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Recepção: 24 Fevereiro 2017
Aprovação: 31 Maio 2017
Resumo: O presente artigo busca interrogar o papel das agências de clas- sificação de risco de crédito e seus dispositivos na redefinição de novas regras culturais e institucionais que governam o acesso de Estados Soberanos ao crédito e investimentos via mercado de títulos públicos. Hoje, esses Estados se capitalizam através das emissões de títulos, bonds, em mercados primários e secun- dários, descentralizando a dependência de crédito de bancos e instituições multilaterais. O artigo foca no modo específico pelo qual as agências de classificação de risco de crédito, produtoras objetivas de avaliações e classificações desses Estados Sobera- nos, têm fundamentado firmemente suas posições e legitimado seus constructos de controle sobre mercados e Estados. Com base em pesquisa documental e instrumentos de análise extra- ídos das sociologias da performatividade e da classificação se pretende questionar o estatuto, adensamento de normalização e produção de standards financeiros sobre Estados Soberanos.
Palavras-chave: Agências de classificação de Risco de Crédito, Estados Soberanos, Financeirização, Dispositivos de controle e regulação, Performatividade.
Abstract: This article aims to question the role of credit risk rating agen- cies and their devices in redefining new cultural and institu- tional rules governing Sovereign State access to credit and in- vestments via the public securities market. Today, these states capitalize through the issuance of bonds in primary and secon- dary markets, decentralizing credit dependence from banks and multilateral institutions. The article highlights the specific way that credit rating agencies, which are objective producers of assessments and ratings for these sovereign states, have fir- mly grounded their positions and legitimized their constructs of control over markets and States. Based on documentary resear- ch and analysis tools extracted from the sociologies of perfor- mativity and classification, it is intended to question the status, density of normalization, and production of financial standards for Sovereign States.
Keywords: Credit Rating Agencies, Sovereign States, Financialization, Control and regulation devices, Performativity.
Introdução
Em 05 de maio de 2016 a agência de classificação de risco Fitch confirmou em seu site a expectativa de investidores e repre- sentantes do Governo: “Fitch Downgrades Brazil to ‘BB’; Ou- tlook Negative”, em uma tradução literal: “Fitch rebaixa Brasil para ‘BB’, perspectiva negativa”. Era o registro público e formal da segunda agência a retirar o grau de investimento do Bra- sil. A repercussão pela imprensa nacional e internacional foi imediata. Naquele momento, o julgamento desfavorável sobre a situação econômica e financeira brasileira era referendado e atestado por uma segunda grande agência de classificação de risco de crédito. Em 09 de setembro do ano anterior a agência Standard&Poors’s já havia tomado a dianteira e feito o primei- ro corte na nota do Brasil.
Naquele 09 de setembro de 2015, a página de negócios da plata- forma online Reuters noticiara: “Brazil downgraded to junk ra- ting by S&P, deepening woes”, em destaque: “Standard & Poor’s downgraded Brazil’s credit rating to junk grade on Wednesday, further hampering President Dilma Rousseff’s efforts to regain investors’ trust and pull Latin America’s largest economy out of recession” (Brandimarte, 2015).
Na configuração do quadro discursivo desse momento é pos- sível encontrar termos como downgrade, junk grade, regain investor’s trust, elementos e metáforas que descrevem o colap- so econômico-financeiro do Estado Soberano Brasileiro frente ao mundo das finanças internacionais. Trata-se de uma nar- rativa lançada não pelo corpus de quem sofre o impacto das avaliações, mas por dispositivos e agentes financeiros direta- mente envolvidos nas produções, a partir de posições que lhe conferem poder para tanto.
Consideradas uma convenção legítima, e, mais ainda, performá- tica, tal como será discutido adiante, essas classificações gozam de respaldo legal e simbólico nos mercados. Para grandes investidores institucionais como fundos de pensões, por exemplo, o atestado de pelo menos duas agências reconhecidas é uma exigência jurídica para ingressar, permanecer ou sair de um in- vestimento. Trata-se de um mecanismo para evitar que cotistas desses fundos sejam expostos ao risco. Assim, para retornarmos ao exemplo de abertura do artigo, do ponto de vista legal e normativo, muitos fundos, como os de pensões, venture capital e bancos, de acordo com suas respectivas cláusulas de contrato, foram impedidos de manter títulos do tesouro brasileiro, frente ao rebaixamento da avaliação.
Da perspectiva de Estados Soberanos, as avaliações e classifica- ções são tidas como uma fonte segura e consistente de avaliação sobre seus títulos, considerados garantias públicas. O impacto das avaliações e classificações se estendem também sobre as atividades financeiras nacionais desses Estados Soberanos – re- organizando procedimentos regulatórios de controle e coorde- nação dos Sistemas Financeiros Nacionais. Um exemplo ilustra- tivo dessa condição é a de que instituições financeiras operantes em território brasileiro apresentem ao Banco Central do Brasil, via demonstrativos contábeis das reservas financeiras e depósi- tos, percentual de suas carteiras em títulos com alta liquidez, ou seja, títulos avaliados com grau de investimento (classificação melhor ou igual a AA-) pelas agências de classificação de risco de crédito1. Em outras palavras, trata-se de uma governança2 pública, disciplinar, produzida por uma instância privada (a agência de classificação de risco de crédito) e sancionada pelo Estado.
Assim, as avaliações e classificações das agências de risco apre- sentam um duplo propósito: por um lado, com base nas avaliações e classificações, investidores podem desenhar as melhores estratégias de provimento de retornos, equacionados com pos- síveis riscos das transações. Por outro, os emitentes de títulos, mutuários, como os Estados Soberanos, em posse dessas ava- liações, usufruem de liberdade para orientar e ordenar interna- mente suas contabilidades de modo a ajustá-las a função social que considerem prevalecente.
Considerar os dispositivos de avaliação de risco de Estados So- beranos produzidos pelas agências de classificação de risco de crédito, antes de mais nada, como objeto de formulações nor- mativas e percebido como tal no interior do campo das finan- ças internacionais é, portanto, o desafio essencial do presen- te artigo. Essa operação analítica implica, em primeiro lugar, conferir centralidade à noção performática de um sistema de investimentos no mercado de crédito que tem amadurecido e se tornou um estilo de investimento e de gestão em si mesmo. O mercado de títulos públicos tem tido um impacto crescente sobre como Estados Soberanos organizam e executam seus sis- temas financeiro internos, suas politicas macroeconomicas, e quais estratégias perseguem de modo que seus ativos, bonds3, sejam maximizados.
Esse esforço de análise se distribui em sete seções que se divi- dem da seguinte forma: a introdução ora apresentada; o tópico seguinte analisa a emergência das agências de classificação de risco, a partir de seus dispositivos técnicos de avaliação e classificação de risco de Estados Soberanos e questiona o papel estritamente pragmático das agências. A terceira seção organiza uma breve apresentação das noções de performa- tividade e dispositivos e como estas conceituações oferecem um ferramental analítico interessante para a abordagem das classificações e avaliações de risco de credito. Na sequência, a seção seguinte retoma a discussão apresentada na introdução sobre as interpolações do uso das avaliações como instrumen- tos normativo e regulatório por parte de autarquias estatais. Essa discussão oferece uma abertura para a seção cinco, na qual é estabelecida uma tentativa de analisar a orquestração desse novo regime de verdade sobre controle do risco que, mobilizando dispositivos técnico-materiais e difundindo uma linguagem específica, conseguiu produzir uma expansão so- bre as estruturas de finanças públicas e privadas. A seção seis traz uma reflexão contraintuitiva sobre as crises e escândalos envolvendo as agências de classificação de risco de crédito. A interpretação apresentada sugere que o medo da deflagração de novas crises produziu um estreitamento das instâncias de controle de Estados Soberanos e as estratégias para coibir ex- posições acima de standards produziram fortalecimento das agências. Nos apontamentos finais são retomadas as principais conclusões do artigo, direcionando o leitor para caminhos de continuidade e/ou possibilidade de novos trabalhos no campo de estudos dos dispositivos relacionados à classificação de ris- co de crédito soberano.
