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Recepção: 07 Novembro 2018
Aprovação: 19 Dezembro 2018
Resumo: O objetivo deste artigo é descrever parte dos dados etnográficos obtidos durante uma pesquisa realizada no ano de 2011, no Centro de For- mação da Polícia Militar do Estado da Paraíba. Por meio da observação direta e participante e da aplicação de entrevistas semiestruturadas com alunos policiais, acompanhei o cotidiano da formação profissional no Curso de Formação de Oficiais (CFO), o qual se trata de um Bacharelado em Segurança Pública, que ocorre durante um período de três anos. Ao final, as observações e entrevistas realizadas me fizeram me- lhor compreender como funciona o processo de socialização dos futu- ros policiais militares, os quais, enquanto alunos, vivenciam um regime pedagógico-profissionalizante baseado no disciplinamento corporal, psíquico e moral que pode ser visto como uma “fábrica” de novas iden- tidades sociais caracterizadas pela obediência, resignação às regras da caserna e uniformidade de comportamentos.
Palavras-chave: Formação PM, Etnografia, Disciplinamento, Controle, Militarismo.
Abstract: This article aims to describe part of the ethnographic data obtained during field work realized to my master’s research in 2011. It was done at the Military Police Training Center, State of Paraiba, Brazil. I used direct and participant observation and applied semi-structured inter- views with police students. I followed the daily routine of professional training in the Officer Training Course (CFO). This course is to get a bachelor’s degree in Public Security. It occurs during a period of three years. I concluded that the socialization process of the future military officers - who experience a pedagogical-professional regime based on corporal, psychic and moral discipline – it is like a “factory” to produce new social identities on them. They are characterized by the obedience and submission at the rules of the barrack generating equal behaviors.
Keywords: Military police training, Ethnography, Disciplining, Control, Militarism.
Resumen: El objetivo de este artículo es describir parte de los datos etnográfi- cos obtenidos durante una investigación realizada en el año 2011 en el Centro de Formación de la Policía Militar del Estado de Paraíba. Por medio de la observación directa y participante y de la aplicación de entrevistas semiestructuradas con alumnos policiales, acompañé el cotidiano de la formación profesional en el Curso de Formación de Ofi- ciales (CFO), el cual se trata de una Licenciatura en Seguridad Pública, que ocurre durante un período de tres años. Al final, las observaciones y entrevistas realizadas me hicieron mejor comprender cómo funciona el proceso de socialización de los futuros policías militares, los cuales como alumnos experimentan un régimen pedagógico-profesional ba- sado en el disciplinamiento corporal, psíquico y moral que puede ser visto como una “fábrica” de nuevas identidades sociales caracterizadas por la obediencia, resignación a las reglas de la casilla y uniformidad de comportamientos.
Palabras clave: Formación PM, Etnografía, Disciplinamiento, Control, Militarismo.
Introdução
A citação de Foucault (1987) encontrada em sua obra “Vigiar e Punir” e título deste artigo é o ponto inicial de minhas reflexões sobre a formação policial militar, sob a perspectiva antropológi- ca. Mesmo com o avanço nos estudos sobre as Polícias Militares nos últimos anos, especialmente sobre a formação profissional dos seus agentes, ainda assim, acredito que o tema da socializa- ção e treinamento dos alunos policiais mereça novas contribui- ções no campo das ciências sociais.
Alguns relatos etnográficos existentes sobre a formação policial militar (Albuquerque; Machado, 2001; Sá, 2002; Silva A., 2002; Silva R., 2011; Nummer, 2014), de ordem sociológica e antropo- lógica, abriram-nos caminhos para percebermos o quão multi- facetado é o universo organizacional das PMs no Brasil. Como se sabe, as PMs herdaram as formas de organização do Exército brasileiro e dividem seu sistema hierárquico em dois quadros distintos: o das Praças (Soldado, Cabo, Terceiro-Sargento, Se- gundo-Sargento, Primeiro-Sargento e Subtenente) e dos Oficiais (Segundo-Tenente, Primeiro-Tenente, Capitão, Major, Tenente-Coronel e Coronel). Segundo Sá (2002, p. 30), “Oficiais e Praças são princípios de divisão que produzem visões específicas no interior da organização: de um lado, estão os comandantes e, de outro, os subordinados respectivamente, as “cabeças pensantes” da corporação e a tropa”.
Quanto ao processo de formação profissional, pelo menos no es- tado em que realizei a pesquisa (a Paraíba), existem duas formas de ingresso na carreira policial militar: ou através de concurso público para soldado (a posição hierárquica base para a execu- ção especialmente do policiamento nas ruas) ou por meio do Exa- me Nacional do Ensino Médio (ENEM), que seleciona os alunos do CFO, os quais se tornarão os Oficiais, futuros comandantes da instituição. Como afirma Rudnicki (2007, p. 22), “ser oficial da Po- lícia Militar é mais que uma carreira, é um ideal”, ou melhor, está relacionado à mística pelo uso do uniforme e o status social dele advindo, perpassando a emoção sentida nas solenidades militares junto ao encantamento pela autoridade assumida, já que a lógica é galgar posições de destaque na profissão PM quando se tem a função de comandar homens (Sá, 2002; Tobias, 2014).
Assim, esta pesquisa surgiu a partir de minha Dissertação de Mestrado, realizada entre os anos de 2010-2012 pelo Progra- ma de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba2. Um de meus objetivos foi descrever exatamente o coti- diano do CFO da PM paraibana, o qual funciona como um Bacha- relado em Segurança Pública durante um período de três anos, em tempo integral. O curso ocorre no Centro de Educação da PM da Paraíba, localizado no bairro de Mangabeira VII, na cidade de João Pessoa. O quartel de formação dos cadetes3 localiza-se em uma área geral de 93.720 m2 e as atividades pedagógicas do Centro são realizadas em três lugares específicos, que obedecem esta partição para a formação policial por levar em consideração a hierarquia institucional: A Academia de Polícia Militar do Cabo Branco (APMCB), o Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP) e o Núcleo de Pesquisa e Extensão (NUPEX). O CFO é realizado na APMCB.
