiro, mais precisamente de Matias Cardoso, sentem. Ao serem construídos histórica e socialmente pelo centro mineiro representado por Mariana (e outras adjacências da região aurífera) como a sua periferia, por meio do contraste com à civilização, isto é, tomado por características vinculadas à barbárie, natureza e violência, esse processo resultou na produção da abjeção sob essa localidade e seus habitantes.

Essa abjeção foi assimilada e pode ser percebida nas alcunhas dada ao município como cidade do esquecimento e cidade dos preguiçosos ou também nas quadras ali populares, como ? Matias Cardoso, cidade de grandes encantos, jegue para todo lado, negro para todo canto? (COSTA, 2017, p. 196-7). Enquanto a mineiridade é tomada por sua positividade, a identidade baianeira se coloca como seu contrário e é enunciada a partir de representações negativas. Na quadra, a inscrição do jegue revela muito mais do que uma convivência harmoniosa entre humanos e animais, uma vez que o termo jegue também assinala sentidos pejorativos quando associado a uma pessoa, colocando-a como estúpida, ignorante e teimosa. A referência às pessoas negras na sentença seguinte ?reforça pejorativamente o lugar inferior na hierarquia dos valores regionais enunciados? (COSTA, 2017, p. 197).

No quarto capítulo, Lugares de memória em Minas Gerais: a hegemonia mineira e a subalternidade mineira, Costa trabalha o conceito de lugar de memória desenvolvido pelo grupo de historiadores franceses liderados por Pierre Nora (1977) para compreender ?os marcos que indicam a diversidade entre a consciência social mineira e a consciência social baianeira? (COSTA, 2017, p. 208). Para tanto, o autor seleciona seis lugares de memória para análise:

1) a mineiridade que valoriza a região aurífera e invisibiliza o norte-mineiro e, por isso, emerge como mito ideológico;

2) a figura do bandeirante em geral que é enaltecida no discurso historiográfico ao relacioná-la ao processo histórico de descoberta e exploração de metais preciosos e, consequentemente, na ocupação do território colonial;

3) o bandeirante paulista Mathias Cardoso de Almeida cujo papel é minimizado e menosprezado por historiadores mineiros já que o coloca apenas como um subordinado da bandeira de Fernão Dias Paes, aprisionador e exterminador de indígenas e negros, enquanto que historiadores paulistas e norte-mineiros o colocam como importante ator nacional e regional, respectivamente;

4) a Praça Minas Gerais que apresenta a ?erradicação dos mulatos como personagem principal deste espaço de memória? e expressa ?os ícones da Minas Geratriz, mas também evidencia o processo de incorporação dos mineiros à civilização? (COSTA, 2017, p. 238), endossa a glorificação do ?seu passado colonial, com a estrutura social local passada e presente e com o lugar simbólico da cidade no interior da ideologia da mineiridade que constrói Minas Gerais como uma sociedade una, apesar de sua diversidade? (COSTA, 2017, p. 239);

5) a celebração do Dia de Minas em Mariana, comemorado em 16 de julho, no qual se reafirma a ideologia da mineiridade ao reforçar a tese de que a cidade foi a célula mãe e, por isso, representa o berço da cultura e civilização mineira;

6) as festas de casamento em Matias Cardoso que busca celebrar a linhagem e continuidade da comunidade através de seu ethos e eidos expressos pela abertura ao outro, que reforça os laços locais e regionais e, por isso, também se coloca como estratégia de resistência frente a exclusão norte-mineira da mineiridade.

Para melhor identificação e caracterização destes lugares de memória, Costa também realiza uma análise dos livros didáticos e das práticas pedagógicas do ensino de história em Mariana e Matias Cardoso, uma vez que estes instrumentos são responsáveis por ?conformar o imaginário social definidor de identidades? (COSTA, 2017, p 239).

Em Mariana, os livros didáticos não somente reforçam a ideologia da mineiridade como também explicitam a lógica do englobamento ao negar a articulação de formações históricas distintas ? sociedade mineradora e sociedade pastoril ? colocando a segunda como resultado da decadência da primeira e, por isso, por ela subordinada historicamente. Assim, é dentro do próprio englobamento que a exclusão ocorre, uma vez que os fatos históricos norte-mineiros não são tomados como lugares de memória pelos livros didáticos utilizados em Mariana.

A ausência de negros na historiografia e nos lugares de memória presentes nos livros didáticos sustentam ainda mais a exclusão norte-mineira, visto que sua população é em grande parte negra. Nas práticas pedagógicas não é diferente, já que se a presença negra também é invisibilizada nos lugares de memória representados pelas praças, museus e centros históricos de Mariana e Ouro Preto, a visita a estes locais somente reforça a invisibilização daquilo que o livro didático já produz.

