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Enobrecimento Litorâneo: a Orla de Atalaia
Revista TOMO, núm. 32, 2018
Universidade Federal de Sergipe

Artigos

Revista TOMO
Universidade Federal de Sergipe, Brasil
ISSN-e: 1517-4549
Periodicidade: Semestral
núm. 32, 2018

Recepção: 10 Março 2018

Aprovação: 19 Março 2018

Resumo: O litoral brasileiro comporta um quarto da população do país, promovendo um adensamento singular em relação às outras regiões geográficas do Brasil. Tal adensamento da região costeira nos coloca uma série de questões relativas às dinâmicas socioespaciais que passam a se desenvolver nestes espaços e à forma como a praia passa a ser percebida em relação à cidade. É extensa a literatura que apresenta a praia, o litoral e o modo de vida praiano como um espaço que expõe uma prática diferente do modo de vida urbano. No entanto, gostaríamos de argumentar acerca da possível consideração de pensar a praia como mais um espaço da cidade, a qual se estende ao ambiente natural pelos equipamentos e práticas urbanas. A presente reflexão toma a Orla de Atalaia como dado empírico, cujo processo de urbanização consolida o ambiente praiano como mais um espaço da cidade, confirmando a cidade como potência polifônica, capaz de abranger diversas situações, mas sempre impondo suas práticas e tensões comuns ao ambiente urbano.

Palavras-chave: Enobrecimento, Litoral, Urbano, Praiano, Polifonia.

Abstract: The Brazilian coast hosts a fourth of the country’s population, causing a unique densification in relation with other Brazilian regions. This densification of the coast provokes a list of ques- tions about the socio-spatial dynamics that are developing in these spaces and about the perception of the beach in relation with the city. The literature presenting the beach and the coast as spaces different from the urban ones is important. However, we would like to argue that it is possible to consider the beach as a urban space that extends to the natural environment through urban practices and equipment. This reflection takes the Orla de Atalaia as an empirical fact, which urbanization process streng- then the beach’s environment as a space belonging to the city, confirming the city as a potency.

Keywords: Gentrification, Littoral, Beach, Polyphony.

Resumen: El litoral brasileño comporta un cuarto de la población del país, provocando una densificación singular en relación a otras regio- nes geográficas de Brasil. Esa densificación de la región coste- ra suscita una serie de preguntas relacionadas con las dinámi- cas socioespaciales que se desarrollan en estos espacios y con la forma con la cual se percibe la playa en relación a la ciudad. Es amplia la literatura que presenta las playas y el litoral como un espacio que expone una práctica diferente del modo de vida urbano. No obstante, nos gustaría argumentar sobre la posible consideración de pensar la playa como más un espacio de la ciu- dad, que se extiende al medio ambiente natural con las prácticas y los equipos urbanos. La presente reflexión toma la Orla de Atalaia como dado empírico, cuyo proceso de urbanización conso- lida el ambiente de la playa como un espacio que pertenece a la ciudad, confirmando la ciudad como potencia polifónica, capaz de abarcar distintas situaciones, pero siempre imponiendo sus prácticas y tensiones comunes al ambiente urbano.

Palabras clave: Aburguesamiento, Litoral, Playero, Polifonía.

Introdução

Miami Beach não se transformou apenas em um disputado local simbólico de consumo para as classes altas. A localidade do sul da Flórida se converteu numa espécie de sonho idealizado, de sol e mar, o que numa observação de plano geral aparenta ter moldado formas de conduta que são típicas de uma “sociedade de consumo” (Baudrillard, 2014): exposição de corpos, status econômico e outras formas e meios que se ligam com tal cenário, por um certo excesso de positividade urbana que caracteriza as cidades turísticas contemporâneas (Leite, 2016).

A transformação de Miami Beach em um grande atrativo turísti- co se deu, de modo similar, mediante a transformação de antigos espaços urbanos fisicamente degradados em mercadoria para o circuito mundial de capital, signos e pessoas: tal como o Soho, a Times Square, Barcelona, a Ribeira do Porto, o Bairro do Recife e os Armazéns das Docas de Belém. Guardadas suas especificida- des históricas e processuais, todos esses espaços se aproximam exatamente por poderem ser entendidos como expressões dis- tintas de um mesmo processo de enobrecimento urbano, nome- adamente conhecido como gentrification (Less & Slater, 2008).

Apesar de toda a perceptível “exaustão” (Leite, 2010) e decadên- cia social desse modelo de enobrecimento urbano, é espantoso que ele continue a se multiplicar como um daqueles “cases” de sucesso a ser replicado em todo o mundo. Entende-se, contudo, o aparente paradoxo com uma equação simples: o que é bom para os negócios nem sempre é bom para as pessoas ordinárias e vice-versa. Em outras palavras: apesar do enorme desgaste social que esses processos de gentrification têm causado, eles continuam a ser implantados simplesmente porque continuam a ser esquemas bem-sucedidos de negócios no âmbito das políticas urbanas.

No campo de tais intervenções urbanas, observa-se que o litoral também tem sido objeto de significativas alterações físicas e simbólicas. Na medida em que a urbanização se aproxima do ambiente praiano, observa-se o surgimento de novos locais e de usos diversos. Essa permeabilidade entre ambiente natural e ambiente antropomorfizado tem forte apelo heurístico para os estudos urbanos, sobretudo pela possibilidade de um melhor entendimento da própria definição daquilo que entendemos por “urbano”. Dessa feita, parece ainda oportuna uma reflexão que lance novas perspectivas analíticas sobre a praia e sua inserção nos processos de urbanização litorânea, tema deste artigo.

Tendo como referente empírico a Orla de Atalaia, em Aracaju, este artigo analisa essa relação entre a cidade e a praia, com vistas a compreender a transformação de um ambiente costeiro como espaço de lazer e as subsequentes mudanças nas formas de uso da Orla litorânea como novo espaço urbano.

O Litoral

A busca de uma característica peculiar e inovadora de uma re- gião, com fins de criação de um atrativo turístico das cidades, tem sido bastante comum no discurso oficial de governos e agentes turísticos. A caracterização da cidade como praiana é uma das possibilidades mais recorrentes no Brasil, muitas vezes concorrendo ou mesmo concomitantemente com a adjetivação de cidade histórica, que passa a ser apresentada como detentora de expressões próprias que a caracteriza e, nomeadamente, a distingue. Em geral, o processo de adjetivação por processos racionais e sistemáticos de intervenções urbanas busca reor- denar suas estruturas espaciais e, consequentemente, inseri-las numa lógica cultural de consumo. Neste contexto, o mar e a zona costeira passam a ser os principais caracterizadores de distinções entre cidades, as quais se tornam “cidade praianas” e consolidam-se como detentoras de um imaginário que extrapola o espaço limítrofe com o mar.

