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Consumindo Paisagens: Patrimônio Cultural, Turismo e Enobrecimento Urbano no Rio de Janeiro*
Revista TOMO, núm. 31, 2017
Universidade Federal de Sergipe

Artigos

Revista TOMO
Universidade Federal de Sergipe, Brasil
ISSN-e: 1517-4549
Periodicidade: Semestral
núm. 31, 2017

Recepção: 06 Fevereiro 2017

Aprovação: 30 Junho 2017

Resumo: O presente artigo analisa o processo de patrimonialização da ci- dade do Rio de Janeiro como estratégia de política de interven- ção para o desenvolvimento econômico e para a sustentabilidade urbana e do “ambiente cultural”. O processo decorre de um planejamento articulado à proteção e valorização da Paisagem Cultural, ao ordenamento dos espaços públicos e à recomposição internacional da identidade e da imagem urbana carioca. A me- todologia utilizada consistiu na análise de dossiês, na realização de observação direta e no uso de fotografias para apreensão das mudanças socioespaciais. A pesquisa mostrou como a orientação das intervenções em torno de práticas de consumo cultural e do turismo urbano tem implicado em transformações e conflitos em torno de sua paisagem e contrapaisagem, dado o ajustamento dos planos estratégicos à orientação mercadológica.

Palavras-chave: Patrimonialização, Consumo, Enobrecimento Urbano, Turismo, Paisagem Cultural.

Abstract: This article analyzes the city patrimonialization process of Rio de Janeiro as an intervention policy strategy for economic development and urban and the “cultural environment” sustainability. The case arises from an articulated plan for the protection and enhancement of the cultural landscape, the planning of public spaces and the international recomposition of identity and urban image of Rio. The methodology consis- ted of examination of dossiers, direct observation and the use of photographs to understand the socio-spatial changes. Rese- arch has shown how the orientation of interventions around cultural consumption and urban tourism practices has meant changes and conflicts around the landscape and counter-lan- dscape images, because of the adjustment of strategic plans for marketing orientation.

Keywords: Patrimonialization, Consumption, Urban Interventions, Tourism, Cultural Landscape.

Resumen: El presente artículo analiza el proceso de patrimonialización de la ciudad de Río de Janeiro como estrategia de política de intervención para el desarrollo económico y para la susten- tabilidad urbana y del “ambiente cultural”. El proceso deriva de una planificación articulada a la protección y valorización del Paisaje Cultural, al ordenamiento de los espacios públi- cos y a la recomposición internacional de la identidad y de la imagen urbana carioca. La metodología utilizada consistió en el análisis de los expedientes, en la realización de obser- vación directa y en el uso de fotografías para aprehensión de los cambios socioespaciales. La investigación demostró cómo la orientación de las intervenciones en torno a prácticas de consumo cultural y del turismo urbano viene implicando en transformaciones y conflictos en torno a su paisaje y contra- paisaje, dado el ajuste de los planes estratégicos a la orienta- ción mercadológica.

Palabras clave: Patrimonialización, Consumo, Ennoblecimiento Urbano, Turismo, Paisaje Cultural.

Introdução

As políticas urbanas de intervenção contemporâneas têm se proliferado mediante os processos de patrimonialização e as políticas de sustentabilidade urbana, cultural e ambiental para promover o desenvolvimento econômico das cidades e centros históricos. Consideradas importantes para o desenvolvimento econômico e urbano, as práticas de preservação patrimonial têm sido intermediadas por investimentos turísticos de modo que instrumentalizam os espaços públicos como lugares de consumo cultural através da oferta de bens e serviços de en- tretenimento, lazer, mobilidade, hospedagem e vida noturna etc. (Featherstone, 1995; Urry, 2001; Leite, 2007; Zukin, 2010;

Fortuna, 2012).

Intervenções dessa natureza incidem na cidade do Rio de Janeiro desde os anos de 1980, visando-se a proteção e valorização dos bens culturais e dos espaços urbanos associados às principais paisagens urbanas e naturais cariocas que, desde seu período de modernização, agregaram status simbólico, político e econômico para a atração de pessoas e capitais1 transnacionais. Dentre as mais recentes políticas urbanas podemos referir ao proces- so de patrimonialização da Paisagem Cultural carioca como Pa- trimônio da Humanidade pela UNESCO e ao “Plano Estratégico Pós-2016 – O Rio mais integrado e competitivo” (2009 a 2016), da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ).

O processo de patrimonialização da paisagem cultural do Rio de Janeiro teve como meta a política de sustentabilidade ur- bana para a proteção dos morros paisagísticos e do “ambiente cultural” carioca. No ano de 2012, com o objetivo de proteger a integridade e autenticidade da paisagem da cidade, o IPHAN lançou a candidatura da cidade a Patrimônio da Humanidade na categoria Paisagem Cultural através do dossiê “Rio de Janeiro: paisagens cariocas entre a montanha e o mar” (IPHAN, 2012), subsidiando as diretrizes para as intervenções na paisagem, assim como sua proteção dos morros delimitados pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável (PCRJ, 2011), que tem na Paisagem Cultural “o mais valioso bem da Cidade, responsável pela sua consagração como um ícone mundial e por sua inserção na economia turística do país, gerando emprego e renda” (PCRJ, 2011, p. 02)2.

Nesse entretempo estava em curso a execução do “Plano Es- tratégico Pós-2016”, concebido como um planejamento urbano abrangente de desenvolvimento econômico sustentável, inte- grando projetos de gestão urbana em diversos setores da cidade, desde os de educação, saúde, emprego e renda, esporte e la- zer até os de ordem pública, infraestrutura urbana, transporte e meio ambiente. A meta era criar um modelo de sustentabilidade paisagística como referência para agenda política e cultural-esportiva da cidade que se tornava sede dos Jogos Olímpicos de 2016, e que antes sediara grandes eventos como a Copa das Confederações 2013 e da Copa do Mundo 2014. A PCRJ reali- zou parcerias e investimentos financeiros com investidores de capitais nacionais e internacionais para consolidar as políticas urbanas pretendidas, sendo que estes investimentos promove- ram forte especulação na expansão ou renovação imobiliária das áreas consideradas paisagísticas.

Na tentativa de criar uma nova imagem da cidade para atração turística por meio da proteção de sua paisagem como patrimô- nio mundial preservado e dos grandes investimentos arquitetô- nicos e esportivos, esses planos foram estratégicos para o po- der público realizar intervenções na paisagem, no patrimônio histórico e nos espaços urbanos em parceria com os setores turísticos e produtores culturais. Como consequência ocorreu um processo de valorização paisagística do Rio, pressionando ainda o interesse do capital imobiliário sobre morros de inte- resse paisagísticos, o que estimulou uma onda de processos de enobrecimento urbano (gentrification) em favelas existentes, principalmente nos arredores de bairros da Zona Sul, da área central e Zona Portuária.

O estudo desses planos proporcionou a análise da transforma- ção urbana carioca, o que nos permite argumentar que eles não ocorreram à revelia dos Jogos Olímpicos de 2016. Foi antes uma ação coordenada de intervenção urbana impulsionada por can- didaturas aprovadas em duas das principais estratégias de in- tervenção: patrimonialização e megaeventos esportivos. Para os administradores da cidade, sediar a Olímpiada tornou-se a oportunidade de demarcar na trajetória do urbanismo carioca um legado próprio de transformações urbanas, ao passo que confirmaria a noção e o valor da Paisagem Cultural como o resul- tado das ações e das práticas sociais de desenvolvimento, de ca- racterísticas históricas e dos usos dos espaços que a compõem.

Em decorrência disso, a paisagem do Rio é intervinda através de ações em torno da construção dos polos esportivos para os jogos e pós-jogos em suas diversas zonas, da manutenção do título patrimonial da Paisagem Cultural, da publicização de novas imagens da Zona Sul, dos revitalizados bairros do Centro e Zona Portuária, e também em torno dos planos de sustentabilidade ambiental e urbana que envolvem os morros.

Desse modo, debate-se neste artigo como a estratégia de preser- vação da paisagem turística carioca, de ordenação dos usos dos espaços públicos e de recomposição internacional da imagem do Rio de Janeiro foi articulada ao plano de sustentabilidade urbana e de valorização patrimonial e paisagística. Nosso objetivo foi ana- lisar o processo sócio-histórico de valorização da Paisagem Cultu- ral carioca em torno de três aspectos: 1) a construção da paisagem moderna do Rio de Janeiro, decorrente das ações de renovação urbana fortemente empregadas durante o século XX, que resultou no surgimento de “contrapaisagens”; 2) a reestruturação espacial com base no marketing urbano para implementar ações que for- talecessem a recomposição da imagem da cidade através de suas paisagens turísticas; 3) as políticas de preservação do patrimônio histórico e de sustentabilidade da paisagem cultural do Rio e sua associação com as práticas de consumo cultural e processos de enobrecimento urbano em morros ocupados por favelas.