1 Expansão e Diversificação: mudanças das instâncias e dis- positivos de classificação de risco de crédito
As organizações produtoras de classificações sobre risco de crédito4 são firmas privadas e independentes que estimam e classificam a credibilidade – este é um termo fundamental – de mutuários atuantes em mercados de títulos de crédito, por exemplo, empresas, companhias de seguro, bancos, municípios, Estados soberanos; elas também notam instrumentos financei- ros, por exemplo, obrigações, empréstimos e outros produtos financeiros estruturados, tais como obrigações de dívidas cola- terizadas.
As agências operam coletando informações dispersas da situa- ção financeira dos tomadores de empréstimo em relação ao ris co de falência, default, para empregar o termo nativo em inglês, de certos produtos financeiros; e condensam isto em uma única medida do risco de crédito relativo – uma notação de risco gra- duada por letras, números e sinais (ver tabela 1).
Essas medidas do risco de crédito relativo são publicizadas e disponibilizadas livremente aos interessados, tanto agentes pri- vados, que as utilizam para decisões de investimento no mercado, quanto instâncias estatais, que as utilizam em matéria de regulamentação financeira sensível ao risco.
Do ponto de vista dos mercados, as agências são uma espécie de intermediários financeiros, facilitadores, proporcionando “serviços de informação” que reduzem custos de captação da informação, geram o aumento do leque de potenciais mutuá- rios e, em termos pragmáticos, promovem mercados líquidos. Elas também oferecem “serviços de monitoramento” através dos quais influenciam os emitentes a tomarem ações correti- vas para evitar rebaixamentos (FMI, 2010). Na prática, esses dispositivos de avaliação amenizam a tensão entre partes nas transações comerciais.
As três principais agências classificadoras de risco, internacio- nalmente reconhecidas, são: Standard & Poor’s (S&P), Fitch e Moody’s. Tratadas nos mercados como as Big Three, elas repre- sentam 95% do mercado de classificação de Estados Soberanos (FMI, 2010)5.
A origem das agências e suas respectivas trajetórias se mesclam à história de expansão econômica norte-americana rumo ao oeste. O aparecimento das primeiras agências mercantis, como eram então denominadas, remonta ao século XIX. Sua função bá- sica, naquele período caracterizado pela efervescência de negó- cios relacionados ao ouro e às ferrovias, era fundamentalmente atestar a confiabilidade em possiveis parceiros comerciais (Ole- gário, 2006; Poon, 2012).
Assim, tem início as primeiras práticas de notação, termo usado na época para descrição da atividade de classificação de risco de crédito. As notações, ou avaliações, circulavam através de rede de correspondentes locais dispersos por todo o país, coletores e transmissores de dados, até a chegada aos agentes do mer- cado dispostos a pagar por tais informações. Esses atestados/ avaliações produzidos pelas agências representavam opiniões, posicionamentos parciais, mas que por um processo histórico de assimilação cultural adquiriram abrangência e estatuto legí- timo de controle dos mercados.
Em termos de uma dimensão histórica e cultural é valido afirmar que as agências souberam se ressignificar frente às demandas de seu tempo e espaço. Por meio de suas trajetórias e narrativas é possível apreender como foram capazes de se performar (Poon, 2012), sensíveis às transformações sociais e de mercados, go- vernando, e reflexivamente, sendo governadas, pela transição de uma sociedade industrial para a sociedade pós-industrial, des- crita por Davis (2009; 2015), baseada na financeirização.
Com base nessa perspectiva histórica de emergência e perma- nência das agências de classificação de risco de crédito, vem ao caso expandir a reflexão para uma dimensão relacional, de modo a escaparmos de uma leitura ontológica da história, que em geral levam à uma falácia essencialista do objeto estudado. Colocadas em perspectiva, as agências e seus dispositivos de avaliação e classificação, e no caso singular das operações relacionadas aos Estados Soberanos, oferecem uma nova orquestração do modo pelo qual corporações e Estados podem se mexer no mercado financeiro internacional e alavancar suas finanças.
A instauração desses novos agentes, as agências, no espaço das fi- nanças internacionais possibilitou um deslocamento das relações de poder, como por exemplo, pode ser registrado sobre a atuação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e bancos multilaterais, que até meados das décadas de 1990 imperavam como institui- ções legítimas de avaliação e controle de crédito para Estados So- beranos (Fourcade, 2013a; Bichoffe, 2016). O registro de opinião de Celso Furtado oferece um exemplo da relevancia da atuação dos organismos tradicionais de financiamento de crédito:
O FMI sobreviveu como instrumento de tutela de países inadimplentes. Representa um progresso considerável com respeito a época em que os credores mandavam navios de guerra para ocupar as aduanas de países devedores em de- fault. Mas o espírito é o mesmo: submeter a controle um Es tado que se considera incompetente para gerir os próprios negócios (Furtado, 1981, p. 83).
Até meados da década de 1960, cabia fundamentalmente ao Ban- co Mundial, ao Banco lnteramericano de Desenvolvimento (BID) e a outros bancos de desenvolvimento o papel de avaliar riscos de Estados Soberanos que buscavam financiamento externo. De acordo com a metodologia do Banco Mundial, se baseavam na utilização da razão do serviço da dívida desses países. O autor explica que após algum período de aplicação estática dessa razão, passou-se à adoção de um modelo de análise dinâmico que considerava também a evolução do serviço da dívida em função de novos empréstimos e que incluía ainda o perfil da dívida. É possível relacionar, porém sem afirmar com absoluta precisão, que esse tipo de análise foi o embrião do que as agências de classificação fariam, a partir da década de 1980, com os ratings de risco soberano.
De acordo com dados fornecidos pelo FMI (2010), as Big three dominam a produção de ratings soberanos. Standard & Poor’s classifica 125 Estados Soberanos, enquanto Moody’s 110, e Fitch 107 nações. O interesse pelo mercado latino-americano cresceu apenas a partir da década de 19906, em grande parte devido ao movimento de reestruturação, renegociação e securitização de dívidas nacionais (Plano Brady de 1989) dos países latino-ame- ricanos (Bichoffe, 2016). A abertura desse novo mercado desper- tou o interesse das agências a instalarem subsidiárias locais, que depois viriam a se tornar escritórios de representação. A primeira a se fixar no Brasil foi Standard & Poor’s em 1992, seguida de Fi- tch7 e Moddy’s, ambas se estabelecendo em território nacional em 1997. Desde 1994 os governos brasileiros assinam contratos de avaliação do risco Soberano com essas três agências.
Obviamente que organismos multilaterais, como FMI, BIS, BID, ainda reservam seu espaço e desempenham uma função ex- pressiva, especialmente para Estados Soberanos considerados destituídos de meios para enfrentar colapsos financeiros e que, diante da situação de vulnerabilidade plena, recorrem aos mecanismos tradicionais como alternativa na busca por créditos e financiamentos.
A retórica de vanguarda exposta na versão atual em que Estados Soberanos negociam títulos em mercados de crédito, como me- canismo para captação de recursos, apresenta como vantagens a possibilidade destes Estados, por um lado, atingirem certa auto- nomia em organizar, quantificar, mensurar e estabelecer planifi- cações e os controles orçamentais de suas atividades financeiras sem a tutela e parâmetros condicionados por credores tradi- cionais. Por outro lado, nesse outro modelo, tanto as operações quanto os dividendos são controlados por um conjunto de mé- tricas e indicadores de avaliação de competência, performance e desempenho. Ou seja, os Estados são atravessados por uma lógica da financeirização que reivindica um vocabulário próprio e que tematiza o funcionamento de Governos.