A praia e a faixa de areia compõem um imaginário específico, que congrega as expectativas de um espaço voltado ao lazer, com a possibilidade do “descanso”, “tranquilidade” e “liberdade”. Há uma considerável narrativa histórica acerca da relação do ser humano com o oceano e, posteriormente, da cidade com o litoral (Urbain, 2002; Corbin, 1989; Freitas, 2007). Nessas descrições históricas, as pessoas parecem construir em seus imaginários a ideia do mar como atrativo para os seus desejos, sendo este mar historicamente reconhecido como um espaço desconhecido, va- zio ou de reduzido uso. O vasto oceano desperta interesse mes- mo quando amedronta ou quando se vence o medo e é desafiado pelas motivações, seja quando desperta repulsa, seja interesse pela necessidade de comércio e exploração.

Dos temores em relação ao mar na Idade Média europeia ao processo de transformação da percepção no período moderno, chega-se ao uso da praia que se agrega ao cotidiano das cidades. É quando os europeus passam a estabelecer uma relação direta com o mar, o que pode ser verificado em cartas escritas por na- vegadores; relação esta que se amplia à pesca e defesa territo- rial, a partir do século XVIII:

Território ignorado e evitado, durante muitos séculos, o litoral permaneceu entregue aqueles que se dedicavam à pesca, à navegação de cabotagem ou à defesa da fronteira marítima, até ao despertar do desejo coletivo da praia, fenômeno que se iniciou em Inglaterra e França a partir meados do século XVIII e um pouco mais tarde em Portugal (segun- da metade do século XIX) (Freitas, 2007, p. 106).

Como destaca Joana Gaspar Freitas (2007), só seria possível fa- lar em configuração de atividades diárias em ambiente litorâ- neo, de forma coletiva, a partir do século XVIII. Anteriormente, não era concebível entender que as atividades diárias obtinham do mar ou da praia as orientações de uma condição de vida, ou mesmo enquanto condição de vida relativo ao que se reconhe- ce como “estilo de vida praiano”, e muito menos depender de- les. Entendimento já compartilhado por Alan Corbin (1989), ao entender que foi a partir do século XVIII que as transformações das concepções sobre essa região tornaram-se importantes para a abertura de possibilidades de seus usos, permitindo, assim, a alte- ração da percepção do ambiente, que deixa de ser compreendido como um lugar ermo, “espaço do vazio”, e se torna um espaço de práticas socialmente ativas, que comumente reconhece-se como “praia”. Consolidando-se como espaço voltado ao lazer, percebe-se a necessidade de compreender a praia para além de seu potencial turístico, ao considerar que a mesma estabelece uma relação di- reta com o uso da cidade, seja pelo processo de adensamento das áreas urbanas, que seguem às intervenções de urbanização do li- toral; seja pela apropriação da cidade, que se estrutura a partir do litoral. A praia, portanto, insere-se no contexto urbano, revelando o desejo pelo litoral. Os questionamentos em torno desse enten- dimento nos permitem refletir acerca da ideia da cidade como um espaço flexível a tais variações, e, ainda, sobre os objetivos das novas relações da cidade com a praia e o litoral.

Para pensar sobre essas questões de modo prático e atual, ana- lisa-se aqui a configuração “Orla”, especificamente a “Orla de Atalaia”, em Aracaju, no Estado de Sergipe, entendida como a conformação da área limítrofe entre o continente e o mar, a qual estabelece a conexão necessária entre a arquitetura urbana e a natureza oceânica.

A Orla de Atalaia

Uma análise do processo de construção e modificação perma- nente da Orla de Atalaia revela a cidade que a comporta e que expande suas práticas, que se satura de signos e que modifica a paisagem natural. O ambienta da praia de Atalaia começa a ser alterado a partir da década de 80, momento em que recebe um calçadão. É o início de longas e inacabadas transformações ocor- ridas nesse espaço, nos últimos 30 anos.

O Jornal da Cidade, de 12 de abril de 1980, relata a inauguração e descreve os “benefícios” recebidos pela Orla:

Na obra do novo Calçadão da Atalaia foram gastos cerca de Cr$ 28.000.000,00 (Vinte e oito milhões de cruzeiros). Conta com uma extensão de 2.400 metros por 8 metros de largura. 51 postes de iluminação com 17 metros de altura, equipados com luminárias circulares Siemens com 06 lâmpadas de 400 watts cada, além de quadras para prática de futebol e outros esportes (Jornal da Cidade nº. 2.260 - 12/04/1980).


Figura 1
Cartão Postal de Aracaju, 1990. Fonte: Acervo do Instituto Tobias Barreto

Nos anos seguintes, o fenômeno natural de “recuo oceânico”, constante na região, é acentuado. O que possibilita o surgimento de uma extensa faixa de areia ao longo da praia de Atalaia, como é possível observar no cartão postal datado de 1990. Segundo o Relatório Ambiental Simplificado (RAS, 2003), “a regressão ma- rinha e a deposição de sedimentos permitiu que a faixa do supra litoral se estendesse em muitos pontos em quase mil metros” (RAS, 2003, p. 2). Essa é a área que será objeto das intervenções seguintes. Junta-se a isso a demanda turística emergente no Nor- deste, que seria “um importante passo para o desenvolvimento turístico sustentável da Cidade de Aracaju, visando atender o turismo interno e o externo, [o que] passa pela imprescindível revitalização e expansão da Orla de Atalaia” (RAS, 2003, p. 2).

Em seguida, a primeira grande intervenção que começa a modificar a Orla à configuração atual, dá-se a partir de 1993.

O Projeto Orla foi concebido no início da década de 90 pelo então governador João Alves cuja primeira etapa foi inaugurada no fim do mandato dele, em agosto de 1994. As barracas sem nenhuma padronização dispostas ao longo da calçada deram lugar a coqueiros transplantados, quadras esportivas, calçadões, uma iluminação voltada para o mar e o famoso portal de entrada da Orla, conhecido como Arcos da Atalaia (www.jornaldacidade.net/2008/noticia. php?id=20180, Acesso em 30/11/2008).

O primeiro espaço a ser construído foi a praça dos Arcos. Este espaço, segundo Eduardo Carlomagno, arquiteto responsável pelo projeto arquitetônico, tinha, a priori, três objetivos. Ini- cialmente, demarcar um momento de mudança, de uma nova Orla, que seria um marco entre o passado e o presente. Segundo, constituir um símbolo para a cidade, algo que se entendia não haver em Aracaju. E, por último, a propositura de ser esse um espaço democrático, “algo simbólico que significaria a demo- cratização do espaço público [...] seria uma espécie de púlpito, onde as pessoas, sindicalistas, artistas... um espaço popular que qualquer um teria acesso” (Carlomagno, 2010). Os Arcos seriam um marco para o desenvolvimento da cidade, os quais simboli- zariam a Orla, e esta, por sua vez, seria, simbolicamente, o marco do desenvolvimento de Aracaju.