Conhecer a realidade de um curso de formação policial militar é levar-nos a indagar sobre como se dá o processo de sociali- zação/treinamento dos alunos policiais militares, ou seja, quais são as particularidades do processo educativo dos alunos poli- ciais militares? Que técnicas pedagógicas são utilizadas para tor- ná-los “obedientes” ao princípio de autoridade e condicionados a adotarem comportamentos uniformizados e previsíveis?
Pelo fato de, à época da pesquisa, eu ser um Tenente da PM pa- raibana, logo um “participador observante” (Silva R., 2011), as- severo que tive a minha inserção em campo facilitada. De todo modo, por uma perspectiva epistemológica, talvez o meu maior desafio foi ter que tornar o “familiar em exótico” (Da Matta, 1978), ou seja, descrever as minhas impressões de campo a par- tir de certo estranhamento, dado o meu conhecimento prévio sobre a formação PM por ser um policial militar, fato observa- do por outros pesquisadores que também são policiais milita- res (Braga, 2018; Tobias, 2014). Porém, como nos ensina Velho (1981), mesmo sendo familiar aquilo que vemos e encontramos, isto não garante conhecer-se o que se observa, o que nos leva a adotarmos uma objetividade relativa e interpretativa.
Visto que as Polícias Militares podem ser identificadas como “burocracias defensivas” (Huggins; Haritos-Fatouros; Zimbardo, 2006), ou melhor, por apresentarem características de “fecha- mento”, assim como interpretado por Goffman (2007), de modo que se torna difícil o acesso a tais instituições pelos protecionis- mos e espírito de solidariedade demonstrado por seus agentes, as observações direta e participante, além das entrevistas por mim realizadas com os alunos PM foram as técnicas metodológi- cas utilizadas por um nativo para melhor compreender seu pró- prio universo cultural, ou seja, o “mundo da caserna”.
Inicialmente, descreverei como o disciplinamento funciona como modelo formativo dos alunos oficiais PM. Em sequência, destaco como o controle contínuo dos alunos diz respeito a um processo de vigilância no sentido panóptico (Foucault, 1987), o que os faz olharem especialmente para si mesmos como prin- cipal propósito para o exercício da obediência. Por fim, minhas observações centram-se na relação entre a identidade social ad- quirida pelos alunos e a construção desta identidade a partir dos valores comuns à formação pedagógica PM.
Por fim, a pesquisa possibilitou-me mostrar como a relação en- tre o disciplinamento presente na formação policial militar e a violência praticada por seus agentes depois de formados dificil- mente não estão relacionadas4, já que se trata de um processo pelo qual homens e mulheres são socializados para serem sol- dados5, ou melhor, para serem fabricados como quase máquinas. Na verdade, estamos diante de um processo baseado em um cur- rículo oculto ou “currículo cultural” (Leal, 2011) que modela a subjetividade dos alunos policiais militares pelo respeito aos có- digos formais e práticas informais que especificamente não faz parte do currículo estudado em sala de aula. Esse currículo ocul- to está associado às formas de pensar, sentir e agir estabelecidas diariamente nas relações entre alunos e coordenadores do CFO e entre alunos veteranos e novatos, com base nos dois pilares das instituições castrenses: a hierarquia e a disciplina militar.
O Disciplinamento como Modelo Formativo do “Bom” Policial
Como destaca Tobias (2014, p. 106) “o CFO é um grande ritual, que inicia, adapta e transforma um indivíduo em oficial da Polícia Militar, com todas as implicações que isso requer”. Deste modo, esse ritual é iniciado quando do primeiro encontro dos futuros Oficiais com o Centro de Formação6 ao se apresentarem na primeira semana7, que é comumente conhecida como “sema- na zero”. Esta semana pode ser entendida como o processo de adaptação de “novatos”, algo próximo do que foi descrito por Goffman sobre as instituições totais ao falar das “boas-vindas” (2007, p. 27). Na verdade, é o primeiro passo para a institui- ção obter o êxito de produzir uma nova identidade social nos recém-ingressos por meio de uma socialização baseada em um processo pedagógico rotineiro e desgastante que culmina na “mortificação do self” (Goffman, 2007; Silva A., 2002), ou seja, na anulação, em grande medida, da antiga identidade da vida civil dos novatos. Para Castro (2004), que etnografou a formação de Oficiais do Exército, ainda na década de 80 do século passado, a socialização militar diz respeito a uma “vitória cultural” a partir da qual a instituição se propõe a fazer com que os novatos inter nalizem o “espírito militar”, em contraponto à antiga vida civil ou paisana, aquela vivida pelas pessoas comuns em sociedade.
Tornar-se militar significa, acima de tudo, deixar de ser civil. A oposição entre civis e militares é estruturante da identi- dade militar. Ao ingressar numa academia militar, o jovem é submetido a um processo de construção da identidade mili- tar que pressupõe e exige a desconstrução de sua identidade “civil” anterior. Mesmo quando transita pelo assim chamado “mundo civil”, o militar não deixa de ser militar – pode, no máximo, estar vestido à paisana (Castro, 2009, p. 24).
Em síntese, “a distinção entre militares e paisanos é o passo primordial, instaurador, do espírito militar” (Castro, 2004, p. 54), de modo que, “a educação numa academia militar é a primeira e a mais crucial experiência de um soldado profissional. As ex- periências educacionais de um cadete não obliteram seus ante- cedentes sociais, mas deixam impressões fundas e duradouras” (Janowitz, 1967, p. 129). Tais impressões são marcadas, diga- mos assim, tanto no corpo como na subjetividade de cada novato pelo,
Dia-a-dia ritualizado, inteiramente pautado pela repetição de um ordenamento da realidade. Tal fato é marcado por uma diagramação constante dos horários, dos modos de conduta, de reconhecimento automático de dispositivos de ação, como ordens, posturas corporais e etiqueta, as- sim como o reconhecimento de símbolos e notações, como os emblemas e sinais que se estampam nos uniformes, e, finalmente, de uma terminologia realizada principalmente através do emprego de uma linguagem cifrada por meio de siglas e termos nativos (Leirner, 2008, p. 198).