Outro exemplo de como essa orientação do mundo financeiro vem ganhando espaço nas finanças estatais – nomeando e des- crevendo situações político-econômicas a partir de um léxico emprestado deste mundo financeiro – é a noção de Risco-país. Trata-se de algoritmos que oferecem uma dimensão plana, obje- tiva e, fundamentalmente, uma representação gráfica das varia- ções diárias de risco de crédito aos quais investidores estrangei- ros estão submetidos quando investem em determinado Estado. Os mais conhecidos internacionalmente são o Emerging Markets Bonds Index (EMBI+Br) e o Credit Default Swap (CDS) do Brasil8.
Assim, considerando as avaliações e classificações das agências como dispositivos com pretensão de verdade, produzidos e di- fundidos para descrever e, a partir disto, normatizar o funciona- mento dos Estados, o próximo tópico visa analisar uma dimen- são menos evidente, ao menos em um primeiro momento, que é o efeito de legitimidade, mas também de violência simbólica, que o dispositivo produz sobre Estados Soberanos. Busca-se as- sim demonstrar que o movimento de convergência para deter- minada técnica de controle de risco não é tão gratuita e natural como um leitor desavisado poderia supor, mas permeada por constrangimentos, coerções e imposições, que passam também por um processo de persuasão, nos quais o jogo de linguagem, o uso de metáforas, produzem um efeito positivo de confiança e legitimidade.
2 Performatividade e dispositivos: a emergência dos Estados Soberanos como objetos de controle
A porta de entrada desta reflexão se situa nas transformações que as classificações de risco de crédito produzem nos Estados Soberanos. Estados são, por excelência, instituições singulares organizadoras de nossa existência mundana, ou seja, os inculca- dores ‘naturais’ de sistemas classificatórios, governando desde elementos básicos de temporalidade, como aqueles relaciona- dos ao dia a dia, como calendário do sistema escolar, horário de verão, feriados; passando pela resolução de litígios, institui- ção de parâmetros e critérios jurídicos; e provedor de sistemas médico e de proteção social; até, fundamentalmente, atentando para noções que atingem a subjetividade individual de modo mais agudo: produzindo identidades sociais como raça e gê- nero; ocupações e profissões; estratificações sociais (classes), e também o sistema linguístico, no qual se inclui a ortografia. Esses são, portanto, exemplos de noções construídas, moldadas, categorizadas, mensuradas, reconhecidas e legitimadas por Es- tados (Bourdieu, 2014; Fourcade9, 2012); e são todas variáveis, constituídas por “categorias legítimas, um nomos, um princípio de divisão universalmente reconhecido nos limites de uma so- ciedade” (Bourdieu, 2014).
Mas, e quando esta instituição, Estado Soberano, detentora do monopólio da violência física e simbólica e fundadora da inte- gração lógica e moral do mundo social se torna objeto de violên- cia simbólica10? Quais são as forças atuantes no espaço financei- ro que impelem Estados ao engajamento, ao investimento em padrões de conformidade (Thévenot, 2009), com o propósito específico de se tornar atrativo e confiável ao investidor? Há aí uma inversão da ordem cósmica (Grüm, 2015) e é justamente esta problemática que interessa aqui.
Uma pesquisa rápida pelos sites das autarquias do Sistema Financeiro Nacional, ou mesmo de canais especializados em fi- nanças, revela a força draconiana que tais classificações de risco podem produzir em economias soberanas. Voltando ao exemplo apresentado no início do artigo, os rebaixamentos emitidos pe- las agências de classificação de risco sinalizaram aos mercados de crédito que o Brasil já não é mais um polo confiável para investimento.
As manifestações objetivas e materiais sobre a economia nacio- nal são nada triviais: na sequência do anuncio, por exemplo, im- portantes empresas nacionais, como Vale, Petrobras, AmBev, tiveram quedas expressivas no valor de seus títulos (Rapoza, 2015); da sinalização entre o primeiro e o segundo rebaixa- mento houve uma fuga de capitais do país da ordem de aproximadamente US$1,6 bilhão. Economistas de distintas linha- gens teóricas manifestaram a necessidade da elevação das taxas básicas de juros, de modo a atrair o interesse e confiança de investidores, remunerando-os de forma mais vantajosa e, assim, reduzindo a fuga maciça de capital; internamente, o acesso ao crédito se tornou mais custoso, gerando impactos restritivos no planejamento e execução de políticas macroeconômicas e sociais.
Isso porque os títulos da dívida de Estados Soberanos podem vir a ser um instrumento apropriado para financiar o investimen- to público na construção de ativos de elevado custo e longa du- ração, como, por exemplo, hidrelétricas, portos e rodovias. Ou, ainda, para o financiamento de despesas emergenciais e extra- ordinárias, mesmo que não sejam investimentos, como as que ocorrem quando há uma calamidade pública ou outro tipo de choque temporário.
Essa possibilidade de novas formas de captação de recursos e financiamentos têm impulsionado fortemente os Estados Sobe- ranos a se lançarem nos mercados de títulos públicos. De acordo com dados extraídos de pesquisa anterior (Bichoffe, 2016), atualmente, em vez de uma redução do endividamento após de- terminada crise, ou, para usar o termo do momento, após uma “desalavancagem”, as principais economias mundiais têm hoje níveis mais elevados de obrigações em relação ao PIB do que em 2007. O montante da dívida global de 2007 até final de 2014 cresceu $57 trilhões, passando de $142 trilhões para $199 tri- lhões, valor que corresponde a 17% em relação ao Produto In- terno Bruto (PIB) mundial (Mckinsey & Company, 2015). Desse valor, $25 trilhões correspondem a títulos da dívida pública de Estados. Assim, a constatação sobre a importância e magnitude desse amplo mercado da dívida pública e um de seus produtos – os títulos públicos – é elementar: eles se tornaram importantes instrumentos para o financiamento da dívida pública interna e de custeio de atividades de governos.
O interesse de Estados Soberanos de se lançar no mercado de títulos da dívida pública implica que tais Estados assimilem uma lógica competitiva de mercado. Como outros agentes de mer- cado, eles têm de se submeter às regras formais e informais de avaliação, métricas e rankings. Por exemplo, as classificações afetam a estrutura de capital de organizações; o custo de capital para corporações e Estados Soberanos (Kedia et al., 2016) e os requisitos de capital de instituições financeiras, como bancos e companhias de seguros. A dependência regulamentar das clas- sificações implica que qualquer uma das decisões das agências tem o potencial de afetar o sistema financeiro e alterar a sensibi- lidade e confiança de agentes dos mercados e, portanto, o fluxo de recursos financeiros.
Um caminho analítico sugestivo para compreender o impacto das classificações e avaliações das agências de classificação de risco de crédito está na incoporação da noção de performatividade. Como proposto por Callon (1998), e posteriormente desen- volvido por MacKenzie (2009), na teoria da performatividade, a teoria econômica, o conhecimento prático aplicado (dispositivos contábeis, para sugerir um exemplo) e a teoria economica es- pontânea, produzida por praticantes do espaço e leigos, criam a realidade econômica. Assim, a noção de performatividade enquanto o designo de um discurso é, ao mesmo tempo, um ato que muda o mundo. Ou seja, a transformação do espaço social, invariavelmente, coincide com o pronunciamento. É nesse regis- tro, por exemplo, que Callon pretende desconstruir interpreta- ções simplistas e distorcidas da noção de performatividade (ou performação).
Uma primeira interpretação diz respeito à distinção feita entre economia pura e aplicada, e, na mesma chave, positiva e norma- tiva. A noção de performatividade questiona essas distinções entre o mundo abstrato dos modelos, implícita ou explicitamen- te normativos, e do outro lado, o mundo real, onde os modelos poderiam ou deveriam ser aplicados. A noção pretende justa- mente quebrar as polarizações sobre a disciplina cientifica, a teoria econômica acadêmica e a teoria econômica espontânea, interpretações e entendimentos produzidos por seus pratican- tes (Dumez & Jeunemaître, 2010).
