Dossiê: Cidade, Mídias, Memória e Cotidiano em Tempos de Pandemia
Recepção: 19 Outubro 2020
Aprovação: 17 Novembro 2020
Resumo: O artigo trata da relação entre desigualdade social e os diferentes mo- dos com que a pandemia de Covid-19 atingiu a população urbana no Brasil. O ponto de partida é a observação feita a partir do isolamento social da pesquisadora na cidade e das janelas possíveis para acessar o mundo, fazendo o percurso das janelas do apartamento às janelas das telas, sua multiplicidade e seus enquadramentos restritivos. Desses fragmentos de imagens e sons, manchetes e notícias, postagens nas redes sociais, busco montar uma tela mais compreensível sobre os modos como diferentes populações urbanas foram atingidas pelo vírus, em termos de adoecimento e morte; os modos como o Estado, com seus diferentes aparatos, agentes, serviços, ao mesmo tempo que deveria se destinar a construir políticas da vida, insiste em práticas de soberania e em políticas da morte; e, por último, os modos locais de lidar com a pandemia, através de práticas de cuidado e de cuidado de si, de auto-organização e de resistência em bairros periféricos e comunidades de algumas capitais do País e suas periferias. Desse mosaico emergem cidades, a cidade, como território de desigualdades, resistências e lutas pelo direito à existência.
Palavras-chave: Pandemia, Desigualdade, Políticas, Resistências.
Abstract: The article deals with the relationship between social inequality and the different ways in which the Covid-19 pandemic reached the urban population in Brazil. I start from an observation made from the social isolation of the researcher in the city and from the possible windows to access the world, making the route from the windows of the apartment to the windows of the screens, their multiplicity and their restrictive frameworks. From these fragments of images and sounds, headlines and news, posts on social networks, I seek to create a more unders- tandable screen about the ways in which different urban populations were affected by the virus, in terms of illness and death; the ways in which the State, with its different apparatus, agents, services, while aiming at building life policies, insists on sovereignty practices and death policies; and, finally, local ways of dealing with the pandemic, through self-care and self-organization and resistance in peripheral neighborhoods and communities in some capitals of the country and its peripheries. From this mosaic emerges cities, the city, as a territory of inequalities, resistance and struggles for the right to exist.
Keywords: Pandemic, Inequality, Policies, Resistances.
Resumen: El artículo trata sobre la relación entre la desigualdad social y las di- ferentes formas en que la pandemia Covid-19 alcanzó a la población urbana de Brasil. Partiré de una observación realizada desde el ais- lamiento social de la investigadora en la ciudad y desde las posibles ventanas de acceso al mundo, haciendo el recorrido desde las ventanas del apartamento hasta las ventanas de las pantallas, su multiplicidad y sus marcos restrictivos. A partir de estos fragmentos de imágenes y sonidos, titulares y noticias, publicaciones en redes sociales, busco crear una pintura más comprensible sobre las formas en que diferentes poblaciones urbanas fueron afectadas por el virus, en términos de enfermedad y muerte; las formas en que el Estado, con sus distintos aparatos, agentes, servicios, al tiempo que debería construir políticas de la vida, insiste en prácticas de soberanía y políticas de muerte; y, fi- nalmente, formas locales de afrontar la pandemia, a través del autocui- dado, de la autoorganización y resistencia en barrios y comunidades periféricas de algunas capitales del país y sus periferias. De este mosai- co emergen las ciudades, la ciudad, como territorio de desigualdades, resistencias y luchas por el derecho a existir.
Palabras clave: Pandemia, Desigualdad, Políticas, Resistencias.
1. Janelas 1
O inverno em João Pessoa é chuvoso, úmido e nem tão quente. Alguns dias a gente pode dizer que está “fresquinho”, ainda mais na beira do mar onde moro. O movimento dos carros na rua diminuiu desde que começou o isolamento social na cidade devido à pandemia de Covid-19. No início ainda arrisquei descer e tomar um banho de mar umas duas ou três vezes. Quase ninguém na praia. Nada do movimento normal de banhistas e das famílias inteiras que se instalam nas mesas e cadeiras de plástico de aluguel, com seus isopores de piquenique e bebidas; nem das crianças brincando na areia ou dentro da água calma dessa região, que os de fora costumam chamar de “caribessa”, uma mistura de caribe com o bairro Bessa. Em dias de maré baixa e em que não chove, uma extensa economia informal costumava se insta- lar no local antes da pandemia. Cadeiras, caiaques e pranchas de stand up para alugar, barraquinhas de camarão, de água de coco, de espetinho de carne, frango e queijo coalho, e de cerveja; os carrinhos de picolé e sacolé, alegria das crianças. Vendedoras de amendoim torrado; o moço das ostras, abertas na hora e servi- das no prato, com todos os temperos a que se tem direito. O casal de aposentados migrantes do Sul, que resolveu abrir uma barra-
quinha de vinhos na praia, fazendo coquetéis de sucesso. Nada desse burburinho dos vendedores estava presente na primeira vez em que desci à praia depois do decreto de isolamento. Aproveitei que não tinha quase ninguém para dar uma caminhada na areia e entrar no mar. Quase ninguém parecia se sentir seguro naquele momento. Na segunda ou terceira vezes em que desci, bastou avistar uma pessoa vindo pela praia para que uma sensação de ameaça e perigo me fizesse subir e não descer mais. Era ainda o começo da pandemia, quando foi publicado o decreto estadual que fechou escolas e, logo depois, bares, restaurantes, salões de beleza, casas noturnas, de espetáculos, estádios de futebol e suspendeu o transporte coletivo. Numa dessas vezes em que desci, pensei nos vendedores de amendoim torrado e cozido e nas meninas da água de coco. Como estariam se virando sem o seu pequeno comércio praieiro?
No deserto da praia, avisto vaquinhas e terneiros passeando na areia. Lembro das imagens de bichos ocupando as ruas de outras cidades do mundo durante o isolamento. Cabras nas ruas de Llandudno, no País de Gales, e em Jaipur, na Índia; um lobo em Tel Aviv; leões marinhos, na cidade de Mar del Plata, na Argentina; ovelhas em Montpellier, na França. Algumas, como as dos golfinhos nos canais de Veneza, foram identificadas como fake news. Alegria fugaz.
Imagino que os peixes também tenham retornado mais nume- rosos à praia, pois a atividade dos pescadores artesanais ficou mais intensa, diária, puxando suas redes e tarrafas já cedo pela manhã.
