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Recepção: 06 Abril 2019
Aprovação: 16 Junho 2019
Resumo: O objetivo geral deste artigo é apresentar como as diferentes agendas governamentais absorveram a temática do desenvolvimento regional, a partir de uma análise temporal. Em primeiro lugar, este artigo anali- sa aspectos das transformações históricas das políticas regionais que tiveram o seu início com a fundação da SUDENE na região Nordeste. Posteriormente, assinalaremos como o período dos governos militares alterou as tratativas governamentais no tocante às questões regionais. E, finalmente, buscamos apontar como a Constituição de 1988, embora recebida com muita euforia, relegou ao segundo plano as prerrogativas de uma política regional capaz de transcender as históricas desigual- dades federativas existentes no país. Na redemocratização, a descen- tralização foi igualmente responsável pelo não estabelecimento exato das competências e dos encargos dos entes subnacionais. Nesse cená- rio, podemos dizer que o ponto crucial na análise do federalismo brasi- leiro é a desigualdade regional observada principalmente no Nordeste, região que apresenta os mais altos índices de desigualdade econômica e social.
Palavras-chave: Desigualdades regionais, Federalismo, Desenvolvimento regional.
Abstract: The general objective of this work is to present how the different go- vernmental agendas have absorbed the theme of regional develop- ment, based on a temporal analysis. First, this article analyzes aspects of the historical transformations of regional policies that had its start with the foundation of SUDENE in the Northeast. Later, we will point out how the period of the military governments changed the govern- mental negotiations on regional issues. And finally, we seek to point out how the 1988 Constitution, though received with great euphoria, relegated to the background the prerogatives of a regional policy able to transcend the existing federal historic inequalities in the country. In redemocratization, decentralization was also responsible for note stablishing the exact competences and responsibilities of subnational entities. In this scenario, we can say that the crucial point in the analy- sis of Brazilian federalism is the regional inequality observed mainly in the Northeast, a region with the highest rates of economic and social inequality.
Keywords: Regional inequalities, Federalism, Regional development.
Resumen: El objetivo general de este trabajo es presentar cómo las diferentes agendas gubernamentales absorbieron la temática del desarrollo re- gional, a partir de un análisis temporal. En primer lugar, este artícu- lo analiza aspectos de las transformaciones históricas de las políticas regionales que tuvieron su inicio con la fundación de la SUDENE en la región Nordeste. Posteriormente, señalaremos cómo el período de los gobiernos militares alteró las tratativas gubernamentales en cuanto a las cuestiones regionales. Y, finalmente, buscamos apuntar como la Constitución de 1988, aunque recibida con mucha euforia, relegó al segundo plano las prerrogativas de una política regional capaz de tras- cender las históricas desigualdades federativas existentes en el país. En la redemocratización, la descentralización fue también responsable del no establecimiento exacto de las competencias y de las cargas de los entes subnacionales. En este escenario, podemos decir que el punto crucial en el análisis del federalismo brasileño es la desigualdad regio- nal observada principalmente en el Nordeste, región que presenta los más altos índices de desigualdad económica y social.
Palabras clave: Desigualdades regionales, Federalismo, Desarrollo regional.
Introdução
O subdesenvolvimento é um impasse histórico que espontaneamente não pode levar senão a alguma forma de catástrofe social. Somente um projeto político apoiado em conhecimento consistente da realidade social poderá romper a sua lógica perversa (Furtado, 1992, p. 19).
As interpretações do desenho institucional do federalismo podem oferecer contribuições teóricas atinentes aos padrões de relacionamento entre os entes federados e as suas capacidades de formular políticas públicas responsáveis pela diminuição das assimetrias regionais e sociais de um determinado território. Desde o célebre tratado de “O Federalista” (1788), quando Ale- xander Hamilton (1755-1804), John Jay (1745-1829) e James Madison (1751-1836) declaravam que o federalismo seria a so- lução para os dilemas e contrassensos vivenciados pela Confe- deração norte-americana, o sistema passou a ser adaptado em diversos países, entre eles o Brasil. A contribuição dos autores daquele tratado foi o desenvolvimento do conceito de checks and balances (freios e contrapesos), o qual preconiza que nenhum ente federativo pode exercer influência além das suas compe- tências institucionais sobre os demais estados federados. Neste sentido, a inovação institucional do federalismo estava na capacidade de manter a autonomia estadual e simultaneamente estipular certa relação de dependência dos estados com o Governo Federal.
O objetivo central deste estudo é analisar como os diferentes governos brasileiros inseriram em suas agendas governamentais a temática da redução das desigualdades regionais, bem como as tratativas para diminuí-las, visto que este é um fenômeno in- trínseco ao federalismo brasileiro. Como objetivos secundários, convencionamos periodizar nosso estudo em três grandes mo- mentos: o governo militar e as estratégias de promoção do de- senvolvimento das regiões; posteriormente, a agenda governa- mental da redemocratização do Brasil e a inserção da temática em tela; e um terceiro momento, no período mais recente, a par- tir dos anos 2000, com a Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR). Nossa metodologia é qualitativa, com fontes primárias e secundárias. As fontes secundárias constam de ar- tigos, dissertações e teses produzidas sobre o tema, observan- do, concomitantemente, os documentos governamentais dispo- níveis sobre cada período histórico aqui considerado, os quais compõem nossas fontes primárias. Este trabalho justifica-se por dois conjuntos de razões. O primeiro deles é que apresentar como o tema tem sido tratado em diferentes períodos é parte essencial para a valorização das tratativas governamentais; em segundo lugar, combater as desigualdades regionais é, também, parte de possíveis soluções para o combate às desigualdades so- ciais brasileiras.