Essa “ritualização do cotidiano” faz com que, na semana zero, os cadetes recebam instruções e orientações gerais sobre os preceitos da disciplina e o respeito à hierarquia, para fazer todos eles aprenderem como se comunicar com superiores e subordi- nados dentro das regras e convenções policiais militares. Como o CFO tem a duração de três anos, os novatos são os cadetes do 1º ano. Além deles, as demais turmas são formadas pelos cadetes do 2º e 3º anos. As turmas de formação se alternam com o passar de cada ano, de forma que a Academia está sempre recebendo uma nova turma de 1º ano e, conforme sejam aprovados para anos posteriores, os cadetes passam a ser conhecidos como mais “antigos” em relação aos que participam de uma turma an- terior que são os mais “modernos”. Neste sentido, antiguidade e modernidade são posições que servem para elencar responsa- bilidades e privilégios entre os cadetes, tanto no que se refere às regras prescritas como às situações informais do cotidiano. Por isto, quanto mais antigo na formação supõe-se ser melhor, obtendo-se mais reconhecimento e status (Leirner, 1997).
Na semana zero é exigido condicionamento intenso dos cadetes, pois são realizadas muitas instruções de ordem unida, os exercí- cios próprios do disciplinamento militar8. Essa semana acontece normalmente em regime de internato e alguns Oficiais e cadetes do 3º ano (estes como auxiliares) ficam responsáveis pela orga- nização dela. Alguns deles contaram-me que nos últimos anos o internato dos novos cadetes vem durando apenas uma sema- na, período este que chegou a durar meses em anos anteriores, principalmente na década de 90, logo após a fundação do Centro de Formação. Segundo eles, esse fato deve-se à carência de re- cursos econômicos por parte do Centro para custear um período prolongado de despesas para o acompanhamento dos cadetes. Em outro relato, um cadete do 3º ano contou-me que, referindo-se à organização da semana zero do ano de 2011: “Organizamos a semana zero por meses e apresentamos o planejamento para o Major comandante da Academia. Colocamos muitas atividades instrutivas no planejamento e ao analisá-lo, o Major rasgou e fez outro que tinha basicamente exercícios de ordem unida. Ele agiu de forma autoritária”. Outro cadete do 3º ano também confir- mou esse fato:
Era uma semana zero voltada mais pra instrução do que uma semana zero sem certo fundamento como a gente tinha que era passar a noite acordado, ralando, pagando de punho cerrado. Eram instruções tipo conduta de patrulha. A coordenação não acatou desse jeito. Ela tinha outra visão e colocou do jeito que ela quis” (Cadete L.).
O relato do cadete do 3º ano talvez traduza o que pensava o Ma- jor comandante da Academia de Formação em relação à semana zero, ou seja, fazer com que ela aconteça através de atividades em que a aprendizagem forçada é o elemento principal. Por meio dessa aprendizagem, os cadetes começam a obedecer às regras e a submeterem-se ao regime de sanções e recompensas próprio do cotidiano da formação policial militar. Esse regime de punições e recompensas está atrelado ao comportamento que os cadetes passam a adotar no cotidiano do CE. Tal processo de adaptação ocorre, segundo a crença nativa, para os coordenado- res certificarem-se de que os alunos têm o perfil necessário para desempenhar a profissão policial militar.
A partir desse acompanhamento, observei que todos os cadetes recebem um nome, que eles passam a adotar na vida institucio- nal e que os acompanha por toda a carreira profissional. Geral- mente é o sobrenome, o qual também é conhecido pelos poli- ciais militares por “nome de guerra” (Leirner, 2008). Destaco esse fato para lembrar que eu mesmo, à época que entrei na PM, não gostei de ser chamado pelo nome de guerra que escolheram para mim. Desta forma, sigo os passos de Silva R. (2011, p. 78) ao afirmar que “uma participação pretérita possa servir para es- tranhar minha própria cultura profissional”, pois não pude usar o nome que eu queria durante o curso porque já existia outro cadete mais antigo que eu. Para Goffman (2007, p. 27), “a perda de nosso nome é uma grande mutilação do eu”. Além do novo nome, um número também passa a acompanhar os cadetes na formação e todos os objetos pessoais devem estar identificados com estes dois elementos (carteiras em sala de aula, camas, ar- mários, toalhas de banho, vasos de planta, os quais cada cadete passa a ser obrigado a cuidar, sendo passível de punição caso não o faça).
O asseio pessoal e a aparência são fundamentais para os cadetes e, assim que chegam ao primeiro dia da semana zero, já devem estar com seus cabelos cortados. O padrão estipulado pelos co- ordenadores é o normatizado na Norma Educacional nº008 que prescreve que: “(1) Segue o mesmo padrão para o 1º e 2º anos utilizando-se para tanto a máquina n° 2 nas partes parietais e n° 3 nas partes occipitais do crânio; (2) Para o 3º ou 4º anos utiliza-se para tanto a máquina n° 3, nas partes parietais e n° 4 nas partes occipitais do crânio”. Este modelo é conhecido como “corte militar”. As mulheres devem usar os cabelos presos em forma de coque,9 unhas asseadas e pintadas com cores discretas, assim também como devem usar maquiagem discreta.