A partir da construção da Praça dos Arcos, a execução do Projeto Orla foi dividida em quatro etapas. A primeira etapa foi finalizada em abril de 2003 e desenvolvida pela empresa “Eduardo Carlo- magno Arquiteto e Associados”. Esse projeto previa a construção de 1.035 metros de ciclovia, 6,3 mil metros quadrados de calça- dão, 240 metros de caramanchão, 7 quadras de vôlei de praia, 370 vagas para estacionamento de veículos, mesas de jogos e bancos, e, ainda, reforma de toda a iluminação, que compreendia o trecho entre o Hotel Parque dos Coqueiros e a Passarela do Caranguejo.

A segunda etapa da Orla tinha início na Praça dos Caranguejos seguindo até a Praça dos Arcos. Neste trecho o projeto previa a construção de 736 metros de ciclovia, 5,7 mil metros quadrados de calçadão, parque infantil, 170 metros de caramanchão, duas quadras poliesportivas, um campo de beach soccer, equipamentos de ginástica, mesas de jogos e bancos, 6 mil metros quadrados de jardinagem, incluído transplante de coqueiros, além da reforma dos muros da Praça dos Arcos e do prédio do Corpo de Bombeiro.

A terceira etapa, entre a Praça dos Arcos e o Oceanário, previa em seu projeto a construção 7,3 mil metros de calçada, 1,3 mil metros ciclovia, caramanchão, mesas de jogos e bancos, 467 vagas para veículos e quadras poliesportivas. Posteriormente outros projetos foram apresentados para essa região, como por exemplo, o kartódromo.

A quarta e última etapa, entre o Oceanário e a Orlinha, era con- siderada pelo Governo do Estado como a mais frequentada da Orla, onde havia restaurantes, hotéis e pousadas. O projeto para esse setor previa a construção do Centro de Artesanato, que compreenderia uma área de 1,4 mil metros quadrados e disponibilizaria 72 boxes para comercialização de produtos artesa- nais produzidos por artesãos sergipanos. E, ainda, 941 metros de ciclovia, parque infantil, 4,2 mil metros de calçada, reforma de quatro quadras existentes e construção de mais quatro – com previsão de ser construídas com piso macio e camada amortece- dora –, 22 rampas de skates e parede de escalada. O projeto ain- da contemplava o paisagismo, sendo toda área reformada com previsão de ter palmeiras imperiais e coqueiros.

Pela descrição dos equipamentos construídos na Orla de Ata- laia é possível perceber que, do ponto de vista arquitetônico, o espaço se torna genuinamente diversificado e fluído em suas próprias estruturas, que são mudadas, ampliadas, desgastadas e destruídas pelas condições ambientais ou mesmo por ações do homem. Por outro lado, considerando os aspectos simbólicos construídos em torno da Orla, verifica-se um apelo midiático de promoção da nova paisagem, que apresenta a imagem de uma Aracaju “moderna”. Tal simbolismo reforçava a centralidade de décadas passadas, mas encorajava novos usos. Em Aracaju, as pessoas passaram identificar de modo genérico como Orla, atu- almente, os vários ambientes que anteriormente eram denomi- nados de Barreto, de praia de Atalaia e de Cinelândia.

Portanto, para seus idealizadores, a Orla teria atingido seu objetivo:

A Orla mudou o costume das pessoas, mudaram os hábitos, a cidade ficou mais cosmopolita, a autoestima do sergipano melhorou muito com essa Orla. Ele começou a admirar mais a sua cidade, se sentir mais importante perante outras cidades com essa Orla, não foi só a mudança do espaço físico, a mudança do espaço físico provocou uma mudança psicológica no sergipano. Era algo muito feio (a Orla), teve que se fazer uma maquiagem ali, teve que criar um cenário que apagasse a cor marrom do mar. Eu utilizo ali muito azul, e o azul meio que confunde o mar, o primeiro plano, aqueles azuis todos, confunde com o mar, dá uma sensação de amplidão e até de mudança de cor do mar, essa foi a intenção (Carlomagno, 2010).

Considerando a reflexão aqui proposta, a Orla de Atalaia, por sua estrutura física e simbólica, agrupa a cidade à praia e adquire uma caracterização sui generis, ou seja: ao tempo em que é fisicamente estruturada pelo urbano é simbolicamente comercializada pelo ambiente praiano que a adorna. Resultando, assim, na Orla Marketing: iconográfica à cidade de Aracaju e com potencial de comercialização da praia, que é suprimida naturalmente e evidenciada simbolicamente.

Enobrecimento Litorâneo: a praia como espetáculo

Uma análise do litoral a partir dos processos de urbanização fa- vorece a observação da Orla como interseção entre a cidade e a praia. No caso de Aracaju, o tipo predominante de alteração da paisagem natural sugere a existência de um processo de “eno- brecimento Litorâneo” (Araujo, 2012), corroborando o modelo de desenvolvimento que a literatura especializada em estudos urbanos entende por gentrification ou enobrecimento urbano (Less, Slater & Wyly, 2008).

Estudos desenvolvidos sobre o tema verificam um tipo es- pecífico de intervenção urbana, a qual objetiva alterar a pai- sagem urbana por meio da modificação das estruturas que compõem o ambiente ou da transformação arquitetônica com forte apelo visual. A paisagem passa a adequar-se às deman- das imobiliárias e turísticas, nas quais se tornam evidentes a segurança, o ordenamento e limpeza urbana. Em geral, essas intervenções são direcionadas a um público específico, o qual se apropria dos espaços e o demarca, tornando o espaço se- gregacionista (Leite, 2007; 2013). No caso específico do “eno- brecimento litorâneo”, associa-se as características típicas do enobrecimento à apropriação singular da natureza através de um duplo movimento: por um lado solapa a paisagem e supri- me elementos da natureza e, por outro, evidencia como mote publicitário. A natureza é, assim, apropriada tecnicamente, enquanto a comercialização desta paisagem modificada é va- lorizada como natural.

A apreensão analítica dos usos da Orla de Atalaia permite a ve- rificação deste processo, que altera a paisagem, e a tentativa de padronização dos usos, ao tempo em que revela a forma de apro- priação e os usos estabelecidos pelo usuário. Para tanto, apre- senta-se a dinâmica verificada na Orla de Atalaia através dos passos dos usuários que definem e informam as possibilidades de usos deste espaço.


Figura 2
Pessoas assistem ao treino de Motocross
Acervo da autora.