Dadas essas considerações de cunho metodológico, cabe ressal- tar que o federalismo é o pano de fundo para nossa análise de como o desenvolvimento regional foi adicionado nas agendas de diferentes governos ao longo do tempo. Portanto, convencio- namos adequado realizar uma revisão acerca de seus principais conceitos. Um dos autores que contribuem para a reflexão so- bre a teoria federativa - especialmente com considerações que podem auxiliar o entendimento do caso brasileiro - é Elazar (1987), ao reiterar que uma das prerrogativas do federalismo é conservar a unidade na diversidade para conferir estabilidade ao sistema político:
One of the characteristics of federalism is its aspiration and purpose simultaneously to generate and maintain both unity and diversity. This ambiguity is reflected in con- fusion over the very use of the term. People use the terms ‘federalism’, ‘federalist’, and ‘federalize’ to describe both the process of political unification and the maintenance of the diffusion of political power. More than one discussion of fe- deralismo has foundered upon a basic misunderstanding by the parties involved as to which sense of ter mis being used
[...]
The elements of a federal process include a sense of part- nership among the parties to the federal compact, manifes- ted through negotiated cooperation on issues and programs and based on a commitment to open bargaining between all parties to an issue in such a way as to strive for consensus or, failing that, an accommodation that protects the funda- mental integrity of all the partners. Only in polities whose processes of government reflect federal principles is the structure of federalism meaningful (Ibidem, p. 64 e 67).
Entretanto, o federalismo brasileiro oscila entre a alta com- petição entre os entes federados e a elevada dependência dos estados ao Governo Federal, consubstanciada no repasse de re- cursos financeiros e na capacidade técnica de formulação de po- líticas públicas. Ademais, uma das características marcantes do nosso pacto federativo é a extensa desigualdade observada nas regiões brasileiras quando realizamos estudos comparativos so- bre as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, por um lado, e Sul e Sudeste, por outro.
Essas assimetrias são antigas e manifestam distintos dese- nhos institucionais no decorrer dos períodos históricos, visto que pautaram o debate sobre as políticas públicas na pro- moção do desenvolvimento regional. No Brasil republicano, devido às imensas assimetrias federativas e regionais, a de- finição do referido desenvolvimento nunca foi completamen- te homogênea no imaginário nacional. Porém, consideramos que a temática do federalismo ocupou a pauta das agendas governamentais com maior ou menor ênfase a depender do contexto político.
A pertinência assumida pelo tópico do desenvolvimento re- gional nas diferentes agendas públicas deve-se ao fato de que a superação das desigualdades econômicas, sociais e políticas existentes entre os Estados Federados era assunto relevante para o planejamento governamental. O reconhecimento público de nossas assimetrias regionais impulsionou a criação de me- canismos para solucioná-las, amenizá-las ou simplesmente para os governos inserirem a temática em suas agendas com o intuito de obter retorno político satisfatório. Neste artigo refletimos sobre determinadas conjunturas que conduziram alguns gover- nos a enfatizarem nas suas agendas políticas o desenvolvimen- to regional, enquanto outros governos o trataram de maneira secundária e aleatória ao incorporá-lo apenas em suas pautas econômicas.
Por conseguinte, emerge a seguinte indagação: prevalecem nas escolhas públicas para a agenda do desenvolvimento regional os elementos econômicos ou políticos? É importante destacarmos, em primeiro lugar, que a centralidade da temática se deve ao fato de que alguns governos consideram como peça central a re- solução das questões regionais, enquanto outros as consideram como acessório.
En la formación del programa o agenda de actuación de los poderes públicos en un momento determinado se concen- tra, pues, toda la compleja problemática de definición de los problemas, agregación de intereses y su representación y organización. La agenda nos muestra cuál es la percepción de los poderes públicos, en un instante concreto, sobre “lo que se debe resolver”. En ese programa o agenda detectare- mos muchos temas recurrentes y pocas novedades (Subi- rats, 2006, p. 207).
Nessa perspectiva, a organização institucional da Superinten- dência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) - e de ou- tras instituições do desenvolvimento regional nos anos 1950 - exprimia a centralidade política do desenvolvimento regional. Naquele período, o pensamento nacional-desenvolvimentista impulsionou ações sistemáticas do Estado sobre a moderniza- ção ao priorizar o planejamento abrangente que incentivava os investimentos estatais considerados básicos e os que demanda- vam mais recursos públicos para a infraestrutura, especialmen- te a construção de vias e rodovias. Um dos aspectos centrais do nacional-desenvolvimentismo residia na ênfase na industria- lização planejada como um dos caminhos para a resolução de nosso subdesenvolvimento (Bielschowsky, 1988). Destarte, in- vestir na industrialização para a superação da pobreza e da de- sigualdade brasileira era o principal propósito governamental naquele momento.
O projeto nacional-desenvolvimentista teve o seu apogeu com a sistematização do Plano de Metas elaborado pelo governo do presidente Juscelino Kubitschek (1902-1976). Aquele plano propugnava intenso desenvolvimento de construção de estradas e o financiamento do setor hidrelétrico, oferecendo igualmente prioridade para a indústria nacional do petróleo: conforme as suas prioridades estruturantes, o lema do Plano de Metas era o desenvolvimento de “cinquenta anos em cinco”. Em contraste com a grande euforia ocasionada pelas mudanças modernizado- ras anunciadas pelo Plano de Metas, o Nordeste ganhava noto- riedade nacional pelas secas de 1952 e 1958, que foram usadas como parte do programa eleitoral dos governadores. Estes atores políticos, que despontavam com extensa preponderância no processo decisório, criticavam as prioridades concedidas pelo Governo Federal à construção de Brasília e à concretização do Plano de Metas, em detrimento do abandono das regiões menos desenvolvidas, principalmente do Nordeste.
Além desses problemas políticos evidentes, outros percalços de natureza institucional também pressionavam o presidente Jus- celino Kubitschek. O Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) era incapaz de resolver os problemas emergen- ciais da seca e estava envolvido em denúncias de corrupção. O influente economista paraibano Celso Furtado (1920-2004) cri- ticou aquela situação em documento de 1962, no qual afirmava que, apesar dos imensos esforços, os resultados para o controle das secas sempre foram muito pequenos e prejudiciais à especi- ficidade do desenvolvimento nordestino.