Nesse mesmo desenho, algo semelhante pode ser dito em co- nexão com o conceito de convenção, ou com a ideia de que os agentes devem concordar com regras e normas antes de agir, e para interagir. Essas regras, explícitas ou tácitas da economia neoclássica, seriam a condição necessária para comportamen- tos econômicos coordenados. A performatividade é algo muito diferente de uma orientação para regras acordadas.
Outro diagnóstico recorrente do emprego incorreto da noção de performatividade é tomá-la como sinônimo de profecias au- torrealizáveis. Ou seja, se todos os agentes acreditam que algo vai acontecer e agem em conformidade, o fato se concretiza.
Callon considera que esse mecanismo analítico extremamente simplista não corresponde ao modo como a economia produz a realidade.
Finalmente, performatividade deve ser constratada com a no- ção de (neo)institucionalismo. Para funcionar, diz-se que a eco- nomia necessita de instituições. Callon (2008) concebe a noção de instituição como muito estática: ela pode explicar como um estado econômico se reproduz, mas não como ele pode evoluir. Nessa crítica, as instituições estão presas: elas são uma estrutu- ra e, como tal, parecem incapazes de mudar e/ou deixar a mu- dança acontecer. Na visão de Michel Callon, velhos como os no- vos institucionalismos carecem de poder explicativo.
Assim, performatividade é, antes de mais nada, um poder enrai- zado na teoria e na prática. Nesse processo, argumenta Callon (1998, 2008), os dispositivos são essenciais. Essa operação im- plica, em primeiro lugar, conferir centralidade aos produtos cul- turais desses dispositivos – pela imposição de uma linguagem, ou seja, de um sistema elementar de classificação, que estrutura o espaço dos possíveis e o debate do pesável, na medida em que determina, nos planos cognitivo e material, a compreensão do que é, do que deve, e do que pode ser.
MacKenzie estabelece vários tipos de performatividade, desde o uso da teoria em produção de ferramentas até a teoria se tornan- do realidade. Em seu estudo sobre Black-Scholes, por exemplo, ele explicita como o modelo criou um mercado de derivativos (MacKenzie, 2005). Antes desse modelo não havia uma aborda- gem padronizada para o preço de derivativos e mesmo um pro- duto financeiro passível de investibilidade. As práticas contábeis podem ser vistas como performativas em si mesmas, ver por exemplo MacKenzie (2009), em que a adaptação a diferentes categorias faz um mundo novo que é a verdade da informação financeira. É através de um mundo abstrato, de computadores, números e cálculos, que esses mundos são criados.
A atribuição desse caráter voltado para dimensão objetiva dos dispositivos, vistos dessa perspectiva da materialidade, abre um leque de outros trabalhos como os expressos por Knorr-Cetina & Bruegger (2002)11. Alí os autores demonstram a interação en- tre traders de um mercado câmbio em diferentes locais ao redor do globo. Esse mercado financeiro internacional de câmbio se situava naquele momento como uma instituição relativamente nova e ainda em processo de consolidação. Por meio da tecno- logia da informação e de uma linguagem hermética, esse novo espaço permite aos traders uma comunicação instantânea e efi- ciente, mesmo que geografica e culturalmente distantes.
Homologamente aos movimentos analíticos propostos nesse grupo de pesquisas exemplares, o entendimento que motiva este artigo reside em conceber as avaliações e classificações de risco como dispositivos que organizam, disciplinam e performam o espaço à sua volta. Trata-se de um sistema completo e institu- cionalizado de métricas internacionalmente convencionadas – representadas por letras, números e sinais matemáticos (+ ou -) e a divisão de tais escalas em grupos: grau especulativo e grau de investimento (ver tabela 1) – que produz planificação, equiva- lência, generalização e comparação entre conjuntos de objetos abstratos: desde títulos de seguro (insurance); debentures de companhias até bonds de Estados Soberanos.
Em termos práticos, a notação e o ranking de classificação das agências12 oferece ao mercado de títulos públicos um parâmetro comparativo, uma definição da ‘qualidade’ do crédito disponível aos Estados Soberanos. A eficiência simbólica desse disposto, produzido pelas agências, é inegável. Naturalizou-se no imagi- nário coletivo – acadêmico, midiático e popular – que uma alteração no rating afeta fortemente a flexibilidade contábil, fiscal e tributária de governos e firmas, como pode ser notado em casos recentes por todo o mundo, inclusive no Brasil13. Assim, pela len- te e filtro das classificações de risco têm-se a dosagem de risco ao qual os emitentes estão expostos, e também os seus credo- res, afetando diretamente os custos de captação, financiamento e transações. Outra dimensão de destaque sobre os seus efeitos se refere ao apreçamento do risco dos empréstimos bancários que, por sua vez, afeta os preços das linhas de crédito e ainda serve como guia para diversos investidores institucionais regu- lados – fundos de pensão, companhias de seguro, e investidores estrangeiros – que o tomam como referência objetiva dos seus investimentos.
A justaposição de dispositivos produzidos inicialmente no mun- do financeiro e transpostos para as instituições estatais remete a um novo sistema de obrigações que passa a compor novos ele- mentos de tensão para os agentes de Estado em sua relação com mercados de crédito. Esse espírito “financeirizado” faz com que questões propriamente políticas, sobre a organização de pro- cessos de discussão e deliberações no interior das instituições estatais, sejam cada vez mais nomeadas e descritas a partir de um léxico voltado aos mercados. Como resultado dessa imposi- ção cognitiva, uma parte substancial de decisões políticas passa a ser implicada e olhada sobre a forma de uma racionalidade contábil: investimento e retorno; passivo e ativo; não mais por atos e reinvindicações de uma vontade coletiva.
Uma das possibilidades de acirramento dessa tensão ocorre quando não há consenso sobre o projeto de governo e os benefícios destas aplicações; ou, ainda, quando há dúvidas sobre abusos dos gestores na condução da contabilidade estatal e como estas são captadas pelos dispositivos de avaliação. Assim, do ponto de vista dos compradores de títulos públicos (ou seja, os shareholders), surge a necessidade de se proteger; seja da incerteza, seja da probabilidade de um eventual calote, exigindo assim juros reais cada vez mais elevados, encurtando os prazos e indexando a dívida pública às variáveis sujeitas à elevada incerteza macroeconômica, como o câmbio e os juros futuros (Silva et al., 2009). Isso implica em um deslocamento do fluxo de recursos que poderiam ser disponibilizados para políticas públicas de ordem social para o pagamento de prêmios mais atrativos para títulos da dívida.
3 Prudência e Sacralização dos Ratings: Normatização e disciplina das finanças e de Estados Soberanos
Como apresentado na introdução do artigo, Estados Soberanos exercem um importante peso na regulação monetária e financeira. Eles têm papéis centrais na decisão de criação e emissão de moeda e títulos públicos. Cabe às autarquias desses Estados (Bancos Cen- trais; Comissão de Valores Mobiliários e Secretarias do Tesouro) o papel de estabilização dos mercados financeiros, seja através de au- xílios como empréstimos e desoneração em tempos de crise; seja por meio da regulação das instituições financeiras – bancos comer- cias e de investimentos, fundos de investimentos, uniões de crédi- to, financeiras, poupanças, entre outras. É papel dessas mesmas autarquias a supervisão de contratos financeiros e proteção – para proteção de tomadores de empréstimo contra acordos leoninos e predatórios, ou ainda para que os fundos de pensão e companhias de seguro realizem investimentos prudentes.
Esse poder repressivo e disciplinar exercido pelos Estados vai de encontro com uma leitura do senso comum moralmente aceita (Fligstein, 2001; Fligstein, Goldstein, 2010), mesmo por espectros mais liberalizantes, de que cabe a cada instância na- cional o papel de cuidar de suas finanças – seja pela menor ou maior intervenção nas dimensões fiscal e monetária, seja para evitar ‘pânicos’ e crises. Sob esse ponto de vista moral, os gover- nos se tornam os últimos emprestadores. Ou seja, cabe a eles a função de oferecer uma garantia pública, de prover liquidez aos seus respectivos mercados financeiros para manter as institui- ções financeiras operantes e solventes e evitar o fenômeno do bankrupted – ou seja, da contagiosa quebra de confiança.
