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“Como as Democracias Morrem”: um Livro Assustadoramente Familiar
Revista TOMO, núm. 34, 2019
Universidade Federal de Sergipe

Resenhas

Revista TOMO
Universidade Federal de Sergipe, Brasil
ISSN-e: 1517-4549
Periodicidade: Semestral
núm. 34, 2019

Recepção: 24 Outubro 2018

Aprovação: 13 Dezembro 2018

Levitsky Steven, Ziblatt Daniel. Como as democracias morrem. 2018. Rio de Janeiro. Zahar. 272pp.. 9788537818008

Resenha

Na epígrafe de “As origens do Totalitarismo”, Hannah Arendt (1989, p. 7) cita uma passagem da obra de Karl Jaspers que diz que não devemos “almejar nem os que passaram nem os que virão. [Pois] importa ser de seu próprio tempo”. Assumindo todos os riscos de uma afirmação tão peremptória – e provavelmente apressada –, diria que dificilmente há hoje uma obra mais “de seu próprio tempo” do que “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.

Levitsky e Ziblatt são professores de Ciências Políticas da Harvard University e desenvolvem pesquisas sobre política no mundo em desenvolvimento. Os interesses de pesquisa de Steven Levitisky se concentram nos debates sobre partidos políticos e sistemas partidários; autoritarismos e processos de democratização; e ins- tituições políticas informais, tendo como foco empírico a Améri- ca Latina. Daniel Ziblatt estuda a política na Europa do séc. XIX aos dias atuais para discutir processos de democratização, tran- sição de regimes políticos e partidos políticos. Em “Como as de- mocracias morrem”, os autores mobilizam seus conhecimentos sobre processos de ascensão de regimes autoritários nesses dois contextos para entender, numa perspectiva comparada, as atuais ameaças à sólida democracia dos Estados Unidos1.

Nas páginas do livro, os autores defendem a tese de que hoje as democracias colapsam não apenas pela via da violência, como frequentemente ocorreu através no século XX. A imagem do mi- litar apontando canhões para governos civis que se forma em nossas mentes quando falamos em um golpe está ficando anacrônica. Paradoxalmente, hoje, mais do que nunca, “o retrocesso democrático começa nas urnas” (p. 16). São figuras autoritárias que, legitimamente eleitas, aos poucos vão minando as democracias de dentro, subvertendo suas instituições para se manter no poder. Não se trata mais de um golpe fulminante, mas de uma lenta corrosão que visa manter um verniz de legitimidade e normalidade das instituições quando estas estão corrompidas quanto aos seus propósitos e funcionamento.

Esses líderes autocráticos, como os chamam os autores, não es- condem em nenhum momento suas tendências autoritárias. A partir da obra de outro cientista político, Juan Linz, The breaks- down of democracies (1978), os autores elaboram uma tipolo- gia de comportamentos com os quais devemos ficar alerta: 1. Rejeição das regras do jogo democrático; 2. Negação da legitimidade dos oponentes políticos; 3. Encorajamento da violência ou tolerância para com ela; 4. Propensão para restringir liber- dades civis dos oponentes, incluindo a mídia. Todos estes sinais costumam se manifestar antes que os autocratas cheguem ao poder. Eles não se apresentam como ovelhas democráticas que posteriormente se revelam lobos autoritários. Ao contrário, são e sempre se mostraram como lobos autoritários e vorazes. Na obra, os autores citam diversos casos de ascensão de autocratas para demonstrar esse ponto2.

Considerando que essas figuras não disfarçam suas intenções, a seguinte pergunta se impõe: sob quais condições elas conseguem se eleger em um regime democrático? Levitsky e Ziblatt argumentam que esses autocratas não necessitam de crises para surgirem. A obra cita vários deles ao longo da história dos EUA. No Brasil também um político ultranacionalista foi deputado federal e can didato à presidência no auge da Nova República – Enéas Carneiro. Contudo, em situações normais, líderes autoritários são afastados de posições centrais do poder pelas elites partidárias estabeleci- das e comprometidas com o jogo democrático.

Entretanto, é em contextos de crises econômicas e políticas que eles ganham espaço. Sobretudo quando as elites partidárias, vi- sando vencer seus adversários, abrem mão de seus princípios democráticos e apoiam candidaturas de autocratas. Evidente- mente, esse apoio não parte somente das elites políticas, mas de setores de todas as elites que levados por seus próprios interesses se mobilizam em torno do autocrata, acreditando que poderão mantê-lo sob controle.

A história mostra que não é bem isso que ocorre. Uma vez no poder, o autocrata passa a agir para subverter a democracia e manter definitivamente sua posição. Levitsky e Ziblatt mostram que o processo de desintegração das democracias costuma se- guir três métodos básicos. O primeiro é a captura dos árbitros, isto é, agir para que juízes aliados passem a compor a maioria nos tribunais superiores. A finalidade disso é conferir legalidade a todos os atos do poder executivo. É nessa manobra, por exem- plo, que Nicolás Maduro legitima seu poder na Venezuela.