Definir um lugar para iniciar uma descrição da Orla de Atalaia é incorrer no mesmo problema da definição de um espaço de início sobre os usos da praia. O objetivo de se chegar ao mar pode ser atingido por quaisquer pontos de toda a extensão de uma Orla marítima. Assim como, os objetivos de se estar na Orla de Atalaia são variados, sua extensão está fragmentada por áreas temáticas – cultural, esportiva e alimentação – sugerindo ser este um sistema aberto, cujo início dos usos está relacionado ao objetivo de se estar na Orla.

O entendimento da Orla como sistema aberto decorre por analo- gia à caracterização proposta por Gilles Deleuze e Feliz Guattar- ri acerca da percepção espacial enquanto “rizoma”, ou seja, um sistema aberto que “não começa nem conclui, [que] se encon- tra sempre no meio [...] é aliança, unicamente aliança” (Deleu- ze; Guattari, 1997, p. 36). Neste sentido, escolhi alguns inícios estabelecidos pelos passos que determinam os usos da Orla, os quais não delimitam zonas rígidas de usos, mas que se intersec- cionam, correlato ao que nos informa Leite (2009) acerca do “es- paço público interstício”, por vezes torna-se possível compreen- der limites de usos similares ou de usos particularizados, e em outros momentos não se torna possível tal compreensão, como uma onda anulada impreterivelmente em um ponto qualquer.

A Orla configura-se em variadas temporalidades de usos, não é possível falar em um uso específico, mas que varia ao longo do dia. Para a presente reflexão, defini um recorte temporal que corresponde a um considerável fluxo de usuários, representa- do um dos maiores aglomerados públicos da cidade de Aracaju: as tardes dos sábados. Neste período, encontram-se banhistas, esportistas, turistas. Os variados grupos que ocupam a Orla em momentos distintos podem ser encontrados nesse período.

Seguindo o itinerário dos passos dos esportistas, encontra-se banhistas, turistas, que observam as práticas de esportes. No início da tarde é possível acompanhar os esportes de competi- ção. Verifica-se o treino de kart, de motocross e tênis. Estes es- paços estão lotados por competidores que tentam superar seus limites físicos, a cada volta ou a cada saque. Cabe aos visitantes assistir, muitos ficam ao redor observando o desempenho dos competidores. Enquanto outros passam e se sentem, às vezes, incomodados com o barulho dos motores dos karts, ou com o barulho dos skatistas.

Os surfistas têm como ponto de encontro a Orla, ali se agrupam e seguem ao mar. Um quiosque é o ponto de apoio. A Orla pode- ria ser para eles apenas um “lugar de passagem” (Arantes, 1997), afinal se interessam pelo mar, mas, ao contrário, os usos conse- guem demarcar o espaço atribuindo-lhe sentido e tornando-o um “lugar” (Leite, 2007), cuja relação de pertença possibilita práticas distintas de outros usos da Orla, este é o lugar “dos surfistas”.


Figura 3
Passarela de acesso à praia..
Acervo da Autora


Figura 4
Surfistas no Orla
Acervo da Autora

Um quiosque que possibilita banho em um chuveiro mediante o pagamento de uma quantia simbólica, a passarela de madeira que ajuda no acesso à praia e o estacionamento são os princi- pais atrativos. São 500 metros de passarela e mais 500 metros de areia, em média, até chegar ao mar. Aqui é o “hawaizinho”, o sentido de estar na praia é extremamente marcante, os shorts, usados para “pegar onda” aqui são retirados, e de sunga tomam banho no chuveiro para “retirar o sal”. Na praia “tudo pode”, o “mar é a liberdade”, aqui se fica à vontade, os surfistas não se percebem em uma Orla urbanizada, dizem gostar porque podem estacionar o carro próximo e ouvir o reggae.

Predominantemente, os frequentadores desse espaço chegam de carro, mas também chegam de ônibus ou de bicicleta. Segun- do um senhor que comercializa lanches há 7 anos no mesmo local: - “tem desde filho de dono de hotel até pobre. Afirma que uns estudam, e a maioria “não quer nada com a vida”. Após che- gar da praia eles “tiram o sal” no chuveiro, e acomodam-se às mesas, compram lanche e ficam conversando, diz o comerciante. O carro passa a ser utilizado como “carro de som”, o reggae é o ritmo que não para de tocar, até que os policiais passem e man- dem fechar o fundo do carro. “Aqui eles fazem o que querem. Fu- mam uma maconha danada, os que têm dinheiro compram para os que não têm, eles ficam pedindo. Um dia desses uma policial me perguntou o que deveria fazer com esses meninos, eu disse: deixa os meninos, deixa...”, relata.

Toda a liberdade praiana demandada pelos surfistas parece não ser de toda contemplada, não demora muito e o policiamento da Orla passa pelo local, momento em que espaço se “reorienta”. O som baixa, alguns seguem aos seus carros, outros pegam as pranchas espalhadas pelas gramas e calçadas, outros, suas bici- cletas, e saem. A única ação direta do policial é a verificação dos documentos do dono do carro com som ligado e o pedido para desligar. Com a saída dos policiais o espaço volta a se reorgani- zar pelos usos estabelecidos pelos usuários.

Os rituais simbólicos que permeiam as práticas dos surfistas, que os configuram enquanto grupo distinto, parecem se exaurir ao tempo em que se demarcam na Orla de Atalaia requalificada. O que em determinados momentos marca-se como uso, em outros demonstra ser um contra-uso, em um jogo de movimentos, similar aos das ondas do mar, impossíveis de se delimitar.

O espaço ocupado por eles não foi projetado para esse uso, com- porta um monumento que é recorrentemente utilizado por tu- rista, circundado por um restaurante de massas e quadras es- portivas, mas, mesmo assim, vão se estabelecendo estratégias de demarcação do espaço, tornando-o reconhecido como o lu- gar dos surfistas. Lugar que provoca olhares de reprovação dos frequentadores do ambiente ao lado, que as vezes desdenham, outras, buscam ignorar o lugar dos surfistas.

O ambiente seguinte, o Monumento pela Nacionalidade, “divide mundos” em um mesmo espaço, para utilizar uma expressão de Antonio Arantes (1997) em seu estudo sobre a Praça da Sé. A di- visão da Orla em “cenários” poderia ter sido feita em “estúdios”, enquanto local propício para apreensão de imagens para um de- terminado fim, já que a Orla é entendida, antes de qualquer uso, como um conjunto arquitetônico que compõe o ambiente ideal para fotografias. E, não apenas de turistas, mas para compor o álbum de casamento, de formatura ou para registrar uma rela- ção de amizade. Contudo, o termo cenário faz-se mais adequado por considerar os atores em suas ações (Leite, 2010), não ape- nas uma montagem estática de elementos que apenas aguardam a fotografia.

Esse é um espaço que se configura como um lugar interstício, as pessoas estão preocupadas com as fotos, e aguardam pacien- temente sua vez de erguer a mão como a do monumento, subir nas costas de Tiradentes, na saia de Princesa Izabel, cujos laços de nacionalidade demonstram ter se esvaído, ao menos com os monumentos.