O nome comum que os alunos policiais militares recebem quan- do iniciam o curso é o de “bicho”, e eles são identificados por usarem calça jeans, camisa branca e tênis preto (o bichoforme), enquanto não recebem o uniforme próprio do policial militar. O bichoforme é utilizado da mesma forma por homens e mulheres. Depois que os cadetes deixam de usar o bichoforme passam a usar o uniforme padrão que os policiais militares usam. Os ca- detes devem ter seus uniformes impecavelmente bem passados, limpos e o coturno engraxado de maneira também impecável. Esse novo uniforme é de uso obrigatório nas aulas e instruções que acontecem nas salas de aula e ele tem a cor caqui. O con- junto da roupa é composto por calça, pela camisa chamada de gandola e camisa branca (que para os policiais formados é pre- ta) que é usada internamente por sob a gandola. Geralmente os cadetes presenciam as aulas sem a gandola, o que corresponde a estar “aliviado”, e usam apenas a camisa branca, calça e coturno. Os cadetes também usam boné que é conhecido por “pala” ou “cobertura”, cujo uso é prescrito através de regulamentos junta- mente com as outras partes do uniforme.
Os cadetes devem usar a “cobertura” toda vez que estejam fora de um local, arquitetônico ou não, que não possua telhado, por exemplo, podendo tirá-la quando estiver em recinto coberto. Caso esqueçam o pala e saiam da sala de aula sem ele, podem ser imediatamente sancionados por algum superior ou aluno mais antigo. Para outros uniformes em que são usados outros tipos de “cobertura” é válida a mesma regra. Observei essa situação por inúmeras vezes e percebi a preocupação que os cadetes de- monstram ter com a “cobertura” que os acompanham. Faz par- te também do uniforme dos cadetes (e também do uniforme dos Oficiais, pois é um dos elementos simbólicos que os distinguem das Praças) um pedaço de tecido conhecido por luva, de cor preta, que fica por cima dos ombros, no lado direito e esquerdo, e que trazem a simbologia identificatória dos cadetes – uma estrela e uma barra referentes a cada ano de curso. No alto do braço esquerdo, próximo ao ombro, a farda possui o brasão da PM da Paraíba e no mesmo lugar no lado direito encontra-se a bandeira do estado da Paraíba. À altura do peito no lado direito, os cadetes ainda têm em sua farda um pequeno tecido preto em forma retangular conhecido por “sutache”, que destaca seus nomes de guerra em cor branca, seguido do tipo de sangue que possuem em cor vermelha.
Com o passar dos dias, os alunos vão incorporando as exigências do cotidiano de formação policial militar e passam a seguir todas as prescrições. Mas muitos deixam transparecer que não aceitam as regras a que são submetidos e criam “resistências” (Foucault, 1988) a estas regras que funcionam como “táticas” (Goffman, 2007) para aprenderem a enfrentar o cotidiano do curso, espe- cialmente o relacionamento com os cadetes mais antigos, com a equipe de coordenadores e com todos os superiores hierárquicos que circulam pelo Centro de Formação diariamente. Essas regras norteiam a construção da imagem do cadete da Polícia Militar, elemento este que deve ser exemplo para todos da instituição. O discurso veiculado é de que os cadetes devem sempre estar aten- tos aos diversos olhares que os cercam. Para isso, eles devem es- tar alertas para desempenharem todos os exercícios sempre com muita vontade para não serem vistos como “acochambradores”10.
A exigência que se constrói com a iminente expectativa de que a todo o momento os cadetes possam cometer erros e ser punidos é uma constante. Como nos diz Leal (2011, p. 34), as punições na formação PM são uma “celebração da caserna”. Por isto, cada vez mais, o cotidiano dos alunos é marcado pela exigência fei- ta ao corpo para que se realizem os exercícios e manobras com maestria, que se coloque à prova para ser destaque, que queira sempre ser o melhor nas atividades. Destaco que ao final de cada ano, os cadetes têm as médias das disciplinas somadas, o que implica em uma classificação geral a partir da média final. Esta lógica torna-se motivo de competição entre os cadetes. A partir disso, os cadetes também passam a ser conhecidos pelos núme- ros da classificação alcançada com a média final. Um cadete que terminou o 1º ano em oitavo começará o 2º ano sendo chamado de 08. Ao final dos três anos, a soma das três médias gerais dos anos respectivos determinará o primeiro colocado do curso, o qual pode ser promovido diretamente a 2º Tenente, enquanto os demais terão que passar por um estágio de oito meses como Aspirantes-a-Oficial antes da promoção.
As exigências impostas aos alunos do CFO criam um ambiente social de obrigações e deveres. A todo instante as regras devem ser lembradas. Nos exercícios de ordem unida, todos são condi- cionados a marchar com uma uniformidade precisa; as armas tornam-se objetos de utilização sincronizada, principalmente os fuzis. Foucault (1987, p. 130) esclarece esse mecanismo ao nos dizer que, na articulação corpo-objeto, “a disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que ma nipula. Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro”.
Situação corriqueira observada é quando todos os alunos, a todo instante e em todos os lugares do Centro de Formação, pedem permissão a um superior hierárquico, caso este se encontre em qualquer local do quartel, para entrar ou sair do local em que ele esteja, bem como quando quer falar com os superiores hierár- quicos é preciso pedir-lhes permissão. E ao se retirar é obrigação prestar a continência e dar a meia-volta, esta se configurando no exercício em que o aluno gira cento e oitenta graus sobre o cal- canhar do pé esquerdo, dando as costas ao superior e se retiran- do, enfim, de sua presença. Estas mesmas regras vigoram entre os cadetes mais antigos e modernos. Nas salas de aula, o mesmo cerimonial é utilizado para reportar-se ao instrutor militar. Caso tenham que se deslocar para outro local do Centro de Formação, para instruções fora da sala de aula, os alunos entram em forma e se deslocam marchando, correndo ou andando, mas com sin- cronia. Neste caso, também, os cadetes precisam pedir permissão (caso estejam como responsáveis pelos demais alunos de sua tur- ma) para deslocar a tropa11 de alunos, basta para isto que aviste e reconheça um superior hierárquico ou cadete mais antigo. À hora das refeições também se obedece a essas exigências e segue-se o ritual da antiguidade. Os alunos pedem permissão para entrar no recinto e, após a refeição, pedem para sair do recinto.