A semana do 15 ao 21 de março foi o marco do que as pessoas chamam de “começo da pandemia” em João Pessoa, a semana em que “tudo fechou”. Eu havia chegado de uma sequência de bancas de mestrado e doutorado e outras atividades na UFSC no dia 15. A viagem de Florianópolis a João Pessoa foi tensa. Naquele momento pressenti que sem uma política nacional e decisões
no plano federal seria muito difícil enfrentar a pandemia com algum sucesso. Embarquei de manhã no Aeroporto de Florianópolis. Até chegar na fila de embarque, tudo parecia tranquilo. Podia ficar a uma certa distância das pessoas. Pouquíssimos de máscara. Naquele momento não havia um consenso sobre a importância das máscaras. Lembro que postei num grupo de antropologia um tutorial para fazer máscara em casa e fui criticada porque o uso de máscaras por não profissionais de saúde não seria recomendado. O receio de que faltassem máscaras para os que estavam trabalhando diretamente com os doentes resultou em uma orientação que se mostrou equivocada algumas semanas depois. Quando chegamos no embarque, a funcionária da companhia aérea que confere as passagens pega na mão cada passagem e cada documento de identidade e os devolve. São centenas de documentos passando pela mão dela. Sem luvas, sem máscara, sem álcool gel. Bastaria ter uma pessoa com vírus ou carregando-o nas mãos que a funcionária e o voo inteiro estariam expostos à contaminação. Quando chegou a minha vez fiz um gesto de apenas mostrar para ela meus documentos, mas não teve jeito, ela arrancou passagem e identidade da minha mão, olhou-os rapidamente e me devolveu. Entramos no túnel de embarque. Ali já havia uma fila formada, todos muito próximos, aguardando, em um corredor sem ventilação e sem espaço entre as pessoas, que fosse autorizada a entrada no avião. Durante o voo, distribuição de lanches e águas, sem luvas, sem álcool. A pandemia não existia para as companhias aéreas, justamente o tipo de transporte que mais disseminou o vírus pelo planeta e pelas cidades do País. Após o primeiro trecho de voo, já no aeroporto de Guarulhos, avião no chão, todos, já em pé, encerrados durante vários mi- nutos esperando os ônibus do transporte interno do aeroporto chegarem. Li naquele dia que o ministro do turismo estava pressionando o judiciário para liberar as viagens de cruzeiro já agendadas. Um navio de cruzeiro estava confinado no porto de Recife desde 13 de março, com 609 pessoas a bordo, pertinho daqui. O papel dos meios de transporte tanto internacionais como nacionais, interestaduais, intermunicipais e urbanos na disseminação
das epidemias é bastante conhecido. Trabalhos historiográficos sobre a chegada da gripe espanhola no Brasil contam a história do Demerara, transatlântico britânico que chegou no Brasil em setembro de 1918, aportando primeiro em Recife e depois em Salvador e Rio de Janeiro, e deixando centenas de contagiados em cada cidade em que atracava.
Já em João Pessoa, praticamente não saí mais de casa desde que as aulas foram suspensas. Como milhares de pessoas na cidade, milhões no País, passei a observar o mundo pelas janelas de casa e pelas janelas das telas de computador, celular e televisão.
Moro em um bairro de classe média de João Pessoa, num lugar meio turístico, porque a avenida em que moro fica na beira do mar, mas é também local de passagem para outros bairros e para a cidade próxima de Cabedelo, onde fica o maior porto da região. Das janelas do apartamento, consigo observar a rua e a praia.
Vejo carros passando em muito menor número do que em tempos normais, percebo a ausência dos ônibus desde que o transporte público foi suspenso, alguns poucos vizinhos saindo com seus cachorros para passeadas rápidas pela rua, a maioria de máscara. Ciclistas, paramentados de capacetes e roupa esportiva, corredores e caminhantes matutinos, alguns poucos e esparsos. Também vejo passar, quase diariamente, no meio da manhã ou no início da tarde, vendedores de picolé empurrando seus carrinhos no sol forte, num horário em que normalmente esta- riam nas praias, agora vazias. Depois de várias semanas passando todos os dias, tocando suas cornetas, alguns deles começaram a usar fantasias. Batmans, homens aranhas, capitães américas chamando atenção para seu pequeno comércio na cidade pandêmica. Me pergunto se conseguem vender sequer um picolé, e o que fazem quando chegam em casa sem o pouco que conseguiam em tempos normais. Outros vendedores ambulantes passam, anunciando seus produtos. O das vassouras preenche a tarde com seu cantado demorado: vassooooura! Final da tarde, vejo
um senhor de meia-idade descer de sua bicicleta, sem capacete nem máscara, e remexer no contêiner azul de lixo do prédio. Ele cuidadosamente tira cada sacola, verifica o que tem dentro, e vai retirando tudo aquilo que pode ter alguma utilidade, pequenos objetos que eu não consigo identificar, um emaranhando de fios de computador e extensões, um quadro de madeira... Sempre tem catadores passando na rua, mas tenho a impressão de que durante a pandemia aumentou o número deles. A pé, de bicicleta ou puxando seus carros de coleta. Um dia após outro. Para eles não existe isolamento social, mas também não aparecem na lista das “atividades essenciais”, expressão de mão única que já determina que os favorecidos são os fregueses, os clientes, os servidos, não os que dependem delas para sobreviver.
Por alguns dias estranhei o silêncio da vizinhança. Os operários da obra do lado de casa, onde estão construindo mais um edifício na orla, foram dispensados por um curto período durante o isolamento. Logo retornaram, sem máscaras e sem proteção. A moça que faz a limpeza do galpão, a única mulher na obra, trabalhou com máscara nos primeiros dias e logo a abandonou, talvez envergonhada pela falta de companhia dos obreiros no gesto de se proteger. Todos trabalham muito próximos uns dos outros. Protegem a cabeça e o pescoço do sol escaldante com seus bonés de legionário, mas ninguém usa máscaras no canteiro de obras, nem os capacetes obrigatórios em canteiro de construção civil.
Algumas semanas depois do começo do isolamento, tive que sair de casa para tomar vacina contra a gripe. Do carro, observei as pessoas que ficam na sinaleira, pedindo alguma ajuda, vendendo fruta, jovens se oferecendo para limpar os vidros dos carros, de balde e rodo na mão. Lembrei de uma amiga que contou de uma mãe em uma esquina, com o filho no colo, tentando trocar a máscara por algum dinheiro. Errei o caminho e acabei numa rua de um bairro de população mais precarizada, atrás de um grande shopping da cidade. Ali tive a sensação de entrar em um mundo paralelo: pessoas nas ruas caminhando tranquilamente,
botecos e vendas abertas, vizinhos conversando no portão ou na janela das casas baixas, desacelerei e fui indo muito devagar, acompanhando os passos dos pedestres, que caminhavam no meio da rua. Ninguém de máscara. Quantas cidades existem em João Pessoa? E em São Paulo? No Rio? E quando o vírus chegar aqui, nessa rua, me perguntava? Será que já chegou?
Meu erro de trajeto me fez perder o horário da vacina. Desde esse dia não saí mais de casa. Mas as notícias da pandemia não pararam de chegar, caóticas, incessantes, invasivas.
2. Janelas 2
A tela do computador não é uma janela. Não é exatamente uma janela. É plana. Sem a amplitude da janela o enquadre é restrito, não venta, não deixa o sol entrar e não deixa que o cheiro e os barulhos da rua entrem. Quando olho da janela, tenho a possibilidade de múltiplos enquadramentos. A moldura é minha, sou eu que defino os contornos, a abertura dos ângulos e a amplitude do quadro. Se observo o homem da bicicleta escolhendo objetos na lixeira, imagino mil coisas – minha imaginação também produz contornos. Às vezes tiro fotos, para ver como fica. Nunca é a mesma coisa, as cores mudam, a cena se distancia. Quando, depois, lembro e penso no que vi, produzo outros enquadramentos e conexões, encadeamentos. O que vejo e leio na tela do computador parece inicialmente que já vem enquadra- do, recortado, digerido e processado. Um pouco como comida processada, aquela produzida em escala industrial. Toda quarta recebo uma feira de produção familiar quilombola, vinda do brejo paraibano. Não tem nada processado, ali, é a cenoura pessoalmente, como se diz nos interiores do Brasil. Cenoura, batata-
-doce, quiabo, inhame, macaxeira, ovos, goma, mel, verduras, temperos. Mas existiria alguma informação não processada? O que vejo da janela, ou mesmo os alimentos dispostos na pia da cozinha, já vou enquadrando nas múltiplas molduras mentais,
conceituais, existenciais, subjetivas. Lembro da ideia básica do dado etnográfico como interpretação já de segunda, terceira mão. Interpretação ou não, nossos dados não estão “dados”, seja qual for a janela que nos leva a eles. Não estou fazendo uma pesquisa sobre a pandemia na internet, nem sobre a internet durante a pandemia. Mas é necessário reconhecer que a internet é neste momento um processo cultural da pandemia, ou um dos desdobramentos da pandemia como processo social e cultural, assim como a pandemia se produz também como um fenômeno na internet1. Seria impróprio dizer que estou tentando fazer alguma etnografia com esses fragmentos que entram pelas janelas e pelas telas que vou recolhendo durante o isolamento? De certo modo estou seguindo o fluxo do mundo, ou de parte dele, que durante a pandemia ocupou o espaço que pode ser chamado de online, digital, virtual, ciber, das redes sociotécnicas, mas que na prática vai chegando para cada um nós no formato de uma tela em geral retangular, através da qual interações, conexões, práticas discursivas e não discursivas, modos de performatividade se produzem.