Pois não podemos fugir à realidade que aí está: não obstante esse esforço, o Nordeste não encontrou o caminho do desenvolvimento. Pelo contrário, com a população cresceram a pobreza e a fragilidade social, transformando-se a região na mais vasta zona de miséria do hemisfério ocidental (Furtado, 1962, p. 2).
A seca nordestina de 1958 se transformou em elemento midiá- tico e facilitador da introdução do problema regional na agenda do governo de Juscelino Kubitschek, pois o Governo Federal per- dera influência política na região Nordeste. Como ressalta Maia Gomes (2001):
A seca inclemente obrigou a paralisação quase total das ati- vidades agropecuárias tendo ocasionado uma redução de 50% no valor da produção verificada, mesmo com a verti- ginosa elevação de preços ocorrida. Os prejuízos são incal- culáveis e o desemprego se verificou em massa. A área total assolada em 1958 corresponde a 500 mil km², abrangendo uma população de dez a onze milhões de habitantes. Para se ter uma ideia do crescimento populacional do nordeste basta recordar que a estimativa da seca de 1932 dava conta de 3 milhões de almas flageladas, numa área de 650 mil km² (Gomes, 2001, p. 92).
É possível visualizar nesse ponto específico que as situações emotivas transmitidas pela mídia podem se traduzir em políti- cas públicas em virtude do caráter emergencial das mesmas.
En líneas generales, podría afirmarse que un nuevo tema resulta susceptible de convertirse en “problema público” y, por tanto, llegar a formar parte del programa de actua- ción: (...) Cuando la cuestión provoca una seria situación emotiva que atrae la atención de los medios de comuni- cación (ejemplos como el de la talidomida en procesos de gestación, aceite de colza, etc.) (Subirats, 2006, p. 206).
Consequentemente poderia ocorrer a concretização emergencial das políticas públicas.
As políticas diferem umas das outras, entre outros aspectos, pela sua emergência ao longo do processo decisório. Em processos decisórios rotineiros (v.g., processo orçamentário), as ações dos policy-makers já são, em geral, programadas de início. Sua efetivação apenas aguarda o tempo apropriado, dentro de um cronograma mais ou menos formalizado. Assim também ocorre com a operação de certos instrumentos de política em determinadas conjunturas: tudo que o policy-maker tem que decidir é a dosagem ou mistura desses parâmetros cuja atuação é típica naquelas conjunturas (Monteiro, 2006, p. 271).
Naquele momento, a criação da SUDENE foi tentativa de reso- lução dos problemas políticos enfrentados pelo Governo Fede- ral. Ademais, era importante amortizar os conflitos revolucio- nários que se intensificavam particularmente na atuação das Ligas Camponesas (Hirschman, 1963). Quanto ao processo de- cisório, a SUDENE era a instituição que oferecia eficiência aos trâmites burocráticos quando solucionava conflitos coletivos e permitia a articulação dos governadores nordestinos em torno de pautas públicas comuns1.
O Conselho Deliberativo da SUDENE (CONDEL) foi capaz de aglutinar demandas divergentes da região. Ademais, ensejou diminuição dos custos de transação (North, 1990), funcionando com capacidade para organizar os interesses dos atores políticos ao definir estratégias comuns e influenciar o resultado de políticas regionais. A grande inovação do CONDEL era produzir formas de cooperação institucional, evitando que os governadores organizassem ações individuais dentro do federalismo, a exemplo do que ocorre atualmente com a guerra fiscal. A SUDENE foi inspira- da na iniciativa italiana de desenvolvimento regional, denomina- da Cassa per il Mezzogiorno. Segundo Otamar de Carvalho (2014):
A política de desenvolvimento industrial para o Mezzogior- no teve curso em duas fases distintas. Na primeira, entendi- da como a fase da pré-industrialização e cobrindo o período 1950-1957, os esforços governamentais não visavam ao fortalecimento direto do setor, mas à criação de sua base de apoio. Neste sentido, trataram as instituições voltadas para o desenvolvimento da área de promover a valorização agrá- ria e de implantar a infraestrutura econômica de que care- cia o Mezzogiorno, segundo a ideia de fomentar o desenvol- vimento equilibrado entre a agricultura e a indústria. (...) A segunda fase se inicia, de forma mais evidente, em 1959, quando o governo passa a definir precisamente os objetivos do programa de industrialização, atribuindo explicitamente à Cassa a competência de promover, encaminhar e apoia, nos limites de suas possibilidades, um processo acelerado de industrialização (Carvalho, 2014, p. 90).
Ao intentar promover uma representação democrática dos atores sociais envolvidos, o CONDEL era heterogêneo quanto à sua composição: possuía representante de cada um dos governa- dores dos estados nordestinos, além de alguns representantes do Governo Federal, de empresários, trabalhadores, membros do Banco do Nordeste e pelo Secretariado do desenvolvimento regional. Contudo, apesar do desenho institucional parecer pro- missor, a experiência da SUDENE sofreu algumas interrupções consideráveis: o período militar remodelou consideravelmente todas as suas competências, transformando-a em instituição de acompanhamento e execução das iniciativas federais, alterando sobremaneira o próprio desenvolvimento regional.
Este estudo está assim dividido: esta introdução inicial; um item subsequente, acerca do regime militar e do desenho do desenvolvimento regional brasileiro; uma terceira parte, que trata da Constituição de 1988 e das escolhas governamentais daquele período, no tocante ao desenvolvimento das regiões; uma quarta parte, sobre a PNDR nos anos 2000 e, finalmente, uma conclusão. Seguem os itens aqui elencados.