Com o judiciário subjugado, passa-se a neutralizar a oposição. Atualmente, isso não significa a eliminação total do dissenso, mas a redução das forças oposicionistas de modo que as impeça de prejudicar seriamente o governo. Assim fazendo, os regimes autoritários mantêm formalmente a normalidade institucional. Os métodos dessa tática são diversos: desde a compra de opositores com benefícios conferidos pelo Estado à perseguição judicial e confisco de bens. Diversos são também seus alvos: po líticos, empresários que financiam a oposição, meios de comunicação, etc.

Finalmente, os autocratas passam a reescrever regras que regulam as eleições ou a atuação dos demais poderes. Isso ocorre através de convocação de assembleias constituintes ou reformas constitucionais e mudança de regras eleitorais para garantir maiorias nas casas legislativas. Como mostram os autores, essas mudanças são justificadas em nome de benefícios para a população, porém escondem “armadilhas” que permitem autoritários manter o poder por décadas.

Como exposto anteriormente, Levitsky e Ziblatt argumentam que autocratas chegam ao poder em momentos de crises, quan do as elites partidárias contradizem princípios democráticos básicos. Estes princípios básicos, ou “regras não escritas da polí tica”, como preferem os autores, são a tolerância mútua e a reser va institucional. Criados a partir da observação da experiência democrática norte-americana, esses conceitos são mobilizados – a meu ver com sucesso – para analisar crises democráticas em diversos contextos históricos e geográficos.

O primeiro desses conceitos, a tolerância mútua, consiste em tratar a divergência como adversária, mas não como inimiga. Significa que, por mais que se discorde da oposição, é preciso reconhecer a legitimidade de seus posicionamentos. Desta forma, a divergência não é vista como ameaça existencial, o que evita a polarização extremada da política que inviabiliza o diálogo e a cooperação. Em suma, tolerância mútua é um concordar em discordar sem o qual a democracia é impossível.

Já reserva institucional é a moderação no uso dos dispositivos constitucionais de modo que os freios e contrapesos entre os poderes funcionem. Os autores mostram que muitas vezes os dispositivos constitucionais são interpretados ao pé da letra de forma intencional para legitimar abusos de um poder sobre outro. Isto, os autores chamam de “jogo duro constitucional” (constitucional hardball). Assim, a constituição é respeitada em sua “letra”, na medida em que a tecnicalidade do procedimento é legítima, mas violadas em seu “espírito”, uma vez que fere os princípios sob os quais a constituição foi escrita.

Tomemos um exemplo que o livro apresenta. Em 1997, Adbalá Bucarán, então presidente do Equador, foi afastado com base em um dispositivo que dava ao congresso a prerrogativa de afastar o presidente com maioria simples caso ele fosse considerado mentalmente incapaz. O problema aqui é que todo o processo ocorreu em um único dia. Claramente não houve tempo para Bucarán por a prova sua capacidade mental. Não era isso que estava em jogo, afinal de contas. A oposição, que não se constituía maioria absoluta para afastar o presidente por meio de um impeachment, forçou uma prerrogativa constitucional para atingir seus objetivos.

A partir dessas reflexões, o livro quer compreender um longo processo de “desintegração” dos princípios básicos da democra cia norte-americana, iniciado em meados dos anos 1960 e que resulta na eleição de Donald Trump em 20163. Buscando com- preender os riscos que a democracia nos EUA corre no presen- te, os autores de “Como as democracias morrem” vão à história buscando articular a questão geral das crises democráticas com a crise que enfrenta hoje sua própria sociedade. Assim, graças a abordagem comparativa e histórica, eles conseguem atingir a generalidade sem produzir uma análise generalizante.

Dessa forma, Levitsky e Ziblatt afastam o generalismo abstrato ao mesmo tempo que fogem do particularismo demasiado, baseado em um empiricismo ingênuo. Os autores não reduzem a democracia a uma fórmula pretensamente universal, mas assu- mem o que ela de fato é: um conjunto de experiências de gover- no historicamente datado e geograficamente localizado. Isto não os impede de identificar princípios comuns, mas sinaliza que es- tes mesmos princípios se realizam de modos diversos, a partir de cada experiência nacional. A obra não trata, portanto, da De mocracia e sua Crise, mas, evocando o clichê da formulação, de democracias e suas crises.

Outra virtude de “Como as democracias morrem” é que a obra co- munga de uma visão da política para além do institucionalismo. Os autores partem do entendimento de que não basta olhar para as regras formais de uma instituição para compreender seu funcio namento. É preciso ir ao tácito, ao que todos sabem apesar de não estar dito em lugar algum. Essas regras informais possibilitam o funcionamento “normal” das regras formais. Deste modo, entender como funciona uma democracia e como elas colapsam é compreen der a relação entre essas duas esferas de um sistema político.