Figura 5
Pessoas são fotografadas entre os monumentos pela nacionalidade.
Acervo da Autora

Mesmo assim, os olhares se entrecruzam, as calçadas da Orla são simbolicamente separadas, não há paredes, o que possibilita en- contros de pessoas com objetivos diferentes.

O surfista seminu cruza-se com os alinhados casais que seguem ao restaurante. Olhares discretos não permitem um caminhar li- vre, o simples levantar de cabeça sugere uma negação. Mas, cada um segue aos seus lugares, a Orla os comporta em sua diversida- de, seja preservando seus olhares entre ambientes climatizados, seja expondo-os a uma visão geral do cotidiano, aos que assim o queira.

Poucos são os usuários do restaurante que caminham por ou- tros lugares da Orla. O estacionamento que serve aos surfistas também serve ao restaurante, sendo delimitado em sua direção. Uma linha imaginária guia os surfistas a estacionar na direçãodo quiosque, enquanto que os usuários dos restaurantes são guiados ao estacionamento na direção do restaurante.

Percebe-se um surfista que deixa a prancha no carro e calça um tênis, segue em direção à Praça dos Arcos, sigo seu caminhar, percebo seu itinerário. A aglomeração na Praça dos Arcos chama atenção, num ato de distração o surfista é perdido de vista e, en- tão, passo a observar este espaço. O que uma “praça” à beira da praia poderia dizer sobre a alteração dos usos da cidade?


Figura 6
Surfistas chegando à Orla e se- guindo à praia.
Acervo da Autora


Figura 7
Pessoas chegando à Orla e seguindo ao restaurante de massas. Atalaia
Acervo da Autora

O fluxo intenso de pessoas guia o entendimento daquele como um “lugar de passagem” (Arantes, 1997), considerando que pouco se permanece nesse local, cuja maioria das pessoas que o utiliza segue por uma passarela de madeira até a praia, poucos param à espera de um conhecido, ou para adquirir bronzeadores com os vendedores ambulantes, que, apesar de ficar mais tempo que os passantes, não têm autorização para o comércio neste local, sendo logo convidados a se retirar pela Superintendência da Orla Marítima de Aracaju (Superoma).


Figura 8
Caminhantes pela Praça dos Arcos.
Acervo da Autora.

As pessoas que transitam nesse local vestem geralmente shorts ou saias e blusas, sobrepostos às roupas de banho – sungas, biquínis e maiôs. O fluxo é bem direcionado, chegam através da Avenida Santos Dumont, vindos do Terminal ou pela diagonal direita seguindo do ponto de ônibus.

Após perceber uma ordenação dos fluxos, direciono o olhar para as arestas que se apresentam de forma angulosa, ou seja, desagradáveis ao olhar, que por ora só atentava às repetições. Não é possível acompanhar o tempo todo como as pessoas chegam à praça dos Arcos em decorrência do fluxo intenso; algumas chegavam de carro, naquele momento os estacionamentos que circundam a praça já estavam com a lotação completa, outras seguem dos hotéis e pousadas que margeiam a Orla; ou, ainda, saindo de ruas outras que dão acesso à Orla, o que sugere serem moradores do Bairro Atalaia.


Figura 9
Caminhantes passando pela Praça dos Arcos.
Arquivo Pessoal.

O acesso à praia pela passarela de madeira, o ir à praia, já se exauriu enquanto percepção explicativa destes usos, algumas pessoas apenas caminham pela calçada que compõe o cenário da Orla, ou fazem uma “caminhada” esportiva. Outras, simples- mente seguem de forma contemplativa, vestidos de calça, con- trapondo a regularidade inicial, pelo menos neste espaço, dos shorts e saias, enquanto que outras não perdem o registro foto- gráfico aos pés dos Arcos. Passam ainda os ciclistas, os carrinhos de bebês, o malabarista que tenta conseguir dinheiro com sua performance, o pedinte, o menino que vende doce, o surfista, en- tre outros. Podem-se apresentar muitos outros além do banhista que passa pelos arcos à praia, a desordem do fluxo, que embora predominantemente paralelo – da avenida à praia, transforma-se em diagonal, transversal, perpendicular, trafegando-se em vários sentidos e ainda pelos mais variados motivos.

Aqui há uma confluência de sentidos, em que o urbano e o praia- no se encontram, demonstrando ser este um “espaço liminar”, cuja localização entrecruza “fronteiras simbólicas que separam, aproximam, nivelam, hierarquizam ou [...] ordenam as catego- rias e os grupos sociais nas suas múltiplas relações” (Arantes, 1997, p. 260), formando o que o autor chama de territorialida- des interrelacionadas na composição do “lugar público”.

Talvez seja esse o espaço da Orla de Atalaia que retém um pro- cesso de “sociação” (Simmel, 2006) mais contundente, em que a permissibilidade de convivência com o outro se eleva pela con- fluência do sentido público urbano e do sentido de estar em pú- blico na praia. Essa não é uma praça qualquer da cidade em que os olhares constrangedores inibiriam um transeunte de biquíni, por exemplo.


Figura 10
Usos da Praça dos Arcos.
Acervo da Autora

Deixo a praça em sua latente confluência e sigo ao próximo ce- nário da Orla. Lá reencontro o surfista, agora ele utiliza os equi- pamentos de musculação. O sol começa a se esconder e as som- bras possibilitam o uso desses equipamentos que não estão tão quentes em decorrência da incidência solar. As quadras dividem esse espaço, os frequentadores olham os jogos que se iniciam timidamente. As bicicletas começam a parar no entorno, pessoas chegam de carro, de moto ou andando. O jogo desenvolve-se em suas próprias dinâmicas, o movimento do corpo também tem a sua vez, o tênis e o short do futebol pouco estranha as sungas e roupas coladas ao corpo de quem faz musculação. As pessoas que passam os observam, seguem, não há disputas latentes pelo espaço, é um espaço de visibilidade, todos se olham, se mos- tram, são vistos. A mais pertinente repetição de ação aqui é o olhar, em que começa a ser revelada a necessidade de ser visto, os olhares não são apenas para ver, mas para se certifiquem que estão sendo vistos.