Após cinco meses de pandemia e isolamento social, meu quase único contato com o mundo fora do apartamento e com as pessoas que não moram comigo é pela tela. Todo domingo encontro minha família, que é enorme, irmãos e irmãs, mãe, sobrinhos e sobrinhas, cunhados e cunhadas, pela tela do computador. Já estive em vários aniversários “remotos”. Mas também dou aula, participo de eventos e de reuniões pela tela. O que produzo, o que falo, o que escrevo têm como destinação neste momento, em grande parte, a tela. Muitas vezes leio alguma notícia na tela e eventualmente compartilho em “minhas” janelas (meu perfil no facebook, no twitter, no instagram, nos grupos de whatsapp...),
ou posto comentários, afetos, reúno dados e informações, conto histórias. Curto, descurto, envio emojis de tristeza, alegria, raiva.
Quando comecei a escrever este texto, consultei tudo o que havia escrito e postado no facebook desde março, e percebi que havia ali quase que um diário de campo, observações, descrições de situações que tinha vivido, visto, ou sobre as quais havia lido. Não é contínuo. Não tem a sistematicidade e a constância do tradicional diário de campo etnográfico. Mas são registros que me ajudaram a localizar a experiência no tempo, a relembrar o que observei, para além de ter visto.
De todo modo, será difícil escrever a partir de agora sem considerar essa dupla inscrição, como pessoa vivendo a experiência da pandemia e como observadora.
Leio diariamente sobre os avanços da pandemia no Brasil e em outros países. Existe agora uma nova representação gráfica para contar os dias. Não mais palitinhos, nem quadradinhos no calendário, mas pontos em um gráfico de curva de contágio. Os dias são pontos, críticos e diacríticos, na subida de uma montanha. Uma metáfora topográfica que representa a distribuição tempo- ral do contágio e das mortes. Chegamos a um platô, um planalto sem fim. Pico de contágio é a boa notícia que não chega nunca no Brasil. Se chegou ao pico vai descer, mas não chegou. A promessa depositada nas linhas do gráfico de que um dia acaba.
Em 17 de março, li que o governo formaria um gabinete de crise comandado por um militar para falar sobre a pandemia, acima do ministério da saúde. Terminou com um general ocupando o ministério pouco mais de um mês depois.
O ministro da economia vai na televisão alertar para os perigos do isolamento para... a economia. O uso de metáforas médicas, que já era comum no discurso dos economistas (como depres- são, terapia de choque, doses homeopáticas...), é exacerbado
para falar da economia durante a pandemia. Em 5 de maio um grupo de empresários acompanha o presidente Bolsonaro para pressionar o Supremo Tribunal Federal a tomar medidas pelo fim do isolamento. No grupo, ao qual Bolsonaro se refere erroneamente como representando 45% do Produto Interno Bruto brasileiro, estava uma representante de 51 laboratórios da indústria farmacêutica. “Morte de CNPJs” foi a expressão que marcou esse evento. Naquele dia, haviam se acumulado nove mil mortes registradas por Covid-19 no País. O ministro Paulo Guedes, desde o início da pandemia, foi pródigo em utilizar a metáfora médica para falar da economia, como quando se referiu a “sinais vitais” para falar da indústria, buscando dar alguma racionalidade à oposição feita pelo governo e por alguns empresários entre as vidas e a economia. Mas as coisas se estendem para além da metáfora. A escolha entre salvar vidas ou salvar a economia aparece como justificativa para a falta de uma política de enfrentamento à pandemia por parte do governo federal e para seu sistemático boicote às medidas de isolamento social. No cálculo da (ir)racionalidade econômica, se deixa de levar em consideração as vidas já perdidas, cada uma delas, e os efeitos dessas perdas na vida coletiva em todos as suas dimensões.
Na tela encontro dados quantitativos sobre o desenvolvimento da pandemia nas cidades e bairros do País que, somados ao que observo da janela, ajudam a compor outro enquadramento sobre a pandemia na cidade.
Os dados de contágio e de mortes começam a indicar que não existe democracia do vírus. Se ele tem o potencial de atingir a todos, como um extenso “em comum” planetário, ele não atinge do mesmo modo.
Busco os dados de João Pessoa. Eu havia instalado o aplicativo Rastreador da Covid-19 no celular logo no início da pandemia. Mas nele é difícil conseguir dados sobre cada cidade. Encontro em sites locais e regionais dados sobre os bairros de João Pes-
soa2. Muito rapidamente o contágio saiu dos bairros de classe média, como Manaíra, e se deslocou para bairros populares e periféricos, como Mangabeira, que em final de julho lidera as taxas de contágio na cidade. Esse é o caminho do vírus em diversas cidades brasileiras: das famílias e bairros ricos, para os mais empobrecidos. O caso da primeira morte por coronavírus no Rio de Janeiro é emblemático dessa situação. Uma empregada doméstica, moradora de São Miguel, município da Grande Rio, contraiu o vírus na casa em que trabalhava como empregada doméstica no Leblon, bairro com o metro quadrado mais caro do País. Seus patrões haviam acabado de chegar da Itália, onde a pandemia naquele momento já tinha números alarmantes, e estavam de quarentena. Mas não avisaram a senhora de 63 anos que trabalhava com eles há 20 anos3.
Apesar de ter sido uma das capitais que entrou em isolamento mais cedo em relação ao número de casos, João Pessoa não conseguiu atingir os planejados 70% de isolamento social, principalmente nos bairros mais pobres. A cidade ficou abaixo dos 50% na média do período, e com diferenças marcantes entre bairros mais elitizados e bairros periféricos. Os casos polares são Mangabeira (bairro da periferia) e Cabo Branco (bairro do litoral, em zona considerada nobre da cidade). O isolamento em Mangabeira, que acumula o maior número de casos de contágio, foi de 36% em final de maio, o de Cabo Branco foi de 60,8%, o maior índice de isolamento4.
O Observatório de Antropologia da UFPB traz dados e informações sobre a pandemia nas comunidades em situação de vulnerabilidade epidemiológica e precariedade social na Paraíba e em João Pessoa. O projeto também dá visibilidade e realiza ações de solidariedade e parceria com essas comunidades.
Algumas dessas comunidades urbanas, como Porto do Capim, na região central da cidade, e Timbó, junto ao bairro dos Bancários, buscam se organizar para enfrentar não só a pandemia, mas também as dificuldades sociais e econômicas agravadas por esta.