Intervenções e Renovação Urbana no Rio de Janeiro

Ao longo da trajetória urbana da cidade do Rio de Janeiro, as intervenções resultaram de políticas de planejamento seguindo a racionalidade urbanística moderna no intuito de promover a urbanização, o embelezamento, a higienização e seu desenvolvimento econômico. Desde que o Rio passou a sediar os novos poderes republicanos durante o governo de Rodrigues Alves (1902-1906) e na administração municipal do prefeito Pereira Passos, as conhecidas reformas da primeira grande reurbaniza- ção da área central e abertura de novas vias não só consolidaram o poder político da cidade, como também impulsionaram o cos- mopolitismo urbano-cultural da chamada belle époque carioca (Needell, 1993; Jaguaribe, 1998; Brandão, 2006).

Esse período demarca o processo de modernização da cidade e sua inscrição no cenário internacional como cartão-postal do Brasil. Essas iniciativas tinham como objetivo central associar o Brasil à modernidade e ao cenário de progresso, com traços urbanos modernos construídos entre as paisagens naturais da Floresta da Tijuca e da Baía da Guanabara. Mas era preciso com- bater as “mazelas” herdadas do período colonial e da escravidão (Sevcenko, 1998)3. Esse cenário desdobra-se com a inserção do carnaval e do samba carioca como eventos culturais diferen- ciados em meio aos processos de modernização das avenidas e ruas da cidade, é quando surge o epíteto “Cidade Maravilhosa” (Farias, 2006; Barbosa, 2012) – primeira atribuição identitária correspondente à tematização da cidade nos cartões postais e pôsteres que disseminavam as imagens da cultura e espaços ur- banos, das praias, morros e do próprio carnaval.

No decorrer do século XX, os planos de renovação urbana4 do Rio de Janeiro ocorreram com forte influência dos engenheiros e do mercado imobiliário (Brandão, 2006). As construções de grandes avenidas tornaram-se os espaços da velocidade e tráfe- go intenso de automotores, assim como os arranha-céus, praças e passeios públicos para a moradia e o fluxo de pessoas. Ao tem- po em que as construções demarcavam os espaços físicos, crian- do um perfil de mobilidade urbana entre o mar e os morros, atribuía-se a identidade cosmopolita carioca à monumentalida- de das construções, à beleza das paisagens e à cultura praiana.

Do Jardim Botânico às construções entre morros e áreas litorâ- neas, os diversos agenciamentos ao longo dos séculos constituí- ram intervenções urbanas em consonância às necessidades físi- cas e simbólicas da cidade. Tanto na construção de fortificações para a defesa da cidade na entrada da Baía de Guanabara quanto na abertura de vias públicas, avenidas e instalações de espaços de lazer para os residentes como o Passeio Público, o Parque do Flamengo e a Praia de Copacabana. A cidade foi se expandindo e sua paisagem tornava-se a representação de uma paisagem de poder (Zukin, 2000) e transformava-se à medida que as inova- ções na imagem urbana foram construídas através de diversos agenciamentos, usos e apropriações dos espaços.


Imagem 01
Paisagem de poder: Panorama do Parque do Flamengo, bairros da Glória, Flamengo. Ao fundo o morro do Pão de Açúcar.
Foto de Ruy Salaverry. Dossiê Iphan, 2012.

Mas há que considerar que nesse entretempo problemas urba- nos tornaram-se mais evidentes com o surgimento de favelas, dos conflitos consecutivos das migrações, da abolição da escra- vatura, das endemias e da pauperização de grande parte da po- pulação (Carvalho, 1987; Sevcenko, 2010). Essas contingencias do planejamento urbano tornaram suscetíveis os rearranjos po- líticos da capital da República, contrapondo sua projeção como cartão-postal do país e elevando as pressões políticas em nível nacional e regional. A crise se agrava em 1960 quando Brasília passa ser a nova sede do governo federal e ocorre o declínio po- lítico com a perda do status de capital e de principal economia brasileira para a cidade de São Paulo.

Com a metropolização da cidade agravaram-se os problemas urbanos notáveis em sucessivas administrações principalmente devido à ausência de um planejamento urbano efetivo que assegurasse a proteção social pelo Estado (Freitag, 2009). Com o aumento das assimetrias socioeconômicas e da favelização de parte da sociedade carioca estava em curso a formação de sua paisagem urbana-cultural conformada, de um lado, pela paisa- gem símbolo do poder da modernização da cidade, de outro, pela própria contingência da racionalidade urbanística, confor- mava-se a contrapaisagem (Malta, 2015).

Para compreender esse argumento, convém recorrer à concepção de Sharon Zukin sobre paisagem e sua representação socio-cultural na cidade. Para a autora,

A paisagem é em grande parte uma construção material, mas também é uma representação simbólica das relações sociais e espaciais [...] A paisagem é uma poderosa expressão das restrições estruturais de uma cidade. Com frequência, o que observamos como paisagem – aquilo que é construído, escondido e que resiste - é uma paisagem do poder (Zukin, 2000, p. 106).

A paisagem ordena socioespacialmente a estrutura urbana, con- forma relações sociais do poder político, do poder econômico e de diferenças culturais. “Podemos entender os arranha-céus e os projetos de habitação popular como paisagens do poder. Essas paisagens são um texto visível das relações sociais, separando e estratificando atividades e grupos sociais, incorporando e re- forçando as diferenças” (Zukin, 2000, p. 106). Portanto, a cons- trução da paisagem – simbólica ou material –, que representa a arquitetura e as forças do mercado, por exemplo, torna-se um elemento importante para compreendermos a transformação socioespacial, o processo de expansão e modernização das cidades.

De encontro a esse “texto visível” de símbolos e materialidade de poder financeiro e cultural que ordena o espaço e as relações sociais, coexiste a chamada paisagem vernacular que promove uma tensão estrutural na espacialidade urbana que aqui chamo de contrapaisagem, a inversão da representação simbólica de poder (Malta, 2015). É o “poder cultural” da “paisagem verna- cular” (Arantes, 2000; Zukin, 2000, 2010) sobre as restrições estruturais do espaço urbano estratégico. No Rio, ela é o “antis- símbolo” (Barbosa, 2012) que contingencia seus espaços.


Imagem 02
A paisagem e a contrapaisagem
Acervo particular do autor, 2013.

Desse modo, a contrapaisagem é comumente caracterizada quanto à representação social negativa associada aos morros paisagísticos ocupados pelas favelas, não sendo necessariamen- te esta noção relacionada aos morros localizados em outras zo- nas da cidade ou que pelo menos ainda não tenham sido objetos dos setores imobiliários, turísticos e midiáticos. Embora, tam- bém, sejam simbolicamente contrapaisagens por desafiarem os planos de regulação urbanística e a dimensão normativa da construção da cidade.

Cabe, então, breves considerações acerca desses mais de cem anos de tentativas de solucionar os problemas urbanos acerca dos morros da cidade. Conforme Rezende (2002), diversos pla- nos de regulação urbanística integram a dimensão normativa das intervenções urbanas e passam por diversas e descompas- sadas decisões administrativas como o Plano Agache (1930), Plano Doixiadis (1965), o Plano Diretor Decenal (1992), Plano Estratégico Rio Sempre Rio (1995), em que todos estes, de algum modo, buscavam soluções para o “problema da favela” 5, e o Plano As Cidades da Cidade (2004). Mas é somente nos anos 1980 que tem início o processo de reestruturação urbana, considerando as reivindicações comunitárias quanto às questões especulativas de proteção ambiental e cultural, dos usos espaciais e do sistema vi- ário (Camargo, 2011). Ainda no início dos anos 1980 é lançado o projeto Corredor Cultural com a intenção de preservação e fixa- ção das funções culturais da área central (Carlos, 2008; Brandão, 2013) e, posteriormente, a instituição das primeiras Áreas de Pro- teção do Ambiente Cultural (APACs) do Rio de Janeiro.

É importante ressaltar que não cabe aqui um maior detalhamen- to analítico das características desses planos, uma vez que não é nosso intuito perfilar um recorte sócio-histórico das interven- ções. Mas podemos demonstrar em termos gerais como essas in- tervenções tiveram o intuito de remodelar o Rio de Janeiro para manter o status de cartão-postal do país, combater a favelização, a insalubridade de morros e criar uma nova paisagem e imagem para a cidade, além de novas funções do seu traçado urbano.

Em mais de um século, esses planos tiveram como característi- ca geral a orientação interventiva para todo o espaço da cidade.

Eles tentaram “estabelecer uma lógica de planejamento que in- tegre as demais intervenções sob a forma de obras ou, dentro da dimensão normativa, sob a forma de projetos de alinhamento, decretos e leis de uso e ocupação do solo” (Rezende, 2002, p. 257). As intervenções marcantes que transformariam a paisa- gem do Rio de Janeiro coincidem, por exemplo, com a demolição do morro do Castelo durante a administração de Carlos Sampaio (1920-1922). O arrasamento do morro é justificado pelas con- dições precárias de higiene do Centro, degradação e favelização do morro.

A partir desses planos, diversas administrações municipais tive- ram como intenção principal a idealização de uma nova cidade, com vistas a renovar o tecido urbano e social já existente, a par- tir da realocação de espaços e da expansão urbana. O Plano Aga- che (1930), por exemplo, não apenas deu continuidade às ideias reformistas de Passos, mas consolidou-se como idealização de uma nova e moderna cidade, com grandes avenidas arborizadas e áreas públicas com jardins no Centro, que na gestão do prefeito Henrique Dodsworth (1937-1945) foi base para a construção da Av. Presidente Vargas e dos bairros da Zona Sul ocupados pelas camadas mais abastadas da cidade. Trata-se do primeiro Plano de Remodelação, Extensão e Embelezamento do Rio de Janeiro (Rezende, 2002; Carlos, 2008)6.