O regime militar e o desenvolvimento regional brasileiro
Ao assumirem o poder, em 1964, os militares contavam com um audacioso plano e projetos de Governo que abandonaram as ideias sudenistas anteriores, pois, a partir de então, a tônica era a cen- tralização administrativa e de poder. A atuação dos governadores de estado foi reduzida e a agenda governamental não comportava mais uma concepção do desenvolvimento regional pautada por políticas públicas setorializadas, a exemplo do que propunha a Su- dene, mas o projeto dos militares era, a partir de então, nacional. Uma das primeiras mudanças institucionais promovidas durante o regime militar foi a reforma no sistema federativo. Parte des- sas modificações objetivava intensificar o crescimento econômi- co - principalmente no aumento do Produto Interno Bruto (PIB) - para solidificar a concepção do “Brasil Potência”. A centralização política e econômica posicionou o Governo Federal no centro do desenho institucional: processo que ficou conhecido como mode- lo federativo unionista autoritário (Abrucio, 2002).
Além das alterações federativas, no regime militar a concepção do desenvolvimento regional foi alterada. Ocorreu a diminuição das atribuições institucionais da SUDENE e dos seus recursos materiais, porquanto os instrumentos financeiros da SUDE- NE foram direcionados igualmente para a região amazônica ao abarcar setores antes não contemplados (reflorestamento, pes- ca e turismo, entre outros).
Nesse ínterim, em 1970 irrompeu nova grande seca no Nordeste, que provocou a desarmonia daquela região com os projetos do “milagre econômico” preconizados pelos militares. Nova- mente, a região nordeste passava a ocupar o centro das atenções do Governo Federal, que intentava dirimir a eclosão - perante as intensas desigualdades econômicas e sociais nordestinas - de possível ruptura ao projeto da sua legitimação institucional e política. Gustavo Maia Gomes (2001) traduz, nesta passagem, o que significa o impacto das secas para o nordeste:
As secas são crises de produção que, abatendo-se sobre uma população já muito pobre, desencadeiam o que Renato Duarte apropriadamente chama de ‘calamidades sociais’. As constâncias das secas são muitas: elas arrasam com a pro- dução de subsistência, revelando seu extremo primitivismo tecnológico; desnudam a pobreza rotineira e o estado educacional deplorável dos sertanejos, transformando-os em pessoas inteiramente dependentes da ajuda governamental; tornam inevitável a repetição dos caminhões-pipa, dos créditos emergenciais, das frentes de trabalho. Mas o pior das secas é a certeza de que, enquanto houver no Sertão uma economia agropecuária de tecnologia rudimentar, con- tinuarão a existir os espetáculos periódicos da miséria agu- da, com suas sequelas obrigatórias (Gomes, 2001, p. 104).
A agenda dos militares engendrou, em grande medida, propostas de políticas desenvolvimentistas diversas daquelas empregadas pelo governo de Juscelino Kubitschek. O governo do presidente Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) ampliou os planos nacio- nais consubstanciados principalmente no I Plano Nacional de Desenvolvimento. Contudo, os referidos planos não abrangiam direcionamento específico para as questões regionais, pois na- quele momento a estratégia do Governo Federal era ampliar o crescimento ancorado no desenvolvimento econômico nacional integrado ao pretender articular todas as regiões do país para respaldar politicamente os pressupostos do seu plano desenvol- vimentista.
Nesse contexto, os planos regionais de desenvolvimento produ- zidos pela SUDENE no início da década dos 1960 foram reduzi- dos a pontos específicos dos planos nacionais, deixando de ser aprovados pelos governadores e, portanto, esvaziando as reu- niões do CONDEL: a SUDENE perdeu força institucional e, con- sequentemente, a capacidade de articular e elaborar os planos regionais. Os Planos Diretores da SUDENE foram substituídos pelos Planos de Desenvolvimento do Nordeste, os quais previam articulação da região ao projeto econômico nacional, visando o aumento do PIB e o crescimento econômico. A região deixava de ser lócus privilegiado do planejamento regional e passaria a agir como agente passivo do desenvolvimento nacional.
O Governo Médici (1969-1974) adotou novos instrumentos para modernizar a produção agrícola nordestina mediante a formação de dois incentivos: o Programa de Integração Nacional (PIN) e o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria no Norte e Nordeste (PROTERRA). Estes instrumentos econômicos visavam diminuir a desigualdade na distribuição da terra, fomentando, concomitantemente, a integração nacional. O esvaziamento institucional da SUDENE naquela época foi enorme, manifestando-se nas reformulações das pastas ministeriais. O Decreto n. 71.353 estabelecia que:
Art. 6º - As Superintendências Regionais de Desenvolvimento, notadamente a SUDENE e a SUDAM, darão sua colaboração ao órgão central do Sistema de Planejamento, no que couber, para efeito de melhor coordenação entre programas estaduais e federais (BRASIL, 1972, p. 3).
Perante esse cenário histórico, a atividade institucional da SU- DENE no processo decisório se tornou residual, já que inexis- tiam prerrogativas formais que caracterizassem os seus ob- jetivos e metas. Parece que a indefinição daquelas atribuições institucionais da SUDENE perpassou os governos militares. O Governo Geisel (1974-1979), por exemplo, conservou os pressu- postos de superação da desigualdade do Governo Médici ao bus- car a integração dos problemas particulares do Nordeste com as demais regiões. No decorrer do governo de Ernesto Beckmann Geisel (1907-1996) foi elaborado o II Plano Nacional de Desen- volvimento (II PND) para estimular a integração regional, porém aquele plano não definia de forma precisa quais seriam os problemas específicos concernentes às diversas regiões do país. Ao ser norteado pelo II PND, o planejamento regional passou a ser processado através dos chamados “Programas Especiais”, cujos objetivos primordiais eram o estímulo à agricultura e ao comba- te às secas. Alguns dos Programas Especiais foram: Polonordes- te, Proálcool, Projeto Sertanejo e o Projeto Nacional de Irrigação (Prohidro), os quais eram setorializados para algumas regiões específicas do nordeste.
A SUDENE permaneceu com as suas funções institucionais alteradas. Na prática, somente executava e fiscalizava as ações federais sem prerrogativa no processo decisório. Com efeito, os projetos de desenvolvimento regional durante os governos militares ofereceram primazia à integração e à coesão nacional. Nessas circunstâncias, o combate às desigualdades regionais retornou à “fase hidráulica” (Carvalho, 1979), pois as atribuições institucionais que a SUDENE desempenhava no ciclo do planejamento experimentado por Celso Furtado pareciam estar esgotadas.