Os indígenas que vivem na grande João Pessoa e no estado da Paraíba, a maioria dos povos Potiguara e Tabajara, mas também imigrantes venezuelanos de etnia Warao e alguns indígenas xucuru, foram atingidos pela pandemia. Muitos deles vivem em zona urbana, com casos crescentes de contágio e mortes devido à Covid-195. Até o dia 22 de julho, segundo o Boletim número 09 do Observatório de Antropologia, haviam sido contamina- dos cerca de 400 indígenas, no entanto a contagem dos casos é muito difícil pela falta de testagem. Os indígenas têm buscado se proteger, através de medidas de isolamento e das barreiras sanitárias, para evitar que pessoas contaminadas adentrem na comunidade levando o vírus.
Dados sobre as populações indígenas no Brasil, levantados pela APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), e publicados na Plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus (Covid-19) no Brasil do Instituto Sócio-Ambiental, mostram que em 13 de agosto havia 24.561 indígenas contaminados, sendo que desses morreram 667, e a epi
demia atingiu, até essa data, 146 povos indígenas. A mortandade indígena por mais essa epidemia é uma verdadeira catástrofe.
Os indígenas que moram nas cidades se sentem inseguros, como relatou João Rivelino Barreto Rezende, o Yupuri, indígena tucano e doutor em antropologia pela UFSC, que atualmente mora em Manaus6. Ele conta, para Juana Valentino Nieto, que edita a página Antropologia na Pandemia, no portal do INCT Brasil Plural, dos desafios de morar na cidade para os indígenas, pela distância de suas medicinas tradicionais, pela precariedade dos serviços de atenção à saúde e pelas condições difíceis de moradia e sobrevivência. Muitos não têm dinheiro para comprar medicamentos e aqueles que vivem como artesãos e ambulantes, morando em bairros de ocupação, sofrem ainda mais com a situação da pandemia. Mesmo que, como ele define, “não fomos nós que viemos para a cidade, mas foram as cidades que vieram para nossas terras”7.
As comunidades quilombolas do estado da Paraíba também adotam medidas para conter a entrada do vírus. A comunidade de Mituaçu, nos limites entre os municípios de João Pessoa e Conde, onde vivem 330 famílias, também adotou medidas de isolamento. Uma foto da entrada da comunidade no site do Observatório Antropológico mostra uma faixa enorme, assinada pelo Quintal Cultural e pelo Observantropologia, com os dizeres: “Por amor ao nosso povo, não venha nos visitar. Quando tudo isso passar, sua visita será muito importante. Enquanto isso fiquem nas suas casas”8.
Essas diferenças e desigualdades em relação à possibilidade de realizar o isolamento social, às taxas de contágio e mesmo à leta- lidade do vírus se assemelham em outras capitais do País. Mes-
mo as vulnerabilidades biomédicas se intensificam na periferia, com maiores comorbidades que agravam a ação do vírus, entre elas diabetes e pressão alta. Estas duas são consideradas as doenças crônicas que mais gravemente atingem grande parte da população brasileira, a ponto de serem alvo de um programa de abordagem conjunta de ambas as doenças por parte do Ministério da Saúde e das políticas de atenção básica a partir de 2001, a clínica Hiperdia9.
Em São Paulo, uma pesquisa sobre a propagação da epidemia na cidade feita no final de junho mostra alguns aspectos das diferenças de contágio e letalidade entre os bairros e traz dados comparativos segundo diferentes marcadores sociais10. Por classe social: 6,5% de prevalência de anticorpos em bairros ricos, 16% em bairros da periferia (duas vezes e meia a mais); por raça: 19,7% de prevalência entre os pretos; 14% entre os pardos, 7,9% entre os brancos; por escolaridade: 22,7% entre quem tem menos que o ensino fundamental, 9% entre quem tem ensino fundamental e médio; 5,1% entre quem tem ensino superior. Também ficou conhecido o estudo comparativo entre dados da pandemia no bairro Morumbi, bairro nobre de São Paulo, e a Brasilândia, bairro mais pobre e que apresentava o maior número de mortes em abril, apesar de o número maior de casos no Morumbi.11
Fica evidente, segundo esses dados, a prevalência do contágio entre pobres, pretos e com baixa escolaridade na cidade de São Paulo.
Dados do IntegraSUS (do Ceará), sobre a cidade de Fortaleza, indicam que 72% dos casos confirmados é de pardos, 19% de brancos, e os demais entre população amarela, preta e indígena. Não obtive, no site do IntegraSUS, os dados sobre letalidade12 em Fortaleza, mas dados compilados pelo jornal Diário do Nordeste junto ao IntegraSUS e ao Ministério da Saúde (MS) indicam que entre os brancos a letalidade é de uma em cada 16 pessoas contagiadas, enquanto que para os pardos é de uma morte a cada sete casos da doença13.
Diversos sites trazem dados atualizados diariamente, como o Painel CONASS (conselho de secretários de saúde), o Monitoria Covid-19, da Fiocruz; o próprio Painel do MS – que é parcial, oculta porcentagens e só traz os óbitos do dia, e enfatiza os dados dos recuperados. Mas em muitos momentos era necessário articular diversas fontes.
Um dos problemas levantados pelos epidemiologistas e analistas é o da falta de dados e de detalhamento destes dados no Brasil. Esse é um problema que vai dos números gerais sobre contágio ao número de mortes, avaliados como subnotificados em função da falta de testagem14. Todas as simulações e modulações matemáticas possíveis dependem dos dados. A mesma falta de informações qualificadas acontece em relação aos modos como a epidemia atinge diferentes estratos da população, em termos de classe, raça, gênero, comorbidades anteriores, local de mora- dia. Segundo levantamento do consórcio de veículos de imprensa, apenas oito estados trazem dados sobre raça em relação à pandemia, o que seria fundamental para elaboração de políticas
mais eficientes de enfrentamento às desigualdades também no
campo da saúde.
De certo modo, as informações que eu podia acessar através da tela do computador, em sites, publicações, imprensa diária, sobre a propagação da epidemia nas cidades brasileiras confirmavam o que eu assistia pela janela. A maior exposição dos pobres, dos trabalhadores informais e das pessoas em situação de rua ao contágio.
Fragmentos esparsos que vão me ajudando a compor uma narrativa, por mais difícil que seja produzir uma narrativa única sobre a pandemia no Brasil. São mais de três milhões de infectados, cada um com sua potencial história de experiência da doença. E mais de 100 mil que morreram antes dessa possibilidade15. Programas como o Memorial Inumeráveis16, dedicado à história de cada uma das vítimas do coronavírus no Brasil, e o projeto Relicários17, que homenageia as mulheres vítimas da Covid-19 através de imagens, buscam resgatar estas vidas e a necessidade de lembrá-las, conhecê-las e celebrá-las. Penso também que elas nos dizem muito sobre o fracasso brasileiro diante da pandemia.
3. A cidade e a produção da desigualdade
Tanto os dados quantitativos quanto os relatos narrativos de casos e situações específicas mostram as desigualdades na forma como a doença se espalha, em sua letalidade e nos modos de enfrentar a pandemia, como a dificuldade de fazer isolamento para as populações da periferia, por questões de trabalho e pela própria configuração espacial dos bairros e das casas. Os diferenciadores sociais e epidemiológicos vão bem além de questões demográficas e etárias, que estiveram presentes em um
momento inicial da pandemia, alimentando discursos que relativizavam sua intensidade em um país de população “jovem”. Os diferenciadores sociais incidem sobre condições de vida e moradia, estrutura e organização das famílias, práticas corporais e de cuidado, organização e circulação dentro do bairro de moradia e na cidade, mobilidade urbana, saneamento básico.