Ainda que alguns autores como Kruck (2011) apontem para discussões paralelas sobre a erosão do poder dos Estados So- beranos, em parte advindas da dinâmica global da economia financeirizada e pela transferência das decisões executivas a organismos supranacionais, o fato é que a necessidade de se produzir garantias públicas, por meio de normas e dispositivo legais, atinge invariavelmente a todos.
Uma ilustração que encerra essa discussão sobre a atribuição moral de Estados na produção de garantias públicas diz respeito às transformações ocorridas em período subsequente a crise de 1929, quando a intenção expressa do Estado norte-americano foi a difusão do uso dos ratings como estratégia de intervenção nos mercados. Assim, não fora mera coincidência os Estados Unidos ser o primeiro Estado a regulamentar o uso de ratings e consagrá-lo como signo institucionalizado de confiabilidade, diante da catastrófica crise que havia deixado suas marcas pelo mundo.
Em 1931 o Escritório de Controladoria da Moeda norte-ameri- cana, o Office of the Comptroller of the Currency (OCC), tornou-se pioneiro na regulamentação dos usos de ratings. Ele estabeleceu um conjunto de normas em resposta à crise bancária deflagrada em março do mesmo ano. Após o início da Grande Depressão, os bancos necessitavam de maior liquidez e uma das estratégias utilizadas foi o lançamento de títulos de grau inferior no mer- cado, com expectativa de atrair investidores. Ocorreu uma res- posta contrária, produzindo um declínio geral nos preços dos títulos. A baixa avaliação de títulos reduziu globalmente os va- lores das carteiras de obrigações dos bancos e dos mercados – contribuindo decisivamente para a falência de muitos bancos. Esse fenômeno demonstrou que os valores de títulos, em vez de simples registros, eram também importantes para a sobrevivên- cia do banco.
Consequentemente, coube ao recém instituído Escritório do Con- trolador da Moeda (OCC) a função de regular as reservas de capi- tal dos bancos, com esperança de prevenir futuras quebras. Uma das principais estratégias da OCC foi estabelecer requisitos míni- mos de reserva de capital de modo a assegurar que os bancos não se lançassem em atividades sistêmicas de alavancagem e manti vessem um colchão de reserva (SEC, 2015). Com esse processo de regulação, a contabilidade financeira se entrelaça ao mercado aberto para classificação comercial e as agências passam a ter acesso a dados mais consistentes das corporações financeiras.
Essas novas medidas, prevalecentes até hoje e incorporadas por grande maioria dos Bancos Centrais ocidentais, definiram obri- gatoriamente, por exemplo, que instituições financeiras como bancos obtivessem ratings de crédito de seus ativos para garan- tir o cumprimento dos requisitos federais de reserva de capital, deste modo, também incentivando o estreitamento de laços com as agências de classificação de risco. Em 1936, o OCC e o Federal Reserve Board (FRB) ampliaram o uso dos ratings para definir e fazer cumprir investimentos prudentes, atualizando e endos- sando as prerrogativas de 1931. Ao adotar essas medidas o Es- tado americano iniciou um processo de codependência com as notações, como mecanismo de proteger os investidores.
Obviamente que o significado social dos dispositivos depende da estrutura social que o produz e/ou o incorpora. Eles variam de nação para nação dependendo das configurações institucio- nais específicas e da corporificação das representações coletivas a respeito desses dispositivos. É possível se chegar a uma me- lhor compreensão situando-os não apenas em relação a todo es- paço político, mas também no plano de preferências e não pre- ferências, ações e não ações, possibilidades e impossibilidades observáveis em seu determinado contexto. Esse tipo de arranjo permite tecer considerações relacionais e compreender as dinâ- micas do contencioso – seja pela busca de mudanças, seja pela resistência e permanência do statu quo.
4 Legitimidade e Controle: Trata-se de uma regulação privada de instâncias públicas?
Nos anos 1960 e 70 há uma orquestração global, na qual as preocupações com a racionalidade financeira foram migran- do para perguntas sobre o controle operacional dos merca- dos financeiros. Enquanto ainda se falava das qualidades dos investimentos, emergia uma nova problemática: o controle operacional e a capacidade do mercado para executar tran- sações de forma ordenada. Um exemplo famoso foi a “crise da papelada” (Paperwork Crisis, EUA, 1968), quando o volume de negociação nas bolsas aumentou para além da capacidade de escrituração manual.
De acordo com Davis e Kim (2015), nesse período pós-guerra o governo norte-americano enfrentou três tipos de crises (de or- dem social, fiscal e legitimidade), em grande medida resultantes da incapacidade de compatibilizar as demandas crescentes de diversos grupos sociais e de seu encolhimento econômico. Os autores citam Krippner (2011) ao explicar que o governo norte-
-americano superou essas crises, fundamentalmente, delegando decisões difíceis sobre diversas necessidades sociais prioritaria- mente aos mecanismos de mercado e pela desregulamentação dos mercados financeiros. Para esse conjunto de autores estas ações criaram a falsa sensação de abundância de recursos atra- vés de uma maior acessibilidade ao crédito e ao influxo de capi- tal estrangeiro.
Movido por essa ideologia do mercado livre, políticos conser- vadores de muitas gerações se engajaram em campanhas para reverter as reformas originalmente introduzidas nas décadas de 1930 – como a já citada requisição mínima de reserva de capital para instituições financeiras – além da ruptura com politicas macroeconômicas mais vultuosas como New Deal, de Franklin Roosevelt, estendidas na década de 1960 pelo programa Great Society de Lyndon Johnson. Esse conjunto de regulamentos e programas havia colocado severas restrições à atividade espe- culativa de instituições financeiras; e no cerne de uma agenda progressista, atuou para redução da extrema desigualdade de renda e distribuição de riqueza; possibilitou a organização da classe operária, com uma posição estável e reconhecida – tanto no local de trabalho quanto no nível da representação política; em que foram criadas redes de proteções para cidadãos em situ- ação de vulnerabilidade – como, por exemplo, de desemprego e envelhecimento (Davis, 2009).
Empresários e intelectuais de um espectro de direita protesta- ram contra essas mudanças por muitas décadas. Pode-se dizer que a sorte desse segmento retornou na década de 1970 com o conservadorismo assumindo novamente uma força poderosa na política dos Estados Unidos. Com Ronald Reagan na presidên- cia em 1980, o movimento conservador começou a fazer pro- gressos significativos no desmantelamento do enquadramento New Deal (Phillips-Fein, 2009; Smith, 2012, citados por Block; Somers, 2014).
The fruits of these efforts are now glaringly familiar. Income inequality in the United States has increased dramatically since 1981, the labor movement has suffered a precipitous decline in numbers, and ordinary citizens are substantially less protected from risks that diminish their incomes (Ha- cker 2006; Wilkinson e Pickett 2009; Hacker e Pierson, 2010, citados por Block, Somers, 2014).
Diante dessas medidas o setor financeiro cresceu exponecialmen- te, com um influxo de capitais, tornando este capitalismo financei- ro estruturalmente instável (Davis, Kim, 2015). Logo, em meados de 1970, tal como o pós-crise de 1929, as preocupações com a li- quidez se chocaram com questões sobre o estado geral e qualida- de dos créditos corporativos (ou seja, a capacidade de empresas e Estados Soberanos pagarem as obrigações de títulos negocia- dos). De modo a se prevenir de uma nova crise, a US Securities and Exchange Commission (SEC) interferiu, impondo exigências mais rigorosas sobre o capital circulante líquido e corretagem.