Posteriormente, conforme Claudio Carlos (2008), nas décadas de 1950 e 1960, houve continuidade das práticas de reformas urbanas, visando novos planos de ocupação da área central da cidade e a remoção da população mais pobre. Assim, ocorre o arrasamento do Morro de Santo Antônio no período 1952-1954 e com ele acaba a favela de mesmo nome, sendo que seus despojos serviram para a realização da obra do Aterro do Flamengo. Segundo o autor “o plano de ocupação da esplanada do morro de Santo Antônio possui clara influência dos pressupostos teóricos da Carta de Atenas (1933), principalmente aqueles relacionados à integração de monumentos históricos aos novos traçados ur- banos” (Carlos, 2008, p. 77)7.

Esses empreendimentos estimularam um quadro urbano e econômico renovado, caracterizado pela necessidade crescen- te de ligação dos diversos bairros com o Centro. Além disso, o incentivo do Estado brasileiro à indústria automobilística im- pulsionou os projetos de túneis, viadutos e vias expressas que foram construídos com base em prerrogativas da modernização “e o automóvel assume assim o papel de destaque no contexto paisagístico e urbanístico carioca” (Carlos, 2008, p. 77). Mas é com o Plano Doxiadis (1963-1965) que se constrói um eficiente sistema rodoviário que faz ligação entre as zonas da cidade, e a expansão das vias de transportes ocorre seguindo preceitos de racionalização do uso do solo. Brandão (2006) aponta que mesmo priorizando o tráfego de automóveis, essas intervenções urbanas tentaram levar em conta os pedestres. Esse é o caso do Aterro do Flamengo para a construção do parque, dos passeios públicos na Lagoa Rodrigo de Freitas e da Praia de Copacabana para a construção do calçadão da Orla, áreas que se tornaram altamente valorizadas tanto em termos econômicos quanto sim- bólicos para a cidade.

A Reestruturação do Rio de Janeiro: City Marketing, Recomposições Paisagísticas e Preservação Patrimonial

Segundo Paula Camargo (2011), a partir de 1993, na chamada “Era Cesar Maia” (1993-2008), nas administrações César Maia e Luiz Paulo Conde8, ocorre o lançamento de dois importantes planos: em 1995 é lançado o plano estratégico da cidade do Rio de Janeiro, Rio Sempre Rio, no qual destaca-se o programa Favela-Bairro, com o intuito de “integrar o morro ao asfalto” e promover a produção cultural nos bairros contemplados pelo programa9. Em 2004, é lançado o plano estratégico As Cidades da Cidade10, apresentando um modelo de cidade zoneada, com subdivisão do Rio de Janeiro em 12 macrozonas, cada uma com um planejamento estratégico específico, privilegiando “a inte- gração urbana, com a inclusão de bairros e favelas como elemen- tos integrantes e formadores de um conjunto urbano” (Camargo, 2011, p. 16).

Conforme a autora, a Era Cesar Maia desenvolveu-se com base no marketing urbano para implementar ações que fortaleces- sem o setor turístico, e para cada zona o foco seria o “resgate” da cultura e da identidade local e o desenvolvimento de potencialidades econômicas de cada bairro ou zona. Podemos inferir que a noção de “integridade” e “competitividade” tem seu início na era Cesar Maia e será base para o “Plano Estratégico Pós-2016 – O Rio mais integrado e competitivo” na administração do prefeito Eduardo Paes (2009-2016).

Tencionando fazer do Rio uma cidade turística por excelência, os 16 anos dessa administração tiveram como orientações centrais a construção de projetos monumentais e a tentativa da cidade para sediar os Jogos Olímpicos de 2012 e a Copa do Mundo de 2014 (Camargo, 2011). Nesse entretempo, houve a primeira candidatura da cidade a patrimônio da humanidade (no ano de 2002) e foi lançada como “sítio misto” através do dossiê Rio de Janeiro: o Pão de Açúcar, Floresta da Tijuca e do Jar- dim Botânico11. Objetivava-se proteger as áreas naturais do Parque Nacional da Tijuca, Jardim Botânico e Pão de Açúcar contra fatores que podiam afetá-las, mas a candidatura foi recu- sada pelas comissões da UNESCO e do ICOMOS, que solicitaram a inclusão de áreas paisagísticas que expressassem relação dire- ta com a cultura material e imaterial da cidade (Ribeiro, 2007; Malta, 2015).

A proposta mais controversa, marcada pelos escândalos orça- mentários e não concretizada, foi de construir uma filial do Mu- seu Guggenheim no Píer Mauá, Zona Portuária, – famoso pelas práticas mercadológicas de bens culturais, ele existe em cidades como Nova Iorque, nos EUA, e Bilbao, na Espanha, e é mantido pela fundação norte-americana Solomon R. Guggenheim –, onde haveria mudanças de uso em sua área com base na implantação de equipamentos urbanos e atividades de cultura e lazer, sendo que essa proposta “não fazia parte de um projeto para a Zona

Portuária, mas era um projeto na Zona Portuária” (Camargo, 2011, p. 58). O museu estaria fixado no espaço público para a captação de recursos e o esperado efeito multiplicador de inves- timentos para intervenções urbanas posteriores. Exceto o Mu- seu Guggenheim.

Além de posicionar o Rio no cenário internacional para além da imagem do balneário, foram implementados uma série de projetos, dos quais podemos citar: a Cidade do Rock, em Jacarepaguá, executada para abrigar o Rock in Rio III (2001); todos os esforços que envolveram os Jogos Pan-Americanos de 2007, com a construção de parque aquáti- co, arena multi-uso, vila olímpica, estádio de futebol, entre outros; o empenho em trazer a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2012 e, recentemente, os de 2016, para a cidade; entre outras iniciativas. Se podemos dizer que existiu uma “Era Maia”, podemos afirmar também que esta foi marcada pela idealização e execução de vários projetos monumentais e proporcionalmente controversos (Camar- go, 2011, p. 10).

O caso do museu difere-se da política da revitalização da praça Mauá e da construção do Museu do Amanhã e do Museu de Arte do Rio que tiveram como prerrogativa a integração da Zona Por- tuária com esses equipamentos culturais através do consórcio Porto Maravilha (PIO, 2014), destinado a executar e a fiscalizar as obras da chamada Cidade Olímpica e prestar serviços às co- munidades dos morros do entorno (Gamboa, Providência etc.). As consequências dos planos da administração de Cesar Maia podem ser lidas no espectro político, econômico e cultural, mas, uma vez mais, há um planejamento urbano para a cidade que não se constitui em projetos sociais para a qualidade de vida da população em geral, quando não aponta para a exclusão da população de baixo poder aquisitivo. Sobretudo, pautaram as grandes obras a espetacularização das imagens e o turismo no processo de reestruturação urbana.

A instituição das Áreas de Proteção Ambiental (APA), nos anos 1980, tornou-se um importante instrumento para frear a reno- vação urbana da área central e posteriormente consolidou-se em outros bairros da cidade. Com o Plano Decenal de 1992, pas- saram a ser Áreas de Proteção do Ambiente Cultural (APAC)12, passando a ser um instrumento estratégico do poder municipal com foco na preservação do “ambiente cultural”, embora con- siderasse a inovação dos usos nas zonas protegidas por lei. Ao mesmo tempo, possui poderes legais de controlar a livre atuação do mercado imobiliário em áreas e imóveis preservados ou de promover a renovação urbana (PCRJ, 2011). Através da Lei Com- plementar de 2011, denomina-se APAC:

Território de domínio público ou privado, que apresenta conjunto edificado de relevante interesse cultural, cuja ocu- pação e renovação devem ser compatíveis com a proteção e a conservação de sua ambiência e suas características só- cioespaciais identificadas como relevantes para a memória da cidade e para a manutenção da diversidade da ocupação urbana constituída ao longo do tempo (PCRJ, Lei nº 111, 2011).

Desse modo, a consolidação do controle urbano por meio da proteção do “ambiente cultural” perpassa conflitos de interesses entre o mercado imobiliário, o poder público e o “movimento preservacionista”, com oportuna iniciativa do IPHAN-RJ, freando em parte uma lógica imobiliária expansionista desde a constru- ção da Zona Sul à expansão física e midiática da Barra da Tijuca e valorização do bairro da Tijuca (Jaguaribe, 1998). Em certa medida, os tradicionais bairros conseguiram retardar a renovação imobiliária e a reestruturação de seus espaços públicos em torno da construção de novos edifícios pelo mercado imobiliá- rio, de novas fachadas arquitetônicas e inclusive dos lugares de sociabilidade.

O uso atual das APACs, com a Lei Complementar de 2011, é uma política flexível de intervenção para associar as zonas como áre- as de proteção do “ambiente cultural” e um instrumento de ges- tão do Patrimônio Cultural associado à sustentabilidade. Con- tudo, elas possuem funções e representações variadas e forte dissenso entre a população proprietária de imóveis nas áreas protegidas, mas tornaram-se um instrumento de reconhecimento das comunidades locais em torno de noções como “patrimô- nio”, “moradia” e “vizinhança”, logo, freando a expansão imobili- ária e a renovação urbana em áreas tradicionais.