Bairros com grande concentração populacional, casas pequenas onde moram famílias numerosas, falta de saneamento básico, necessidade de ir trabalhar para “ganhar o pão” são evidentemente mais suscetíveis. E, dentro desses, são as mulheres as mais atingidas, mães e avós da periferia com a dupla tarefa de cuidar da casa e trabalhar fora, pegar ônibus cheios, algumas dispensadas do emprego sem salário e agora precisando se virar com trabalho informal e eventualmente através da mendicância nas esquinas da cidade. Pessoas em situação de rua são expostas ao vírus, à fome e à violência. Como também são expostas as trabalhadoras do sexo, muitas vezes sem clientes e sem amparo social ou acesso ao auxílio emergencial. Presidiários são privados das visitas e ao mesmo tempo expostos ao contágio pelos funcionários e novos ingressantes. Só em junho houve um aumento de 800% no contágio dentro das prisões. Enquanto isso, juízes pelo País não respeitam a orientação do Conselho Nacional de Justiça de se reverem as detenções18. Para agravar, uma orientação interna do governo indicou que se retivesse e mesmo não se repassasse o auxílio emergencial para famílias de presidiários19. Nos hospitais psiquiátricos a situação não é muito diferente, alguns enfrentando surtos de Covid-19 entre os internos, com condições precaríssimas de assistência20.
Todos esses fragmentos de situações, experiências, aconteci- mentos ajudam a construir um percurso imaginário da cidade pandêmica, em que os territórios mais facilmente isolados e protegidos vão se mostrando minoritários em relação a todo o resto: as favelas; os bairros periféricos e de ocupação; as ruas ainda cheias do centro da cidade; os ônibus lotados; as feiras e mercados populares; os hospitais sem leito e sem equipamentos de segurança e proteção para os trabalhadores; as prisões e outros espaços de encarceramento; as instituições de acolhimento de crianças e jovens; os lares e asilos de idosos; as comunidades terapêuticas, que formam o novo regime asilar; o chão da fábrica e o canteiro de obras; as casas em que mulheres confinadas com seus maridos são espancadas sem ter onde se abrigar da violência; a rua, a marquise, as esquinas, onde muitos moram, trabalham, perambulam.
Estudos clássicos mostram a cidade como o locus das epidemias21. O que as observações e as pesquisas feitas sobre a pandemia de Covid-19 têm mostrado é que a cidade é também o palco da distribuição desigual do contágio, adoecimento e das possibilidades de tratamento e cuidado.
Constatar a desigualdade não é difícil, mas não basta, pois cor- remos o risco de normalizá-la. É necessário qualificar essas desigualdades, especificá-las. Tentar entender quais são os fatores que interferem no maior contágio, morbidade e letalidade em parte importante da população. Isso remete à necessidade de muitos estudos específicos, que consigam fazer essa qualifica-
ção. Mas alguns aspectos dessas diferenças na disseminação e na letalidade do vírus podem ser levantados e sintetizados.
O primeiro é a maior exposição ao vírus por parte de determinadas populações: no deslocamento para o trabalho; no próprio local de trabalho; pela impossibilidade de isolamento; em casa, pelas condições precárias de moradia; no bairro e na vizinhança, pela dinâmica da vida comunitária, pelas ruas estreitas e pela falta de saneamento; na fila do auxílio emergencial; na busca de emprego ou de alguma renda diária (coletores de resíduos, vendedores ambulantes). Outro aspecto que facilita a exposição ao vírus tem sido as ações policiais na periferia, que sistematicamente além de jogar a população em uma situação de exposição ao vírus, desorganizam as estratégias locais de enfrentamento à pandemia.
É preciso também investigar o que acontece depois do contágio, ou seja, o desenvolvimento da doença, agravada por vulnerabilidades e por menos imunidade, menos acesso a tratamentos e cuidados médicos, pela convergência com outras doenças (diabetes, pressão alta, entre outras, que atingem a população da periferia).
A dificuldade de acesso a serviços de saúde é outro aspecto – fechamento ou inexistência de Unidades Básicas de Saúde perto de casa, falta de uma política de saúde básica e da família no enfrentamento à pandemia (o caráter ainda hospitalocêntrico do tratamento), desestruturação da atenção básica e da saúde indígena.
Outro aspecto tem a ver com o atendimento das pessoas negras – estudos sobre outras situações, como o atendimento ao parto de mulheres negras, mostram não apenas dificuldade de acesso aos serviços, como lentidão e discriminações durante o atendimento.
No caso das populações indígenas, etnólogos e especialistas em saúde indígena têm apontado três situações que favorecem o
contágio: pelos próprios agentes e pessoal da saúde (o primeiro indígena contaminado no Brasil teria sido por um médico de um Distrito Sanitário Indígena – e o fato de os profissionais de saúde não estarem sendo testados é um agravante de situações como esta); a busca pelo auxílio emergencial pelos indígenas, que são obrigados a se deslocar para as cidades próximas, se expondo ao contágio; e o fator mais nefasto e incontrolável, que é a continua- da invasão e presença de garimpeiros, grileiros e madeireiros em Terras Indígenas. Conforme levantamentos sistemáticos do Instituto Sócio-Ambiental, a invasão das terras indígenas aumentou durante a pandemia22. Somam-se a isso as já mencionadas condições precárias de vida dos indígenas que moram na cidade.
Mas além da necessidade de qualificar e especificar as formas da desigualdade, ou seja, da necessidade de novas pesquisas sobre o tema no campo das ciências sociais e humanas, meu ponto aqui tenta ir um pouco além e introduzir uma dimensão complementar na análise da desigualdade, que é de pensar o quanto os modos de gestão da pandemia, de gestão das cidades durante a pandemia e de gestão do Estado brasileiro neste momento estão produzindo ainda mais desigualdade.
Vamos começar pelas políticas de enfrentamento à pandemia, em nível nacional prioritariamente, mas podemos falar tangencialmente das políticas estaduais – até porque os governos de estado ingressaram como importantes protagonistas na implantação de medidas durante a pandemia. Um exemplo de um es- forço de se construir medidas mais articuladas, referenciadas em pesquisas científicas e buscando cobrir vários flancos e estabelecer um monitoramento mais qualificado da pandemia foi a constituição do Comitê Científico de Combate ao Coronavírus, reunindo os estados da região Nordeste do País. É dele a iniciativa do Monitora Covid-19, um aplicativo que funciona em vários
estados e é um importante apoio ao monitoramento e controle da situação de isolamento e da propagação do contágio.
De modo geral parece evidente, no plano federal, a falta de uma política de enfrentamento à pandemia. Não apenas inexiste um plano nacional de enfrentamento, mas também observa-se uma estratégia continuada de boicote às medidas determinadas pelos estados (e mesmo inicialmente pelo próprio ministério da saúde, quando ainda era coordenado pelo ex-ministro Luiz Henrique Mandetta). Esses boicotes sistemáticos têm como eixo estruturador o próprio presidente do País, algumas figuras de seu governo e a avalanche de notícias falsas que circulam nas redes sociais. As chamadas fake news são o método de fundo da ação política do bolsonarismo.