As pessoas estão sempre se entrecruzando, não há início ou fim para os passos na Orla, as pessoas que por aqui passam seguem para vários espaços, entre eles, para a Passarela do Caranguejo, mais um cenário da Orla. No estacionamento so- bram poucas vagas, pois estão ocupadas pelos frequentado- res dos bares. Ao lado, no parque infantil, uma criança desafia o sol e de frente para o mar balança-se despretensiosamente, quando o calor parece incomodar, abandona o balanço e corre ao encontro do avô que descansa em um banco, sob a sombra do coqueiro e escuta uma música suave que aponta de seu carro parado no estacionamento. O avô parece se desviar ao movimento de pessoas que transitam de um lado para o outro da avenida. O estacionar de cada carro é acompanhado pelo senhor, o olhar curioso segue as pessoas que se direcionam aos bares, ou ao calçadão, levando a uma escolha entre pos- sibilidades. Mais uma vez o olhar se perde, volta-se ao neto e retorna a outra pessoa que estaciona. Poucas pessoas per- cebem que estão sendo observadas por esse senhor, em ge- ral, estão com a atenção voltada para os bares ou amigos que aguardam. Após estacionar, uma mulher atende o telefone e afirma estar na praia, num segundo momento, parece respon- der a uma pergunta que exige um posicionamento mais dire- to, então afirma estar na Orla, e especificamente no “Amanda”, na Passarela do Caranguejo.


Figura 11
Vestimentas comuns do espaço urbano e vestimentas que usualmente apresentam-se no espaço da Orla
Acervo da Autora

Os passos escorregam no paralelepípedo do estacionamento que não se adéqua ao caminhar em saltos, muito menos nas pedras portuguesas da calçada, mas logo se alinham ao asfalto, voltam a se desalinhar no canteiro com suas pedras, retomam o alinhamento do asfalto e novamente se desalinham em mais uma calçada, e, enfim, acomoda-se sob uma das muitas mesas que preenchem os bares da Passarela do Caranguejo. Os passos menos desconcertantes também seguem aos bares, advindos da praia estão com as roupas úmidas e sandálias, mas ocupam os mesmos espaços dos saltos altos.

Ali as pessoas batem papo, percebem os outros e comem caran- guejo, o batucar dos martelos de madeira confunde-se às falas e à música, que insiste em ser um som “ambiente”.


Figura 12
Vendedor ambulante na Passarela do Caranguejo.
Acervo da Autora

Um colorido chama atenção, é o vendedor de boias, que tran- sita juntamente com os vendedores de castanha torrada e de amendoim cozido pela calçada que beira os bares. Entre um caranguejo e outro, entre petiscos, consome-se castanha e amen- doim. Esse é um espaço que ainda guarda as características que se entende como sendo de um ambiente praiano, o consumo de outrora se repete, a confluência de aracajuanos, sergipanos e tu- ristas, os bancos e as mesas em madeira, e claro, a brisa do mar, cujos bares abertos possibilitam sua circulação no ambiente.

A passarela do caranguejo revela-se um “lugar” (Leite, 2007). As relações envolvem notoriamente o consumo, e aqueles que não podem consumir não necessariamente estão limitados ao mes- mo sentimento. Os pedintes estão por perto, negados, são perce- bidos como uma ação de “contra-uso” (Leite, 2007), disputam o espaço com aqueles que estão confortavelmente encaixados nos usos atribuídos pelos órgãos públicos e iniciativa privada. Mas não se intimidam, adentram aos bares e às vezes são retirados, outras não. Pedem de mesa em mesa, distribuem papéis expondo suas condições físicas e sociais, mas poucos são atendidos, alguns nem pegam os papéis, outros os leem e poucos devolvem com algum dinheiro.


Figura 13
Jovens caminham em direção à praia enquanto o casal segue à passarela do Caranguejo.
Acervo da Autora

As pessoas transitam de um lado para o outro. Um quiosque para a venda de coco refresca aqueles que por ali transitam. Ao sentar e observar o pequeno fluxo de turistas que saem dos hotéis e de banhistas que da praia vão aos bares da Passarela do Caranguejo, avisto poucos caminhantes e os ciclistas, que desafiam a alta temperatura. Algumas bicicletas colocadas próximas aos coqueiros são dos guardadores de carros. Estes demarcam seus espaços, tornam lugares, a sombras dos coqueiros e do banheiro público, sentam-se na grama e fazem suas refeições. Ali descansam e conversam, são contra-usuários, do local de trabalho, que é o estacionamento da Orla, seguem ao descanso, parecem se esconder em meio à natureza ordenada e aos prédios da Orla.


Figura 14
Lavadores de carro almoçam ao fundo do Banheiro público
Acervo da Autora

Um casal de turista, com uma criança, segue a partir da Passarela do Caranguejo pelo calçadão, passa pela Praça dos Arcos e segue para o “Mundo da Criança”, este é um cenário voltado ao consu- mo infantil. Em nenhum outro horário há tantas crianças na Orla como nos sábados à tarde. O parque agora é na Orla, um portal em forma de arco-íris recepciona as crianças, que ao adentrar se deparam com um carrossel. O espaço é gerenciado pela As- sociação de Proprietários de brinquedos da Orla (APBO), alguns brinquedos são pagos e outros, como os localizados em outros espaços da Orla, não. Além do carrossel, uma área é reservada para a comercialização de alguns serviços, tais como a locação de triciclo e mini-buggy para o uso infantil. A presença de crianças não torna o espaço menos complexo, o uso de bens como comunicadores sociais também é presente neste lugar. Crianças usam os brinquedos pagos, enquanto outras apenas o querem, e limitam-se ao uso dos brinquedos gratuitos.


Figura 15
Espaço destinado ao uso infantil.
Acervo da Autora

Os miniveículos circulam intensamente sob os olhares dos ins- trutores, dos pais e de algumas crianças que observam. Os brin quedos pagos tornam-se mais atrativos do que a gangorra, o escorregador ou o balanço. O leve som emitido pelos motores elétricos dos minicarros confunde-se com o insistente ronco dos motores dos karts.

Daqui algumas pessoas seguem às lanchonetes próximas ou à região dos lagos. Considerando a sua dimensão, esta área com- porta diversos usos. As pessoas apenas sentam à beira de um dos lagos e contemplam a beleza natural construída, ao fundo, o mar também é contemplado, o vento e o barulho do mar sin- tetizam a paisagem. Os variados usos possibilitam a demarca- ção temporalizada dos espaços, é possível ver um “lugar” (Leite, 2007) no espaço, que em alguns minutos podem não mais estar. Conversando com um grupo de jovens que está tomando vinho à beira do lago, verifico que sempre se encontram neste mesmo local aos sábados quando decidem ir à Orla. O lugar é demarca- do simbolicamente, mas em pouco tempo saem e o espaço volta-se ao vazio, as “territorialidades” são perenes, fluídas, este é um espaço que tem seus usos constantemente variados.


Figura 16
Vendedor de picolé na região dos lagos
Acervo da Autora.

O sol se põe e a noite traz com ela a iluminação artificial. Outro grupo de jovens está sentado em um banco e, também, bebe vi- nho, observa o movimento, que não é tão tranquilo. Agora os ba- nhistas não são tão frequentes, mas os caminhantes esportistas continuam, as quadras estão sendo usadas, os bares e restauran- tes garantem o público, além das barracas que servem comidas típicas. Mas todos estão em seus “lugares”, parecem guiarem-se aos locais que expressam seus interesses de consumo, onde po- dem dividir com seus similares sua exposição.


