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Recepção: 28 Maio 2018
Aprovação: 27 Julho 2018
Resumo: Este estudo conceitual propõe uma problematização sobre os conceitos de drogas e alimentos, sem a pretensão de esgotar a temática ou definir uma relação, cujas fronteiras revelam-se porosas e flexíveis. Apresentamos um panorama de fatos que demonstram a variedade de atores e elementos discursivos envolvidos na construção social desses conceitos, bem como desejamos estimular estudos futuros que poderão garantir a consolidação de uma abordagem epistemológica sobre essa relação ainda vaga. Nossa análise gera questionamentos que apontam a impossibilidade de governamentalizar uma simplificação dos conceitos e apontam associa- ções arbitrariamente imprecisas, construídas sob o aval do viés positivista-biologicista da medicina e da ciência moderna - supostamente isento de interesses políticos e econômicos - e da governamentalidade neoliberal tra- tada pela analítica foucaultiana como um conjunto de instituições, procedi- mentos, análises, reflexões, cálculos e táticas que possibilitaram um tipo de exercício de poder que tem a população como seu alvo; a economia política como principal forma de saber; e o dispositivo de segurança como seu ins- trumento técnico mais elementar. Neste sentido, o artigo apresentado pro- põe ponderações acerca da imprecisão na atribuição da condição de drogas e alimentos, tendo em vista que ambos foram instrumentalizados histori camente de maneira indefinida, variando de acordo com as conjunturas e interesses que atravessam estes condicionamentos conceituais que ora qualificam certo produto - em decorrência de estratégias qualificadores - como alimento, ora o desqualificam tratando-o como drogas - justamente por seus supostos prejuízos causado à saúde humana e/ou ambiental.
Palavras-chave: drogas, alimentação, ciência, biopolítica, governamentalidade neoliberal.
Abstract: This conceptual study proposes a problematization on the concepts of dru- gs and food, without the pretension of exhausting the theme or defining the relationship whose boundaries prove to be porous and flexible. We present a panorama of facts that demonstrate the variety of actors and discursive ele- ments involved in the social construction of these concepts, as well as we wish to stimulate future studies that could guarantee the consolidation of an epis- temological approach on this still imprecise relationship. Our analysis point to the impossibility of governing a simplification of the concepts and show the arbitrarily imprecise associations built under the positivist-biologicist bias of modern medicine and science - supposedly free of political and economic in- terests - and the neoliberal governmentality treated by a foucaultiana analy- ses as a set of institutions, procedures, reflections, calculations and tactics that enabled a type of power exercise that has the population as its target; political economy as the main way of knowing; and the safety device as its most basic technical instrument. In this sense, the article proposes considerations about the imprecision in the attribution of the drug and food condition, considering that both were historically instrumented in an indefinite way, varying accor- ding to the conjunctures and interests that cross those conceptual constraints that now qualify a certain product - as a result of qualifying strategies - as food, or disqualify it by treating it as drugs - precisely because of its supposed da- mages caused to human and / or environmental health.
Keywords: drugs, feeding, Science, biopolitic, neoliberal governmen- tability.
Resumen: Este estudio conceptual propone una problematización sobre los con- ceptos de drogas y alimentos, sin la pretensión de agotar la temática o definir una relación, cuyas fronteras se revelan porosas y flexibles. Presentamos un panorama de hechos que demuestran la variedad de actores y elementos discursivos involucrados en la construcción social de estos conceptos, así como deseamos estimular estudios futuros que podrán garantizar la consolidación de un abordaje epistemológico so- bre esa relación todavía desordenada. Nuestro análisis genera cues- tionamientos que señalan la imposibilidad de gubernamentalizar una simplificación de los conceptos y señalan conexiones arbitrariamente imprecisas, construidas bajo el aval del sesgo positivista-biologicista de la medicina y de la ciencia moderna –supuestamente exenta de in- tereses políticos y económicos– y de la gubernamentalidad neoliberal tratada por la analítica foucaultiana como un conjunto de institucio- nes, procedimientos, análisis, reflexiones, cálculos y tácticas que posi- bilitaron un tipo de ejercicio de poder que tiene a la población como su blanco; la economía política como principal forma de saber; y el dis- positivo de seguridad como su instrumento técnico más elementar. En este sentido, el artículo presentado propone ponderaciones acerca de la imprecisión en la atribución de la condición de drogas y alimentos, teniendo en cuenta que ambos fueron instrumentalizados histórica- mente de manera indefinida, cambiando de acuerdo con las coyuntu- ras e intereses que atraviesan esos condicionantes conceptuales que ora califican a determinado producto –en consecuencia de estrategias calificadoras– como alimento, ora lo descalifican tratándolo como dro- gas –justamente por sus supuestos perjuicios causados a la sanidad humana y/o ambiental.
Palabras clave: drogas, alimentación, ciencia, biopolitica, gobernamentalidad neoliberal.
Introdução: ‘uma enxurrada de ideias’
É inquestionável o fato de que os conceitos de drogas e alimentos (in)saudáveis dialogam intimamente a ponto de entrelaçarem- se em muitos âmbitos. Para Carlos Alberto Dória1, a droga é somente uma das múltiplas categorias da utilidade alimen- tar. Nesse debate, Dória e Tófoli apresentam categorias que aproximam a droga da alimentação em três instâncias: sob o conceito de drogas naturais (em detrimento das sintéticas ou semissintéticas2); na perspectiva de alimentos de origem ve- getal (uma vez que há poucos psicoativos de origem animal); e também quando se abordam os alimentos centrados nos seus nutrientes (definidos como substâncias que exercem efeitos reais ou presumidos no organismo). Scrinis (2008) chama esse processo de medicalização da nutrição que reduz a comida a seus componentes bioquímicos na tentativa de promover uma alimentação “biologicizada”, individualizada e desprovida de valores culturais e funções sociais de “nutricionismo”. Assim, pode-se dizer que as drogas lícitas - os medicamentos - se en- trelaçam intimamente com a alimentação sob tal enfoque. Po- rém, ressaltamos que nos concentramos aqui na discussão que envolve alimentos e as drogas ilícitas, seus supostos prejuízos causados à saúde humana, assim como a sua consequente es- tratégia de patologização e criminalização de certas condutas associadas às drogas.
Em certas visões amparadas no senso comum, o consumo do açúcar relacionado ao vício ou dependência (e consequente- mente às drogas) talvez seja a associação entre drogas e alimen- tos mais imediata que podemos encontrar. Entretanto, a ciência moderna também tem contribuído para estreitar tal relação. Estudos apresentados por Lenoir et al. (2007) e Shariff et al. (2016) mostraram substratos bioquímicos, consequências neu- rológicas e psiquiátricas comuns presentes na dependência do açúcar, bem como da cocaína e da nicotina. Todavia, muito an- tes disso, os efeitos negativos do açúcar sobre a saúde humana foram divulgados em “Sugar Blues, o gosto amargo do açúcar”, de Willian Dufty (1975). Neste trabalho, o autor mostra que o açúcar, assim como o cacau e o café, está vinculado ao gosto ci- vilizatório eurocentrista, relacionando-se aos prazeres lícitos na medida em que é legitimado inclusive como dádiva ou forma de agradar o outro. Já as drogas ilícitas, em geral, se difundem prin- cipalmente em instâncias subalternas e fora do eixo eurocentris- ta e/ou estadunidense.
Também é importante destacar que a palavra droga nem sem- pre teve o mesmo significado atribuído hodiernamente. As expressões droga em espanhol, italiano e português; drogue no francês, drug em inglês e droge em alemão começaram a ser usada na Europa, por volta do século XIV - possivelmente a partir de 1327 -, versando sobre produtos secos ou um gru- po de produtos naturais usados tanto na alimentação quan- to no tratamento médico. Provavelmente, a palavra drouge nasceu do antigo francês ou do holandês médio que eram os idiomas falados na Holanda entre 1100 e 1500. A palavra droge-vate, que abarca o que entendemos na atualidade como drogas, possivelmente tenha sido empregada primeiramen- te no baixo alemão médio, falado na Alemanha entre 1100 a 1500, e associada a barris secos ou a mercadorias secas, já que os produtos utilizados pela medicina na época consistiam de ervas secas (Rosa, 2014). Todavia, a relação entre essa pa- lavra e os distintos venenos ocorre desde o século XVI; sua associação com narcóticos e opiáceos sobrevém desde 1883, conforme mostrou Antón (2006).
Para Carneiro (2005), o termo droga foi estabelecido pelo “Dic- cionário da Língua Portuguesa Recopilada”, escrito em 1813 por Antônio de Moraes Silva, como: “todo o gênero de especiaria aromática; tintas, óleos, raízes o ciais de tinturaria, e botica. Mercadorias ligeiras de lã, ou seda” (p. 12). O autor endossa que
Antes, portanto, de designarem os produtos vegetais, ani- mais ou minerais usados como remédios, a palavra droga representou, no contexto colonial, um conjunto de riquezas exóticas, produtos de luxo destinados ao consumo, ao uso médico e também como “adubo” da alimentação, termos pelo qual se definiam o que hoje chamamos de especiarias (Carneiro, 2005, p. 14).