A Constituição de 1988 e a questão regional: euforia ou frustração?
A redemocratização do Brasil representou importante fase his- tórica para o desenvolvimento das políticas públicas ao gerar expectativa política propícia para os rumos do desenvolvimento regional. A manutenção do sistema federativo foi uma das preo- cupações dos parlamentares constituintes, os quais decidiram torná-lo cláusula pétrea, conforme o inciso I do § 4º do artigo 60 da Carta Constitucional de 1988: “Não será objeto de delibera- ção a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado” (BRASIL, 1988).
Ao lado da conservação do federalismo, existe outro tópico referente à Constituição de 1988: a descentralização, propiciadora de relevância aos municípios até então unidades não legitimadas no federalismo brasileiro. Os governadores e prefeitos passaram a ser atores políticos fundamentais, com poder de proposição de agenda e amplo domínio sobre os incentivos e recursos financeiros. A questão regional obteve similarmente dimensão significativa, principalmente em dispositivos constitucionais que previam o repasse de renda para as regiões menos favorecidas, através dos Fundos Constitucio- nais de Financiamento do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste (FNO, FNE, FCO), constantes no Artigo 159. Segundo esse dispositivo constitucional, a União ficava obrigada a repassar 3% para aplicação em programas de financiamento do setor produtivo das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, assegu- rando ao Semiárido do Nordeste a metade dos recursos desti- nados à região. Neste sentido, embora de maneira não plane- jada, a Carta de 1988 estimulou a redução das desigualdades regionais. Não obstante, as inovações caminhavam paralela- mente com uma questão que permanecia desde o regime mi- litar: o enfraquecimento das instituições de desenvolvimento regional (Bercovicci, 2003). Em verdade, as críticas ao mode- lo constitucional adotado não foram poucas.
O movimento de descentralização federativa, entretanto, não teve curso efetivo, nem tampouco a questão regional ganhou relevância. Operaram na contracorrente da descen- tralização a necessidade de levar adiante a estabilização macroeconômica com o Plano Real em 1994 e o saneamen- to das finanças públicas federais e subnacionais no restante da década, o que veio a exigir recentralização de recursos e de autoridade decisória nas mãos do governo federal (Mon- teiro Neto, 2013, p. 122).
Apesar do processo de redemocratização, a política regional con- tinuou indefinida e sendo executada unicamente pelas transferên- cias orçamentárias previstas na Carta Magna. O debate girava em torno da partilha dos Fundos e se perdeu a oportunidade de inserir a temática regional na agenda governamental de maneira mais efetiva e com algum grau de participação social e accountability.
Podemos dizer que o processo de descentralização não elaborou programa coerente que explicitasse os seus objetivos. Nesse cená- rio, o Governo Federal se tornou ator político fundamental para o processo de descentralização ao visar à desarticulação do regime anterior apoiado na centralização de recursos e de poder.
O resultado do processo descentralizador observado no Brasil se expressou de maneira sistemática nos impactos sobre o federalismo brasileiro que o conduziram à crise federativa, fundamentalmente com a perda gradual da capacidade do Governo Federal de regular e programar políticas públicas. O conflito federativo observado atualmente ocasiona processos de descentralização de programas e projetos sem definição precisa de competências e encargos de cada ator federado no processo decisório (Affonso, 1995). Além disso, entre as esferas subnacionais sucede disputa velada - muitas vezes predatória - de recursos e incentivos fiscais (Abrúcio; Costa, 1999).
Deriva daí uma visão na qual os recursos sempre são insuficientes, e estados e municípios estão sempre credores perante um Governo Federal que, por suposto, teria a responsabilidade de transferir recursos indefinidamente (Silva e Costa, 1995, p. 271).
A Carta Constitucional de 1988 delimitou a preocupação com as desigualdades regionais, todavia deixou lacuna na sua capacidade de tratar as desigualdades regionais com o devido rigor, fazendo a déca- da de 1990 presenciar os efeitos diretos das decisões constituintes.
Findado, entretanto, o decênio dos 1990, o que se viu não foi um quadro de contínua expansão das disparidades regionais, mas, certamente, de indefinição da trajetória: houve momentos em que as regiões de menor nível de renda e produto perdiam participação para em seguida reconquistarem sua posição anterior. Na verdade, em face à conjuntura predominante de baixo crescimento econômico, elevada instabilidade das decisões do investimento privado e de retração do investimento público, não estava mais claro o que ocorreria a cada ano (Monteiro Neto, 2013, p. 128).
A estrutura fundada pela Constituição de 1988 - apesar de tentar organizar as questões regionais - deixou indefinida a participação do Governo Federal no planejamento de políticas regionais. Emergiram outras ocorrências daquela indefinição, em particular o fenômeno da guerra fiscal que corrobora a crise federativa recente provocada pela fragilidade da política nacional de desenvolvimento regional e ausência de incentivos à cooperação intergovernamental. Parte desse movimento permitiu paralisia decisória na área regional, e nos anos 1990 não foi possível recolocar satisfatoriamente a pauta do desenvolvimento regional.
Na passagem da crise dos anos 1980 para a estabilização dos anos 1990, a visão que se consolidou para a política re- gional foi a de ineficácia, de baixa efetividade e concentra- dora de renda, além do que capturada por grupos políticos oligárquicos. Todos componentes que contribuíram para sua desqualificação e desgaste político. Não por outra ra- zão que nos governos democráticos dos anos 1990 e 2000, passou a ser tra- tada a partir de seus atributos sociais, os quais deveriam ser o foco da agenda social brasileira mais ampla. Os bene- fícios que a efetivação de uma agenda social em um país tão desigual e com contingentes de pobres tão elevados é algo que deve ser afirmado plenamente. A questão adicional que se coloca é se as melhorias no bem-estar promovidas pela política social por meio de transferências de recursos para regiões onde a pobreza é mais presente são duradouras. É possível imaginar que, sem concomitantes transformações nas estruturas produtivas regionais, as regiões mais pobres terão condições de garantir a sustentabilidade dos avanços sociais? (Monteiro Neto, 2013, p. 124).