Nesse sentido, “Como as democracias morrem” segue a mesma linha da crítica formulada por Levitsky em obra anterior, escrita em parceria com Lucan A. Way. A partir da ideia de “autorita- rismo competitivo”, Levitisky e Way (2002; 2010) questionam a ideia de que a simples existência de instituições formais demo- cráticas per si garantem que um regime seja democrático. Em países marcados por esse tipo de autoritarismo, que não deve ser igualado a um autoritarismo total, as regras e instituições democráticas existem formalmente e são vistas com o principal meio de se obter e exercer a autoridade política. Todavia, o governo em exercício viola com tanta frequência as regras do jogo democrático para se perpetuar no poder que o regime político raramente conhece padrões mínimos de democracia.

A partir do conceito de autoritarismo competitivo, bem como dasdiscussões presente em “Como as democracias morrem”, é possível questionar a ideia de que o mundo passa por um processo uni- direcional e irreversível de democratização que teria sido iniciado com o fim da Guerra Fria. Isto fica claro na medida em que se põe em evidência que processos de democratização são reversíveis, a partir da ascensão de autocratas, mas também pensando em re- gimes que embora possuam instituições democráticas funcionan- do formalmente, estas são subvertidas sempre que o governo em exercício veja ameaçada sua posição de poder.

Há, por fim, outro aspecto que gostaria de ressaltar: embora par- tam da análise das regras formais e informais, os autores se pre- ocupam em mostrar que os indivíduos não estão inevitavelmente presos a elas e por isto mesmo podem decidir quando agir em conformidade ou contrariedade a elas. Neste sentido, a explica- ção para a “morte” de uma democracia passa inevitavelmente pela escolha de um conjunto de indivíduos violar tais normas e pela falha de outros em impedir ou neutralizar estas ações. As- sim, pode-se dizer que a obra encara a democracia como um tipo sistema de relações políticas no qual indivíduos agem ao mesmo tempo que o têm como referência, mas nunca inevitavelmente presos a ele.

Publicada em janeiro de 2018, a obra logo figurou na lista dos mais vendidos do New York Times. Isto mostra que a preocupa- ção fundamental da obra não é somente uma aflição pessoal dos autores, nem se restringe aos espaços “intelectualizados” da aca- demia. No Brasil, a obra chega poucos meses depois, em agosto, quando nossa democracia passa por um processo semelhante ao que ocorreu nos EUA4: polarização ferrenha na esfera política que nos assola desde 2013; politização da justiça, que se traduz, dentre outros, em um jogo duro constitucional que mata a cada dia o espírito de nossa constituição; por fim, a iminente eleição de Jair Bolsonaro, um homem tal qual Trump: despreparado, au- toritário e claramente desdenhoso dos valores democráticos.

Por tudo isso, o leitor brasileiro irá perceber em “Como as demo cracias morrem” uma familiaridade assustadora. Contudo, isso não deve paralisá-lo, pois o livro mostra também que a saída para uma crise democrática é mais democracia: passa por um pacto entre as divergências em favor da democracia, de modo a evitar que o autoritarismo chegue ao poder. Caso isso não evite a ascensão do autocrata, é preciso organizar as bancadas demo- cráticas para impedir a usurpação do Estado; é preciso instar os poderes legislativo e judiciário a “frear” o executivo, se este vier a ameaçar a ordem democrática; é preciso que a sociedade ocupe as ruas para dizer não a qualquer violação. Neste sentido, o livro me lembra um verso de Tom Zé, que diz que a Democracia “atua quando me ouso, amua quando repouso”. Atuemos então, para que ela não amue.

Referências

Arendt, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 1989.

Levitsky, Steven; Ziblatt, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

Levitsky, Steven; Way, Lucan A. Elections Without Democracy: The Rise of Competitive Authoritarianism. Journal of Democracy, v. 13, n. 2 (April), 2002, p. 51-66.

Levitsky, Steven; Way, Lucan A. Competitive Authoritarianism: Hybrid Regimes after the Cold War. New York: Cambridge University Press, 2010.

Notas

1 “Uma das mais velhas e bem-sucedidas democracias do mundo” (p. 14), na visão dos autores. 2 Como Hitler, na Alemanha; Mussolini, na Itália; Erdogan, na Turquia; Putin, na Rússia; Chávez, na Venezuela; Orbán, na Hungria; dentre outros.
2 “Um homem sem nenhuma experiencia em cargos públicos, com aparente pouco com- promisso no que diz respeito a direitos constitucionais e dono de claras tendências auto- ritárias” (p. 14), nas palavras dos autores.
3 Não é de se estranhar que o livro também se tornou rapidamente um best-seller entre nós.


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