No quartel de formação a disciplina é regida de múltiplas ma- neiras e por movimentos analíticos e esmiuçados. É comum aos alunos, em qualquer circunstância, caso vejam ou percebam um superior, não importando o local dentro do Centro, levantar e prestar a continência ou fazer uma reverência com a cabeça caso estejam com as mãos ocupadas. A continência12 é um movimen- to feito com a mão direita, onde esta é levada até a testa ficando com a palma voltada para o chão, todos os dedos unidos e com a mão estendida. É o símbolo principal do cumprimento militar. É o gesto que se aprende concomitante à maneira de se apresentar para falar com um superior: pedindo permissão, seguida esta da palavra “senhor” e dizendo o número, nome, função e o que dese- ja. Goffman (2007, p. 30) chama essa interação de “atos verbais de deferência”, que funcionam de forma que “o indivíduo pode ser obrigado a manter o corpo em posição humilhante, pode ser obrigado a dar respostas verbais também humilhantes” (Goff- man, 2007, p. 30). Bellaing (2009) também observa essas regras de deferência no treinamento de alunos da polícia francesa e a fala de um cadete do 3º ano exemplifica essa situação: “Quando da formatura matinal o Tenente me perguntou por que não tinha regente de dia13, e eu respondi que não foi possível providenciar e falei o porquê. O Tenente disse que eu estava ponderando14 e que era apenas para responder ‘sim senhor!’ e ‘não senhor!’”.
Durante os intervalos e nas horas de lazer e distração, os cade- tes também são disciplinados. Pode ser motivo de punição, por exemplo, a falta de postura nos modos de estar e sentar. O come- dimento do comportamento é fundamental do “ser cadete”. Não são admitidas conversas em alto tom e nas salas de aula não são permitidas bagunças e algazarras. Os preceitos morais têm um longo alcance e algumas regras também são seguidas quando se fala de símbolos. Deve-se prestar continência à bandeira nacio- nal toda vez que esta for içada ou arriada nas cerimônias oficiais e cotidianas. A postura corporal é a atitude imprescindível para os alunos policiais militares. Eles aprendem duas posições cor- porais principais: de sentido e descansar. Na primeira, os cade- tes distendem os braços ao longo da lateral do corpo e unem os pés pelos calcanhares; as mãos devem estar com os dedos uni- dos. A segunda é feita com as pernas pouco abertas e com as mãos para trás com os punhos fechados. Ambas as posições são prescritas por regulamento institucional.
Entrar em forma é o ato em que todos os alunos ficam colocados um atrás do outro em colunas e linhas, mostrando padrão de organização uniformizador. A precedência hierárquica é sempre respeitada, sendo a turma de alunos mais antigos sempre colocada à frente das outras turmas. As turmas mais antigas (a partir da turma do 3º ano caso ela se encontre) também sempre são as primeiras a serem liberadas para ir embora, bem como as primeiras a serem autorizadas a entrar nas salas de aula e quando tem que entrar em locais que sejam sede de eventos que envolvam policiais militares. Os cadetes mais antigos são os pri- meiros a entrar e a ocupar as primeiras cadeiras, além de serem os primeiros autorizados a sair no término do evento. Assim também acontece quando os cadetes têm que entrar e descer de transporte coletivo. Para embarcar ou desembarcar os cadetes, o responsável pela turma deve pedir autorização a um superior hierárquico, não importa onde ele se encontre.
Essas concessões e privilégios estão bem próximos das punições e sanções que recaem sobre aqueles que descumprem as exigências impostas aos cadetes. Os alunos do CFO são regulamentados pelo código interno de normas acadêmicas conhecidas como Normas Gerais de Ação (NGA), que estabelece princípios e condutas a serem seguidos. Além disto, existem os códigos disciplinares administrativos que são o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar (RDPM)15 – o qual contém uma lista de desvios de conduta conhecidos por transgressões disciplinares – e o Regulamento Interno dos Serviços Gerais (RISG), comum às unidades militares e que regulamenta as atividades próprias a um quartel militar. Com base nesses regulamentos, a disciplina está em todos os lugares do quartel. Devem ser controlados gestos, atitudes, maneiras de se expressar, de falar, de cuidar de armamentos e outros objetos, de olhar, na forma de estudar os conteúdos das matérias escolares, enfim, nada pode ser descartado pelo regime disciplinar dos cadetes. Neste sentido, não por acaso, o conceito institucional de “disciplina”, encontrado no Estatuto dos Policiais Militares do Estado da Paraíba, em seu art. 12, § 2º, deixar claro que,
Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das Leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo policial militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo (CLPM, 2004, p. 45).
De forma analítica, se para a PM paraibana e, certamente para todas do Brasil, já que usam o mesmo conceito em seus regula- mentos, a disciplina depende do “perfeito cumprimento do de- ver”, para Foucault (1987, p. 120) ela trata-se de uma “anatomia política do detalhe”. A ideia por trás dessa insistência na discipli- na é que se formem “policiais de excelência” que passarão a ser controlados e usados no enfrentamento aos que desviam suas condutas no meio social. Contudo, para melhor entender a com- plexidade envolvida no processo de formação do policial, se faz necessário entender também como outra lógica surge no pro- cesso de formação dos cadetes, a qual denomino de “pedagogia do controle”.
A Pedagogia do Controle e a Praxis da Vigilância na Formação Policial
Após as primeiras experiências no Centro de Formação os ca- detes começam a participar das várias atividades vinculadas ao curso. O processo pedagógico em si se traduz na participação obrigatória nas aulas e instruções que são ministradas por pro- fessores civis e instrutores militares, com disciplinas teóricas e práticas. Além disto, os cadetes participam de atividades extra- classe como bailes de formatura, palestras, procissões religio- sas, cursos diversos e estágios nos futuros locais de trabalho (Batalhões, Companhias). Os cadetes, nos três anos de formação, recebem uma ajuda financeira, como bolsa de estudos, paga pelo governo do estado da Paraíba, para ajudar nos custos decorren- tes da formação profissional. Essa bolsa aumenta de valor de acordo com a passagem para anos posteriores. Assim, os cadetes começam a participar de atividades que passam a exigir respon- sabilidades. Começa-se a descortinar um universo de exigências e de obrigações pedagógicas que vai além dos conteúdos apren- didos em sala de aula, e a força produtiva dos alunos é utilizada nos serviços internos que são prescritos, como as faxinas mati- nais das alamedas e a limpeza de alojamentos e salas de aula. A gradação estabelecida na definição de funções para os alunos e o quanto estas responsabilidades passam a exigir a presença de um controle constante estão atrelados à disciplina militar (Fou- cault, 1987).