No entanto, além das fake news propriamente, existe outro método de atuação do bolsonarismo que poderia ser definido como sistemáticas distorções ou desfigurações cognitivas in- tencionais. Um exemplo é o modo como Bolsonaro manipula os comunicados da Organização Mundial de Saúde para legitimar suas posições em relação à pandemia e às medidas de isolamento social. Uma dessas situações chegou ao ponto em que um dos coordenadores da OMS acabou indo à mídia desmenti-
-lo23. Penso que existe uma questão, entre as fake news e essas estratégias de distorção ou desfiguração cognitiva, que precisaria ser melhor compreendida: por que elas “pegam” tanto, por que as pessoas acreditam em determinadas postagens e “notícias” que circulam, por mais absurdas que sejam, e ainda ajudam a divulgar? Penso que o problema vai além dos disparos em massa, da existência dos “robôs” e de perfis falsos, do uso inadequado do whatsapp. Talvez a questão esteja nos modos como essas notícias falsas e interpretações distorcidas da realidade ganham inteligibilidade para a grande massa da
população – a partir de uma pauta que foi se construindo como central ao longo dos anos e que hoje funciona como matriz de inteligibilidade política estabelecida e aceita24: a insegurança, os bandidos que não devem ter direitos, o discurso da meritocracia, o discurso moral-ideológico em torno de gênero e sexualidade, além do próprio racismo estrutural presente historicamente na sociedade brasileira. Essas são algumas das bases ideológicas que servem para admitir as fake news e as distorções cognitivas bolsonaristas como verdades. Esse é um tópico que mereceria ser mais discutido em outro momento.
Mas penso que, para além das performances midiáticas bolsonaristas, é necessário olhar para algumas ações governamentais que produzem efeitos tão ou mais nocivos. Uma delas é a retenção deliberada dos recursos destinados ao enfrentamento da pandemia por parte do governo e dos ministérios. No final de junho, o ministério da saúde havia liberado apenas 30% dos recursos destinados ao combate à Covid-19; a própria Funai só havia executado, até o mês de julho, 39% dos recursos para combater o coronavírus junto às populações indígenas.
Também nos governos estaduais e municipais políticas negligentes e equivocadas de enfrentamento à pandemia agravaram a situação da população precarizada. O aumento das violências patrocinadas pelo Estado é uma das dimensões que precisam ser mais compreendidas e enfrentadas. Dados sobre mortes provocadas pelas polícias militares em vários estados do Brasil, principalmente aqueles governados por políticos que apoiam ou apoiaram Bolsonaro, são cada dia mais alarmantes. Como relatado antes, essas ações, que expõem os moradores desses bairros ao contágio, também desestruturam as formas de organização e
enfrentamento local à pandemia, servindo como elementos sabotadores das políticas sociais.
A produção da desigualdade – e da morte – é hoje no Brasil uma política de governo. Recentemente houve uma discussão nacional sobre a caracterização dos atos deste governo como sendo genocidas – extensível aos militares que hoje estão no governo. Essa discussão ganhou visibilidade quando a acusação foi feita por um ministro do Supremo Tribunal Federal, mas já há alguns anos ativistas e lideranças locais têm denunciado o genocídio cotidiano da população da periferia, principalmente de jovens negros. Um reducionismo jurídico tomou conta da discussão sobre o genocídio por parte de alguns analistas, que tentam localizar a questão ao pé da letra da Convenção da ONU de 1948 ou do Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Inter- nacional, em 1998 – e que definem o crime de genocídio. Penso que existe uma dimensão dessa discussão que se amplia para além da discussão jurídica, apesar de considerar que mesmo do ponto de vista estritamente jurídico os atos de Bolsonaro e seu governo justificam que uma ou mais denúncias sejam acolhidas pelo Tribunal Penal Internacional.
Tornar visíveis essas produções permanentes da desigualdade e tirar a desigualdade de seus regimes de normalização são algumas das contribuições que as Ciências Sociais e as teorias sociais críticas podem trazer. Uma delas é mirar de modo mais detido os modos como o sistema de saúde tem sido utilizado no enfrentamento à pandemia e como os dispositivos, programas e serviços de saúde estão sendo (ou não) acionados, como o SUS, o instrumento mais importante com que poderíamos contar neste momento, que foi negligenciado e deixado de lado.
4. O abandono do SUS: quando as políticas da vida se convertem em políticas da morte
O Brasil construiu nos últimos 30 anos um sistema de saúde pública, o SUS – Sistema único de Saúde – em torno de alguns princípios, métodos e dispositivos. Entre eles a universalidade do acesso à saúde, a equidade, a integralidade, mas também o exercício da democracia na elaboração das políticas de saúde. O SUS também se define pela atuação em diversos níveis de complexidade: a baixa complexidade (coberta pela atenção básica), a média complexidade (pelas Unidades de Pronto Atendimento
– UPAs, as clínicas e hospitais-escolas) e a alta complexidade, coberta pelos hospitais de grande porte, onde são feitas intervenções de maior risco. Não há dúvida de que o pouco de enfrenta- mento que estamos conseguindo fazer no Brasil se deve ao SUS. No entanto, o sistema foi sendo desmontado nos últimos anos, principalmente com a Emenda Constitucional 95, que congelou por 20 anos os gastos com saúde e educação, aprovada logo após o golpe de 2016, que tirou a presidenta Dilma Rousseff.
O que se observa no enfrentamento à pandemia, inclusive nas medidas tomadas na maior parte dos estados, é um certo abandono tanto dos princípios quanto de dispositivos e aparelhos de assistência do SUS. Por exemplo, grande parte da atuação no combate à pandemia está concentrada na alta complexidade e nos hospitais (nas intervenções invasivas e de maior risco, ou seja, na internação em UTI, no uso de respiradores e no intubamento). É evidente que é necessário ter à disposição e acionar o aparato da alta complexidade, que garanta que vidas sejam salvas quando os agravos da Covid-19. No entanto, é necessário pensar nos dispositivos existentes que poderiam ajudar a conter o agravamento nos estágios mais iniciais da doença. Grande parte do achatamento da curva do contágio no Brasil é pensada a partir dos limites do sistema de saúde em atender essas pessoas (e esses limites estão sendo pensados lá em cima, na alta complexidade – de quantos leitos de UTI dispomos). Recentemente em uma das aulas do cur-
so Antropologia, Saúde e Cuidados em tempos de Pandemia, curso suplementar do departamento de Ciências Sociais da UFPB, a professora Ednalva Neves e a doutoranda Ana Guedes trouxeram dados comparativos sobre as noções de risco e cuidados na pandemia em alguns países25. O caso da Nova Zelândia é interessante porque ele contrasta bastante com o caso brasileiro. Enquanto naquele país, o objetivo é o de “não ter curva”26 (ou seja, o risco seria ter qualquer curva ascendente de contágio – o que significou uma antecipação das medidas de isolamento e distância social, mas também o largo uso da testagem), no Brasil a baliza da curva está associada ao limite dos leitos de UTI, ou seja, alguns patamares bem acima do que seria considerado risco na Nova Zelândia. Uma leitura possível desses dados é o quanto a definição do que é risco incide no tipo de esforço e de demanda sobre o sistema de saúde pública. Brasil e Nova Zelândia são casos extremos. Enquanto na Nova Zelândia, o objetivo de “não ter curva” levou a medidas precoces de isolamento, testagem em larga escala, entre outras, no Brasil, o risco foi definido como risco de morte a partir do esgotamento da capacidade da alta complexidade: UTIs e respirado- res (e, mais recentemente, falta de medicamentos fundamentais para o intubamento). Temos aqui dois patamares de risco, que se relacionam com dois modos muito diferentes de demanda sobre o sistema de saúde e de uso deste sistema. Claro que há outras diferenças que pesam na comparação entre os dos países, demográficas, de concentração populacional. Mas é notável a diferença de gestão da pandemia.