A regra 15c3 (1975) passa a exigir que uma corretora mantenha um colchão de capital em reserva para garantir que possa pagar todas as suas obrigações, mesmo que haja um atraso na liquida- ção de ativos. Em síntese, essa nova regra estabeleceu um novo regime regulatório em que as reservas deveriam estar ligadas à qualidade dos ativos (grau de risco) ao invés do volume de ativos (valor). Ainda que muitos críticos tenham considerado arbitrá- ria a regra da SEC, simplesmente por não se balizar em estatís- ticas demonstráveis, a concepção da regra revela uma tentativa de mudança de concepção das práticas financeiras, tornando-as mais estruturadas. Essa regra não impactou de forma substan- tiva nas formas de classificação das agências, porém criou mais uma dimensão de controle por parte dos Estados Soberanos.
É na mesma década de 1970 que se observa um direcionamento de firmas e corporações da iniciativa privada em quantificar, valorar e controlar os riscos de seus empreendimentos. Ainda que tais setores já existissem nessas empresas, um novo enfoque é dado a esta área (Power, 2007) em parte também pela pressão das auditorias exis- tentes, como estratégia de legitimação de suas atividades. Em 1985, por exemplo, é criado nos Estados Unidos o Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Commission (COSO). Trata-se de uma iniciativa conjunta de empresas do setor privado e associações profissionais ligadas às finanças e contabilidade dedicada a fornecer subsídio para desenvolvimento de estruturas e orientações sobre gestão de risco empresarial, controle interno e dissuasão de fraudes. Essa organização é considerada uma dos think tanks mais influentes da contemporaneidade em termos de avaliação e aperfeiçoamento para sistemas de controle interno de empresas e outras firmas. A organização ganha destaque com a publicação da obra Internal Con- trol – Integrated Framework (1992)14.
Esse movimento se amplia para o campo das finanças públicas e, em 1986, o Fundo Monetário Internacional (FMI) publica o Manual de Estatísticas Fiscais (A Manual on Government Finan- ce Statistics) com o propósito de ajudar os países membros na compilação de informações estatísticas, estabelecendo uma pa- dronização contábil de modo a facilitar a análise de operações dos Estados e o impacto econômico de suas atividades.
Evidências da pesquisa empírica (Bichoffe, 2016) chamam a aten- ção para os bastidores da dinâmica dessas produções. Uma primei- ra evidência diz respeito à cobrança sobre as nações que aderiram ao plano Brady, para que levantassem, sistematizassem e tornas- sem transparentes e acessíveis os dados de suas contas públicas. Assim, através da análise de relatórios e comunicados foi possível identificar como um conjunto de instituições, tais como Interna- tional Organization of Securities Commissions (IOSCO)15, Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Interamericano de Desen- volvimento (BID), Banco de Compensações Internacionais (BIS), BIRD (Banco Mundial) e o próprio Governo Norte-americano, promoveu como estratégia consciente, que já se desenrolava desde meados da década 1980 (IOSCO; FMI, 2011), mecanismos para reunir e produzir uma convenção de equivalências sobre as finanças internacionais16.
Esse avanço e aprimoramento das estatísticas financeiras não alterou apenas o Estado17, mas também o estatuto das ciências tidas como exatas – com uma sobrevalorização das estatísticas, ciências atuariais, matemática aplicada. Nessa espiral, inclusive o modo de se conceber pesquisas também se modificou. Entre- tanto, para não fugir do escopo do artigo, cabe frisar que elas, as estatísticas, passam a fornecer um novo olhar ao entendimento sobre a situação política, social e econômica, restabelecendo as fronteiras das leis, da aplicabilidade e do alcance das políticas públicas. As informações e leituras fornecidas pelas estatísticas do Estado criam as regularidades e os desvios, criam as regras e condutas e, fundamentalmente, criam categorias e classificações que os indivíduos passam a se pensar, e o leque de ações e possi- bilidades abertas a eles próprios (Hacking, 1975; 1990).
Decorrente desse movimento de valorização das estatísticas fi- nanceiras, uma das iniciativas contemporâneas com grande im- pacto na mensuração e controle de riscos no sistema financeiro internacional foi a promulgação do Acordo de Capital da Basileia (1988), atualizado pelo Acordo de Basileia II (2004). Os acordos foram perpetrados pelo Basel Committee on Banking Supervi- sion, Comitê de Supervisão Bancária da Basileia18 do Bank for International Settlements (BIS). O comitê, supranacional, reúne representantes de Bancos Centrais das principais economias mundiais (BCBS, 1999a; 1999b; 2006).
Entre outros pilares, a atualização do acordo configurou uma nova aferição de valor do Risco aos tomadores de empréstimo: a relação passa a ser entre os ativos e o patrimônio líquido; alte- rando, portanto, a noção vigente que tomava o cálculo do endi- vidamento pela relação entre o passivo e o patrimônio líquido. Assim, entram no cálculo não apenas a reserva de capital das instituições, como também os títulos.
O papel-chave dos dispositivos das agências de classificação é sublinhado pelo fato de que os bancos centrais exigem que ati- vos tenham uma classificação mínima para ser aceitável como garantia para as instituições financeiras. Por exemplo, o Euro- pean Central Bank (ECB) – Banco Central Europeu – exige ati- vos transacionáveis com pelo menos um grau BBB – rating de crédito de uma das três agências de classificação (com exceção de títulos lastreados em ativos, em que o rating de crédito de emissão deve ser AAA) (Haan & Amtenbrink, 2011).
No caso específico do Brasil, a implementação das diretrizes da Basileia II teve início em 200719. O cronograma de traba- lhos (2008 - 2012) foi marcado por uma sequência de etapas que envolveu tanto a preparação do corpo técnico burocrático do Banco Central como a criação e instituição de normativas, além de um período para adaptação das instituições financeiras operantes nos mercados internos. Antes mesmo do término da incorporação do segundo acordo, a crise financeira internacio- nal forçosamente exigiu um novo compromisso. Em dezembro de 2010 foram publicados dois documentos - Basel II: A global regulatory framework for more resilient banks and banking sys- tems e Basel III: International framework for liquidity risk mea- surement, standards and monitoring, conhecidos como Basileia III. Os documentos trazem uma série de normativas para o aper- feiçoamento da capacidade das instituições financeiras absorve- rem choques provenientes do próprio sistema financeiro ou dos demais setores da economia, reduzindo assim o risco de trans- ferência de crises financeiras para a economia real. Assim, como nos acordos anteriores, um corpo técnico do Banco Central do Brasil iniciou em 2013 um ciclo de trabalhos (com previsão de término em 2019) justamente para a mineralização das novas categorias cognitivas (Sartre, 2008) e a operacionalização des- tas em normativas e regras internas e externas.
Assim, orquestrados localmente, os métodos de normalização são utilizados para comparar e ajustar quais as “melhores” prá- ticas que podem ser aplicadas aos mercados locais no âmbito da sua governança. Há, portanto, uma margem de ação e decisão dos Estados Soberanos. Todavia, o peso histórico e a coação prescrita por normas e discursos políticos de instituições supra- nacionais como BIS, BID, Banco Mundial, FMI, IOSCO, COSO, en- tre outras, continuam a afirmar que não só bancos, investidores privados e estatais, mas também autoridades de supervisão, de- pendem das opiniões privadas das agências, especialmente na falta de outros mecanismos que venham a suprir a demanda dos mercados por informações. O efeito perverso, porém, analitica- mente interessante, é que as estratégias de resistência e desvio para atenuar o efeito arrebatador da performatividade destes dispositivos pode, por vezes, significar “estar em risco”.
5 Credibilidade das Agências e seus Dispositivos
Após a Great Finacial Crisis (GFC) (Frieden, 2016) deflagrada em 2007 pelos subprimes, surgiram inúmeros artigos jornalísticos e acadêmicos, e muitas ações judiciais, culpando as agências de rating por falha na valoração do risco de default na complexa estrutura de produtos financeiros; por manterem relação muito estreita com seus clientes; e por desestabilizarem países intei- ros através de downgrades de ratings soberanos.