Muitas das principais riquezas encontradas no Oriente e nas Américas, compreendidas em distintos momentos como precio- sas especiarias durante séculos, foram as drogas. Como as mais valiosas mercadorias daquela época vinham do Oriente, os por- tugueses passaram a ser motivados a contornarem o sul da Áfri- ca, indo ao encontro da Índia na busca por tais especiarias. Isso não apenas potencializou a circunavegação do mundo, como também promoveu o deslocamento de mais de dez milhões de africanos para esse novo continente, o que fomentou a produção do açúcar, do melaço, do álcool, o monopólio do tabaco e do cho- colate por parte de setores do clero. Essa mobilização também contribuiu para a emergência de duas guerras deflagradas pela Inglaterra contra a China, visando a imposição do livre comércio do ópio no século XIX. Diferentemente do que ocorre na contemporaneidade, no período colonial não havia distinções nítidas entre drogas e comidas, nem entre remédios e alimentos (Rosa, 2014, pp. 59-60).
Outro exemplo dessa (con)fusão pode ser encontrado na fala proferida por Doria3, ao fazer menção ao termo “drogas do ser- tão”. O conceito refere-se a alimentos e especiarias nativas do Brasil extraídos das terras “ocultas” na época das entradas e das bandeiras. Sendo desconhecidos pelos colonizadores, esses variados produtos - guaraná, castanha-do-pará, algodão, fumo, mandioca, rapadura e aguardente - receberam tal denominação explicitando uma íntima relação entre os dois conceitos. Neste contexto, o alimento exótico e exógeno, não familiar, portanto, recebia a denominação de droga.
Ao contrário das drogas, o conceito de alimento saudável reme- te à uma necessidade biológica/fisiológica com qualidades de reforço positivas e a construções socialmente favoráveis (como manutenção da vida, prazer, prevenção de doenças e promoção da saúde). Como tais qualidades apresentam-se bastante fra- gilizadas na contemporaneidade, a alimentação vem migrando gradativamente para uma dimensão negativa e aproxima-se cada vez mais das drogas nos âmbitos do vício, da compulsão, da dependência, da obsessão e das ameaças à saúde, e em outras dimensões inexoravelmente culturais: promoção de bem-estar, lubrificação de interação sociais, poder, fomento à intolerância, divisão de nacionalidades, classes, gênero e etnias.
Este estudo conceitual de caráter qualitativo mobiliza autores de diversas áreas e visa problematizar os conceitos socialmente construídos de drogas e alimentos saudáveis - com foco para a arbitrariedade da licitude e ilicitude que envolve os dois con- ceitos - e expor os impactos na produção de diferentes corpos - saudáveis, drogados, criminosos - decorrentes das verdades produzidas pela relação saber-poder que tem o Estado como legitimador dessa governamentalidade neoliberal.
É importante enfatizar que não temos a pretensão de esgotar a temática ou definir as fronteiras para essa relação que se revela imprecisa, indefinida, porosa e flexível. Em vez de oferecer uma resposta conclusiva, propomos o estabelecimento de um panorama de informações que demonstram a variedade de atores e fatos envolvidos na construção social desses dois conceitos, no intuito de estimular possibilidades de estudos futuros para que tal relação se consolide epistemologicamente. Para isso, apostamos na problematização desses conceitos a partir não somente de uma perspectiva etimológica e historiográfica, mas também a partir de suas consequências nos campos da saúde e da segurança pública, que produzem racionalidades sobre os corpos daqueles que aderem a determinados comportamentos e condutas.
Cremos na possibilidade de localizar a agonística que propiciou a atribuição valorativa dessas noções que passaram a ser utiliza- das como técnicas tanto de disciplinamento quanto de controle populacional, conforme nos mostra a analítica foucaultiana, so- bretudo, a sua perspectiva genealógica do poder discutida por Rosa (2014):
Para Foucault (1999), o poder começou a constituir seus al- vos de demarcação sobre a vida, uma vez que a morte passou a ser o limite, o limiar que a escapava. Esse poder sobre a vida teve início a partir do século XVII sob dois polos de desen- volvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. O primeiro se focalizou no corpo como maquina, em seu adestramento, na intensificação de suas aptidões, na ex- torsão e extração de suas forças, na ampliação de sua utilida- de e docilidade e, sobretudo, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos, assegurados por mecanismos de poder que caracterizavam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, desenvolvido posteriormente, a partir da metade do século XVIII, situou-se no corpo-espécie, em um corpo perpassado pela mecânica do ser vivo que tinha como suporte para seus processos bioló- gico a proliferação, os nascimentos, as mortalidades, os ní- veis de saúde, a duração da vida, a longevidade e suas demais condições variantes, onde tais técnicas eram concebidas por meio de uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população (pp. 96-97).
Primeiramente, o texto discute essa racionalidade neoliberal que embasa a pesquisa para, em seguida, apresentar uma possi- bilidade de análise de elementos que contribuíram para a construção social desses dois conceitos, problematizando a arena política de definição, legitimação e estigmatização de drogas e alimentos saudáveis. Já em um terceiro momento, o estudo debruça-se sobre as questões que envolvem comportamentos “desviantes” (vício, compulsão, dependência, obsessão, trans- torno, etc.) vinculados às duas categorias centrais de análise.
Uma Certa Governabilidade Neoliberal
A governamentalidade, que também presume a incorporação e reprodução de uma racionalidade fundamentada na necessida- de da existência do Estado, foi tratada pela analítica foucaultiana como um conjunto estabelecido por instituições, procedimentos, análises, reflexões, cálculos e táticas que possibilitou a emergên- cia do exercício de uma maneira particular e complexa de poder que tem a população como seu alvo; a economia política como principal forma de saber; e o dispositivo de segurança como seu instrumento técnico mais elementar.
Como o Estado encontrou na população o objeto essencial do exercício de seu poder, na medida em que instrumentalizou certos saberes amparados na economia política liberal, pressupondo que o controle da sociedade decorre dos dispositivos de segurança, a sua governamentalização só foi possível por meio de técnicas de governo que o possibilitou sobreviver ao longo da história das civilizações. É por isto que, segundo a analítica foucaultiana, o Estado só conseguiu sobreviver ao longo dos anos por meio das táticas gerais da governamentalidade. Para o filó- sofo francês,
(...) o Estado é, essencialmente e antes de mais nada, a ideia reguladora dessa forma de pensamento, dessa forma de reflexão, dessa forma de cálculo, dessa forma de interven- ção que se chama política. A política como máthesis, como forma racional da arte de governar. A razão governamental coloca o Estado, portanto, como princípio de leitura da rea- lidade e o coloca como objetivo e como imperativo. O Estado é o que comanda a razão governamental, quer dizer, é o que faz que se possa governar racionalmente segundo as neces- sidades; é a função de inteligibilidade do Estado em relação ao real e é o que faz que seja racional, que seja necessário governar. Governar racionalmente porque há um Estado e para que haja um Estado. (Foucault, 2008, pp. 385-386).
Assim, foi através de uma perspectiva cunhada na analítica genealógica foucaultiana que propomos uma análise acerca da relação entre drogas e alimentos e de como ela produziu uma governamentalização de algumas verdades produtoras de supostos corpos-saudáveis, corpos-drogados e corpos-cri- minosos (Rosa, 2018). Todavia, dependendo da perspectiva de quem fala, essa atribuição poderá engendrar não somente situações-problema acerca das condutas desses sujeitos, como também poderá operar na captura de verdades produzidas por relações de saber/poder provenientes da associação entre Es- tado e mercado no contexto daquilo que Foucault chamou de biopolítica.
Não obstante, é importante esclarecer que, segundo essa ana- lítica genealógica, a atuação do poder absoluto derivado da soberania, que consistia em “fazer morrer”, foi se hibridizando com outros demais e cada vez mais perdendo espaço para uma tecnologia de biopoder fundamentada em um poder contínuo e científico perpetrado pelo poder de “fazer viver”, que incidia sobre a população e sobre o indivíduo enquanto ser vivo. Assim, enquanto o antigo poder soberano “fazia morrer e deixava vi- ver”, essa nova tecnologia de poder de regulamentação chama- da de biopolítica consistia em “fazer viver e em deixar morrer” (Foucault, 1999, p. 54).
Foucault (2010) constatou que, a partir de meados dos anos 1970, a biopolítica passou a se hibridizar com a emergente Teo- ria do Capital Humano produzida pelos autores da chamada escola econômica de Chicago, através do que foi chamado por ele de neoliberalismo americano protagonizado pelo sujeito emer- gente daquela época, tratado como um novo homo œconomicus, “(...) um empresário de si mesmo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda” (pp. 310-311).
A relação entre fazer viver decorrente da emergente biopolítica localizada pela analítica foucaultiana, quando se hibridiza com Teoria do Capital Humano, acaba apresentando-nos um problema complexo, a saber: como garantir o fazer viver, ao mesmo tempo em que sugere a emergência de um novo sujeito histórico chamado de homo œconomicus que visa sempre obter ganhos?