A equipe de Oficiais que forma o corpo de coordenadores do CFO passa a acompanhar os alunos constantemente, exigindo dedicação, atenção aos trabalhos extras, disposição, capacidade de resolver problemas. Esse controle dos alunos recai com gran- de iminência de sanções e punições que os acompanham por to- dos os instantes que estão sendo observados pelos superiores. Qualquer desvio pode ser motivo para as retaliações pedagógi- cas, além de que, a partir do momento que ingressam no curso, os alunos já podem também ser punidos nas esferas judiciárias militares. Surge no processo disciplinar do Centro de Forma- ção uma permanente vigilância da prática de todo o conjunto de alunos e o controle, neste caso, é o elemento fundamental na exigência de papéis e na observação das atividades cotidianas. Caso aconteça de faltar professor civil ou instrutor militar para ministrar as aulas, os cadetes são impedidos de frequentar os ambientes da Academia de Formação, a não ser que seja autori- zado por algum superior, o que deve ser informado ao responsá vel pela turma que coloca o nome do cadete ausente numa lista que se encontra no quadro branco de uso didático, com o respec- tivo local de destino do cadete e o que foi fazer. Observei que é motivo de reclamação unânime entre os cadetes o fato de terem que ficar nas salas de aula nas horas vagas sem professores ou instrutores. A fala abaixo destaca esse fato:
A gente tem uma biblioteca dentro do quartel, mas ninguém tem acesso a ela durante o horário de aula nem mesmo sen- do aula vaga. A gente não pode usar o computador na sala de aula. Proibiram a gente até de jogar xadrez. Eles tentam trancar a gente aqui não é com objetivo pedagógico, é com objetivo assim: se eles estão trancados não estão causan- do problema e a gente sabe onde é que eles estão. Então, é como se o cadete fosse uma criatura pra ser enjaulada pra não causar problema a ninguém, nem a ele mesmo nem à coordenação, principalmente (Cadete 2º ano).
O controle dos cadetes se caracteriza principalmente pelo horá- rio das atividades desenvolvidas no Centro de Formação. Acor- da-se muito cedo no quartel, e os cadetes obedecem a horários determinados a todo instante. Uma sirene é a marca destacada para a organização dos cadetes em grupos. Como foi dito, essa organização é chamada de entrar em forma e é um rito que acontece várias vezes ao dia. Nas salas de aula toda semana é indica- do um “xerife”, que é um cadete que assume a função de se res- ponsabilizar por tudo que diz respeito aos alunos de sua classe, pelo período de uma semana. Assim que um instrutor militar ou um professor entra na sala, o xerife fala “atenção turma” e todos se levantam. Ele então comanda a ordem de “sentido”, “apresen- ta” a turma ao instrutor indicando o que há de errado, como a falta de um aluno (o que é conhecido como “alteração”). O ins- trutor então diz “à vontade” e todos se sentam. O próximo cadete que será o xerife é chamado de subxerife e fica responsável por carregar objetos utilizados na aula e com a limpeza da classe.
Com o passar do tempo, os cadetes mais antigos têm a permis- são e obrigação de observar os erros cometidos pelos cadetes mais modernos, através de uma expressão que é muito comum no dia a dia do quartel: “anotar”. Estar “anotado” significa ter sido observado, passando a estar presente na lista de punidos da semana. As punições pedagógicas sofrem gradações e podem ser leves, médias e graves. Estas punições e todas as “alterações” são colocadas no livro do “Cadete de dia”. Este último é o aluno do 3º ano que no período de 24 horas assume essa função para auxiliar o “Oficial de dia” (um Tenente), que fica responsável por tudo que diz respeito ao Centro de Formação enquanto o Cadete de Dia responsabiliza-se por tudo que aconteça na Academia. O aluno do 2º ano auxilia o do 3º ano como “Adjunto de dia” e os do 1º ano ficam no plantão de alojamento. Nesta última função os cadetes se revezam em “quartos de hora” (três alunos se reve- zam trabalhando duas horas e folgando quatro) de forma que to- dos os escalados trabalhem a mesma quantidade de horas. Nos fins de semana esse serviço é de 24 horas. Durante a semana, começa após as aulas. Como cadetes, os alunos já assumem fun- ções que os colocam numa verdadeira “vigilância hierárquica” (Foucault, 1987).
Todos os pormenores que se transformam em erros cometidos pelos cadetes são motivos para anotá-los. Como exemplos: ter a cama do alojamento mal forrada, chegar atrasado, ter o coturno sujo, mexer quando estiver no pelotão na posição de sentido ou descansar, não fazer a faxina do alojamento corretamente, res- ponder de forma indevida a um superior hierárquico, ou seja, não cumprir com as prescrições e determinações próprias do regime disciplinar do curso. Todas as punições são ouvidas pelo Subcomandante da Academia de Formação, que é responsável pela disciplina dos cadetes e, na sua ausência, os coordenadores ficam responsáveis. Caso os alunos consigam justificar os erros cometidos são recompensados, tendo a punição abolida e não sendo mais castigado. Ao opinar sobre esse sistema de controle, um Cadete do 3º ano diz que:
Ser punido por coisas que não são da atividade policial. Eu passei num concurso pra ser servidor público, pra contribuir com a sociedade só que, aqui parece que você esquece que você é servidor público e te vê como alguém que precisa só ser moldado, que precisa só ser castigado pra se enquadrar no meio militar.