A partir de meados da década dos 1990, o governo do presiden- te Fernando Henrique Cardoso se destacou, em primeiro lugar, por promover ajuste fiscal ao buscar equilibrar a inflação e as contas públicas. Em segundo lugar, alavancou o seu projeto eco- nômico do Plano Real. As questões regionais foram deixadas em segundo plano, sem uma instituição que de fato representasse as suas particularidades.
O planejamento regional ficou restrito aos Planos Plurianuais. Em 1996, foi efetivado o programa Brasil em Ação. A sua concre- tização era prevista para o período de 1996 a 1998: composto de 42 projetos das mais variadas áreas - desde as sociais até as de infraestrutura - pretendia a inserção do Brasil na competitivi- dade do comércio exterior. No segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1998-2002), a continuidade desse programa foi o lançamento do Avança Brasil, responsável pela condução de temas relevantes para a economia nacional. Am- bos os programas não tinham planejamento específico para as regiões menos desenvolvidas - Nordeste, Norte e Centro-Oeste, apenas investindo indiretamente em infraestrutura, mas que igualmente tinha impactos naquelas regiões2.
As críticas ao programa Brasil em Ação foram várias, especialmente porque as medidas beneficiavam áreas com algum dinamismo econômico em detrimento daquelas sem nenhum atrativo que pudesse gerar algum desenvolvimento. Bacelar de Araújo (2005) resume o teor de algumas dessas críticas:
Quando se observa o Nordeste, nos investimentos do Brasil em Ação, destacam-se apenas os vales úmidos da fruticultura, o oeste graneleiro e o litoral do turismo. Ou seja, as áreas mais competitivas da região. É lá onde se estão construindo aeroportos, onde está a hidrovia do São Francisco e outros projetos (FÓRUM BNB de desenvolvimento, 2005, p. 229).
Posteriormente ao programa Brasil em Ação, foi executado o programa Avança Brasil, que estava inserido no Plano Plurianu- al. A política nacional do Governo Fernando Henrique Cardoso passou a ser definida em torno dos “Eixos Nacionais de Integra- ção e Desenvolvimento” ao atribuir maior relevo aos estados di- nâmicos da federação brasileira. Os critérios para o estabeleci- mento dos Eixos eram pautados por alguns requisitos, tais como a qualidade dos transportes, a identificação clara das áreas dinâ- micas, entre outros (Monteiro Neto, 2005).
Todavia, a grande questão é que as diretrizes contidas nos Pla- nos Plurianuais não eram estratégias ou políticas de condução do combate concreto das desigualdades regionais. Ao serem in- troduzidas na pauta dos Planos Plurianuais, as políticas regio- nais perderam a sua capacidade de coordenar a efetivação de uma agenda regional que atendesse eficazmente as demandas geradas pelas necessidades particulares de cada região. A pauta dos anos 1990 era outra, embora as permanências das desigualdades regionais contribuíssem para a emergência de iniciativas com poder de controlar aquelas assimetrias. Além disso, Brandão (2019) indica que:
Entretanto, uma análise crítica da capacidade do Estado revelaria que este vai perdendo crescentemente, sobretudo a partir do final da década de 1980, o poder estratégico de de- cisão frente aos interesses dos setores privados. As instâncias de coordenação foram paulatinamente sendo prejudicadas, o que fez com que prevalecesse uma perspectiva compartimendora nas decisões públicas. As ações públicas se tornaram predominantemente setoriais e fragmentadas e orientadas pelo atendimento das demandas localizadas e circunscritas, de curto prazo. Por exemplo, se deslegitimou totalmente o tratamento abrangente, e com continuidade planejadora, das questões regional e urbana (Brandão, 2019, p. 16).
As desigualdades regionais foram constantes desde a Constituição de 1988 até os anos 2000, conforme podemos observar com o PIP per capita estadual:
Para referendar os dados acima, quando observamos os dados do IDH das regiões, novamente o Nordeste aparece com os menores índices, provando que a região precisa de intervenções governamentais sistemáticas.
Ao desagregarmos os dados, observamos que os PIBs estaduais per capita dos estados nordestinos são bem inferiores ao restante dos entes subnacionais, conforme podemos verificar pelos dados da tabela abaixo:
Desse modo, no início do século XXI, ganhou impulso a ideia de que era preciso retomar a agenda regional em outros patamares. A equipe do Ministério da Integração Nacional - protagonista nos governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010) - elaborou o projeto da Política Nacional de Desenvolvimento Regional com a finalidade de sistematizar na prática políticas públicas que diminuíssem as desigualdades regionais.
A Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR)
Entre os anos de 2002 a 2010, que compreendem os dois Governos Lula, foi organizado o retorno do planejamento regional através da criação da Política Nacional de Desenvolvimento Regional. Diferentemente de outros períodos históricos, a PNDR previa política que tivesse o controle direto do Governo Federal e que constatasse as particularidades de desenvolvimento de cada região brasileira. A proposta foi institucionalizada em 2007 pelo Decreto no 6.047/2007, e a sua execução era responsabilidade do Ministério da Integração Nacional. Ciro Gomes, então Ministro da Integração Nacional, explicitou as justificativas para o lançamento da PNDR:
No Brasil, as desigualdades regionais constituem um fator de entrave ao processo de desenvolvimento. A unidade da federação com o Produto Interno Bruto per capita (a preços de mercado) mais elevado supera em cerca de 9 vezes o da unidade pior situada neste indicador. Ora, essas diferenças de capacidade de produção refletem-se diretamente sobre as perspectivas de qualidade de vida das populações que re- sidem nos estados mais pobres. As desigualdades possuem, assim, aguda expressão regional no Brasil, diferenciando os cidadãos também com relação ao seu domicílio e local de trabalho. O Ministério da Integração Nacional entende que o caminho de redução das desigualdades passa pela valoriza- ção da magnífica diversidade regional do país. Isso significa dizer que o problema regional brasileiro encontra uma via de superação na exploração consistente dos potenciais en- dógenos de desenvolvimento das diversas regiões do país (BRASIL, 2003, p. 7).