O estudo perpassa nessa questão, sobretudo, ao referendar a manipulação das noções de alimento saudável e droga e ponderar sobre os seus efeitos na construção de corpos-saudáveis, corpos-drogados e corpos-criminosos - verdades produzidas como resultado da relação saber-poder que tem o Estado como legitimador dessa governamentalidade neoliberal, de tradição estadunidense.
Drogas e Alimentos Saudáveis: Arenas Social e Politicamente Construídas
A relação entre a condição de drogas e alimentos acaba reve- lando-se imprecisa uma vez que alguns produtos que se apre- sentam como comida operam de forma prejudicial no nosso or- ganismo, ao passo que outros, tratados como drogas, possuem excelentes qualidades nutricionais, pode-se citar como exemplo o alto valor proteico encontrado na cannabis (Ribeiro; Malcher-Lopes,2007).
Essa discussão pretende mostrar os diferentes elementos que compõem as arenas de poder que legitimam os conceitos de droga e alimentos saudáveis. São atores diversos que perfor- mam em dimensões paralelas; não se relacionam diretamente, mas são costuradas pela racionalidade produzida e instrumen- talizada por essa governamentalidade neoliberal.
A construção social e política trazida para o debate sobre as dro- gas, dar-se-á a partir de uma breve análise histórica do uso do ópio e da cannabis e das políticas de controle sobre as substân- cias psicoativas ilícitas que determinam processos peculiares de seletividade e incriminação. No caso dos alimentos saudáveis, essa discussão será realizada a partir do conceito de regimes ali- mentares, uma histórica política do sistema capitalista discutida sob o viés da alimentação e a arena dos lobbies alimentares.
Se é droga ou quando é droga?
As políticas de controle sobre as drogas conhecidas hoje nos países ao redor do planeta só foram estabelecidas internacio- nalmente no final do século XIX, sobretudo a partir da chama- da “guerra do ópio”, capitaneada pela Inglaterra contra a China. Embora as atividades comerciais europeias realizadas após as guerras napoleônicas estavam voltadas aos países orientais, o interesse por parte dos países asiáticos em estabelecer este tipo de relação mercantil com os países europeus era tratado dis- tintamente de acordo com os interesses de cada país. A China, que era produtora de seda, porcelana e chás, conquistava bons preços no mercado europeu com os seus produtos. Contudo, as mercadorias oriundas da Europa não eram tão valorizadas pelos chineses, o que resultou em um déficit comercial na Inglaterra (Rosa, 2014).
Diante desse quadro emergente de atividades mercantis, somou-se o fato de que nenhum outro produto despertou tamanho interesse da Inglaterra quanto o ópio. O produto passou por um processo de transformação medicamentosa estabelecida pela indústria farmacêutica em ascensão; foi utilizado como instru- mento técnico e científico que possibilitou uma ação transformadora sobre o corpo doente, dando eficácia à prática médica moderna. Diante do enfrentamento à dor, por exemplo, o consu- mo de ópio era considerado algo extremamente eficaz e comum. Para enfatizar tal importância, Carneiro (1993, p. 41) aponta a “história do ópio” como a “história da medicina”.
Desse modo, foi somente a partir da segunda metade do século XIX que a Europa passou a presenciar uma propagação farmaco- lógica legitimada pelo cientificismo médico da época que visava tratar dos problemas de saúde biológica e psíquica, a partir dos opiáceos - e também da cocaína. Os profissionais da saúde pres- creviam o láudano - substância originária do século XVII com- posta de álcool e ópio - e a morfina - sintetizada em 1804. Essas substâncias tratavam de uma diversidade de patologias, chegan- do a ser utilizadas inclusive como anestésicos durante algumas guerras (Rosa, 2017).
A receita em que se encontrava a fórmula medicamentosa fun- damental para a cura de determinada enfermidade ou para o alívio de certos sintomas era providenciada pelo médico até meados do século XX. Porém, era o farmacêutico ou o boticário que preparavam o medicamento estabelecido a partir das doses previstas na receita médica, na qual constava as substâncias necessárias para a sua elaboração. Em sua grande maioria, tais substâncias eram importadas e manufaturadas em laboratórios da Europa e dos Estados Unidos, a exemplo do ópio, morfina, heroína e cocaína.
Embora essas prescrições fossem validadas pela ciência médica daquele momento, o uso indiscriminado de grande parte destas substâncias não apenas trazia riscos de dependência química, como acarretava outros problemas para a saúde daqueles sujei- tos que as consumiam. Não tardou para que parte do uso desses medicamentos passasse a ser tratado com maior cuidado.
Assim, pudemos verificar a ascensão de um mercado que se con- solidou fortemente na virada do século XIX para o XX, a partir da estabilização da emergente indústria farmacêutica. Ressalta- mos a relevância da criação da Bayer, em 1863, na Alemanha, no entendimento acerca do nascimento deste negócio altamente lucrativo hodiernamente4. Naquela ocasião, as suas atividades mercantis estavam voltadas para a produção e distribuição de corantes sintéticos destinados ao tingimento de tecidos para a indústria têxtil. Porém, em 1873, a empresa passou a atuar no campo médico, principalmente patenteando, produzindo e co- mercializando opiáceos, cocaína e aspirina, dentre outros pro- dutos medicamentosos, conforme mostrou Escohotado (1998).
Com as políticas de controle/proibição sobre a maconha, o caso não é muito diferente. Segundo Ribeiro e Malcher-Lopes (2007), a cannabis é uma das drogas recreativas mais usadas no planeta e está entre as mais antigas plantas domesticadas pelos seres humanos, tendo suas propriedades tanto curativas quanto terapêuticas presentes em escrituras sagradas e em documentos médicos das mais antigas e distintas culturas. Os autores mencionados ainda mostram que dentre as mais de três milhões de plantas comestíveis, a semente de cânhamo tem um alto valor nutricional e pode ser considerada uma excelente fonte de proteína vegetal.
Ribeiro e Malcher-Lopes (2007) localizaram em Heródoto, que viveu quatro séculos antes de Cristo, relatos sobre as qualidades terapêuticas da cannabis que incluíam o tratamento de distintas enfermidades, além de seu caráter proteico decorrente de suas propriedades alimentares. Segundo os autores, a mais an- tiga farmacopéia do mundo, Pent-Ts’ao Ching, escrita no primeiro século depois de Cristo, mostra que a maconha era indicada para o tratamento de dores reumáticas, constipação, distúrbios menstruais, beribéri, gota, malária e falta de concentração.
Não obstante, foi no início do século XXI que pesquisadores, so bretudo da campo da neurociência, constataram que os canabi- nóides estão envolvidos na remodelação de circuitos neurais, na extinção de memórias traumáticas, na formação de novas memórias e na proteção de neurônios. Isso sem falar das des- cobertas realizadas um século atrás que mostram a eficácia no tratamento da depressão, dependência psicológica, epilepsia, esquizofrenia e doença de Parkinson (Ribeiro; Malcher-Lopes, 2007).
Pelas Américas, a cannabis não era somente tratada como uma importante planta para a cultura popular do nordeste brasileiro entre os séculos XIX e XX, como também era uma mercadoria muito lucrativa nos agronegócios estadunidenses. Os presidentes Benjamin Franklin e Thomas Jefferson foram dois de seus princi- pais produtores, que a utilizavam na produção de óleo para ali- mentar a eletricidade e iluminar as ruas das grandes cidades dos Estados Unidos (Dória, 1986). Porém, no Brasil, o consumo da maconha esteve constantemente associado à cultura negra e fo- ram os seus estigmas e preconceitos agregados à diplomacia estadunidense que acabaram orientando as políticas proibicionistas que incidem há décadas sobre as políticas de segurança pública.
Ao final do século XIX presenciamos a ascensão de certa prática industrial que visava aproveitar ao máximo possível a força de tra- balho, e para isto, promovia o higienismo e controlava as práticas sexuais e o consumo de drogas e álcool. Foi a partir dessas práti- cas promovidas pelo Estado que surgiram as primeiras legislações proibicionistas nos Estados Unidos, visando a criminalização da produção, do comércio e do consumo de ópio, cocaína e heroína em 1914 e, finalmente, das bebidas alcoólicas, em 1919, através da chamada Lei Seca que, naquele país, durou até 1933 (Rosa, 2014).
A correlação entre o uso de substâncias psicoativas e os hábitos de determinados grupos étnicos ou imigrantes estigmatizados já acontecia, com certa frequência, antes mesmo da elaboração das primeiras leis proibicionistas estabelecidas pelo governo esta- dunidense nas primeiras décadas do século XX. Assim, os negros eram associados ao consumo de cocaína; os chineses tratados como consumidores de ópio; os irlandeses como bebedores crô- nicos de álcool; os mexicanos, dentre outros hispânicos, como impudicos fumadores de maconha, garantindo a qualidade ne- gativa (ou ilícita) de “droga” para os estrangeiros e os exóticos (Rodrigues, 2004; Rosa, 2014).