Por outro lado, em Matias Cardoso, o esquecimento da historiografia oficial faz emergir diferentes possibilidades de resistências, a partir do reforço de um pertencimento regional e local. Os livros utilizados foram escritos por pessoas formadas em universidades paulistas. O livro de história, em especial, favorece práticas pedagógicas em que estudantes podem se manifestar como historiadores de si mesmos, constituindo-se, assim, como ?um instrumento propício à elaboração individual e coletiva de uma narrativa histórica local (...), pois o livro desencadeia o processo de formação de uma consciência identitária muito específica, aquela vinculada à cidade de Matias Cardoso? (COSTA, 2017, p. 252).

O quinto e último capítulo Hierarquia, poder e entre-lugar em Minas Gerais busca amarrar o complexo teórico aos elementos verificados com o trabalho etnográfico. No processo de construção da ?comunidade imaginada? (ANDERSON, 2008) da mineiridade, ocorreu também a ?invenção do Norte de Minas? (COSTA, 2017, p. 273), processo que forneceu uma centralização e relevância histórica à sociedade mineradora e, consequentemente, a desvalorização da sociedade pastoril.

Grande parte desse processo justifica-se pela própria formação histórica do norte-mineiro, uma vez que diferente de outras localidades do estado, sua gênese é anterior à mineração, o que, por sua vez, ?constitui-se um obstáculo a sua interiorização na ideologia e mitologia [da mineiridade] construídas, como oposição, o Norte de Minas é deslizado para um outro signo com outros referentes, todos vinculados a campos semânticos diversos: cultura baiana, vegetação nordestina e sertão brasileiro? (COSTA, 2017, p. 278).

Dessa forma, seguindo a teoria da hierarquia dumontiana, é possível observar dos movimentos que marcam a identidade norte-mineira: o englobamento e a exclusão. Estes aspetos leva tanto a região quanto as pessoas que ali moram serem vistas como outsiders (ELIAS, SCOTSON, 2000). É preciso ressaltar que no início das bandeiras, diante da inexistência de uma saída para o mar, todo o estado de Minas Gerais era tomado sob o signo de sertão, porém com nomes diferentes ? sertão dos cataguás (sul) e sertão sanfranciscano (norte). Não havia, portanto, diferença de poder entre as regiões neste momento. Na verdade, as duas estavam articuladas entre si, uma vez que a dependência de alimento verificada na região aurífera tornou a região dos Currais do São Francisco como importante meio de comércio de alimentos e de animais de transporte.

Entretanto, essa articulação chamou a atenção de Portugal, já que tal processo poderia afetar aquilo que era estabelecido pelo pacto colonial, isto é, a exclusividade comercial da metrópole. Para reestabelecer o seu domínio e garantir a manutenção da subordinação de sua colônia, Portugal passou a considerar o comércio empreendido pelo sertão sanfranciscano como contrabando. Assim, ?os criadores de gado passaram de comerciantes de gêneros alimentícios e animais de transportes a contrabandistas do ouro, e os mineradores de rebeldes famintos a cidadãos de bens, dando gênese à assimetria da complementaridade, a partir da qual, os recursos de poder diferenciais foram construídos e permanecem em construção? (COSTA, 2017, p. 283).

É justamente aqui que a compreensão do significado da identidade baianeira se encontra. Ser baianeiroenuncia ?a situação de fronteira do Norte de Minas na realidade social mineira, pois se é portador de uma identidade hifenada, metade baiano e metade mineiro? (COSTA, 2017, p. 286). Assim, este signo ?informa não apenas a inferioridade dos norte mineiros, mas também sua condição discriminada, excluída e estigmatizada no interior da realidade social, cultural, política, econômica e representacional de Minas Gerais? (COSTA, 2017, p. 286, grifos do autor).

Ao ler o duplo vínculo existente na identidade baianeira(englobada e excluída da mineiridade) a partir da teoria desconstrutivista de Bhabha (1998), Costa defende a existência de um novo signo de identidade que assume uma condição fronteiriça ao situar-se em um entre-lugar. Se em um primeiro momento ser baianeiro é visto como motivo de desonra e tomado como algo pejorativo, em um segundo momento ser baianeiro assume outras possibilidades de existência. É quando, por exemplo, a identidade baianeira deixa de designar um sujeito pela metade (metade baiano e metade mineiro) e passa a assumir outra estratégia de subjetivação: não é mais nem baiano e nem mineiro, isto é, é uma terceira identidade inteira que não mais representa a metade de outras.