No entanto, após pouco mais de 30 anos de regulação por meio da APAC, uma das atribuições desse instrumento é o não en- gessamento da área urbana para promover a sustentabilidade. Desde a administração de César Maia, as diretrizes vão sendo modificadas e empreende-se a noção de que esse instrumento reside em combinar a conservação e a renovação urbana. Mas é na administração de Eduardo Paes, amparada na Lei Com- plementar de 2011, como lei patrimonial, que se empreende a noção de desenvolvimento urbano associado à sustentabilidade patrimonial, cultural e ambiental, bem como incentiva a inova- ção urbana para que as localidades se adaptem aos novos usos da cidade, nomeadamente os turísticos, mas que não resultas- sem em prejuízos à visualidade da paisagem (UNESCO, 2012).

A criação desse instrumento durante os anos de 1980 compre- ende as primeiras ações estratégicas municipal de proteção paisagística e patrimonial principalmente da área central e do bairro Santa Teresa, mas intensifica-se na Zona Sul durante o período que compreende a candidatura do Rio de Janeiro na Lista Tentativa do Patrimônio Mundial da Unesco de 2002.

Portanto, o não deferimento e, posteriormente, o contexto de nominação em 2012,pouco após o Rio vencer a candidatura para sediar a Olimpíada de 2016, não fora mera casualidade. Contraditoriamente, a expansão das APACS na Zona Sul ocorre devido a iniciativa das comunidades locais estabelecidas em áreas predominantemente residenciais e dos movimentos preservacionistas, ao mesmo tempo em que atua contra os efeitos da expansão imobiliária e da renovação urbana em função da valorização paisagística.

Mas até então o tema da “sustentabilidade” urbana, cultural e ambiental não estava claramente em questão em nenhum dos planos, muito menos aliado à perspectiva de desenvolvimento econômico. Era algo que a UNESCO entendia como um critério indicativo para nomear o Rio de Janeiro na Categoria Paisagem Cultural, o que ocorre somente após o lançamento do Plano Dire- tor de Desenvolvimento Urbano Sustentável (2011), na adminis- tração de Eduardo Paes, que subsidiou o dossiê de candidatura do Rio à Patrimônio da Humanidade: “Rio de Janeiro: paisagens cariocas entre a montanha e o mar” (IPHAN, 2012).

Da Renovação Urbana à Sustentabilidade: o processo de Patrimonialização da Paisagem Cultural

No que concerne à patrimonialização, a inscrição do Rio como Patrimônio da Humanidade, aprovada na 36ª sessão do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco em São Petersburgo (Rússia) (UNESCO, 2012) define, também com base nas APACs, a prote- ção de bens culturais que fazem parte da identidade carioca, ao mesmo tempo em que promove a recomposição da paisagem em torno do turismo e da valorização dos lugares de consumo cultural ao elencar, sobretudo, a excepcionalidade do Sítio Paisa- gem Cultural. Após a chancela da Paisagem Cultural pelo Iphan, em 2009, e a nominação a patrimônio mundial pela Unesco, em 2012, diversos decretos abordavam a solução dos problemas que afetam a qualidade do sítio13, principalmente na Área de Amor- tecimento14. O argumento é que, embora os morros não fossem considerados em risco de integridade, a ocupação irregular do solo pode levá-los à vulnerabilidade devido ao agravamento dos problemas habitacionais em que vive a população de baixa ren- da desde fins do século XIX (IPHAN, 2012; Malta, 2015).


Imagem 03
Delimitação do Sítio
Iphan, 2012.

Inicialmente o sítio paisagístico teve a dimensão geográfica delimi- tada pelo dossiê a partir dos marcos referenciais da cidade, dividi- dos em três setores: a Montanha, a Floresta e o Jardim; a Entrada da Baía de Guanabara e as Bordas D’água; a Paisagem Urbana.

São setores de promoção da imagem do Rio de Janeiro em nível nacional e internacional como os cartões-postais do Brasil mo- derno, associados às paisagens que agora estruturam e englobam os principais elementos naturais e históricos do sítio, desde a Floresta da Tijuca à Baía de Guanabara e os fortes de Niterói, composto também pela paisagem urbana do Parque do Flamengo ao Morro do Arpoador, passando pela Orla de Copacabana, bairros, morros do entorno e os diversos espaços.

Entretanto, as intervenções contemplaram principalmente o Centro, Lapa e a Zona Portuária e algumas poucas localidades destinadas ao convívio cotidiano em áreas para a população de menor poder aquisitivo. Essas localidades não foram citadas no dossiê, mas se tornaram simbolicamente patrimoniadas com a criação e atuação do Instituto Rio Patrimônio da Humani- dade (IRPH)15, com ações nas zonas estratégicas de interesses culturais e paisagísticos para fazer avançar ou fiscalizar o Pla- no Pós-2016 e ter sucesso na organização técnica do esperado megaevento esportivo e a construção dos mais modernos polos esportivos em diversos bairros da cidade, sem que afete a Paisa- gem Cultural.

Com a patrimonialização, foi posto que a política de sustenta- bilidade invertesse a lógica de arrasamento dos morros, de ocupação irregular do solo e de interferência na visualidade da paisagem (UNESCO, 2012), incluindo a construção de grandes projetos. A reinserção internacional do Rio de Janeiro e as pers- pectivas de melhorias socioeconômicas e políticas tornaram-se embrionárias com o lançamento de sua candidatura para sediar os Jogos Olímpicos de 2016 e cidade sede da Copa do Mundo de 2014, de modo que se associou a sustentabilidade da paisagem ao legado dos jogos. Esses megaeventos, embora disponham da retórica esportiva, possuem forte dimensão para os processos decisórios das políticas urbanas do país ou cidade sede. Em con- traste com a “Cidade Maravilhosa” – contraditoriamente uma cidade desigual e violenta –, constrói-se a imagem da “Cidade Olímpica”: moderna, inclusiva, patrimonial, sustentável e reva- lorizada econômica e culturalmente.

Sendo a Paisagem Cultural considerada o principal bem cultural e atrativo da cidade, tornam-se inovadores, no contexto carioca, os modelos de intervenção associados à construção de equipa- mentos urbanos, culturais e esportivos, de avenidas e de siste- mas de transportes modernos sem que ocasionasse a destrui- ção de morros e áreas naturais (de interesse paisagístico) como ocorrera em outras ações no século XX, durante o período de expansão urbana e do setor industrial. Assim, como atrativo, a recomposição da identidade e da imagem urbana carioca visa transformá-la em cidade sustentável16, criativa e turística em que pese a preservação de seus bens culturais e materiais.

Essa mudança de concepção objetiva atender à atual noção de cidades sustentáveis, cujo princípio de “sustentabilidade urba- na”, conforme Rodrigues (2009), apelou estrategicamente para os imperativos morais e normativos dos usos ambientais e cul- turais dos espaços públicos para reverter as fragilidades do desenvolvimento urbano desordenado17. Conceitos de espaço, pa- trimônio e de paisagens urbano-culturais têm sido redefinidos por força de sua associação com o ambiente e com a noção de desenvolvimento sustentável que ganha abrangência ao sair de sua prerrogativa ambiental, desde o final dos anos 1980, para a sua inserção nas questões urbanas, o que incluem os projetos de intervenção socioespacial das metrópoles pós-industriais e das cidades históricas.

O desenvolvimento sustentável não é tanto um programa de acção político-económica, mas mais um ‘projecto civiliza- cional’ que advoga a reformulação de condições estruturais centrais das sociedades modernas (o consumo de massas, por exemplo) sem facultar meios (institucionais ou outros) para a sua concretização (Rodrigues, 2009, p. 268).

A associação dos elementos simbólicos e representacionais como recursos potenciais das economias locais serve para as ci- dades alcançarem maior visibilidade internacional, que as inse- re na “concorrência intercidades”, processo que, segundo Carlos Fortuna, “diz respeito tanto à captação de investimentos como à fixação local de fluxos globais ou parcelas suas, como a produ- ção de imagens próprias da cidade” (Fortuna, 1997, p. 234) – no caso carioca envolve intervenções em áreas patrimoniais e des- tinadas aos megaeventos esportivos. Nesse sentido, a captação de investimentos por meio de políticas urbanas de patrimonia- lização e das políticas culturais locais dissemina-se em imagens da identidade cultural das cidades através dos mercados de bens e meios de comunicação. A criação e até a invenção de imagens urbanas forja uma identidade local sujeita ao reconhecimento público do exterior que enquadra as expressões culturais, as dimensões históricas e mnemônicas da vida urbana que agregam um conjunto de valores de uma sociedade (a arte, a estética, as histórias, os signos etc.).