O estabelecimento de políticas que buscavam controlar os corpos de indivíduos pertencentes a determinados grupos marginaliza- dos tornou-se uma realidade política preocupante. Estrangeiros eram perseguidos e tratados como perigosos inimigos internos; seus corpos e seus costumes eram associados ao desvio, ao crime ou às doenças que deveriam ser contidas em decorrência do risco de contágio para a população (Rodrigues, 2004).
Como as classes mais abastadas também faziam uso de algumas dessas substâncias estabelecidas como ilícitas pelo governo estadunidense, sua apreensão na condição de corpo-criminoso passou a ser contestada. A partir disto, passou-se a produzir o discurso da dependência química e de sua suposta condição de corpo-doente, visando a produção de certa seletividade criminal que atribuía patologias para uns e a condição criminal para outros, dependendo de sua origem social e étnica.
Tal seletividade criminal pode ser constatada ainda hoje nos mais variados estudos que dialogam com o Direito e suas ver- tentes menos normativas e dogmáticas. Os estudos de Wacquant (2001) dissertam sobre o que chamou de Estado penal, em que instrumentaliza-se a “guerra às drogas” como estratégia de criminalização da pobreza na garantia do encarceramento em massa ou hiperencarceramento. Baratta (2002) contesta o que chamou de ideologia da defesa social, propondo uma crimino- logia crítica no lugar de uma criminologia positivista, enquanto que Hulsman e Celis (1993) apostam no chamado abolicionismo penal. Esses autores têm mostrado a complexidade da temática e a produção de corpos distintos que tendem a ser capturados pelos discursos dos Estados e seu financiador - o mercado.
Muitos desses usuários - maioritariamente negros e pobres - são também recorrentemente destinados às prisões reais ou rece- bem penas alternativas que garantam a impossibilidade de cir- cularem pelas metrópoles, assegurando uma suposta condição de contenção ao medo, discurso típico da segurança pública con- temporânea. Nos EUA, esses indivíduos, uma vez presos, perdem também o direito ao voto, o que os afasta da possibilidade de es- colha de seus futuros representantes, garantindo a consolidação de um determinado círculo de poder.
Porém, o corpo branco e abastado recebe outro tipo de enca- minhamento. Ressaltamos a crítica de Oliveira (2017) sobre um caso emblemático ocorrido no Brasil. O tratamento distinto oferecido a Breno Fernando Solon Borges e a Rafael Braga. O primeiro, um empresário branco, foi encontrado com 129 kg de maconha em Campo Grande, MS, e posteriormente liberado; o segundo, um jovem negro, catador de material reciclável, foi condenado há 11 anos de prisão, por tráfico e associação ao trá- fico, por portar 0,6 gramas de maconha e 9,6 gramas de cocaína.
Assim, ao tratarmos da produção legítima, legal e/ou governa- mental do corpo-doente - decorrente do consumo de drogas, so- bretudo, as estabelecidas como ilícitas - e do corpo-criminoso
- resultante da adesão de políticas que proíbem a produção e comércio destas substâncias - é possível verificarmos de que forma a droga aparece como um problema tanto de saúde quan to de segurança pública. É um fenômeno que deve ser contido por meio daquilo que Becker (2008) chamou de cruzada moral, capitaneada pelos empreendedores morais.
Se analisarmos com mais complexidade as políticas proibicio- nistas no campo das drogas, teremos a possibilidade de verificar o contexto no qual se articulam uma razão de Estado que rei- tera o discurso do mercado. Tal discurso faz operar tanto uma razão governamental circunscrita na produção de um corpo-saudável (e supostamente livre de riscos) quanto de um corpo-
-drogado (no qual se confere a condição patológica de desvio ou dependência química), como um corpo-criminoso (um inimigo da sociedade e responsável pela violência, insegurança e outros males). Assim, nesses três casos conseguimos verificar a possi- bilidade de ganhos com tratamentos e criminalizações.
Resumidamente, mesmo diante de tantas evidências de promo- ção de risco e insegurança, no Brasil ainda é comum defender a premissa de que o principal problema, tanto de saúde quanto de segurança pública, refere-se ao controle das substâncias psicoa- tivas através de uma perspectiva discricionária que não conjec- tura necessariamente os benefícios ou prejuízos causados à saú- de. Além disso, tal discurso opera duplamente na seletividade, garantindo a circulação de certas substâncias psicoativas e proi- bindo outras, possibilitando ainda a criminalização de indivídu- os ‘indesejáveis’ e grupos específicos tratados como perigosos.
Alimento (in) saudável para quem?
Migrando para o campo da alimentação, temos um universo so- cial e politicamente construído sob as mesmas premissas orien- tadas por certa configuração estabelecida pelo livre mercado, que passou a ser chamado de liberalismo neoclássico ou neoli- beralismo.
Desde a pré-modernidade até os dias de hoje, o conceito de ali- mento saudável (ou aceitável, permitido, sagrado, indicado, etc.) transitou pela dimensão mágico-religiosa de cada cultura, a par- tir de práticas cotidianas e crenças que a suportavam, sofrendo os efeitos restritivos, padronizáveis e quantificáveis implícitos na racionalidade científica moderna. Isso fez com que chegasse na atualidade resgatando algumas dimensões tradicionais e in- corporando outras novas, a saber: dimensões ambientais, éticos, sociais, políticos, culturais (Azevedo, 2014).
Enfatizamos a importância de compreender essa mudança do conceito de alimento saudável, especialmente a partir da mo- dernidade, sob a influência dos regimes alimentares. Friedmann e McMichael (1989), com base na teoria regulacionista, utilizam essa expressão para definir períodos da história do capitalismo que imprimiram determinadas mudanças na forma de produção e consumo dos alimentos. Os autores propõem uma história po- lítica do capitalismo, entendida a partir da perspectiva da ali- mentação. Mais recentemente, McMichael (2016, p.15) definiu esse projeto dos regimes alimentares como uma metodologia para determinar relações muito recentes entre a ordem mundial e o sistema agroalimentar.
O primeiro regime alimentar foi constituído no período final da hegemonia britânica, entre 1870 e 1914, centrado na produção de leite e nas importações de trigo e carne pela Europa dos esta- dos coloniais para impulsionar seu processo de industrialização acelerado. Esse regime foi precedido pelo industrial-mercantil, cujas bases foram construídas segundo os referenciais preconi zados pela Revolução Verde visando a produção de alimentos em larga escala para atender às demandas crescentes do mercado. A demanda por mais mão de obra urbana e o pacote tecnológico que essa Revolução implicava retiravam empregos e produtores de alimento do meio rural sob o clamor de aumento de produtividade. Ou seja, a medida em que o capitalismo atraía os indivíduos para o meio urbano, aumentava a necessidade de outras formas de tecnologia para produzir alimento, que, por sua vez, promovia ainda mais o êxodo rural e a concentração de renda no campo, como um círculo perverso.
Na atualidade, acompanhamos o desenvolvimento do chamado terceiro regime alimentar mundial, iniciado na década de 1980, denominado corporativo-ambiental, que dialoga com Araghi (2003) que o cognominou de regime alimentar do capital. Tal regime caracteriza-se pela hegemonia do mercado e pela glo- balização financeira ainda voltada para a produção, liberando os capitais do sistema agroalimentar das regulações dos Estados nacionais, “dedicado a assegurar rotas transnacionais de capital e commodities (incluindo alimentos) - transformando pequenos agricultores em uma força de trabalho global informal em prol do capital” (McMichael, 2016, p. 16). Nesta lógica, localidades são incluídas ou excluídas segundo a instrumentalização da racionali- dade neoliberal e tanto as matérias-primas quanto a mão de obra são utilizadas nos processos produtivos de acordo com as reais possibilidades de obtenção de lucro por parte de grupos envolvi- dos nestas transações comerciais. A produção agrícola tende a ser cada vez mais verticalizada, com a integração das atividades da agricultura às atividades da indústria de alimentos pelos com- plexos agroindustriais e a intensificação das tecnologias.
Para o autor, o regime alimentar corporativo combina elementos de cada um dos regimes alimentares precedentes, restabelecen do, assim, o princípio do mercado mundial através de um víncu- lo contraditório de protecionismo agrícola decorrente do hemisfério norte e liberalização tanto de setores agrícolas quanto de mercados alimentares provenientes do hemisfério sul. Contudo, é no século XXI que nasce esse princípio neoliberal relaciona- do diretamente à produção e circulação global de alimentos que acarretou uma subordinação explícita das nações aos merca- dos, estabelecendo um regime estruturado na mercantilização do abastecimento alimentar, conforme podemos encontrar nas atividades desenvolvidas por grandes empresas multinacionais.
O conceito apresentado por Araghi (2003), acerca do que cha- mou de regime alimentar do capital, decorreu de análises que mostraram como as dimensões políticas do mercado conseguiram moldar as recentes ordens mundiais, bem como o modo como racionalizamos sobre todo este ordenamento do qual pas- samos a ser condicionados. A utilização do conceito de regime alimentar se mostra importante nesse sentido não apenas por compreender que a ordem mundial capitalista é regida por regras que estruturam a produção e o consumo de alimentos em escala internacional, como também por associar-se à projeção do poder estabelecido pelas rotas alimentares decorrentes das relações históricas específicas de produção e acumulação de capital.