De fato, a grande crise não foi a única a impelir o sistema regula- tório norte-americano a agir no sentido de diversificar as fontes de alarme sobre risco. Ao longo dos anos 1990 e 2000, ondas de escândalos envolvendo fraudes e sonegações em balaços con- tábeis e financeiros assolaram os mercados norte-americanos e se espraiaram pelo sistema financeiro mundial como os escân- dalos de Long-Term Capital Management (1998); Enron (2000); WorldCom (2002); Tyco (2002); Healthsouth (2003); American Insurance Group (2005); e a já citada Subprimes (2008). Os pri- meiros escândalos impuseram pressão ao Governo norte-ameri- cano para que tomassem medidas enérgicas de intervenção e re- gulamentação das corporações, culminando no Sarbanes-Oxley Act (2002). A lei passou a ampliar a exigência de que as compa- nhias abertas mantivessem, além das avaliações das agências de ratings, sistemas de controle interno, demandando certificação da administração e contratos de serviços de auditores indepen- dentes para atestarem a eficácia dos referidos sistemas20.
Logo, se as agências de rating, mesmo submetidas à regulamen- tação federal, não foram capazes de antecipar ou assinalar as fa- lhas e omissões contábeis de grandes corporações, elas por si só não poderiam ser deixadas a cargo da fiscalização do mercado. Caberia à SEC, enquanto uma autarquia regulatória e de contro- le, o papel legal de supervisionar e controlar as agências. Essa condição colocou a SEC diante de um eminente conflito com um imperativo ideológico muito caro às sensibilidades cultural, po- lítica e econômica norte-americanas: a liberdade de mercado. Ou seja, exercer controle das atividades das agências sem, entre- tanto, interferir nas práticas e mesmo na metodologia das agên- cias. Assim, para resolver o dilema, a SEC criou em 2006 uma categoria regulamentar inteiramente nova para classificação de títulos das empresas: as Nationally Recognized Statistical Rating Organizations (NRSROs), em uma tradução literal ‘organização de classificações estatísticas nacionalmente reconhecidas’.
Assim, ao invés de definir como fazer a regulação do rating, o Estado definiu quais instituições poderiam fazer isso por ele, es- tabelecendo assim uma aproximação com estas firmas. Foram definidas, portanto, as agências que atuariam no mercado mobi- liário norte-americano (originalmente sete). A SEC se mostrou apática em relação ao controle dessas instituições, contanto que cumprissem as exigências da regra 15c3. Segundo dados de Sin- clair (2005) e Poon (2012), até o final de 2000, após uma onda de aquisições e fusões, permaneceram no mercado apenas as três maiores: Moody’s, S&P e Fitch. As NRSROs passam a consti- tuir uma ordem privada de mercados públicos. Essa nova regu- lamentação reforçou o poder simbólico já presente no negócio de classificação de títulos21. A maioria das avaliações refere-se a títulos de dívida, mas em alguns casos são necessários outros tipos de serviços para avaliar a elegibilidade de um projeto de fluxos de financiamento do governo em áreas diversas como por exemplo, educação, telecomunicações e transporte.
Logo após a crise dos subprimes, uma força tarefa da IOSCO se es- tabeleceu, culminando em abril de 2012 no Code of Conduct Fun- damentals For Credit Rating Agencies, com a intenção de oferecer um conjunto de medidas robustas e práticas – literalmente um guia – com o propósito de proteger a integridade do processo de notação, assegurando que os investidores e emissores fossem tra- tados de forma justa, protegendo informações confidenciais dos emitentes fornecidas às agências. No mesmo ano, o Fundo Mo- netário Internacional, Banco Central Europeu e o Banco de Com- pensações Internacionais, publicaram Handbook On Securities Statistics, primeiro compêndio de dados sobre títulos publicado internacionalmente. O objetivo prático do manual é o de propor um quadro de normas metodológicas para as estatísticas de valo- res mobiliários e, por meio dos dados disponibilizados, melhorar a informação sobre os mercados de valores mobiliários.
Longe de deslegitimar a atuação das agências de classificação de risco, essas publicações reforçaram a atuação das agências, fortalecendo a crença na atuação destas e caminhando para um processo gradual de cristalização das notações, no que tange a apropriação e reprodução –por parte dos governos e organismos multilaterais – de suas categorias, narrativas e, fundamentalmente, de sua lin guagem, que passou a traduzir e a sintetizar o mundo financeiro em um conjunto de signos compreendidos e compartilhados pe- los agentes. Como Fourcade (2012) nos lembra, as classificações têm essa particularidade de se tornar institucionalizadas através das práticas dos agentes, que as tratam como realidades objetivas, e as justificam em parte pelo interesse que suscitam.
Ainda assim, esse processo não ocorre de modo pacífico. Dito de outra forma, trata-se de um espaço de disputa entre interesses conflitantes de grupos políticos e econômicos. A principal crítica das alas liberais, tanto de ordem política quanto acadêmica, pre- ga que tais agências, fundamentalmente as três maiores, criaram um poderoso oligopólio no mercado de classificação – justamente pelo arranjo, que estabeleceu regras rígidas para regulação das agências na categoria NRSRO, restringindo a entrada de novos competidores no mercado – e por meio de incentivos governa- mentais criam uma demanda artificial por seus ratings. Grupos de pressão, como Catho Insitute – think tank reconhecidamente por suas proposições fundadas no libertarainismo de Hayek – ou The Library of Economics and Liberty Foundation, defendem que haja uma nova reforma regulatória que reduza o peso das agências de rating nos mercados (Ekins; Calabria, 2012).
Outra crítica ao modelo regulatório das agências de rating pra- ticado nos Estado Unidos é a suposta distorção de seu uso. O argumento recorrente nos artigos e posts do Catho Institute diz respeito às regras que, ao invés de incentivar os investidores a tomarem as melhores decisões, na verdade, da forma como são postas no “jogo”, os incentivam a tomar em conta as altas classi- ficações, sem averiguar se tratam de investimentos de qualida- de. Assim, de acordo com as regras da SEC, muitos investidores são compulsoriamente incentivados a investir na compra de títulos com altos índices NRSRO, não importando as informações precisas sobre a qualidade deles.
Essa perspectiva explica porque as demandas pelas Agências de Classificação de Risco não declinaram mesmo após a emissão dos altos ratings da World.Com e Enron, para ficar nestes exem- plos, que em curto período de tempo se mostraram inconsisten- tes, revelando grandes escândalos e as falências anunciadas.
Uma das críticas que adquiriu muita aderência e permanece aquecida no debate publicizado – primeiramente nos principais jornais, e em seguida amplamente reverberada em outros canais como blogosfera, rádios, atingindo até mesmo um posicionamen- to de membros da academia, forçando intelectuais e especialistas a se manifestarem publicamente – foi a de que haveria um conflito de interesses inerente e incontornável entre as agências e seus clientes (Johnson, 2010; Nocera, 2011; The Guardian, 2011; Popper, 2013; Shecter, Tedesco, 2014; CFR.ORG STAFF, 2015).
Duas narrativas de justificação são postas em debate. A primeira em relação à forma que se dão os contratos entre as agências e as organizações interessadas em ser avaliadas. A segunda diz respeito à organização interna das agências e os modelos de re- muneração dos analistas e representantes das agências.
Isso porque o modelo atual adotado pelas agências, ao menos pelas Big Three, é o “emitente-pagador”, ou issuer pays model. Nesse modelo de negócio, o contrato é firmado entre o emissor de um título e a(s) agência(s) de classificação de risco. Ou seja, cabe ao emissor o pagamento às agências pelo serviço, primei- ramente de segurança da classificação inicial, bem como para as avaliações que se seguirão. O público (e os investidores) pode, então, aceder a essas classificações de forma gratuita. Esse mo- delo ganhou popularidade na década de 1970. Até então o mo- delo dominante era o “assinante paga”, subscriber-pays, em que os investidores pagavam pelo acesso às classificações.