Figura 17
Jovens bebendo na região dos lados.
Acervo da Autora

Os espaços “intersticiais”, que estão entre os lugares, demons- tram que a apaziguadora rotina da diversidade se dilui, olhares de reprovação ou passos acelerados denunciam uma guerra de lugares. Do ponto de vista da arquitetura, o espaço possibilita o uso de muitos, mas por outro lado, estes muitos percebem tem- porariamente seu espaço e o distingue dos demais.

Para utilizar a quadra é preciso seguir as regras estabelecidas pelos grupos, tem time “certo” que joga uma vez por semana e disputam campeonatos, tem as meninas que treinam às terças e disputam um campeonato nordestino de futsal, moram no bairro Bugio, na zona norte da cidade, deslocam-se para a Orla em busca da qualidade dos equipamentos que não há em seus bairros. Há, ainda, em maior recorrência, as partidas com “linha fora”. Em conversa com um rapaz que acaba uma partida, ele ex- plica que qualquer um que chegar pode jogar, é só montar uma linha e esperar. Explica ainda que a maioria dos que estão ali é morador do bairro Coroa do Meio e Atalaia, da região próxima, várias bicicletas estão espalhadas. Pergunto sobre os lugares da Orla que ele frequenta, diz que vai mais à quadra e à uma lanchonete “lá na frente”. Pergunto especificamente qual, diz que vai beber com amigos, na Orlinha. Afirma não gostar de beber nos bares próximos à quadra que utiliza, pois, além de mais caros, entende que só tem gente “besta”.


Figura 18
Uso noturno da quadra.
Acervo da Autora

Essa quadra fica próxima do restaurante com deck, aguardo al- guns usuários saírem para perguntar se eles vão a outros luga- res na Orla, os quais afirmaram que às vezes vão à Passarela do Caranguejo, quando querem comer caranguejo, ou à “feirinha”, quando querem comer macaxeira de forno, mas que não cami- nham pela Orla, estacionam o carro próximo ao local. Afirmam gostar do deck porque possibilita melhor visibilidade da praia e do movimento da avenida, além da brisa do mar. Embora ques- tionando sobre a possibilidade de ver a praia, algo que não é possível do deck, entende-se que não há importância, conside- rando que é possível observar o movimento de pessoas, em que também percebo que junto à possibilidade de ver, aqueles que estão no deck também são vistos.


Figura 19
Uso noturno do restaurante - Deck.
Acervo da Autora

Na praça de skate as disputas pelo espaço continuam. O espaço reservado à prática de skate é comumente “invadido” por jovens com bicicletas, que aproveitam os equipamentos que formam um circuito para fazer as manobras. Segundo um usuário mo- rador do bairro Bugio há “uma certa disputa”, embora nunca te- nham chegado às vias de fato. Afirma que quando a presença das bicicletas começa a incomodar, alguém sai discretamente e avisa os policiais, que logo aparecem para manter o uso proposto ao espaço – “Não quero confusão com ninguém, mas também quero treinar e com eles aqui não dá”.

Estão todos na Orla, mas cada um no seu lugar. Muitas pessoas caminham à noite na Orla, passeiam e encontram amigos. Em conversas esporádicas com pessoas que caminham por esses lugares, há recorrências nas respostas de ser este um espaço onde é possível encontrar pessoas conhecidas, uma senhora diz: “tá todo mundo na Orla, tem outro lugar pra ir em Aracaju?”. A Orla diversifica-se pelos aracajuanos, pelos sergipanos, por turistas e ainda pelos hóspedes dos hotéis que têm outros objetivos na cidade, como os que estão à trabalho, mas acabam frequentando o local por ser esta a área que concentra os hotéis da cidade. Esses, por sua vez, também são recepcionados pelo espaço que tem como característica a diversidade de usos, a Orla foi apro- priada pelos aracajuanos e turistas.


Figura 20
Skatista incomoda-se com a bicileta
Acervo da Autora

Um vendedor de pulseira confecciona seus produtos para co- mercializar, diz que não é bem visto ali. Afirma que as pesso- as compram os produtos, mas não é muito, e que, dependendo do dia, os policiais mandam circular – “A gente fica aqui até eles passarem e espera o que vão dizer”. Diz, ainda, que muita gente imagina que ele vai roubar – “Só porque não estou arrumadinho? Eu sou um trabalhador”, conclui.

Embora a Orla seja extensa e o espaço comporte variados usos, o torna tenso e disputado. Seja através dos contra-usos, como o do vendedor e dos jovens com bicicleta na praça de skate, seja pelos estilos de vida distintos que são evidenciados na Orla, demarcados simbolicamente e que se entrecruzam nos entre-lugares.


Figura 21
Vendedor ambulante.
Acervo da Autora

A fonte luminosa é um espaço voltado ao turista, ao fundo está a Praça de Eventos da Orla. Voltando-se à fonte luminosa, ao per- cebê-la, acompanhamos a sintonia de cores e jatos de água com a música clássica que ecoa das caixas de som acopladas à fonte. Muitos ainda passam por ali, tiram foto, sentam-se nos bancos ao seu redor e acompanham a sinfonia que ecoa no espaço.


Figura 22
Pessoas treinam boxe
Acervo da Autora

erifico as horas, são 23h35, a movimentação nesse espaço ain- da é intensa, percebo que os carros começam a passar lentamen- te. De repente a fonte apaga, a música clássica é desligada, os jatos não jorram mais, as pessoas dispersam, como num passe de mágica se estabelece um vazio nesse espaço. Seguindo a um local que propicie uma visão de grande parte da Orla, até onde a vista alcance, percebe-se que muitos bares já estão fechados, embora algumas partes ainda estão iluminadas, a escuridão pre- valece. Os carros diminuíram e subitamente carros da polícia parecem fazer uma perseguição, param do outro lado da ave- nida, descem do carro e seguem as ruas escuras, outros carros chegam e aguardam, falam ao rádio. O policiamento na Orla é intenso, às vezes destoa da morosidade que paira nos ares deste espaço, ao longo da Passarela do Caranguejo é possível ver po- liciais fortemente armados expondo o armamento à população, não é o policialmente da delegacia de turismo, são os policiais da patrulha ostensiva, que buscam intimidar as ações que resultam em roubos e lesões corporais, que se dão em decorrência dos assaltos.

A magia dos cenários da Orla parece mesmo ter se esvaído na madrugada, uma área do outro lado da rua agora se reserva à prostituição. A essa hora as pessoas envolvidas não são inco- modadas, durante o dia são “convidadas” a se retirar da Orla e seguir às ruas secundárias. Contra-usam o espaço e exprimem outro modo de vida, que se aproxima de todos os outros usos, corroborando ao sentido de ser este um espaço dissonante.