Ao argumentar que “cada regime alimentar apresenta condições particulares de alimento a baixo custo, e cada conjunto relativa- mente estável de relacionamentos é expresso em produção, cir- culação e consumo de alimentos regidos por preços mundiais”, McMichael (2016, p. 26) verificou que foi a partir da intensifica- ção do regime alimentar corporativo fundamentado na interna- lização dos princípios neoliberais de mercado, que a Organiza- ção Mundial do Comércio passou a atuar como um instrumento que, além de incentivar políticas de ajuste estrutural, também interferiu na reestruturação e reorientação das relações mun- diais entre a agricultura e o comércio. Como consequência dessa forma de organização social, política e econômica que envolve a produção, comércio, consumo e circulação de alimentos, Azeve- do e Rigon (2016) delinearam as sucessivas crises decorrentes de tal regime em diferentes âmbitos - socioeconômico, cultural, ambiental e sobre a saúde humana.
Ao objetivar essencialmente o aumento da eficiência tecnoló- gica e comercial, o desenvolvimento do sistema agroalimentar moderno acabou estimulando a superprodução, cujos efeitos incidiram no dinamismo da atividade produtiva. O compromis- so do atual sistema agroalimentar não objetiva a promoção da segurança alimentar e nutricional da população mundial e nem a inclusão social do agricultor familiar, mas, sim, a manutenção de uma complexa dinâmica de caráter econômico que promove cada vez mais a concentração de capital pelas oligarquias trans- nacionais que predominam no setor. Com vistas a um controle cada vez maior da área de alimentos, ocorre também uma ex- pansão do monopólio de sementes, interferindo na soberania alimentar dos povos e promovendo erosão da agrobiodiversidade. Atualmente, seis grandes corporações detêm as patentes de cinco das variedades de grãos mais consumidas em todo o mundo - arroz, trigo, milho, soja e sorgo (Consea, 2014).
Azevedo e Rigon (2016) ainda mostram que a dimensão eco- nômica se entrelaça intimamente com a social, uma vez que a dependência das tecnologias agropecuárias, a incapacidade do agricultor de assumir o pacote tecnológico, a continuidade da concentração elevada de terras por parte de uma minoria, jun- tamente com uma insuficiência de políticas públicas de apoio à agricultura familiar e camponesa, contribuíram tanto para a manutenção de um modelo de desenvolvimento concentrador de terras, riqueza e renda quanto para a consequente manutenção histórica da pobreza rural com sérias repercussões no meio urbano.
A racionalidade neoliberal que deu suporte ao desenvolvimen- to desse sistema agroalimentar moderno proveniente dos paí- ses desenvolvidos do hemisfério norte também desconsiderou os saberes agrícolas tradicionais e as preocupações acerca do impacto ambiental trazidas pelos agricultores dos países do hemisfério sul, ajustada à complexidade de cada meio rural e à identidade cultural construída pelos cultivadores a partir do seu ambiente. Ao se analisar essa dimensão cultural, vislumbram-se as mudanças no modo de viver dos agricultores que alteraram negativamente sua saúde e sua qualidade de vida. Muitas dessas mudanças são também extensivas aos moradores do meio urba- no ou interferem diretamente sobre eles.
Tanto o sistema de produção quanto as práticas alimentares au- tóctones, característicos de cada território e culturalmente dis- tintos, também sofreram alterações em função da racionalidade científica moderna, da modernização da agricultura e da indus- trialização dos alimentos. O conceito de alimento saudável pa- dronizou-se, influenciado por uma perspectiva mercadológica construída sob a ótica da predominância econômica, tecnológica e cultural dos países do hemisfério norte que desconsideram os patrimônios alimentares culturais e a territorialidade dos hábi- tos alimentares (Azevedo; Rigon, 2016).
Na dimensão ambiental, é possível afirmar que o sistema agro- alimentar convencional, ao incluir a indústria de alimentos, passou a ser o maior fator de desequilíbrio do meio ambien te. O uso excessivo e indiscriminado dos insumos químicos sintéticos, a monocultura e a mecanização provocam erosão, desmatamento, poluição das águas, do solo, dos alimentos e do ar e perda da biodiversidade, aumentando assim o risco de desgaste dos recursos naturais. As queimadas, o transporte de alimentos por longas distâncias e a criação animal confinada determinam gastos energéticos e custos ambientais insusten- táveis, como o efeito irreversível sobre as mudanças climáticas. Para McMichel (2016, p. 26), “hoje, no século XXI, a civilização humana não tem nenhum outro fundamento mais importante do que seus ecossistemas e fontes de abastecimento alimentar, e a ordem política contemporânea ignora tal fato por sua (e nossa) conta e risco”.
Em decorrência disso, vivemos a emergência daquilo que Ce- sarman (1972, p. 12) já vinha anunciado nos idos dos anos 1970, o chamado ecocídio ou “la destrucción de nuestra tier- ra”. Segundo o autor, a destruição dos meios naturais neces- sários para viver, como a água e o ar, tem se mostrado cada vez mais presente, já que visivelmente conseguimos verificar os seus impactos no meio ambiente. Isto, inclusive, tem nos permitido constatar que os recursos naturais necessários à vida, como a terra cultivável e os minerais, podem ser finitos, da mesma forma que os distintos saberes sobre a terra, os quais estão sendo perdidos cada vez mais em decorrência de um tipo de produção capitalística que passou paulatinamen- te a desertificar os solos, tendo em vista o tipo de plantação baseado na monocultura. Além disso, não existem mais terri- tórios novos a serem conquistados e, portanto, a vida futura no planeta passou a se apresentar de uma maneira um tanto quanto limitada.
Na dimensão da saúde humana, os impactos são igualmente visí veis. Até mesmo o estado nutricional como parâmetro moderno e científico de qualidade alimentar também pode ser analisado sob a expressão resultante de uma relação desgastada entre a sociedade e a natureza; para Vasconcelos (2000), tal estado é influenciado por aspectos sociais, econômicos, culturais, religiosos, biológicos e geográficos.
Com base nesse entendimento, é preciso analisar a epidemio- logia nutricional que se delineia hoje como uma forma de ex- pressão das contradições que emergem desse regime alimentar corporativo (Caballero, 2006). As sociedades contemporâneas vivem uma situação de coexistência dos conhecidos quadros de desnutrição e fome, que nenhum regime alimentar conseguiu (ou se propôs) a erradicar, aliada à crescente epidemia mundial de doenças crônicas não transmissíveis, obesidade e sobrepe- so, apresentando uma elevação de sua frequência em diferentes segmentos sociais com grande impacto nos sistemas de saúde.
Poulain (2013) coloca a obesidade como um fenômeno global da saúde pública com determinantes variados e consequências econômicas nefastas que podem colocar em risco os sistemas de saúde de todas as sociedades.
A grande contradição evidenciada por esse processo é que, apesar de todo o aparato científico e tecnológico atualmente disponível, a qualidade dos alimentos que circulam no interior do sistema agroalimentar moderno desperta grandes preo- cupações. A tecnologia utilizada na agroindústria alimentar provocou mudanças significativas na estrutura química dos alimentos e na biodisponibilidade dos nutrientes, bem como aumentou o risco de exposição à contaminação por substân- cias químicas que ameaçam a saúde humana e endossam o corpo-doente.
Azevedo (2012) e Carneiro et al. (2015) compilaram diferen- tes estudos sobre os distintos prejuízos causados à saúde hu- mana, animal e ambiental decorrentes do uso de agrotóxicos, fertilizantes, drogas veterinárias e outros contaminantes e tec- nologias usadas no sistema agroalimentar moderno, como os aditivos sintéticos, a transgenia e a irradiação. De acordo com o Relatório do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxi- cos em Alimentos (PARA), produzido pela ANVISA em 2013, 64% dos alimentos de origem vegetal estão contaminados por agrotóxicos no país com maior consumo de agrotóxicos do pla- neta. Importante ressaltar que houve um aumento de 288% no consumo desses venenos da agricultura entre os anos 2000 e 2012 e, embora seja possível conjecturar o seu impacto na saú- de humana, ambiental e animal através do reconhecimento de uma diversidade de pesquisas científicas sérias mencionadas e já realizadas sobre esta questão gravíssima, os políticos bra- sileiros e a população deste país, de modo geral, ignoram os argumentos apresentados pelos pesquisadores, conforme foi mostrado na tese de doutorado de Flávia Donadelli (2016), na London School of Economics.
Diante desse quadro desalentador, o mundo ainda foi surpre- endido, em setembro de 2016, com o chamado “matrimônio dos infernos”5, quando a empresa alemã Bayer, hoje uma das maiores indústrias farmacêuticas do planeta6, comprou a es- tadunidense Monsanto, empresa de biotecnologia, insumos e sementes agrícolas, inclusive transgênicas7. Essa relação se apresenta como uma imagem poderosa de uma irônica forma de retroalimentação na qual o sistema agroalimentar indus- trial alimenta um corpo-doente que acaba refém da indústria farmacêutica. Esse círculo vicioso expressa a governamentali- dade neoliberal encontrada emblematicamente na racionalida- de biopolítica do “fazer viver e em deixar morrer”, evidenciado também na política das drogas, porém de uma forma perversa- mente mais sutil, já que o alimento ainda guarda seu potencial de positividade (mesmo que o mesmo encontre-se cada vez mais ameaçado).