Embora a preservação dos bens culturais e das áreas naturais fos- se prerrogativa para a consolidação do Plano de Sustentabilidade e do processo de patrimonialização, as intervenções realizadas logo se converteram numa agenda conflitante entre a construção da Cidade Olímpica e a remoção de muitas favelas em áreas con- templadas para a construção dos novos equipamentos urbanos para os megaeventos18. Não é difícil, portanto, perceber como os planos para o controle e reordenamento dos espaços permane- cem preocupados com a mesma lógica de renovação ou revitaliza- ção, embelezamento e racionalização dos usos dos espaços.

Assim, a construção de equipamentos culturais e poliesportivos começava a indicar mudanças no cenário carioca que reclamava pelo desenvolvimento do turismo em nível local e global. Desde os anos 1980 e muito fortemente nos anos 1990, essa relação entre patrimônio e sustentabilidade tem sido associada às po- líticas urbanas voltadas às práticas de revitalização urbana e ao desenvolvimento econômico, orientadas pelas práticas de “con- sumo cultural”, que Nestor García Canclini (1993, p. 34) conside- ra como “el conjunto de procesos de apropriación y usos de pro- ductos en los que el valor simbólico prevalece sobre los valores de uso y el cambio, o donde al menos éstos últimos se configuran subordinados a la dimensión simbólica”19. Essa concepção pode ser relacionada aos diferentes sentidos atribuídos aos lugares e aos espaços públicos (Leite, 2007), assim como às paisagens culturais e urbanas, que, no caso carioca são referenciados, por exemplo, pela cultura praiana que muito divulgou internacional- mente a relação entre esporte, corpo, belezas naturais e beleza feminina nas “areias de Copacabana” (Kaz, 2010).

Mike Featherstone (1995) considera que o consumo cultural é a apropriação, uso ou fruição de bens artísticos, intelectuais ou simbólicos (bens culturais materiais e imateriais), sendo tam- bém expressivo para as mudanças da capacidade técnica de produção que possibilitam inovação, classificação e diferencia- ção dos bens para os distintos estilos de vida. O fato é que na “cultura de consumo” a produção de bens simbólicos (mercado- rias) advém da autonomia cultural dos produtores e consumi- dores em detrimento dos níveis de generalidade dos mercados varejistas tradicionais. Faz-se notar que os bens culturais, sua produção e consumo devem ser compreendidos através de uma matriz cultural em que economia e cultura tornam-se conceitos embutidos.

Mas a espetacularização da paisagem do Rio ressalta a própria temporalidade da internacionalização da cidade desde os pri- meiros programas de reforma urbana na administração de Pe- reira Passos. A mudança que se observa é o cruzamento desses diversos espaços, ou seja, a hibridização da paisagem sociocul- tural pelas práticas de consumo ao apropriar-se da paisagem vernacular das favelas, até então constituidora de uma imagem contrastiva para a cidade, visto que silenciosa ou conflitualmen- te tornou-se o que entendemos por “contrapaisagem” no decur- so do processo de modernização, ao irromper com o simulacro “teórico” da cidade-panorama (Certeau, 1994) feita de novos bairros e espaços urbanos.

Isto posto, entendemos que essa política de intervenção e pa- trimonialização no Rio de Janeiro não se refere somente à preservação e à sustentabilidade da paisagem cultural, mas almeja recompor a imagem da cidade. Ela e seus espaços tradicionais perderam sua eficácia simbólica de atratividade turística devi- do ao processo de exaustão de suas imagens e da exacerbação da conflitualidade entre “morros e asfalto” que circunscreve os já conhecidos espaços de visibilidade pública carioca. Refiro-me ao imaginário do Brasil Modernista do início do século XX, quando foi projetado o cenário paisagístico da já tradicional imagem “Cidade Maravilhosa”. Paisagens como a Orla de Co- pacabana e o Parque do Flamengo sempre foram, ao lado da Floresta da Tijuca, Jardim Botânico, Morro do Pão de Açúcar e do Corcovado, ícones que compuseram as imagens urbanas cariocas publicizadas.

Compreendemos que as políticas de intervenção no Rio de Ja- neiro não visam somente a reinvenção de sua imagem, mas a desconstrução da imagem atual, polarizada entre as maravilhas paisagísticas e a intensa vida cultural contra a favelização, as de- sigualdades e a violência urbana. Através de uma nova política de intervenção em larga escala, mediante patrimonialização, re- vitalização, enobrecimento urbano ou grandes eventos, a cidade, podemos aludir, busca proteger sua Paisagem Cultural contra sua “contraimagem” e “contrarreferências” associadas às paisa- gens cariocas.

Essas novas intervenções possuem um apelo à recomposição da imagem sob o prisma da proteção do ambiente cultural e da paisagem. Em tal contexto é que se inserem os planos de rees- truturação urbana e a criação das novas imagens: Rio – Cidade Olímpica e Rio Patrimônio da Humanidade, com ampla divulga- ção midiática no exterior, em que se visa a recomposição da pai- sagem urbano-cultural carioca e de novos espaços que atendam à referida agenda sustentável. A estratégia de atração de inves- tidores foi subsidiar reformas de bens públicos para o desenvol- vimento de vários setores, inclusive sociais, mas principalmente os setores de mercados de bens e serviços criativos, design, gastronomia, conhecimento e mobilidade, lançando novas atribuições à imagem urbana carioca (PCRJ, 2009; 2013).

Como estratégia de recomposição, lançou-se uma intensa city marketing em torno de práticas culturais, segurança, meio am- biente, educação e cultura, a exemplo das promoções Rio Capi- tal da Bicicleta, Rio Capital Sustentável, Rio Capital Verde (meio ambiente e sustentabilidade), Rio Capital da Energia, Rio Capital do Turismo, Rio Capital da Indústria Criativa (desenvolvimento econômico), Rio em Forma Olímpico (desenvolvimento social), Rio em Ordem (ordem pública), Rio Cidade Inteligente (Gestão e Finanças Públicas), Rio Criança Global (educação) e Rio Patri- mônio – Centro (cultura) (PCRJ, 2009; 2013).

A nominação de Patrimônio Cultural da Humanidade concedido na categoria Paisagem Cultural valoriza simbolicamente a cida- de ao inscrever os espaços de representação dos valores afeti- vos e identitários e ao serem chancelados pelas instituições de preservação patrimonial para conservar o suposto “futuro ur- bano”, mas não fogem à lógica do consumo. Esse processo está associado ao contexto global de políticas de intervenção urbana para fins de valorização paisagística e objetiva promover a sus- tentabilidade econômica e o reordenamento espacial das loca- lidades, mas entendemos que o contexto de nominação do Rio de Janeiro foi orientado a partir da inscrição dos lugares de con- sumo de bens culturais na delimitação do sítio, tendo em vista a capitalização de recursos financeiros em níveis local, nacional ou transnacional.

Dadas as múltiplas potencialidades dos mercados de bens cul- turais, a orientação dos modelos de preservação do patrimônio cultural vincula as práticas de consumo e o turismo cultural como aportes para a sustentabilidade e o desenvolvimento eco- nômico das cidades. A questão que se assinala é sua dupla con- tradição: o discurso oficial é construído em torno da universali- zação do acesso ao patrimônio cultural para uma diversidade de usos, mas a prática social de preservação patrimonial é seletiva quanto aos bens e às formas de acesso dos indivíduos e/ou cole- tividades a estes mesmos bens.

Consumo Cultural, “Pós-Turismo” e Enobrecimento urbano

A agenda global de consumo de bens, mobilidade e serviços turísti- cos torna-se proeminente na reestruturação socioespacial da cida- de. Em trabalho anterior, Políticas de Patrimonialização e Consumo: A Paisagem Cultural da Cidade do Rio de Janeiro (Malta, 2015), já analisamos como as políticas de patrimonialização intervêm nos espaços públicos para a recomposição da paisagem sociocultural, das imagens urbanas e do reordenamento do espaço público, à me- dida que são recompostos para as práticas de consumo e turismo.

A construção de “paisagens desenhadas intencionalmente” (Iphan, 2012) reforça a narrativa acerca da visualidade material e simbólica excepcional e autêntica do sítio e traduz o resultado da interação entre o homem e a natureza. A representação da Paisagem Cultural carioca se constitui como um mosaico urba- no no entremeio de paisagens naturais, isto é, constituiu-se no decorrer de intervenções sucessivas e modificadas pela ambição em construir uma cidade moderna, competindo com suas pró- prias dificuldades técnicas para construir um aglomerado urba- no, entre o mar e os morros. Inscreve-se como imagens de uma marca espaço-temporal que aliam a arquitetura, o urbanismo e o paisagismo da modernidade carioca.

Entretanto, defende-se aqui que os casos de Copacabana e da Zona Portuária delineiam uma transformação da arquitetura e da imagem da cidade modernista para o urbanismo e arquitetu- ra pós-modernista. O Museu da Imagem e do Som (MIS) em Co- pacabana, construído como simulacro do mosaico do calçadão da Orla, com usos ao ar livre para o consumo visual paisagístico, e o Museu do Amanhã, no Píer Mauá, construído com tecnologias sustentáveis para a captação de água e energia solar, ten- cionam representar o novo cartão-postal carioca em um tripé pós-modernista das cidades sustentáveis: criativas, culturais, patrimonializadas, pois, além da arquitetura arrojada e diferen- ciada, propõe-se novos paradigmas de usos sociais dos espaços culturais através do consumo, mídias e tecnologias.