Juntamente com a proposta da PNDR, previa-se: 1) Recriação das Superintendências de Desenvolvimento do Nordeste, da Amazônia e do Centro-Oeste (SUDENE, SUDAM e SUDECO); 2) Reformulação nos Fundos Constitucionais de Financiamento (FNO, FNE e FCO); 3) Criação do Fundo de Desenvolvimento Re- gional para a Amazônia (FDA) e do Fundo de Desenvolvimento do Nordeste (FDNE). O objetivo principal da política era o com- bate às desigualdades regionais, ao considerar os dinamismos econômicos e as potencialidades peculiares de cada região.
A inovação da PNDR residia em suas três escalas de atuação: na- cional, macrorregional e sub-regional. No plano nacional, cabia ao governo federal identificar as escalas subsequentes de atua- ção orientada para as áreas prioritárias. Antes do pretendido restabelecimento institucional da SUDENE e da SUDAM pelo Governo Federal, na escala macrorregional, os planos estratégi- cos de desenvolvimento foram elaborados pela Agência de De- senvolvimento da Amazônia (ADA) e pela Agência de Desenvol- vimento do Nordeste (ADENE). Nos cenários sub-regionais se destacavam duas áreas prioritárias: o semiárido nordestino e as faixas de fronteira. Nesses espaços subnacionais - fundamentais para o exercício prático das ações federais - procurava-se efeti- var a “Mesorregião Diferenciada”.
A agenda de ações dos programas regionais inclui: organi- zação dos atores sociais e apoio à estruturação de instâncias de representação, bem como de instrumentos e mecanis- mos de ação sub-regional; infraestrutura de média e pe- quena escala; apoio à inovação e fortalecimento de arranjos produtivos locais; capacitação de recursos humanos; apoio à ampliação dos ativos relacionais e oferta de crédito para as unidades produtivas. É importante frisar que as políticas de desenvolvimento endógeno dependem da mobilização das forças sociais das regiões. Estas é que irão definir, a par- tir de sua leitura da realidade regional, as estratégias espe- cíficas de ação, por meio de pactuação em fóruns e outras instâncias de concertação territorial (BRASIL, 2003, p. 16).
A partir da confecção da PNDR I, no ano de 2012 foi realizadanos 27 estados brasileiros - a I Conferência Nacional do Desen- volvimento Regional com o objetivo de maior participação social na elaboração da PNDR II, que entraria em vigor a partir da fina- lização da mencionada conferência. O documento de referência I Conferência Nacional do Desenvolvimento Regional criticava as políticas públicas de modelo top-dow3, elaboradas unilateralmente pelo Governo Federal sem a participação democrática das regiões.
Outrossim, o processo de globalização exigia novos posiciona- mentos do Estado Nacional ante a questão da sustentabilidade e do efeito China4. Ainda, o documento da Conferência apontava que o federalismo brasileiro deveria possuir autonomia e des- centralização para estimular a cooperação e a governança, con- dição primordial para alcançar a equidade regional e a coesão econômica, política e social entre os Estados da Federação. Os indicativos da I Conferência do Desenvolvimento Regional indi- cavam as prerrogativas da PNDR II: combate às desigualdades inter e intrarregionais ao priorizar as especificidades regionais para valorizar as potencialidades internas. Algumas avaliações foram realizadas e publicadas por especialistas em relação às duas PNDR.
Todas as políticas territoriais, sobretudo a PNDR, exigiriam o reaparelhamento e o fortalecimento estratégico e legitimado do Estado para fazer frente às variadas formas e expressões de desigualdade presentes no território nacional, que deve- riam ser enfrentadas multiescalarmente (multinível de go- verno) e multi-instrumentalmente. Portanto, todas passam pela questão fundante do pacto federativo, enquanto coali- zão e convenção territorializada do poder e capacidade de estruturação e organização sociopolítica do espaço nacional em suas interfaces com as múltiplas escalas espaciais (supra- nacional e subnacionais) (Brandão, 2013, p. 169).
Em contrapartida, Resende et al. (2015) avaliaram a PNDR da seguinte maneira:
Entretanto, alguns desafios estão postos para a posterida- de. Com volumes de recursos mais expressivos nos últimos dez anos disponíveis tanto para a política regional quanto para as políticas sociais e setoriais, tem-se a necessidade de elevar os esforços de coordenação das várias esferas das políticas no sentido de aumentar a eficácia e o multiplica- dor regional dos recursos aplicados no território brasileiro. Deve-se ter em mente que a PNDR deve ser capaz de pôr em acordo os diferentes níveis de governo – desde os agentes locais até o governo federal –, bem como os entes públicos e privados, com o intuito de melhor executar a referida políti- ca. Colocar em prática esse arranjo institucional não é nada trivial e, ao mesmo tempo, é um ponto essencial para se obter o sucesso esperado com a PNDR (Resende; Moreira, Alves, Rocha Neto, 2015, p. 34).