Essa construção sócio-política acerca do conceito de alimen- to saudável fundamentada em interesses econômicos deve ser compreendida sob a ótica dos lobbies das grandes empresas de medicamentos, alimentos, insumos e tecnologias agríco- las, visando centralmente a regulamentação de seus produtos, conforme podemos localizar nas investigações realizadas por Nestlé (2002), Azevedo (2012), Robin (2008) e Camara et al. (2006).
Nestle (2002) revela a poderosa rede de lobbies8 que envolve a agência reguladora de alimentos e drogas - o Food and Drugs Administration (FDA), o Departamento Estadunidense de Agri- cultura (USDA), os especialistas em Nutrição, os representantes da indústria de alimentos e dos grupos de commmodities agrí- colas, visando a formação de diversas composições de parceria que tem como objetivo o apoio financeiro à pesquisa acadêmica na área da alimentação, bem como suporte a periódicos, suple- mentos científicos e grupos de aconselhamento sobre nutrição e saúde, congressos e conferências9. Para essa nutricionista esta- dunidense, nessa trama de relações fica difícil determinar em que momento e lugar a prática da ciência transforma-se em propagan- da ou business. Exemplos citados por Nestlé (2002) destacam que 30% de membros de universidades aceitam financiamento de indústrias; 34% dos autores principais de 800 artigos científicos na área de biologia molecular e medicina estão envolvidos com patentes e consultorias de comitês ou estão envolvidos em com- panhias que podem se beneficiar com a pesquisa desenvolvida.
Na mesma direção, Azevedo (2012) revela a imbricada arena política de construção social da soja como alimento saudável que tem como objetivo o fortalecimento da posição favorável ao grão e a manutenção e expansão do mercado local e estrangeiro. Entre os atores envolvidos estão o FDA, o Agricultural Marke- ting Service/ USDA (o Serviço de Marketing do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos), as empresas produtoras de se- mentes de soja e os comitês estaduais por elas mantidos (como o Soy Health Research Program ou Programa de Pesquisa em Soja e Saúde, mantido pelo United Soybean Board, instituição es- tadunidense de produtores de soja que administra atividades de pesquisa e desenvolvimento de marketing da leguminosa). Sob esse poderoso arcabouço, a autora ressalta que perguntar se determinado alimento é saudável torna-se irrelevante, uma vez que a questão central a ser colocada deveria ser: como se esta- belecem as relações de poder entre os diversos sistemas peritos na definição do que é um alimento saudável?
Robin (2008) apresenta uma compilação de diferentes pesqui- sas que analisam os prejuízos causados pelas decisões políticas tomadas pelo governo estadunidense que ignoram ou manipulam os pareceres técnicos acerca dos efeito negativos dos agrotóxicos e das sementes transgênicas na saúde humana, animal e ambien- tal. A autora ainda mostra que boa parte dos agrotóxicos fabrica- dos pela Monsanto passou a ser comercializado sem a realização de pesquisas prévias que comprovem prejuízos à saúde humana e animal, bem como os seus impactos danosos ao meio ambiente.
Ao desenvolver essa investigação, Robin (2008) verificou que alguns dos dirigentes dessa empresa não apenas promoveram e ainda promovem lobbies com os governos estadunidense e ca- nadense, como também operaram como diretores da instituição responsável pela regulação de alimentos e drogas nos Estados Unidos, a Food and Drugs Administration (FDA). Assim, ao apre- sentar as decisões que autorizaram a produção e comércio des- sas substâncias, a autora mostrou que as medidas anunciadas pelos governos foram decididas a partir de interesses políticos e econômicos, minimizando as preocupações tanto com a saúde humana quanto com a segurança alimentar e nutricional.
Da mesma forma, as pesquisas realizadas com transgênicos no Brasil evidenciam a polêmica sobre a adoção e a liberação desta biotecnologia, bem como a incerteza quanto a seus efei- tos sobre a saúde humana e ambiental, sem apresentar dados conclusivos concretos. A Comissão Técnica Nacional de Biosse- gurança (CTNBio)10 liberou o plantio comercial de mais de 26 variedades transgênicas de soja, milho e algodão entre 2008 e 2010, desconsiderando as controvérsias na área e os riscos de erosão genética e de contaminação de sementes tradicionais e varietais. Dentre as variedades liberadas nesse período, 21 fo- ram modificadas para o aumento da resistência aos herbicidas. Apesar da promessa da redução gradativa do uso de agrotóxicos com o plantio das sementes transgênicas, o acompanhamento deste processo no Brasil evidenciou uma tendência de aumento da demanda, intensificando ainda mais os riscos do uso dessa tecnologia à segurança alimentar, à saúde e aos ecossistemas brasileiros11. Cabe ressaltar que a CNTBio é formada majorita- riamente por técnicos ligados a empresas de biotecnologia que produzem os transgênicos.
Dados do Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN), responsável pela notificação obrigatória das intoxica- ções com agrotóxicos, mostram crescimento no número de in- toxicações agudas pelo uso destes contaminantes na agricultura (Camara et al., 2006). Com relação à liberação comercial, esses autores citam Marinho e Minayo-Gomez (2004) que analisaram o tratamento dado pela CTNBio a solicitações de liberações ambientais de transgênicos. A conclusão é que, apesar do arcabouço legal existente, as instâncias governamentais foram negligentes com relação a estudos efetivos sobre segurança alimentar e riscos ao meio ambiente nos ecossistemas brasileiros. Além disso, não conseguiram assegurar o cumprimento da biossegurança, contra- riando suas normas mais elementares (Camara et al., 2006).
O sistema agroalimentar moderno enfatizou uma dinâmica de mercadorização do alimento, estimulando sua venda com agre- gação de valor conforme propriedades que lhe são atribuídas e que garantem seu consumo por parcelas da população de maior poder aquisitivo. Por outro lado, como também visa outras par- celas da população, o sistema agroalimentar moderno passou a disponibilizar produtos alimentícios de baixo custo, nutri- cionalmente desequilibrados e com alta densidade calórica, de estratégica e capilar inserção social acessível a todos os estra- tos sociais, contribuindo para o fortalecimento dos chamados desertos alimentares12 e, consequentemente, para diferentes transtornos alimentares, incluindo a obesidade. Deste modo, é importante compreender que “os lobbies não são apenas industriais e políticos, mas estão no cerne do campo científico” (Poulain, 2013, p. 14).
Jacob e Matheus (2017) não apenas verificaram que a compo- sição da Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação é formada por empresas como a Nestlé, Cargill e Unilever, como também constataram que o lobby destas corporações tem atua- do junto ao governo, congresso e tribunais brasileiros, ao ponto de conseguir barrar as estratégias da ANVISA que visam limi- tar a publicidade de alimentos insalubres dirigida ao público infantil e outras ações restritivas (Doria, 2017). Não surpreende que exista atualmente no país dezenove comissões especiais da Câmara que analisam Projeto de Lei (no. 3200/15, 1687 e 6299/2002) que propõem alterar e flexibilizar a Lei de Agrotó- xicos, incluindo a mudança de nome de “agrotóxicos” para “de- fensivos fitossanitários”, com o objetivo de atenuar a impressão popular sobre os impactos causados por estes venenos. Tais pro- jeto são alguns dos instrumentos que endossam o desmonte da legislação de agrotóxicos, o que em outras palavras significa a ameaça à saúde coletiva, ao meio ambiente e aos direitos sociais.
Corroboramos com Azevedo e Ribas (2016), que questionam se realmente estamos saudáveis consumindo alimentos que, com o apoio do sistema econômico-industrial e da propaganda massiva, constroem e propagam valores de segurança e até de funcionalidade. Alimentos provenientes de um sistema que des- qualifica a soberania alimentar, que destrói as florestas e a bio- diversidade, que interfere no clima, que inviabiliza terras agri- culturáveis e que polui rios, lagos, mares, o ar e o solo. É possível encontrar indivíduos saudáveis vivendo em um meio ambiente insalubre? É saudável um alimento cuja produção promove ex- clusão social e poluição ambiental, causando doenças?
Apesar de muitas evidências acerca do impacto dos alimentos provenientes do Sistema Agroalimentar Moderno sobre a saúde humana, ainda é preciso pensar na complexidade sociocultural que circunda o conceito de alimentação saudável. Para quem pen- sa as consequências do Sistema Agroalimentar Moderno talvez o saudável seja uma alimentação orgânica, local, de origem fami- liar; para quem deseja/precisa emagrecer talvez seja uma dieta li- ght/diet, com baixa densidade energética, e para quem questiona os impactos da produção animal, uma alimentação saudável deve ser vegana ou vegetariana. Ou saudável seria uma dieta low carb, glúten/lactose free; ou uma dieta que considere o tipo sanguíneo ou os temperamentos? Considerar ainda essas questões para de- finir um alimento saudável é como entrar em um labirinto concei- tual tortuoso parceiro da reflexividade contemporânea.