Visivelmente no Brasil, o SUS não foi acionado com toda sua potência e capacidade, sobretudo na atenção básica, o que poderia ter sido um fator fundamental no controle do contágio e na redução de situações mais graves, inclusive reduzindo as taxas de letalidade.
Além disso, o esgotamento do sistema de alta complexidade é diferenciado na comparação entre os hospitais públicos e os privados – ferindo os princípios de universalidade e de equidade, o que se torna ainda mais grave em um momento de emergência sanitária. Vale lembrar que de 2016 a 2020 o orçamento com saúde em relação ao gasto público diminuiu de 4,36% para 2,97% do PIB.
Outro princípio do SUS e da elaboração de políticas públicas no Brasil que foi abandonado desde o golpe de 2016 foi o da democracia na elaboração e implantação das políticas de saúde pública, com o desmonte e/ou o enfraquecimento dos conselhos nacionais (de saúde, de segurança alimentar). Aliás, democracia foi o tema da 16ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em outubro de 2019, também chamada de 8ª+8 (em alusão à 8ª conferência nacional, marco na criação do SUS e na democratização do País). A 16ª Conferência ressaltou questões como defesa do SUS e da democracia na elaboração e gestão das políticas públicas, enfatizando a questão da participação popular e do controle social na gestão da saúde, denunciando o processo de desmonte dos conselhos nacionais, a PEC 95, entre outras denúncias. Mas o que se tem observado é que princípios democráticos estão sendo sistematicamente desrespeitados, em diversas dimensões: na falta de uma orientação nacional de atuação do SUS na pandemia, no esvaziamento das orientações do CNS (que, por exemplo, indicou, em abril, a utilização de leitos ociosos da rede privada para enfrentamento à Covid-19, sem uma resposta por parte do ministério), e nas próprias relações internas dentro do Ministério da Saúde, que com o ministro temporário que ocupou o cargo, general Pazuello, passou a impor um regime de censura à expressão pública dos funcionários do ministério e perseguição interna27.
Esses são alguns exemplos de como os dispositivos e os princípios do SUS não apenas não estão sendo utilizados como es- tão sendo ainda mais fragilizados durante a pandemia. E pior, as poucas medidas emergenciais aprovadas pelo congresso têm sido vetadas pelo governo, como foi o caso das medidas voltadas à proteção dos povos indígenas.
Nada é tão eloquente no caso brasileiro quanto a frase despudorada do ministro do meio ambiente na reunião ministerial de 22 de abril e que foi divulgada amplamente nas mídias28: vamos aproveitar que está todo mundo preocupado com a pandemia e passar a boiada.
A produção de desigualdade está ligada também à destruição das formas e dos princípios democráticos de decisão e de gestão. Tanto em relação às políticas de saúde e específicas de enfrentamento ao coronavírus quanto em relação a políticas de combate à desigualdade social – que seriam centrais durante e depois da pandemia: políticas de renda mínima; políticas emergenciais de saneamento (neste caso estão fazendo o contrário, com a aprovação da privatização da água e do saneamento pelo senado); políticas de demarcação de terras indígenas e garantia de sua inviolabilidade; fortalecimento do IBAMA e da fiscalização ambiental; fim da PEC 95 – do teto dos gastos; democratização digital (internet livre e gratuita universal); a reconversão industrial, com a produção focada em bens e insumos de saúde e em outros bens necessários à qualidade de vida da população; uma política de proteção e cuidado da população carcerária, inclusive com liberação das pessoas em situação de riscos e agravamentos com a doença (idosos, grávidas, mães com filhos); fomento à agricultura familiar. E diversas outras medidas que deveriam vir articuladas com as políticas específicas de saúde pública e de direito à cidade.
5. Territórios de resistência, territórios de existência
A cidade pandêmica tornou-se ainda mais desigual, excludente e violenta do que era antes da pandemia. A ausência de políticas sociais, de cuidado e de enfrentamento à pandemia é respondida com ações locais em bairros, favelas, comunidades, populações específicas.
Na ausência do Estado, ou na falta de políticas efetivas e eficazes de enfrentamento à pandemia, as populações mais precarizadas se organizam e buscam respostas locais. Territórios de resistência e de existência se produzem, principalmente entre aqueles que não contam com o Estado para um efetivo enfrentamento à pandemia e aos efeitos produzidos por esta sobre as condições e às possibilidades de vida dessas populações.
Se olharmos para alguns modos locais de lidar com a pandemia, veremos iniciativas muito interessantes e que podem ajudar na produção de políticas públicas e na reavaliação das ações do Estado neste momento.
Muito brevemente vou tratar a seguir dessas outras políticas que vêm sendo feitas, as políticas locais, as formas de auto-organização e de resistência à pandemia e à desigualdade.
No campo da saúde, pesquisadoras e pesquisadores têm insistido, a partir da Antropologia e das Ciências Sociais, na necessidade de conhecimento qualitativo das práticas e saberes locais em relação aos processos de adoecimento e cura, da compreensão do sofrimento e dos modos locais de enfrentamento. Esse conhecimento qualitativo é precioso não apenas para avaliar a eficácia ou mesmo a pertinência e os efeitos de determinadas políticas de saúde e políticas públicas em geral, mas também para elaborar novas políticas públicas e modos de relação do Estado com os sujeitos sociais, as comunidades e as diferentes populações. Em alguns momentos passados o Estado admitiu
a importância de se reconhecer a perspectiva das populações e comunidades, por exemplo na participação comunitária e popular nos conselhos e nas conferências de saúde. Muito raramente essa abertura se desdobrou em uma intenção mais evidente de reconhecimento desses saberes e de inclusão destes nas políticas públicas, como chegou a ser o Programa Trabalhando com Parteiras Tradicionais do Ministério da Saúde, mesmo admitindo as limitações de sua implementação, sobretudo em relação a não efetividade do reconhecimento dos saberes e lógicas locais dos grupos específicos alcançados por esse programa.
O que percebemos nas políticas para a pandemia é tanto um desconhecimento das iniciativas e agências locais quanto a implantação de uma política de enfrentamento à pandemia totalmente baseada em um princípio de desagenciamento das pessoas, das comunidades e da população. Uma política de saúde baseada exclusivamente em critérios técnicos da epidemiologia e sem uma visão social dos efeitos da epidemia acaba desconhecendo as iniciativas e as invenções locais das respostas à epidemia e aos efeitos econômicos e sociais do isolamento.
E o que está acontecendo em nível local?
Já no início da pandemia, economistas brasileiras chamaram a atenção do governo para que impulsionasse uma política de reconversão industrial, voltada por exemplo à produção de Equipamentos de Proteção individual (EPIs) e outros equipamentos e insumos médicos que iriam faltar. Nada foi feito nesse sentido em termos governamentais. Paralelamente, um processo micro-político e horizontal de transformação das cadeias de consumo e de produção, tanto de artefatos artesanais como industriais, começou a ocorrer. Mulheres de comunidades periféricas começam a confeccionar máscaras de proteção para obter uma fonte de renda (um movimento que está acontecendo em outros países da América Latina); pequenos agricultores passam a entregar alimentos em casa, formando uma rede de distribuição da
produção agrícola orgânica e sustentável; são articuladas frentes indígenas de combate ao coronavírus; cresce a organização dos moto e ciclo entregadores; são estruturadas redes de solidariedade de produção e distribuição de refeições nas periferias urbanas; o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) doa toneladas de alimentos produzidos em seus assentamentos para combater a fome e as dificuldades durante a pandemia; formas de auto-organização em alguns bairros periféricos, garantindo o isolamento da comunidade e vigilâncias e delegados populares para monitorar as casas.