Imagem 04
Projeto arquitetônico pós-modernista do MIS
Acervo – MIS.

Em Copacabana, sobressai-se a disputada visualidade do branding empresarial (marcas de empresas de bebidas, alimentos, cartões de crédito, dos media etc.) como imagem urbana, não necessa- riamente autêntica de toda a orla, satura a visualidade da paisa- gem local. No que concerne à visualidade paisagística, a fachada arquitetônica pós-modernista do MIS acompanha as tendências da arquitetura e urbanismo do Rio de Janeiro, principalmente na construção dos novos equipamentos urbanos vinculados ao Pla- nejamento Estratégico Pós-2016, e começa a demonstrar os sinais de mudança do próprio significado da paisagem. Copacabana, já sendo um bairro de arquitetura moderna, de vida cosmopolita e turística, detém um ritmo cotidiano que está entre os idosos mo- radores e jovens pessoas em fluxo, é vista diante de um cenário estilizado de sua paisagem urbana-cultural.

A relação entre patrimônio, sustentabilidade e desenvolvimento econômico tem sido associada às políticas urbanas voltadas às práticas de revitalização dos centros históricos, áreas portuárias e de interesse paisagístico. No Rio, pesquisas apontam para uma “onda” dos processos de gentrification (Smith, 2006) orientada pelas práticas de consumo cultural e turístico nas localidades mais desfavorecidas (Freire-Medeiros, 2006; Williamson, 2012). Ocorre no setor Paisagem Urbana do sítio, onde há presença marcante desse “simulacro antissimbólico” de representação das contradições da vida sociocultural e das desigualdades eco- nômicas da cidade. Nesse sentido, podemos conceber o proces- so de enobrecimento de favelas aproximando-se da formulação de Rogerio Proença Leite (2015), segundo o qual:

Por gentrification se designa um tipo de intervenção urba- na em sítios históricos ou não, nomeadamente aquelas que ocorrem em zonas das cidades depauperados, mas que em geral retêm valor patrimonial, e que modificam a paisagem urbana com transformações arquitetônicas com forte apelo visual, atendendo às demandas de valorização imobiliária, segurança, ordenamento e higienização social do espaço ur- bano (Leite, 2015, p. 30).

No caso carioca, essa concepção pode ser aplicada em dois as- pectos: 1) as favelas, por si mesmas, são consideradas como zonas depauperadas da cidade, não tendo passado por um pro- cesso de declínio como os sítios históricos e não possuem valor monumental; 2) as favelas situam-se em uma zona monumental de apelo visual, valorizada simbólica e economicamente, que é a própria Paisagem Cultural.

Ao que parece ser primordial, tornar morros favelados – espaços caracterizados pela deterioração do mobiliário e da infraestrutura urbana onde se registram a expressiva desigualdade socioeconômi- ca inscrita na vida social carioca – em áreas/bairros sustentáveis não concerne necessariamente às políticas sociais e ao avanço dos programas de habitação e renda dos moradores, mas às políticas urbanas de desenvolvimento econômico orientadas para o turismo e o consumo cultural onde se observam os sinais de enobrecimento urbano (gentrification). Investimentos imobiliários e serviços turís- ticos em favelas como Pavão-Pavãozinho, Vidigal, Rocinha e Morro do Alemão, da Providência indicam novas práticas interativas de consumo com a inscrição destes espaços cotidianos no mapa tu- rístico da cidade ou, como refere Freire-Medeiros (2006), através da construção da favela como “marca registrada” (trademark). Por outro lado, as localidades menores, desconhecidas e pacíficas, que ocupam terrenos valiosos (Williamson, 2012), são demolidas à for- ça sob o pretexto da construção da Cidade Olímpica, destinada ao megaevento ou à preservação paisagística.

Na Zona Portuária o enobrecimento ocorreu com a construção dos Museus do Amanhã e de Arte do Rio, onde também as comunidades do Valongo, Morro da Providência e Pedra do Sal se tornam lugares de consumo (Carlos, 2011). Mas as comunidades de baixo poder aquisitivo, residentes em áreas consideradas com vista paisagística privilegiada e com a presença das Unidades de Polícia Pacificado- ra (UPP), viram seus espaços cotidianos sendo apropriados pelos processos de enobrecimento para as práticas do favela tour como Pavão-Pavãozinho, Vidigal, Rocinha e Morro do Alemão20.

Assim sendo, o favela tour e o enobrecimento urbano avançaram sob o slogan da criatividade das práticas de consumo carioca que aliaram hotelaria, gastronomia, andar pelos morros, bailes funk, a fotografia da pobreza etc. à programação cultural coti- diana. Esses processos tornam-se formas de intervenção urbana em que se sublinham como características centrais as políticas de revitalização ou requalificação urbana que em casos mais es- pecíficos tencionam ao enobrecimento urbano e à espetacula- rização da cultura (Leite, 2007). Essas práticas recompõem as imagens e identidades urbanas e orientam-se por políticas de consumo cultural e turístico promovidas por setores empresa- riais, publicitários, promotores de eventos, pela mídia especializada e disseminada na televisão e internet.

Tal concepção reforça a leitura sobre a arquitetura peculiar ao pós-modernismo que enquadra as cidades como se fossem um eterno centro “de preservação turística” para todos os interes- ses distintos. Conforme observa M. Featherstone, “as cidades pós-modernas se transformaram em centros de consumo, jogo e entretenimento, saturadas de signos e imagens a ponto de qual- quer coisa poder ser representada, tematizada e transformada em um objeto de interesse” (Featherstone, 1995, p. 143). Com essas características é que se enuncia a plural, senão conflitiva, relação do consumo cultural com a recomposição identitária e paisagística da cidade do Rio de Janeiro. Podemos argumentar, portanto, que as políticas de enobrecimento constituem a ex- pressão pós-moderna das práticas de arquitetura e do planeja- mento urbano (Leite, 2007, 2009), em que a “paisagem” torna-se atrativa imagem para intensificar a cidade na agenda global dos mercados de bens de consumo cultural e inscreve, sem preterir o conflito, a contrapaisagem.

As “marcas” tradicionais do Rio, como o Morro do Corcovado e do Pão de Açúcar, sempre existirão como atrativo, mas para que continuem a representar o branding imagético do Brasil, um car- tão-postal de entrada da cidade e do país, foram também patrimonializadas, de modo que a narrativa da modernidade carioca do século XX parece antecipar seu valor de autenticidade para um “valor de relíquia” (Giddens, 1997), ou seja, de monumen- tos modernistas que passam a ter “valor de consumo” (Malta, 2015)21 como patrimônios culturais. Além disso, competem com um provável cenário de “pós-autenticidade”, isto é, contrapõem às representações de autenticidade dos bens culturais que têm como fundamento o grau de veracidade, originalidade e sua in- tegridade como uma meta-narrativa oficial (Labadi, 2010).

Com isso, as espacializações culturais, como teatros, antigas bo- ates, praças e lugares de sociabilidade e produção cultural, são friccionadas pelas novas ações e representações criadas pelos poderes públicos e privados. Ao tempo que o argumento central é a conservação de áreas urbanas e naturais para possibilitar a sustentabilidade ambiental e cultural dos bairros, o investi- mento em paisagens turísticas torna-se uma iniciativa comum na linguagem e discursos oficiais, por meio dos intermediários culturais (Ferreira, 2010), na própria construção da paisagem sustentável22.

Os novos artefatos e lugares de consumo têm intensificado um processo de “concorrência intracidade” (Malta, 2015), pelo qual os investidores locais disputam, sobretudo, os consumidores e turistas, intermediando práticas de consumo que buscam cau- sar ao turista a sensação de ser momentaneamente um “local”, ao atrair jovens consumidores a visitarem os lugares mais con- flituosos para a população carioca, vivenciarem a culinária e bebidas local, os modos de vida e práticas culturais, ou mesmo alojarem-se nos hostels (albergues) instalados nos espaços eno- brecidos de morros e favelas (Freire-Medeiros, 2006).

Esses serviços disputam os consumidores que aportam no Rio e constituem-se de modos diversos, contrapondo a prática tu- rística tradicional ofertada pelos hotéis luxuosos que formava uma bolha de segurança através de narrativas e representações acerca da imagem da favela como lugar perigoso, de evitação, marginalização e de contestação. Com a ampliação do leque de ofertas turísticas, aquelas localidades desfavorecidas, quando não removidas, tornaram-se lugares de consumo, aventuras turísticas e exotismo – algo próprio do chamado “pós-turismo” (Urry, 2001).

A nova prática de turismo difere-se do turismo tradicional por inscrever nova relação do turista com os lugares que visitam. Dentre as principais diferenças, a experiência turística é modifi- cada através das novas tecnologias que antecipam informações e imagens dos lugares. A articulação entre alta-cultura e cultu- ra popular/de massa tem recomposto a noção de autenticidade dos bens culturais para a hibridação das práticas socioculturais com a experiência do visitante em desfrutar situações inusita- das e inovadoras (Urry, 2001). Por último, o turismo não se cir- cunscreve somente às atividades sérias e regulamentadas por um pacote turístico de hotel ou de redes de serviços que ofere- cem o turismo na cidade, mas sem a cidade.