Concomitantes às ações institucionais propostas pela PNDR, outros mecanismos não atrelados diretamente ao planejamento regional tiveram impactos positivos na diminuição da pobreza na região Nordeste. Por exemplo, o Programa Bolsa Família al- terou consideravelmente a configuração da pobreza e miséria naquela região. Pelos dados da tabela abaixo, é possível verifi- car que o Nordeste concentra até então a maior quantidade de moradores em situação de pobreza extrema quando comparado com outras regiões, segundo dados do DATASOCIAL, do Ministé- rio do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, de 2018:
Em contrapartida, a região Nordeste apresenta e concentra as maiores quantidades de famílias que recebem pagamento men- sal do programa Bolsa Família, conforme podemos observar no gráfico abaixo, que compreende os anos de 2005 a 2016:
lisarmos o número de famílias em situação de extrema pobreza, desde a redemocratização no Brasil até 2012, é possível inferir diminuição significativa da pobreza nos estados que compõem a região Nordeste. Não podemos afirmar com precisão as razões pelas quais essa mudança social foi processada, pois não é tarefa do presente estudo. Mas podemos supor que a eficácia dos programas de distribuição de renda contribuiu para a reconfiguração do cenário social nordestino hodierno. Abaixo, o gráfico aponta a redução do número de famílias com renda per capita inferior à linha de pobreza, em todos os estados nordestinos, de 1988 até 2012:
Os dados apontados podem contribuir para a reflexão teórica e prática acerca do planejamento regional consubstanciado na PNDR ou mesmo nos programas de distribuição de renda, pois ocorreu atenuação significativa do quadro de miserabilidade da região Nordeste do Brasil: amenização da pobreza que pode ser resultado de ações institucionais e políticas que interferiram positivamente - de maneira lenta e gradual - no quadro das históricas assimetrias federativas no Brasil.
Conclusão
Foram analisados neste artigo alguns aspectos do federalismo brasileiro e das assimetrias entre as regiões. Nessa conjuntura, o Nordeste se destacou pelas intensas desigualdades em relação às demais regiões e a formação da SUDENE representou inovação institucional ao maximizar os mecanismos de cooperação intergovernamental para diminuir aquelas desigualdades. Ao ser superada a antiga ideia de que o problema da região estava estritamente relacionado ao dilema climático das secas, a par- tir dos anos 1950 foi iniciada intensa fase de planejamento no Nordeste. Neste sentido, a SUDENE assinalava que as diferenças econômicas e sociais entre o Nordeste e o Centro-Sul produziam efeitos negativos para toda a federação.
Celso Furtado reconhecia que a industrialização brasileira priorizou os centros dinâmicos da economia - em prejuízo das regiões menos desenvolvidas - e justificava o nascimento da Superintendência para diminuir os impactos das assimetrias regionais. O surgimento da SUDENE foi favorecido pelo contexto social mais amplo, sobretudo pelas crises provenientes das secas nordestinas, que ao adquirirem protagonismo mi- diático e político exigiam particular atenção do Governo Federal. Além das secas, movimentos revolucionários como as Ligas Camponesas também eram fatores cruciais para a le- gitimação de uma instituição responsável por solucionar os problemas da região.
A SUDENE nascia como instituição facilitadora para a redução dos chamados “custos de transação” (North, 1990) e represen- tava arena privilegiada de cooperação dos atores regionais ao diminuir o “grau de incerteza” dos governadores. Ao agirem como policy makers5, aqueles atores eram peças fundamentais no processo decisório das políticas regionais empreendidas ao serem detentores da capacidade de coordenar políticas públicas importantes para a região.
Porém, o regime militar foi decisivo para interromper a trajetória institucional da SUDENE. As suas prerrogativas institucionais não foram retomadas com a redemocratização política ocorrida nos anos 1980, e os planos da SUDENE cederam espaço aos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs). Além disto, houve a criação dos chamados Programas Especiais voltados para o desenvolvimento da agricultura e da agropecuária me- diante incentivos financeiros à irrigação, negligenciando visão mais abrangente das causas econômicas, políticas e sociais da pobreza e da miséria na região Nordeste.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, as agendas de desenvolvimento regional reapareceram. O recente texto constitucional estabelecia repasses financeiros para as regiões mais pobres; entretanto, inexistiu revitalização institucional das Superintendências, que permaneceram esvaziadas.
Se os dispositivos constitucionais vinculados aos Fundos Constitucionais de Financiamento (FNE, FNO e FCO) e aos Fundos de Participação de Estados e Municípios foram importantes fontes de renda para as regiões mais pobres, as ideias de planejamento regional e política regional foram esquecidas. Prevaleceram ações e programas circunscritos aos espaços economicamente mais desenvolvidos da federação, deixando esquecidas as re- giões com baixo dinamismo econômico.
Foram inibidas ações cooperativas dos atores políticos interes- sados na pauta regional. Nessa circunstância, a crise federativa adquiriu forma plena na denominada “guerra fiscal”: os estados, individualmente, procuravam adquirir incentivos privados para os seus territórios, acirrando a competição e a descoordenação intergovernamental.
Ainda, os anos 1990 assistiram à inserção da agenda regional nos Planos Plurianuais: as análises dos Programas “Avança Brasil” e “Brasil em Ação” (Governo Fernando Henrique Cardoso) demonstraram que foram priorizadas as regiões mais desenvolvidas enquanto as regiões menos desenvolvidas não eram portadoras de qualquer protagonismo.
Os dois governos consecutivos de Luiz Inácio Lula da Silva intentaram inovação na questão do planejamento regional com as elaborações das PNDR (I e II). Paralelamente às políticas de desenvolvimento regional, os programas de distribuição de renda adquiriram protagonismo na diminuição da miserabilidade em todos os estados da região Nordeste do Brasil. A retomada de políticas públicas específicas para o desenvolvimento regional está associada às regiões com históricas diferenças sociais. Esse tema foi pontuado por Celso Furtado no livro intitulado “A fantasia desfeita”:
É difícil exagerar com respeito ao Nordeste do Brasil. Aí tudo escapa a explicações fáceis. A sociedade não é fruto nem de conquista, nem de um projeto de colonização. Desde seus primórdios, tudo se apresenta como definitivo, com os traços básicos que persistiram por séculos. Os que chegam trazem consigo meios necessários para pôr em marcha uma empresa que já nasce próspera. Nessa parte mais oriental das Américas, a expansão comercial europeia assume a força de implantação do homem alienígena como produtor de riqueza utilizando recursos renováveis, à diferença do que ocorria alhures (Furtado, 1989, p. 15).
Cabe acompanharmos o desenvolvimento das políticas regionais, como a própria PNDR, para aferirmos de maneira mais sistemática os números da pobreza e da miséria em cada região.
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Notas