Todas essas e muitas outras iniciativas que podem ser vistas em diversas cidades se constituem em políticas de resistência e de luta e em modos de produzir territórios de existência que resistem às políticas da morte.
Que resultados teria se incluir esses saberes, práticas e iniciativas locais na elaboração das políticas de enfrentamento à pandemia? Por que não potencializar o conhecimento e as práticas locais? Ninguém nega que pesquisadores e profissionais do campo biomédico e da área de saúde estão na linha de frente para pensar os modos de enfrentamento e agir, mas existe uma enorme base ou escalões intermediários dos vários campos do conhecimento e dos saberes e técnicas locais que poderiam produzir uma inteligência muito mais eficaz de enfrentamento à pandemia29.
Por exemplo, por que não montar comitês interdisciplinares de enfrentamento à pandemia em cada estado e em cada cidade, fortalecendo os conselhos municipais e estaduais de saúde? Nós sabemos como esse foi um debate difícil na implantação das políticas de saúde e de saúde mental e da resistência que se
encontrou no campo biomédico em relação à incorporação de profissionais de outros campos e à democratização do processo de elaboração das políticas públicas. Mas algumas conquistas aconteceram no sentido de realizar na prática esses princípios. Infelizmente, parece que a pandemia está servindo de espaço para que reemerja com força uma visão da saúde e da política de saúde, de um lado, centrada na dimensão bio-farmaco-médica da saúde pública e, de outro, que adota estratégias que cedem às pressões de grupos econômicos.
Alguns analistas têm dito que o Brasil está longe de sair da primeira onda. O isolamento social foi relaxado em muitas cidades por pressão de forças e grupos econômicos, em geral o grande empresariado e o comércio. As políticas de apoio às pequenas e médias empresas não foram adiante, diversas dificuldades foram criadas pelo governo federal para o acesso aos benefícios, do mesmo modo como ocorreu com o auxílio emergencial. Os governos dos estados têm limites em levar uma política própria e diferenciada em relação ao governo federal ou de enfrentar sozinhos a pandemia e seus efeitos.
As práticas e ações locais têm sido um laboratório de iniciativas importantes, que podem ajudar a pensar a questão do direito à cidade e ao território (extrapolando a oposição entre o urbano e o não-urbano), os dispositivos de democracia local, a dimensão comunitária das políticas sociais. De um social extremamente desigual, emergem coletivos e ações voltadas para pensar novas formas do viver juntos, novas políticas de coabitação.
Grande parte dessas articulações e conexões que engendram movimentos é feita online. Um terceiro vértice se intensifica na relação entre casa e rua, as socialidades e conexões virtuais, que, somadas às que são feitas nas ruas e nos espaços coletivos, ajudam a formar redes potentes de reinvenção social e produção de novos territórios e modos de existência.
A pandemia de Covid-19 é um fenômeno que atinge a todos, mesmo que de forma desigual. Ela faz emergir com força a experiência daquilo que o antropólogo Johannes Fabian chamou de coetaneidade – que poderia ser definido, de modo simplificado, como “existência simultânea no tempo”. E nessa existência simultânea, contemporânea, estamos vivendo a experiência desse grande “comum” que é a pandemia. Mas nem coetaneidade nem esse comum da pandemia abrandam o que foi relatado neste artigo, a profunda desigualdade com que essa e outras experiências de alcance planetário são vividas.
São os mais pobres, precarizados, às margens do Estado, que o aquecimento global e as catástrofes ambientais estão atingindo antes. Também são eles que sofrem hoje com esta pandemia, como sofreram com outras epidemias no passado30.
Em outros momentos em que a antropologia foi chamada a responder de modo urgente, a grande divisão da urgência antropológica era dada pelos impactos da modernização sobre as sociedades ditas tradicionais, e o grande divisor se dava entre os modernos e os “outros”, entre desenvolvimento e tradição, entre as sociedades tecnologicamente orientadas e os povos originários.
O que a experiência recente da pandemia tem trazido de forma mais evidente é que, se existe um grande divisor, ele é dado pela produção capitalista de desigualdade. A barbárie da pandemia, a necropolítica e a política genocida não pertencem ao vírus, barbárie é a produção acelerada e contínua de desigualdade e a ausência de respostas que protejam as populações mais vulnerabilizadas e precarizadas do vírus. É essa a nossa urgência e, quando escrevo “nós”, estou me referindo a todas e todos que, como definiu Isabelle Stengers, em No tempo das Catástrofes, se sentem convocados pela necessidade de reagir.
Epílogo
É quarta. Dia em que chega a feira do quilombo Bonfim, de Areia, localizado no brejo paraibano. Dois dias antes marquei no questionário do google, enviado por eles semanalmente pelo whatsapp, os produtos e combos da semana. A campainha toca. Nervosa, como sempre fico quando tenho que descer desde que iniciou a quarentena, visto a máscara, pego um lenço de álcool 70o, troco de chinelo quando cruzo a porta do apartamento e desço pelas escadas. Há quase cinco meses também não pego elevador. Empurro o carrinho de supermercado do condomínio para colocar dentro as duas enormes sacolas e os ovos. Em geral quando chego na portaria o entregador já foi e deixou tudo ali, com o zelador, que é também porteiro. Ednaldo, sempre de máscara, me ajuda a organizar as sacolas no carrinho, que empurro até dentro do elevador, aperto o andar e subo pelas escadas. Já na área de serviço, vou tirando os alimentos dos sacos. Cenoura e beterraba, adoro quando elas vêm com as folhas, cheiro de roça. Macaxeira, jerimum, mel, quiabo e inhame. Hoje as frutas vieram bonitas. Banana, manga, goiaba, laranja, tangerina. Goma, um bloco fresco e cheiroso. Alface lisa, alface crespa, alface americana, alface roxa, rúcula, cebolinha, temperos, ervas para infusão. Dessa vez encomendei fava também. Penso no per- curso de toda essa fartura, do quilombo Bonfim até João Pessoa. E em João Pessoa até cada uma das casas que vão receber o trabalho de tanta gente. Me imagino andando na estrada de terra que leva até o quilombo. Avisto alguém de braços abertos. Abro os braços. Esperança.
Referências
Butler, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identida- de. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Davis, Mike. Covid-19, doença do neoliberalismo. Outras Palavras, maio de 2020 [traduzido da New Left Review por A terra é redonda].
Fabian, Johannes. Time and the Other: How Anthropology Makes its Object. Columbia Univ. Press, 2002.
Fleischer, Soraya. Descontrolada. Uma etnografia dos problemas de pressão. São Carlos: EdUFSCar, 2018.
Foucault, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Maluf, Sônia Weidner. Antropologia em tempo real: urgências etnográficas na pandemia. Aula inaugural no PPGAS/UFAL, 2020. Publicado no site Antropologia na Pandemia – INCT Brasil Plural. Disponível em:
Miller, Daniel; SLATER, Don. The internet: an ethnographic approach. Oxford: Berg Editorial, 2004.
Stengers, Isabelle. No tempo das catástrofes. Rio de Janeiro: CosacNaify, 2015.