O rito de inquirição pedagógica no qual os cadetes podem justificar os erros cometidos é conhecido como a “hora do pato” e é motivo de muito desconforto para os cadetes, que são sub- metidos a provações psicológicas baseadas na apreciação dos Oficiais da Academia de Formação sobre se eles estão ou não falando a verdade acerca de seus atos e omissões16. Esse rito de inquirição funciona através de uma “vontade de verdade” (Foucault, 1988) por parte de quem avalia e aplica as punições e a confissão dos cadetes, na maioria das vezes, não cancela as sanções, visto que a última palavra é sempre a dos Oficiais. Deste modo, opor-se às punições é ser visto como “indisciplinado” ou “ponderador”, já que elas são utilizadas no CFO como forma de corrigir e controlar a conduta dos alunos para transformá-los num “aluno-padrão”, afastando-os de comportamentos que não sejam compatíveis com a condição de “ser cadete”.
O fato dos cadetes mais antigos poderem anotar os mais modernos, em muitos casos, gera perseguições que se direcionam para o campo pessoal e para as rixas criadas entre cadetes de anos diferentes, o que transforma as anotações em vinganças. Duran- te as visitas ao Centro de Formação, nos intervalos, notei que os cadetes mais modernos dificilmente interagiam com cadetes mais antigos, exatamente pelo medo das anotações. Os cadetes demonstravam que era melhor ficar com seus iguais, ou seja, en tre cadetes de mesma turma. Segundo os cadetes, até a própria coordenação acaba elegendo seus alunos mais quistos, aqueles que se adéquam com mais facilidade às regras de submissão e respeito aos preceitos hierárquicos. Percebi que todo esse pro- cesso faz os cadetes se autorregularem e se autocontrolarem, pois eles passam a vigiar a si mesmos, pelo medo de que cada passo que se é dado no quartel esteja sendo observado. Esse controle ajuda ainda mais a uniformizar o corpo de alunos, visto que todos acabam adaptando-se a esse processo interno e externo de coerção psicológica, disciplinando cada vez mais seus corpos e suas subjetividades para evitar as punições e serem vistos como cadetes disciplinados. Deve-se criar a percepção de “disciplina consciente”, termo geralmente usado pelos coordenadores para ser disseminado entre os cadetes. Passo a mostrar, no tópico seguinte, como conscientes de seus papéis, os cadetes começam a concretizar a imagem identitária do profissional policial militar, no processo de construção cultural que tem nos símbolos policiais as marcas fundamentais de enaltecimento e identificação com a função a ser exercida pelos futuros policiais militares.
A Construção Simbólica da Identidade Policial
Passado todo o primeiro ano, que é considerado o mais difícil dos três anos de formação no CFO devido a toda carga de obri- gações, deveres, cobranças, pressões, perseguições, em favor da incorporação dos condicionamentos próprios à disciplina, os cadetes se tornam mais “conscientes” de seus papéis na insti- tuição. Foi possível visualizar nas conversas com os cadetes que eles começam a delinear e traçar o perfil que pode acompanhá-los por todas suas carreiras institucionais. Observei o discur- so corriqueiro dos coordenadores que “o cadete de hoje será o coronel de amanhã”, na tentativa de que todos os cadetes criem a preocupação de reconhecimento institucional mediante o dis- ciplinamento cada vez mais profícuo de suas individualidades. Neste sentido, o que passa a importar é a construção simbólica de um modelo ideal. Assim, ser cadete torna-se a excelência de comportamento, da retitude de princípios, da resignação à obediência, do respeito aos regulamentos, da imagem ilibada peran- te o público, enfim, um conjunto de considerações morais atrela- do à vida profissional de carreira, que será submetida a critérios institucionais para futuras promoções e satisfações pessoais.
Segundo os próprios cadetes, eles tornam-se figura de elogios e críticas tanto dos superiores, que se preocupam com os futuros companheiros “de classe”, como dos subordinados, que veem nos cadetes seus futuros comandantes. Os cadetes, assim, osci- lam entre o discurso de superiores e subordinados como “bon- zinhos”, “legais” ou “caxias”17, este último sendo o policial militar que exige dos subordinados o cumprimento das regras e precei- tos regulamentares da maneira mais laboriosa e eficiente pos- sível. O cadete mais exigente também é chamado de “cobrador”, pelo fato de requerer que os trabalhos sejam executados den- tro dos padrões da disciplina policial militar e do total respeito à hierarquia, além de cobrar a si mesmo para que sempre seja visto como o profissional que internaliza de maneira exemplar todas as exigências impostas pela disciplina militar. Para Goff- man (2007, p. 61), ele seria “convertido”. É possível notarmos como os cadetes “cobradores” são mais preocupados com suas imagens, com a forma de se vestir, de se portar, de falar, de se relacionar com os demais cadetes e superiores. Por outro lado, quando alguns cadetes são percebidos como pessoas que não se adéquam aos padrões disciplinares são pejorativamente chama- dos de “desenrolados”, por se desviarem das obrigações impos- tas e por criarem situações que os favoreçam.
Nessa conjuntura de identificações, o enaltecimento pessoal dos cadetes é o traço marcante quando eles passam a usar os uni- formes característicos que demonstram suas posições na hierarquia militar. Cada atividade e cerimônia exigem uniformes padronizados que são usados nas aulas de educação física, nas competições esportivas, nos passeios externos em grupo, nos desfiles cívicos, em solenidades e formaturas militares. Nas con- versas informais, notei que emoções e expressões são demons- tradas pelo uso dos uniformes e pelo pertencimento ao ciclo dos alunos do Curso de Formação de Oficiais da Polícia Militar. Outro fator que observei no enaltecimento através da imagem cons- truída pelos cadetes diz respeito ao papel profissional que exer- cerão, já que se trata de denotar respeito social, autoridade, uti- lidade para proteger a sociedade, robustez, machismo, e tudo isto posto no discurso regulamentado que se deve proteger a socieda- de “mesmo com o risco da própria vida”. Essa simbologia também se traduz de formas diversas na instituição, principalmente nos acessórios que são dispostos nos uniformes usados pelos cadetes, destacando-se as estrelas com barras que usam acima dos om- bros para identificar que são cadetes da Polícia Militar.