Do ponto de vista de uma sociologia pragmática, são as ruptu- ras que oferecem indícios sugestivos para analisar o mundo. São nesses momentos em que as fissuras revelam as tensões nor- mativas subjacentes. As crises, tais como os escândalos (Grün, 2008a; 2008b), são casos exemplares de momentos críticos nas quais as concepções de moral e justiça, convergentes e divergentes afloram, explicitando a fragilidade dos arranjos sociais, problematizando o lugar, a natureza e a ordem (ou as grandezas) das pessoas e dos objetos (Correa; Dias, 2016).
Se, por um lado, as crises financeiras nos auxiliam na compre- ensão das tomadas de posição e disposições dos agentes, ex- pondo falhas, e a possibilidade de polarizações, e até mesmo a possibilidade de uma virada cognitiva (Grün, 2011; Fligstein, 2001; Fligstein, Goldstein, 2010; MacKenzie, 2009; 2011), por outro, elas também podem produzir o fortalecimento das instâncias de controle.
Em resposta aos ataques maciços de mídias, e das ações judiciais movidas pelo Ministério Público norte-americano e de outros pa- íses, as agências estabeleceram como retórica de defesa que suas classificações eram meramente ‘opiniões’ comparativas sobre risco de crédito, negando veemente que se tratassem de recomendações para comprar, vender ou manter determinados títulos financeiros (Gonzalez et al., 2004), equivalente também para que não se dirija a adequação de um determinado produto/investimento financeiro para um investidor particular (Gras, 2003; Investidores da Moody’s Serviço de 1991; Peters2001, citados por Kruck, 2011).
Ao insistir que suas grades de avaliações são nada além de ex- pressão de opiniões, as agências se protegeram pelo Direito Constitucional Norte-americano que garante a liberdade de expressão. Desse modo, as agências passaram a divulgar em seus relatórios, rankings e grades de avaliação que todos estes produtos e dispositivos são “opiniões informadas”, negando qualquer responsabilidade jurídica eficaz sobre suas emissões.
Muitas das ações judiciais, inclusive aquelas acionadas pelo Mi- nistério Público norte-americano, estabeleceram como argu- mentação o fato das agências agirem não por mera ‘negligência’, mas por ‘imprudência’, o que constitui um arbitrário, altamente controverso, que coloca um ônus muito alto aos requerentes das ações (para uma discussão detalhada jurídica, consultar Kruck, 2011).
No entanto, há um elemento crítico nessa situação: enquanto as agências de notação de crédito afirmam que as determinações da classificação são opiniões, simultaneamente procuram obje- tivar e oferecem seus pontos de vista como ‘fatos’ quando seus dispositivos são acionados para uso regulatório, seja via Natio- nally Recognized Statistical Rating Organizations (NRSROs), seja pelas diretrizes propostas pelos acordos de Basileia, mascaran- do a temporariedade e responsabilidade inerentes ao processo de classificação (Sinclair, 2005).
Para autores como Kerwer (2005) e Kruck (2011) assumir essa posição representa um ‘gap de responsabilidade’ (Kerwer, 2005, p. 455). No entanto, o fato que se coloca é como esse fenôme- no constituiu para Estados, sociedades e para instituições eco- nômico-financeiras uma espécie de desafio através do qual foi respondido por meio do acúmulo e adensamento de medidas de institucionalização e padronização das avaliações sobrevalori- zando as classificações das agências.
Um importante elemento a ser apreciado quando se estuda fenô- menos de ordem financeira e mercados, ao qual pesquisadores devem estar atentos, especialmente quando se importa literatura e outras produções cientificas, é que o mercado norte-ame- ricano constituiu um sistema de financiamento maduro e um sistema de transferência e controle de risco imaturo. Mackenzie, Fligstein, por caminhos diferentes e mobilizando arsenais heuristicos distintos, descrevem e assinalam bem esse processo. No caso brasileiro, onde ambos os sistemas estão em processo de institucionalização, que essas experiencias sirvam para uma percepção crítica dos caminhos que se está perseguindo.
Assim, de modo a concluir, para retomar novamente Fourcade (2012) e Thévenot (2009), todas as construções sociais, par- ticularmente quando elas têm por trás a força da lei, são reais em seus efeitos, alinhando de algum modo interesses individu- ais, sustentando alguns tipos de subjetivação, racionalização, práticas e crenças – e excluído outras – e beneficiando deter- minados grupos.
6 Considerações Finais
Construções de sistemas de classificação através dos quais objetos/coisas são identificados, reconhecidos e valorados no mundo social não são objetos de interesse recente das ciências sociais, e muito menos restrito aos espaços econômico e financeiro. Abordadas enquanto fato social, as classificações produ- zidas pelas agências são, sem dúvida, um tradicional problema Durkheimiano. E essa, sem dúvida, continua a ser uma moti- vação sociológica legitima: entender quais são as bases sociais através das quais se produz julgamentos sobre o mundo. Dito de outro modo, trata-se de compreender os fundamentos sobre as quais se definem esquemas de percepção, valoração, ordena- mento, sentimento e ação.
Assim, esse movimento de objetivação de percepções e avalia- ções sintetizadas em um conjunto definido de signos, no caso das classificações produzidas pelas agências, não se refere ape- nas à descrição condensada de situações econômicas. Esse tipo de objetivação encerra uma forma de transmissão e comunicação que se espraia por distintos domínios da vida social (Desrosieres, 2008; Thèvenot, 2009). Ratings, escalas, modelagens são todas dimensões, ou faces, da racionalização de um modelo cultural de pensar, organizar, valorar e regular o mundo à nossa volta.
Trata-se, portanto, de um investimento estatal na objetivação de percepções e avaliações, sintetizadas em um conjunto definido de signos, resultando na criação de uma nova forma de trans- missão e comunicação que definitivamente não se encerra em si. Podemos supor que no mercado de bens linguísticos, as es- tatísticas, ratings ou escalas e modelagens se tornaram a língua franca, o ‘idioma’ legitimado pelos mundos científico e estatal, e positivamente incorporado pelo campo das finanças como um bem cultural (Desrosières, 2008).
De acordo com Thévenot (2009) vivemos o período governing by standards. Ou seja, as sociedades contemporâneas se enga- jaram em um modelo de governança pautado pela produção de garantias públicas (publicizadas) produzidas por entidades qualificadas, por mecanismos e instrumentos de regulação e objetividade, os standards. Trata-se de um discurso de autori- dade (Bourdieu, 1982 citado por Ortiz, 2003), com uma capila- ridade e influência cada vez maior na sensibilidade de Estados, Governos e mercados; desdobrando-se em distintas esferas da vida social, seja no sistema de credito bancário que incorpora ou exclui estratos sociais, seja na definição dos patamares iniciais para pesquisas biotecnológicas sobre câncer, por exemplo, seja ainda na elaboração de rankings de cursos universitários (Thé- venot, 2009; Fourcade, 2013a).
No entanto, assumir apenas esse ponto de vista empobrece o de- senho analítico. Há que se mover o foco analítico para dimensões mais tênues e sensíveis como, por exemplo, como se constroem as institucionalidades cognitivas através desses dispositivos performáticos como as avaliações; qual a relação deste sistema com o que cidadãos comuns interessados, agentes de mercado, mídias ou burocratas estão identificando como sendo a noção de risco? Qual a relação entre a objetividade do sistema classifi- catório das agências com a subjetividade, percepção e aprecia- ção desses outros grupos? Isso requer uma estratégia que leve em conta também o “repertório cultural nacional” (Lamont & Thèvenot, 2000) e o modo como as estruturas dos dispositivos são assimiladas e orquestradas localmente, ou seja, as soluções políticas encontradas (Lenoir, 1996). Esses são, portanto, cami- nhos possíveis para continuidade de novos trabalhos no campo de estudos dos dispositivos relacionados à classificação de risco de crédito soberano.
Referências
BACEN. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Evolução do Sistema Financeiro Nacional, 2013. Disponível em: http://www.bcb.gov.br/htms/deorf/r199812/ texto.asp?idpai=revsfn199812. Acesso em 09 maio 2017.
Notas