Na psicologia da subalternidade, não existe somente dominação, mas também resistências e, por isso, o entre-lugar se apresenta enquanto um lugar de dor, mas também de potência criativa, de inovação e invenções. Ao possuírem uma abertura para o outro,matienses usufruem de uma liberdade característica da zona de fronteira para a criação de suas inovações e invenções. Prova disso é como a dor de serem excluídos da historiografia tradicional mineira mobiliza educadores matienses para a criação de práticas pedagógicas diferenciadas que oportunizam aos estudantes serem sujeitos de sua própria história e não apenas seu objeto.

Se, no nosso país, mesmo diante de todo o complexo de vira-latas [4] construído pela geopolítica capitalista internacional, ?o melhor do Brasil é o brasileiro? como diz a sabedoria popular, o mesmo se aplica ao norte-mineiro: o melhor de Matias Cardoso são os matienses que mesmo diante da dor da exclusão fortalecem seus laços comunitários e reforçam suas histórias locais e regionais como estratégia de resistência à este processo.

Toda pesquisa não poderia ter sido realizada por outra pessoa senão um intelectual que também apresenta uma condição fronteiriça. Costa é um nativo-etnógrafo, pois é natural do norte de Minas Gerais e, por isso, pesquisador e objeto de seu estudo. Enquanto pesquisador de fronteira, Costa apresenta o nomadismo necessário para a realização de sua pesquisa, exercendo sua capacidade de desterritorialização e também de reterritorialização. Assim, o estudo empreendido de Costa aproxima-se daquilo que os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997) chamaram de ?pensamento nômade?, uma vez que desafia a geopolítica mineira ao desconstruir a lógica da mineiridadee revelar os seus pressupostos ideológicos.

Dessa forma, ao mesmo tempo em que a situação de clandestinidade vivida pelo autor durante o trabalho etnográfico realizado em Mariana lhe causou certa dor e constrangimentos, ao revelar a região norte-mineira em geral e Matias Cardoso em específico para além da zona abjeção, Costa constrói novas possibilidades para a produção do conhecimento, o que, por sua vez, representa uma contribuição para a descolonização dos saberes. Isso porque seu trabalho pode auxiliar e estimular novas pesquisas que objetivem evidenciar os encantos desta região e desvelar a potência criativa destes sujeitos e de seus saberes. Estudos que se dediquem a apreender não somente as inovações norte-mineiras, mas também a lucidez de sujeitos como o lavrador e migrante sazonal matiense José Lima, que também esboça um pensamento nômade em seu processo de subjetivação, ao refletir sobre ele próprio e consigo mesmo que baianeiros são ?uma espécie de gente diferente (...) uma gente nem baiana e nem mineira? (COSTA, 2017, p 302).

Para quem se aventurar na leitura desta obra, sugiro que ao término da atividade volte a realizar o exercício sugerido no início desta resenha. Feche os olhos novamente e imagine Minas Gerais. Certamente imagens muito diferentes daquelas anteriores virão à sua cabeça e pode ser até que surja um insight de fazer do norte-mineiro o seu novo objeto de pesquisa ou então o seu próximo roteiro de férias.

Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Mitologia da mineiridade. O imaginário mineiro na vida política e social do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. In: Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BHABHA, Homi K. O local da cultural. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, (vol. 5). São Paulo: Editora 34, 1997.

DUMONT, Louis. Homo hierarchicus. O sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Edusp, 1992.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

NORA, Pierre (org) Les lieux de mémorie. Paris: Gallimard, 1997. 3 volumes.

RODRIGUES, Nelson. Complexo de vira-latas. In: À sombra das chuteiras imortais. São Paulo: Cia. das Letras, 1993, p. 51-52.

Notas

[1] Docente da Universidade Federal de Viçosa, campus de Rio Paranaíba-MG. Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista ?Júlio de Mesquita Filho? (UNESP), Mestre em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e Licenciada em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: laysmm@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3478-1485.
[2] Quitanda refere-se ao modo como são chamados entre as pessoas nativas de Minas Gerais os doces, compotas e quitutes. Para quem é de fora do estado, este significado pode causar estranhamento, uma vez que a palavra pode ter outra conotação. Para quem é paulista de nascimento como eu, quitanda diz respeito a um estabelecimento comercial destinado à venda de frutas, legumes e hortaliças.
[3] Além dos títulos dos capítulos e termos em outras línguas, todas as palavras grafadas em itálicos neste texto expressam conceitos já consolidados nas Ciências Sociais de forma geral como a mineiridade, categorias nativas da pesquisa desenvolvida pelo autor da obra resenhada e/ou também aquelas por ele criadas.
[4] Expressão que ficou popularmente conhecida após ser cunhada pelo escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues sobre a condição de inferioridade que, para ele, era colocada voluntariamente dentre a própria população brasileira (RODRIGUES, 1993). Na ocasião, o escritor referia-se à derrota da seleção brasileira de futebol para o Uruguai na Copa do Mundo de 1950.


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