Persiste-se nos usos da madrugada, seguindo à última caminha- da pela Orla, cruza-se com pessoas que sinuosamente ainda ca- minham por esse espaço, passos bêbados vagam visivelmente a essa hora. Na quadra ainda estão alguns jogadores, que dizem jogar durante toda a noite: “virar a noite às vezes”.

Considerações Finais

As intervenções urbanas no litoral, que alteram a paisagem e os usos, podem pensadas à luz das análises que reconhecem os processos de gentrification ou de “enobrecimento urbano”, as quais identificam a forma racionalizante com a qual atuam os agentes promotores de tais intervenções. Estas intervenções, segundo Sharon Zukin, são estabelecidas a partir de “pressões para ajustes às normas do mercado global” (Zukin, 2000, p. 105), que têm criado “reestruturações urbanas surpreendentemente similares” (Ibid. p. 105). As similaridades buscam reproduzir paisagens que tornam um espaço consumível, diferenciando-os com aspectos particularizados das regiões que os comportam. Em relação a isso, Leite afirma que “a mass media trata a cultura como mercadoria e, da mesma forma que o Gentrification, orien- ta sua atuação para as demandas do mercado, cujos usuários são igualmente considerados consumidores” (Leite, 2007, p. 69).

No sentido apresentado por ambos, a elasticidade contida na pró- pria noção de urbanidade possibilitaria um entendimento das prá- ticas realizadas na praia como simplesmente urbana. Conquanto, o sonar da praia aparenta ter uma frequência mais intensa e ativa em relação a outros espaços da cidade, que se asseguram simples- mente como passivos às suas emissões. Nesta perspectiva, a cidade que analisamos, que passa a ser adjetivada como “cidade praiana”, é aquela que é percebida pelo sonar da praia em uma contínua ten- são com o urbano. A cidade é entendida, assim, como polifônica, capaz de abarcar as variadas práticas que se desenvolvem em seu entorno. As tensões promovem uma polifonia na cidade, são os va- riados sentidos em uma mesma cidade, similar à noção de polifonia das cidades de Massimo Canevacci (1997), que afirma, a partir da ideia de polifonia de Mikhail Bakhtin, que a objetiva visualidade da cidade emite uma extrema ambivalência emotiva.

Os cenários da Orla se assemelham a percepção da cidade como o cinema, apresentada por Canevacci (1997), o qual entende que a cidade comunica-se através de vozes, não apenas dos persona- gens, mas por toda sua estrutura física e simbólica, que provoca uma “irrepresentabilidade simbólica”. A noção de polifonia de- corre desse entendimento, cuja cidade expõe variadas vozes de forma simultânea através de suas avenidas, shoppings, lojas: “a cidade em geral e a comunicação urbana em particular compa- ram-se a um coro que canta com uma multiplicidade de vozes autônomas que se cruzam, relacionam-se, sobrepõem-se umas às outras, isolam-se ou se contrastam” (Canevacci, 1997, p. 07). Essas vozes se concentram nos variados cenários da Orla, con- templando uma demanda dos moradores da cidade, que buscam neste espaço a realização de seus variados desejos e atividades.

A estética da paisagem urbana construída no litoral remete à própria fusão físico-simbólica da noção de praia. Canevacci pos- sibilita uma reflexão que induz a pensar a assimilação dessa pai- sagem arquitetônica como praia quando nos fala de memórias afetivas, considerando que se participa da cidade como atores ou espectadores, e assimilamos determinado fragmento da ci- dade de maneiras próprias. O que permitiria ir à Orla enquanto estrutura física e rememorar a praia subposta:

Uma cidade se constitui também pelo conjunto de recorda ções que dela emerge assim que nosso relacionamento com ela é restabelecido. O que faz com que a cidade se anime com nossas recordações. E que ela seja também agida por nós, que não somos unicamente espectadores urbanos, mas sim também atores que continuamente dialogamos com os seus muros, com as calçadas de mosaicos ondulados, com uma seringueira que sobreviveu com majestade monumen- tal no meio de uma rua (Canevacci, 1997, p. 22).

A Orla de Atalaia, enquanto uma cena de Aracaju, tornou-se uma centralidade da cidade. Confirmando o desejo pela beira-mar, estar na Orla pode ser considerada uma das mais contunden- tes experiências da modernidade de convivência pública. Apre- senta-se, então, como um espaço de lazer da cidade. Em certa medida, a ideia de lazer corresponde à liberdade do indivíduo em conduzir livremente determinados momentos de sua vida, encontrado no momento que se diferencia da rotina de trabalho e obrigações domésticas, a possibilidade de conduzir atividades prazerosas não obrigatórias.

Nesse sentido, busquei analisar o espaço urbano da Orla enquan- to produtor de práticas e entender como as sociabilidades se distribuem no espaço orientado ao consumo. A Orla, por defini- ção, agrupa-se à cidade com potência polifônica, capaz de abar- car manifestações múltiplas do seu entorno. As intervenções ur- banas no litoral acabam por evidenciar práticas específicas que confluem as práticas do espaço urbano, mas que reconhecem a retenção simbólica do sentido de estar na praia. É, exatamente nessa retenção simbólica que reside a complexidade dos usos da Orla de Atalaia, além dos traços de urbanização da cidade que comporta suas práticas, abarca determinadas práticas do espaço praiano. Entretanto, fica evidente que o resultado “Orla” expõe demarcações territoriais e simbólicas em decorrência dos tipos dos consumos possíveis a partir da estrutura física que dispõe.

Assim, o processo de Enobrecimento Litorâneo apresenta uma urbanização que retém simbolicamente o sentido de estar na praia, revelando usos e contra-usos (Leite, 2007) em uma paisa- gem que foge a tutela simbólica dos traços urbanos revelado no cotidiano da cidade polifônica. A Orla de Atalaia, pela sua com- plexa dinâmica, pode ser entendida à luz da expressão utilizada por Gilles Deleuze, de quilt patchwok, uma colcha de retalhos, cuja estrutura física e as práticas dos usuários permitem um mosaico de “lugares” (Leite, 2007) que são emendados por seus “espaços intersticiais”, pública por esses encontros de diferen- tes, com práticas diversas, cujo início e fim não podem ser deli- mitados apenas como práticas praianas, pela relação intrínseca que estabelece com a vida urbana.

Referências

Arantes, Antonio. A Guerra dos Lugares: fronteiras simbólicas e liminaridade no espaço urbano de São Paulo. In: Fortuna, Carlos (org) Cidade, Cultu- ra e Globalização. Ensaios de sociologia. Oeiras, Celta Editora, 1997.



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