Vício/ Dependência/ Compulsão/ Obsessão/ Transtornos das Ingestões
Parece prudente nesse momento da discussão sobre drogas e alimentos, debruçar-se sobre os distintos tipos de comporta- mentos ligados tanto à produção, comércio, circulação e consu- mo de substâncias psicoativas ilícitas quanto à nutrição. Esses diferentes termos são usados, muitas vezes, como sinônimos, não sendo encontrado nenhuma diferenciação exata e consen- sual no campo científico. Em busca no dicionário13, os termos vício, dependência, compulsão e obsessão têm em comum a im- ponderabilidade, a imprecisão e a relação com qualidades ne- gativas, inconvenientes e nocivas: imperfeição, costume conde- nável ou prejudicial, subordinação, submissão, ato irresistível, descontrole, perturbação, desordem, anomia.
No campo das drogas, o termo vício vem sendo evitado quando se aborda o uso compulsivo de substâncias psicoativas tanto lí- citas quanto ilícitas, sendo preferível a utilização do termo ‘uso abusivo’ ou mesmo ‘transtorno por uso de substâncias’, confor- me podemos encontrar no CID-V e DSM-V, classificações produ- zidas, respectivamente, pela Associação Americana de Psiquia- tria e pela Organização Mundial da Saúde - OMS que tratam de transtornos mentais.
Por outro lado, mesmo quando o sistema de justiça criminal utili- za-se de legislações proibicionistas para garantir o controle popu- lacional decorrente dessa tecnologia biopolítica e para manter as diferentes formas de segregação e criminalização, vemos o termo traficante ser utilizado como estratégia de eliminação de sujeitos. Isto ocorre justamente porque o comércio de drogas e suas conse- quências são erroneamente tratados como os responsáveis pelas produções de mazelas sociais, conforme mostrou Zaccone (2016).
Por mais que existam diversificadas tentativas de compreensão dos fenômenos relacionados ao uso de drogas através de mode- los teóricos ligados às questões culturais que escapam ao mode- lo universal de saúde apresentado pela Associação Americana de Psiquiatria e Organização Mundial da Saúde, é possível verifi- car que a abordagem médica e psiquiátrica, muitas vezes, acaba considerando equivocadamente o simples uso das substâncias psicoativas como um problema. Essa relação de poder imposta pela medicina científica moderna e positivista intensifica-se na medida em que são impostos juízos de valor do médico sobre o chamado uso abusivo de drogas. Adam e Herzlich (2001) aten- tam para o poder do médico frente a um diagnóstico de ‘doente’ que transcende um estado orgânico e acaba repercutindo sobre a identidade do indivíduo, determinando-lhe um lugar específi- co, e muitas vezes excludente, na sociedade.
A expressão ‘uso abusivo de drogas’, utilizada por diversos profissionais da saúde, acaba sendo empregada de forma pro- blemática na medida em que os juízos de valores passam a ser presentes nas condutas médicas e diagnósticos destes que atri- buem uma conotação negativa inicialmente chamada de ‘vício’ e, posteriormente, de ‘dependência química’, àqueles que even- tualmente consomem substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas. Essa é uma forma de intervir, muitas vezes drasticamente, na vida desses sujeitos que acabam sendo tratados como crimino- sos pelo sistema de justiça criminal ou doentes pela medicina/ psiquiatria. Isto porque eles nem sempre se adequam a uma normalidade subjetivada por esses profissionais que apresen- tam uma verdade institucionalizada pela ciência moderna e go- vernamentalizada pela população.
Carneiro discute o conceito de vício relacionado às drogas e Meule o mesmo conceito ligado a alimentos:
Assim como na “droga”, o conceito de “vício” deve ser in- vestigado tanto na sua polissemia contemporânea como na sua constituição histórica. De um conceito moral abstrato, oposto à virtude, para uma noção de comportamento ex- cessivo, especialmente de natureza sexual, recentemente adquiriu o sentido de um paradigma do abuso de drogas. A noção de um hábito ou de um costume, assim como os termos técnicos de adição ou dependência, usados para de- signar quadros de comportamentos considerados compulsivos ou obsessivos, abrange, contudo, esferas muito amplas da atividade humana. O sexo, o jogo, o trabalho, a comida, o esporte são todos comportamentos que podem revestir-se das características atribuídas ao vício. Definir vício não é uma tarefa fácil. Como distinguir hábitos de compulsões? Há hábitos não-compulsivos? Vícios são os maus hábitos e hábitos os bons costumes? (Carneiro, 2005, pp. 19-20).
Meule (2015), citado por Rogers (2017), afirma que o uso científico do termo vício em referência a alimentos remete à década de 1890. Todavia, o crescimento no interesse de estudos e publicações sobre o tema dos transtornos e dependência alimentar só ocorreu a partir da segunda metade do século XX, contexto de implementação, intensificação e, sobretudo, governamentalização da racionalidade neoliberal. Para além dos transtornos como bulimia e anorexia, a epidemia de obesidade e sobrepeso, aliada ao aumento de doen- ças não transmissíveis vinculadas à dieta, tem assolado todas as sociedades e classes sociais, contribuindo para o desenvolvimen- to de estudos que se debruçam sobre a dependência alimentar e a responsabilização de diferentes atores - especialistas, autoridades civis e governamentais frente aos danos à saúde.
A ideia de precisar/mensurar o que é inexato e imponderável é um dos grandes desafios nesse campo. Rogers (2017) mostra critérios que definem se um determinado comportamento - nes- te caso o “comportamento das ingestões14” - pode ser qualificado como vício. Um dos apontamentos-chave de tóxico dependência é estabelecido em manuais ou classificações produzidas pela American Psychiatric Association (2013) e pela Organização Mundial da Saúde (1992), que definem o vício como a presença de pelo menos duas ou três das seguintes situações:
dificuldades em controlar o uso da substância; um forte dese jo pela substância; tolerância, de modo que sejam necessárias doses aumentadas da substância para alcançar a intoxicação ou os efeitos desejados; efeitos adversos em caso de retirada aguda da mesma; negligência de interesses alternativos e so- ciais, atividades familiares e ocupacionais relacionado ao uso da substância; tentativas mal sucedidas de parar de usar; e uso contínuo, apesar do dano físico ou psicológico comprova- do causado pela substância (Rogers, 2017, p. 183).
O estudo de Rogers (2017) se debruça sobre a ideia de ‘vício ali- mentar’ como uma explicação para o consumo excessivo. Apesar de os critérios acima se encaixarem melhor para definir a dependência a determinadas substâncias que não necessariamen te levam à obesidade (como o chocolate, cafeína, álcool e drogas, etc.), o autor se preocupa com a relação de consumo excessivo e peso corporal (in)saudável. Ou seja, o foco do vício alimentar é a obesidade e não outras disfunções.
Rogers (2017) ainda assume que, se critérios formais muito rigo- rosos forem aplicados, a ideia de dependência alimentar pode ser rara ou inexistente. Além disso, afirma que no caso das substâncias psicoativas, essa afirmação torna-se ainda mais preocupante. Ironicamente, os fatos mostram o contrário, já que maioria dos consumidores de álcool ou de maconha, por exemplo, não se tor- na ‘viciado’; ao contrário do café e do açúcar, cujos consumidores constantes apresentam muitos sintomas de dependência.
Rogers (2017) também descreve as várias semelhanças relacio- nadas ao desejo por alimentos e drogas. Por exemplo, (1) alguns vestígios ambientais condicionados (como pipoca no cinema; encontro de amigos) podem despertar os mesmos comporta- mentos de busca de alimentos e de drogas; (2) a abstinência de alimentos ‘viciantes’ e drogas podem provocar efeitos adversos;
(3) um ‘desejo intenso’ e ‘obsessão’ são sentimentos comuns relatados por “ingestores” que precedem o consumo de comi- da e também o uso de drogas; ou seja, o prazer de comer e de usar drogas são atos psicoativos; (4) tolerância condicionada e incondicionada15 ocorre na ingestão de ambos. Isto é esperado, uma vez que drogas supostamente ‘viciantes’ utilizam os mesmos processos e sistemas que se desenvolveram para motivar e controlar a adaptação de comportamentos, incluindo o ato de comer. Deste modo, o pesquisador evidencia que as drogas supostamente ‘viciantes’ têm efeitos mais potentes do que os alimentos, particularmente em relação aos seus efeitos neuroa- daptativos que as tornam ‘desejadas’.
No entanto, foi o psiquiatra estadunidense Norman Zinberg (1984) quem apresentou um dos trabalhos mais significativos que possibilitaram importantes ponderações sobre compulsi- vidade e uso de drogas através da ênfase aos contextos sociais e emocionais (set e setting) em que se encontram os usuários destas substâncias, ao invés da droga. Isto acabou nos possibili- tando ponderar sobre como as experiências acerca do consumo de substâncias psicoativas podem ser tomadas pelas próprias representações sobre estas experiências, por meio da imposição de um quadro classificatório que atualmente pode ser encontra- do tanto no CID-V quanto DSM-V.