O “pós-turista” aventura-se e desfruta de prazeres lúdicos, des- confia dos cenários supostamente autênticos e joga com eles (Urry, 2001). Não é um blasé ou um flaneur no sentido clássico, mas o consumidor ativo que lança um olhar multifocal acerca das localidades que visita e deleita-se com elas. É o indivíduo com algum poder aquisitivo na condição de consumidor buscando estar liberto dos constrangimentos impostos pelos pacotes turísticos que protegem o cliente da “realidade local”, através dos passeios programados e organizados pelos hotéis familia- res de redes internacionais, restaurantes de fast-food, guias de turismo bilíngues e do que o autor chama de “pseudo-aconteci- mentos”, que são atrações inventadas e com pouca autenticidade da cultura imaterial principalmente.

O pós-turismo - isto é, as novas práticas de turismo - força os gestores urbanos e os intermediários culturais (Ferreira, 2010) a buscar inovações constantes para ofertar serviços e progra- mações atrativas. Hostels inteligentes, ecológicos, com festas noturnas; restaurantes e bares estilizados e conectados, mobi- lidade urbana diversificada e ancorada nas novas tecnologias comunicacionais e vigilância eletrônica – não necessariamente ostensiva.

A concorrência dentro da cidade não escapa às pressões globais das mudanças no mundo do consumo. Os gestores do Rio de Ja- neiro, ainda que não reordenem os problemas mais iminentes da cidade, veem-se continuadamente forçados a recompor o ce- nário autêntico da Paisagem Cultural, na tentativa de não deixar morrer o discurso oficial já existente e propagado. O propósito de vencer as favelas continuou, mas com enfoque diferenciado, pois não foi por medidas sociopolíticas de ações de cidadania, de regulação fundiária e qualidade de vida para seus morado- res. Permitiu-se, precisamente, o consumo invadir não somente a praia e o asfalto, mas também os morros.

Considerações Finais

No momento em que pela primeira vez a Unesco considera uma cidade Patrimônio Cultural da Humanidade na categoria Paisa- gem Cultural, esta nova categorização atribuída no Brasil con- tribui para a expansão e renovação dos conceitos e escalas das políticas urbanas de patrimonialização. Difere-se, sem que se encerre, da reivindicada preservação do patrimônio colonial das cidades e sítios históricos nacionais que compõem o ciclo repre- sentativo da identidade luso-brasileira e inclui referências cul- turais materiais e imateriais e de períodos distintos da história do país, isto é, designa as imagens patrimonialistas e as imagens modernistas da cidade (Fortuna, 1997).

O reconhecimento da forma física e simbólica da paisagem do Rio confere seu valor universal como patrimônio histórico-cul- tural, pois ela é o resultado da confluência do meio ambiente, da cidade e da cultura, o que significa uma mudança em termos de concepção e ação. O Rio de Janeiro representou a construção da paisagem e dos espaços públicos desenhados intencionalmente (IPHAN, 2012), que compreendia a racionalização do espaço ur- bano, o embelezamento da cidade com a arborização de praças e a higienização dos espaços. Esteticamente, o traçado urbano foi desenhado para refletir de modo autêntico as entrâncias da Baía de Guanabara, suas bordas d’água e os morros.

Dessas características, a construção da paisagem da cidade não se resume a uma imagem retrátil e alusiva. As imagens em si tornam-se “postais”, “guias”, porém tornam-se a principal nar- rativa de um conjunto de intervenções que enunciam o estatuto simbólico da Paisagem Cultural. A candidatura a Patrimônio da Humanidade reivindicou a preservação da paisagem urbana-cultural modernista como forma de constituir uma identidade universal da cidade do Rio de Janeiro, e possibilitou discutir im- portantes questões acerca dos processos identitários e do con- ceito de patrimônio e paisagens culturais no Brasil.

Com base na importância da experiência urbana e da imagem da cidade do Rio de Janeiro, o processo de patrimonialização desta- ca a paisagem como o principal bem cultural, de valor universal excepcional, valoriza seus espaços de representação o que sugere à população e visitantes espaços públicos de qualidade de vida.

Contudo, sendo uma das finalidades a integração da sua preserva- ção ao plano estratégico Pós-2016, que destaca a criação de uma nova imagem de cidade para sua sustentação nos Jogos Olímpi- cos, sua execução orientou-se para as práticas de turismo e consu- mo. Por isso as áreas que compreendem tanto o sítio paisagístico quanto os espaços destinados aos jogos foram alvos de ostensivas políticas de revitalização e requalificação urbanas. Essa associa- ção de projetos de intervenção dá suporte ao não menos polêmico plano de sustentabilidade da prefeitura na “Era Eduardo Paes”.

Pressionada pelos setores imobiliários, pela sustentação de um me- gaprojeto e pela permanência da violência e desigualdade urbana, como a cidade reclama por uma mudança em termos de concep- ção e ação? A estratégia, então, foi recorrer à sustentabilidade e ao desenvolvimento econômico e urbano como conceitos aplicados às políticas urbanas e cultural contemporâneas, de modo que pudes- sem projetar a imagem de uma cidade do futuro em meio às inci- dências de construções da Cidade Olímpica, dos novos equipamen- tos urbanos e das inovadoras práticas de turismo.

Nesse sentido, os casos da Orla de Copacabana e Zona Portu- ária reforçam a percepção de que as áreas de valorização pa- trimonial se tornam bens de consumo e de “turistificação” dos lugares, assim como a recomposição paisagística, identitária e imagética da cidade corresponde às práticas de consumo dos lugares. Frente a esse processo há implicações que incidem especialmente na vida cotidiana, portanto, implica em transforma- ções na paisagem social e na conformação dos espaços públicos. Esse processo descerra das fugacidades do cotidiano urbano à excepcionalidade do lugar, de uma paisagem etc., e atribui-lhe o “valor de consumo” suposto pelos valores de troca, de uso, esté- tico e simbólicos dos bens, tornando-os referências identitárias nas cidades contemporâneas.

Desse argumento, observa-se que os lugares cotidianos vão ad- quirindo identidades como centros de consumo, de fornecimento de serviços e produtos que podem ser avaliados, comprados e usados. Como exemplo, as favelas situadas nos morros paisa- gísticos da Zona Sul passaram a fazer parte dos serviços turís- ticos da cidade, redes hoteleiras e restaurantes; assim como o capital imobiliário que passou a destinar investimentos para a atração de visitantes e promover representações de identidades urbanas e suas práticas socioculturais, mesmo que muitas ve- zes não se reconheça as diferenças socioespaciais e culturais. No entanto, ainda que se reconheça a importância do patrimônio para a vida cotidiana, os agentes intermediadores dessas práti- cas, articulados em parcerias público privadas, convivem com as dificuldades de articular a cidadania às práticas de preservação.

Como consequência, duas situações fazem-se notar: a primeira constitui-se uma metalinguagem científica e pedagógica (Can- clini, 1997) que institui o monitoramento e a disciplina dos usos sob os quais visa-se conferir legitimidade às categorias políticas, econômicas, tecnológicas e culturais que estruturam o espaço público e suas diversas relações de poder (Arantes, 2000); a se- gunda, as formas como buscam classificar, hierarquizar, organi- zar e simbolizar a vida social mediante os bens culturais que são expostos ao reconhecimento público, têm ocorrido em privilé- gio dos fluxos econômicos em nível de concorrência intercida- des (Fortuna, 1997) e pelo image-making e consumo dos lugares (Urry, 1995; Miles, 2004; Leite, 2007).

Com isso, o que discutimos não se resume somente à dimensão desses planos estratégicos de intervenção, mas como eles recla- mam e pressionam, em diferentes perspectivas, a inovação da imagem e identidade cultural da cidade e buscam, sobretudo, no turismo, na captação de pessoas e capitais, os recursos necessá- rios para sua internacionalização econômica, cultural e tecnoló- gica. Existe, portanto, dois eixos centrais das políticas urbanas de intervenção que são o turismo e o consumo cultural. A cidade se transforma em torno dessas práticas e do ajustamento dos planos estratégicos à orientação mercadológica.

Não significa argumentar que devemos pôr-nos contra as políticas de sustentabilidade ambiental e patrimonial, ou contra as práticas de turismo e consumo cultural nas cidades. Os benefícios que podem advir podem se evidenciar, ocasionando a melhoria da estrutura urbana e do acesso a espaços voltados ao lazer, à prática turística, aos eventos culturais, à geração de renda das comunidades locais e, ainda que pouco evidente, pode estimular a participação cívica. O consumo pode ser uma estra- tégia para compreender como o espaço público tem sido reela- borado mediante a nova “gramática civil” de que fala Canclini (2006), pois as novas identidades culturais-urbanas apelam às ideias transnacionais dos direitos e das práticas socioculturais dos espectadores-consumidores-cidadãos.