Muitos dos cadetes também criam a imagem estritamente volta- da para ser “operacional”, condição de muito valor e apreço entre os policiais militares e que denota ser reconhecido no corpo ins- titucional como o policial que age nas ruas contra a delinquência e a “bandidagem”, com dedicação e ótima condição física. Muitos cadetes dizem que prender meliantes e “marginais” em opera- ções diversas e arriscadas torna-se fator de motivação para tra balhar, e esta vontade é percebida nos uniformes que recebem apetrechos e objetos variados (cantis, porta-armas – coldres –, cintos), que lembram as atividades desenvolvidas nas ruas, nas operações policiais militares. Essa lógica ainda se amplia quan- do os cadetes buscam a identificação com policiais que integram grupos especiais de operações, que têm seus uniformes com co res e tonalidades diferentes, considerados mais bonitos no meio institucional, pois, para eles, denotam grandeza de atitudes no combate ao crime nas ruas e por exigirem policiais bem treina- dos e com a capacidade supostamente melhor desenvolvida do que os demais componentes da Polícia Militar. O ritual de “far- dar-se”, assim, diz respeito a uma idealização (Nummer, 2014), já que “a roupa é muito mais que um simples meio de proteção do corpo – é manifestamente um meio de exibição simbólica, um modo de dar forma exterior às narrativas da auto-identidade” (Giddens, 2002, p. 62). No caso dos cadetes, podemos dizer que o uso da farda gera uma aproximação cada vez mais forte entre a autoidentidade e a identidade coletiva até chegar ao ponto em que ambas se confundem.
Portanto, nesse percurso, vê-se que, a partir da pedagogia adotada pela PM paraibana, as Escolas de Formação PM, por conta do modelo organizativo, ainda usam a disciplina e o controle como técnica de socialização para apregoar valores com base no militarismo e desenvolver elementos culturais importantes para sua assimilação por parte do indivíduo que participa desta pedagogia militarizada. Esse indivíduo forma-se “como criatura social e como produto intelectual de um sistema educacional fechado, com sua própria experiência controlada por um códi- go e uma sequência de postos, é moldado num tipo uniforme” (Wright Mills, 1981, p. 234). De acordo com as características da formação militar, o que ainda se coloca como primordial nessa pedagogia é a questão da ordem como premissa para que todos aprendam que terão lugar e função definidos para manter a “má- quina” institucional.
Considerações finais
Este artigo teve a intenção de destacar parte das observações e falas apreendidas, especialmente de alunos, do Curso de Forma- ção de Oficiais da Polícia Militar da Paraíba, quando da feitura de minha Dissertação de Mestrado. Neste caso, o texto se baseia em notas etnográficas que tiveram como recorte o cotidiano peda- gógico da formação PM, com destaque para o disciplinamento e controle dos alunos, o que configura a socialização profissional deles.
Lógico que é sabido que a formação profissional dos alunos poli- ciais militares perpassa uma estrutura baseada em um currículo formal, que se traduz nas disciplinas teóricas e práticas minis- tradas de acordo com a grade curricular do curso, mas também em um currículo oculto ou “currículo cultural”. Este último diz respeito à carga de obrigações presente no cotidiano dos alunos, ratificando o peso da tradição dos mecanismos militares e das exigências disciplinares. O propósito do currículo oculto é prin- cipalmente o ensino sistemático da obediência e a internalização da autovigilância, além de pautar-se pelas inúmeras formas de punição que podem ser aplicadas aos alunos caso não execu- tem as atividades prescritas ou obedeçam às ordens estabelecidas. No caso dos cadetes, que serão os futuros comandantes das instituições PM, tem-se o ensinamento sobre a compreensão de que primeiro é preciso obedecer para depois comandar.
Isso me fez escolher um caminho que demonstrou o quanto o co- tidiano da formação PM é permeado por cobranças constantes e, ao mesmo tempo, possibilita o enaltecimento simbólico atrelado à construção de uma nova identidade social. E em meio ao “ser cadete” da PM paraibana, fato que pode ser verificado em ou- tras formações pedagógicas PM pelo Brasil, os alunos policiais desenvolvem outras formas identitárias institucionalizadas (o operacional, o caxias) que se tornam gradientes subjetivos que reforçam a existência de uma profissional pautada em diversos matizes.
Isso ratifica minhas reflexões para mostrar o quanto temos ain- da a aprender sobre os regimes formativos de profissões como a policial militar. Se ficou certa lacuna neste artigo sobre o conteúdo formal, digamos, da formação dos cadetes, em contrapartida, esta mesma lacuna é o foco que nos indica que a socialização dos PMs é complexa e admite dois mundos que ao mesmo tempo são dialéticos e se harmonizam (o ensino técnico-formal e as regras militares), que nos parece assim estarem dispostos exatamente para consolidar a informalidade da cultura militar como elo for- te para manter os critérios formais da aprendizagem PM. Afinal, se o “soldado é algo que fabrica”, tal fabricação, como qualquer outra, conforma-se pelos manuais que permitem construir a má- quina (o ensino formal), quanto pelas experiências acumuladas com o cotidiano (as regras e ritos militares).
Portanto, na busca pela implementação de um novo modelo de formação PM, considerado próximo à democracia surgida após 1988, encontram-se nas casernas policiais elementos que dificultam transformações substanciais, devido à existência de uma cultura centenária na qual a ideia do homem-máquina ainda pa- rece ser uma opção plausível na idealização policial militar de combate ao crime.
Referências
Albuquerque, Carlos Linhares de; Machado, Eduardo Paes. “Sob o signo de Marte: Modernização, ensino e ritos da instituição policial militar”. Sociologias, nº 5, p. 214-237, 2001.
Notas