Alves (2017) relata que foi através de uma bolsa de pesquisa re- cebida em 1968 que Zinberg pôde analisar o sistema terapêutico de manutenção do consumo de heroína na Inglaterra, localizando dois tipos de usuários problemáticos, diferentemente daquilo que havia constatado em suas investigações realizadas anteriormente nos Estados Unidos. Enquanto o primeiro tipo de utente consumia heroína com sucesso, sem qualquer problema, desenvolvendo atividades sociais sem comprometer as distintas dimensões da sua vida com o consumo desta substância psicoativa, o segundo encontrava-se muito debilitado.
Na Inglaterra, o uso de heroína não era criminalizado e os usuá- rios não sofriam as restrições legais e o mesmo tipo de estigma. Este fato possibilitava o aceite da adição como fato e a manuten- ção das atividades rotineiras sem a adoção de um estilo de vida destrutivo. Todavia, com base em Zinberg, Alvez (2017) ainda aponta que as diferenças de experiências com drogas encontra- das entre distintos países e em diferentes contextos (guerra, de- pressão, países que descriminalizaram ou não as drogas, etc.) podem ser atribuídas aos settings sociais (que incluem sanções e rituais sociais) e às atitudes sociais e legais de cada contexto. A farmacologia e a personalidade do usuário não podem ser os únicos elementos de análise.
Outra ação normativa de viés biomédico, que busca categorizar componentes ‘anormais’ e que tenta mensurar a imprecisão no campo da alimentação para além daquilo que foi apresentado por Rogers (2017), pode ser encontrada na Yale Food Addiction Scale, uma escala que mede o grau de dependência à comida. É uma medida que foi desenvolvida para identificar os indivíduos mais prováveis de exibir marcadores de dependência de alimen- tos com alto teor de gordura e açúcar. A escala de autodeclaração tem 25 itens que incluem categorias de resposta mista através das quais é possível obter um sintoma de dependência alimen- tar (por exemplo, tolerância, retirada, perda de controle) que é semelhante aos critérios para a dependência de substância da American Psychiatric Association, acima mencionados. Além dis- so, dois itens avaliam deficiência clinicamente significativa ou dificuldade de comer. Usando a escala, o suposto vício em alimentos pode ser ‘diagnosticado’ quando estão presentes três sintomas de comprometimento ou ainda o dano clinicamente significativo (Gearhardt et al., 2012).
Rogers (2017) assume que a obesidade resulta do excesso de consumo recorrente de alimentos com alta densidade energéti- ca. Tais alimentos são, ao mesmo tempo, extremamente atraentes, amplamente disseminados, acessíveis e com baixo potencial de saciedade. O autor acredita que limitar sua disponibilidade poderia, parcialmente, diminuir a ingestão excessiva e impactar no crescimento epidêmico da obesidade. Ou seja, persuadir os gestores das políticas de saúde pública de que esses alimentos têm um poder viciante pode apoiar uma ação efetiva de controle da oferta dos mesmos. Entretanto, o autor não apresenta as suas análises de um ponto de vista reducionista, tendo em vista que mesmo que a compulsão alimentar possa ser conceituada como uma forma de comportamento viciante, ela não deve ser consi- derada a causa da obesidade. Portanto, definir a obesidade em termos de vício alimentar é contraproducente.
Tófoli (2017)16 concorda que tal aproximação é perigosa. Isto porque corremos o risco de banalizar os tipos de consumos mais sérios que ocorrem compulsivamente, desqualificando o perfil de tendência individual e a realidade social que levam ao risco de dependência e também porque a atribuição de um excessivo consumo de dependência alimentar como causa da obesidade implica em culpabilizar a própria vítima, deixando de respon- sabilizar atores centrais (como a mídia, o Estado, o sistema e a indústria alimentares). Portanto, atribuir o consumo excessivo de alimentos ao vício alimentar não explica, nem ajudar a redu- zir significativamente o problema, como também é esperado no campo das drogas.
Voltando a Rogers (2017), sua análise indica semelhanças, mas também algumas diferenças nos efeitos motivacionais de abuso de drogas e alimentos. Em geral, a adição às drogas têm efeitos mais potentes do que a dos alimentos, particularmente em rela- ção a seus efeitos no cérebro que os tornam ‘desejáveis’. Embo- ra possivelmente a compulsão alimentar possa ser conceituada como uma forma de comportamento supostamente ‘viciante’, este fato não é uma das principais causas da ingestão excessiva, já que existe uma prevalência muito menor de compulsão ali- mentar do que o excesso de peso ou a obesidade. Todavia, a res- ponsabilização acerca do consumo patológico e/ou compulsivo tanto de drogas quanto de alimentos acaba sendo direcionada aos sujeitos, ao invés de se procurar verificar os espaços sociais, a forma com que estes são produzidos pelos distintos mercados que se apresentam no contexto da racionalidade neoliberal.
Algumas Amarrações Finais
Podemos afirmar que ambos conceitos - droga e alimentação saudável - repousam sobre diferentes repertórios formados em arenas inexoravelmente sócio-políticas e culturais, mesmo que as ciências naturais também interfiram em tais construções. Considerando tal fato, o desafio de relacioná-los é grande dian- te de uma imensidão de opções analíticas interdisciplinares que acaba oferecendo diversas imprecisões nos termos, impossibi- litando de construir uma relação sólida. Também o fato de não terem sido encontrados estudos científicos disponíveis acerca desse assunto, torna o estudo relevante, mas também vulnerá- vel, pois não nos permite traçar análises conclusivas. Mas tais fatos não tornam o estudo menos importante. A pesquisa aponta cenários políticos que não são comumente revelados nas análi- ses sobre drogas e alimentação saudável.
Sob as premissas da biopolítica de Foucault (2010), foi possível revelar instâncias de poder variadas que possibilitam reflexão e problematização da realidade que envolve as drogas e os alimen- tos. Encontramos nesse contexto, a incidência de um poder disci- plinar que, desde os primeiros processos de socialização, leva-nos a crer na inquestionabilidade e suposta neutralidade da ciência moderna. O filósofo francês aponta como a construção de uma verdade científica é circunscrita na noção de agonística de Nietzsche e como deriva de relações de força entre diferentes saberes e poderes que pressupõem múltiplos interesses. Ao vi- sar a produção de uma ‘anticiência’ e de ‘saberes sujeitados’, Foucault (2000) permite questionar as verdades produzidas pela ciência positiva moderna e revelar sua mediação por di- ferentes interesses circunscritos ao campo econômico, que guarda nos aparelhos estatais os instrumentos de perpetuação das suas estruturas.
Nesse cenário de produções de verdades que envolvem as drogas e os alimentos, emergem os interesses políticos e mercadológicos que tratam de assegurar não apenas uma suposta segurança da população, mas também a sua normalização. E nessa arena, entra a perspectiva positivista biomédica da medicina que controla os costumes e dita o que é sagrado e profano; o que deve ser entendido como normal e patológico, como lícito e ilícito e, no limite, permite criminalizar condutas cotidianas e culpabiliza a própria vítima - o viciado, o obeso, o corpo-doente, o corpo-
-criminoso… Esses olhares, assim como aquele trazido pela neu- rociência, não conseguem dar conta de abordar a discussão que envolve os comportamentos de dependência de drogas e o con- sumo de alimentos, sem considerar o contexto cultural, o espaço social e o quadro sociopolítico. Também não é possível dissertar sobre o que é droga e o que é alimento, o que é lícito ou ilícito, sem ponderarmos sobre os impactos na vida daqueles sujeitos que sofrem com os problemas resultantes destas associações arbitrariamente imprecisas.
O mesmo discurso de verdade sobre um determinado alimen- to produz, por um lado, novos mercados lucrativos que visam a produção de um corpo-saudável e, por outro lado, fomenta um corpo-doente e a tentativa de sua normalização através de uma economia política do tratamento. De maneira semelhante, Rosa (2014) mostra que uma economia política do crime e da pena é produzida através da atribuição da condição de um corpo-crimi noso que deve ser contido em prisões ou afastado do contexto social; assim, paulatinamente, as drogas passaram a servir de instrumento de controle populacional e segregação decorrente dos estigmas presentes no sistema de justiça criminal. Por conseguinte, todos esses corpos sofrem um processo de docilização legitimado pelo Estado que elabora políticas públicas a partir de interesses econômicos privados, característicos da racionalidade neoliberal dominante na contemporaneidade.
A partir deste estudo, percebemos que os dois conceitos não ne cessariamente relacionam-se, mas caminham em universos que mantêm-se firmemente paralelos. E o que os conecta é - aí sim - uma relação; entre saberes e poderes transpassados pelos interesses do neoliberalismo.
Referências
Adam, Philippe; HERZLICH, Claudine. Sociologia da Doença e da Medicina. Bauru: Ed. Ed. USC, 2001.
Notas