Referências

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Notas

1 Os mercados e instituições privadas apropriam-se e reordenam os espaços públicos de bairros, morros e favelas como lugares de consumo cultural, hotelaria, gastronomia, cafés e bares diferenciados, cinemas ao ar livre, museus criativos e sustentáveis, casas de arte e músicas etc., isto acontece, por exemplo, nos diversos bairros paisagísticos e morros de uma cidade como o Rio de Janeiro. A estratégia é a inovação dos serviços para o consumo da cultura material e imaterial carioca (Malta, 2015), em consequência, os processos de gentrification avaçam inclusive nos morros e favelas (Williamson, 2012).
2 Integram o patrimônio paisagístico da Cidade do Rio de Janeiro tanto as paisagens com atributos excepcionais como as paisagens decorrentes das manifestações e expressões populares (PCRJ, 2011).
3 O ponto crucial na administração de Pereira Passos foi a reforma da área central, com abertura da Avenida Central (atual Av. Rio Branco), a construção do Theatro Municipal, a arborização da praça XV de Novembro, os alargamentos e reformas de ruas para que garantissem os ares cosmopolitas dos passeios públicos, e a construção da Av. Atlânti- ca. Todos esses espaços tornavam-se vitrines de um novo cenário do Rio de Janeiro e adotou-se os chamados códigos de posturas (Menezes, 1999), a partir dos quais diversas regras foram apresentadas para que se cumprisse o ideário de higienização e racionali- zação urbanística.
4 A renovação urbana intervém no tecido urbano demolindo as estruturas existentes e não presume a preservação do conjunto material, como casas, praças e edifícios (Vargas e Castilho, 2006). O clássico exemplo de renovação ocorreu durante o chamado bota-abaixo na construção da Av. Central (atual Av. Rio Branco) entre 1904 e 1906, na gestão de Pereira Passos. Outras intervenções ocorreram com o arrasamento do Morro do Cas- telo, a abertura da Av. Pres. Vargas no início da década de 1940 e o desmonte do Morro de Santo Antônio, que permitiu a construção do Aterro do Flamengo, no final da década de 1950 (Camargo, 2011).
5 Zaluar e Alvito (2006) definem como a favela torna-se um “problema” político e urba- nístico do Rio: cidade desde o início marcada pelo paradoxo, a derrubada dos cortiços resultou no crescimento da população pobre nos morros, charcos e demais áreas vazias em torno da capital. Mas isso também se deveu à criatividade cultural e política, à ca- pacidade de luta e de organização demonstradas pelos favelados nos 100 anos de sua história (Zaluar; Alvito, 2006, p. 07-08).
6 A visão de totalidade demarcava as práticas do urbanismo brasileiro no período 1930- 1950, sendo a elaboração dos planos conformadas pelo conjunto da área urbana. Con- forme Carlos, “esses planos propõem a articulação entre os bairros, o centro e a extensão das cidades através de sistemas de vias e de transportes. Neste período, são formuladas as primeiras propostas de zoneamento” (Carlos, 2008, p. 28).
7 Conforme o autor, a Carta de Atenas defendeu pressupostos teóricos para a conser- vação de áreas urbanas e dos aspectos técnicos inerentes ao urbanismo que defendia a não oposição entre os pensamentos progressistas e conservacionistas na conservação pontual de monumentos históricos. Portanto, “defendeu a submissão plena dos monu- mentos históricos, às necessidades de modernização das urbes mundiais, especialmente as europeias” (Carlos, 2008, p. 05).
8 Luiz Paulo Conde, secretário de urbanismo na gestão de Cesar Maia, foi também pre- feito entre 1997 e 2000. Durante sua pasta, trouxe “a metodologia do planejamento estratégico, guiado por forte inspiração no modelo catalão aplicado na Barcelona dos Jogos Olímpicos de 1992. Sob orientação da consultoria catalã, foi elaborado o Plano Rio Sempre Rio, e com ele a concepção das cidades como lugares de troca e de colaboração participativa para a construção de um plano que atendesse às necessidades de adequa- ção das metrópoles contemporâneas aos desafios trazidos pela globalização” (Camargo, 2011, p. 06).
9 Esse plano tinha como objetivo principal dar qualidade de vida à cidade com uma pers- pectiva de torná-la socialmente integrada com os espaços públicos e a vida cultural. Ao mesmo tempo, era lançada a perspectiva de grandes empreendimentos para a competi- tividade internacional do Rio de Janeiro (Camargo, 2011).
10 O plano As Cidades da Cidade considerava de modo competitivo as “identidades, vo- cações e potencialidades das regiões” em que “[...] cada região conta, assim, com um objetivo central específico, e um plano estratégico próprio” (PCRJ, 2004, p. 09 apud Ca- margo, 2011).
11 Através de uma parceria entre o Ministério do Meio Ambiente e o governo do Estado do Rio de Janeiro, juntamente com institutos de pesquisas locais, almejava-se a inscrição do sítio na Lista da Unesco com base em critérios naturais. Esse dossiê incluía importan- tes áreas paisagísticas de apelo natural: Parque Nacional da Tijuca, Serra Carioca, Jardim Botânico, e os morros do Pão de Açúcar, Urca e Cara de Cão.
12 As APACs foram criadas e transformadas em legislação municipal pelo Decreto 4.141 de 1983 e através das Lei 506/84 e posteriormente reformulada pela Lei nº 1.139/87. Após esse período são feitas leis complementares às existentes, somando até o ano de 2012 o total de 33 Apacs na cidade. Desde a criação das Apacs, a partir do Plano Dire- tor Decenal de 1992, 35 bairros e 32.423 bens são parcial ou integralmente protegidos, constando 669 bens tombados, 9.098 bens preservados e 22.656 bens tutelados.
13 Dentre eles estão os morros de áreas de proteção ambiental, a implantação de redes de comunicação, usos inadequados do solo, entre outros fatores que afetam a sustenta- bilidade ambiental do maciço da Tijuca. É também considerado o grau de poluição das águas da Lagoa Rodrigo de Freitas e da Baía da Guanabara, que receberam atividades durante a Olímpiada.
14 De acordo com o Art. 2º., XVIII, da Lei No. 9.985/2000, do Sistema Nacional de Uni- dades de Conservação (SNUC), que estabelece o conjunto de unidades de conservação (UC) federais, estaduais e municipais, a Zona/Área de amortecimento é o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade.
15 Criado pelo Decreto Nº 35879 de 05 de julho de 2012 após a nomeação da cidade a Patrimônio da Humanidade.
16 Nos anos de 1992, a cidade voltar a ter nova visibilidade e perspectiva sociopolítica quando sediou a ECO-92 (Conferência Internacional do Meio ambiente), inserindo-se novamente na agenda internacional. Vinte anos depois, em 2012, a cidade foi sede da Rio + 20, conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável e que se propôs uma agenda global de sustentabilidade ambiental, econômica, urbana e cultural. Com isso pressionou-se os governos cariocas a lançarem a imagem do Rio como capaz de atender as diretrizes propostas pela conferência no âmbito do Plano Diretor de Desen- volvimento Urbano Sustentável, de 2011.
17 Há uma importante associação entre a condição urbana e a sustentabilidade que se destaca como solução para os problemas de poluição, planejamento, mobilidade e energia limpa nas cidades, posteriormente para a sustentação de comunidades locais e do patrimônio cultural. Isso levaria às cidades a emergência global de novos conceitos como o de “cidades sustentáveis”.
18 O Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro (COP-RJ) já denunciava, no dossiê “Megaeventos e Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, Junho 2014”, que as remoções se destinaram à construção da Cidade Olímpica, do BRT Transcarioca, do Projeto Porto Maravilha e diversas outras remoções decorreram do interesse imobi- liário, zonas de risco ou de interesse ambiental e patrimonial sobre o pretexto de evitar a degradação das áreas.
19 O conjunto de processos de apropriação e usos de produtos em que o valor simbólico prevalece sobre os valores de uso e de troca ou, pelo menos, em que estes últimos se configuram subordinados à dimensão simbólica (tradução livre).
20 As favelas têm sido objetos de demolições no âmbito do projeto Morar Carioca – pro- grama municipal de urbanização de favelas. Mas mesmo com os poucos investimentos a longo prazo para o fornecimento de serviços básicos para as comunidades como edu- cação, capacitação profissional, saúde, creche, saneamento, segurança e legalização fun- diária, assiste-se à proliferação das políticas de enobrecimento urbano (gentrification) nas favelas cariocas tornando-as lugares de consumo. Segundo Williamson (2012), os moradores são despejados à força sob o pretexto do desenvolvimento dos megaeventos, muitas vezes sem uma justificativa clara.
21 Compreendo o “valor de consumo” como suposto de valores de troca e de uso não somente na aquisição de bens culturais, mas à dimensão cultural da economia na sim- bolização e no uso dos bens, sejam objetos, lugares, sejam paisagens, isto é, abrange processos de mudança nas dimensões materiais e imateriais da vida cotidiana cada vez mais intermediadas pela cultura de consumo.
22 Carina Gomes (2013) analisou a produção e divulgação das cidades e seus patrimô- nios através do que chama de “paisagem turística”, que é difundida de imagens urbanas patriomonializadas geradas por valores e sentidos para as cidades pelos novos inter- mediários culturais ou novos intelectuais emergentes. Conforme observa, esses profis- sionais desempenham intermediação da produção com o consumo de bens, serviços e significados culturais específicos.
* Este artigo é uma versão ampliada e revista do texto apresentado e publicado nos anais do I Seminário Nacional de Sociologia do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe, entre 27 e 29 de abril de 2016.


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