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Recepção: 24 Março 2021
Aprovação: 10 Maio 2021
Cómo citar / citation: Costa, J.K. y Ferreira, F. (2021). Construção da paz, qual paz? O problema do estreitamento do conceito de paz nas operações de peacebuilding da ONU. Estudios de la Paz y el Conflicto, Revista Latinoamericana, Volumen 2, Número 4, 65-79, https://doi.org/10.5377/rlpc.v2i4.11472
Resumo: No cenário internacional, muitas vezes, o conceito de paz ficou condicionado à forma como os atores internacionais estavam lidando com os conflitos. Durante as guerras mundiais, o objetivo era manter a paz entre as potências. Nesse contexto, paz era sinônimo de segurança. Durante a Guerra Fria, em um contexto de diminuição dos conflitos entre Estados e aumento dos conflitos dentro dos Estados, o conceito de paz predominante era o da paz liberal. A paz liberal se concentra na reforma estrutural de Estados cujos fracassos criaram condições para o surgimento de conflitos. Para a literatura crítica, a paz liberal é um conceito estreito de paz, pois impõe a paz de “cima para baixo” e ignora elementos importantes como os relacionamentos. Tendo em vista essas discussões, o presente artigo tem como objetivo discutir o problema do estreitamento do conceito de paz dentro da abordagem de construção da paz liberal. Em primeiro lugar será debatido o que é “paz”. Em segundo lugar, será examinado o surgimento e a defesa do conceito de paz liberal no cenário internacional. E por fim, será abordada a perspectiva crítica que traz a discussão sobre a essência da construção da paz fundamentada nos relacionamentos.
Palavras-chave: Construção da paz, paz liberal, crítica.
Abstract: On the international stage, the concept of peace was often conditioned on how international actors were dealing with conflicts. During world wars the goal was to maintain peace between the powers. In this context, peace was synonymous with security. During the Cold War, in a context of diminishing conflicts between states and increasing conflicts within states, the prevailing concept of peace was liberal peace. Liberal peace focuses on structural reform of states whose failures have created the conditions for conflict to arise. For critical literature, liberal peace is a narrow concept of peace, as it imposes peace from "top to bottom" and ignores important elements such as relationships. In view of these discussions, this article aims to discuss the problem of narrowing the concept of peace within the liberal peace-building approach. Firstly, what is "peace" will be debated. Secondly, the emergence and defence of the concept of liberal peace on the international stage will be examined. And finally, the critical perspective that brings the discussion about the essence of building peace based on relationships will be addressed.
Keywords: Peacebuilding, liberal peace, criticism.
Resumen: En la esfera internacional, el concepto de paz suele estar supeditado a la forma en que los actores internacionales abordan los conflictos. Durante las guerras mundiales, el objetivo era mantener la paz entre las potencias. En este contexto, la paz era sinónimo de seguridad. Durante la Guerra Fría, en un contexto de disminución de los conflictos entre Estados y de aumento de los conflictos en su interior, el concepto de paz predominante era el de paz liberal. La paz liberal se centra en la reforma estructural de los Estados cuyos fracasos crearon las condiciones para la aparición de conflictos. Para la literatura crítica, la paz liberal es un concepto estrecho de paz porque impone la paz desde "arriba" e ignora elementos importantes como las relaciones. Este documento tiene por objetivo analizar la problemática de acotar el concepto de paz dentro del enfoque liberal. En primer lugar, se discutirá qué es la "paz". En segundo lugar, se examinará el surgimiento y la defensa del concepto de paz liberal en el ámbito internacional. Y, por último, se abordará la perspectiva crítica que aporta el debate sobre la esencia de la construcción de la paz basada en las relaciones.
Palabras clave: Construcción de paz, paz liberal, crítica.
Extended abstract
The concept of peace in itself is diverse and full of meaning. At the theoretical level, there was a fear of discussing the meaning of peace. Johan Galtung was one of the leading theorists to overcome this fear. In his view, peace has two dimensions, one positive and one negative. Negative peace "denies" war, that is, it is defined in terms of the absence of direct conflict or direct violence. Positive peace also means an absence of war, but it also presupposes an absence of structural violence that refers to a type of violence related to the structures of society such as politics and the economy; and cultural violence related to culture. In addition, positive peace points to the presence of something like justice and well-being. This definition appeared in response to traditional approaches to peace that focused on the state. From this perspective, peace was defined in terms of state security and maintaining the status quo.
In the international scenario, the concept of peace was often conditioned to the way in which international actors were dealing with conflicts. In the face of conflicts, the international community sought to create mechanisms to limit the war. In view of this objective, peace operations arose that were developed through the character of conflicts. Early peace operations were limited. They basically served to “stifle” interstate conflicts. This largely explains the predominance of theoretical approaches to peace that focus on traditional assumptions about state security. Indeed, after the Cold War, the threats to peace in the international system were no longer just wars between states, but within states. This more complex threat involves state bankruptcy, which is why it needed operations with a greater number of activities and deployed actors. Multidimensional peacebuilding peacekeeping operations sought to mitigate the effects of this threat on the international system.
The term “peacebuilding” appeared at the UN in 1992 with the Agenda for Peace, after a process of reformulation of the concept of peace that was driven by the discussions undertaken by Galtung. At the UN, peacebuilding was defined as a set of activities aimed at rebuilding the infrastructure of nations torn apart by civil war. In these terms, peacebuilding operations sought to (re) build states (statebuilding), because state bankruptcy was perceived to be the main cause of conflicts in the post-Cold War. According to Richmond (2010a), the convergence of peacebuilding with statebuilding culminated in the “liberal project”. This project concerns a consensus among international actors that the best way to contain the escalation of violence in the international system should be through the liberal assumptions of “liberal peace” that include liberalization of markets and establishment of liberal democracies (Richmond, 2010a). For theorists, this method represents an imposition of peace from top to bottom (top-down) that ceases to "give voice" to the locals.
For critical literature, liberal peace is a narrow concept of peace, as it imposes “top-down” peace and ignores important elements such as relationships. In view of these discussions, this article aims to discuss the problem of narrowing the concept of peace within the liberal peace-building approach. In the first place, what is “peace” will be debated. Second, the emergence and defense of the concept of liberal peace on the international stage will be examined. And finally, the critical perspective that brings the discussion about the essence of peace building based on relationships will be approached.
1. INTRODUÇÃO
O termo “construção” da paz (peacebuilding) é considerado o principal princípio orientador das intervenções internacionais em sociedades devastadas por violência e guerras. Desde que foi introduzido no léxico das discussões sobre a política internacional, o conceito vem sendo debatido por diversos círculos de agências internacionais e organizações não governamentais. Com a finalidade de criar condições para uma paz sustentável, e principalmente com o objetivo de impedir a retomada da violência, a construção da paz conta com uma série de práticas que ao longo dos anos tem passado por constante expansão. As atividades ligadas ao conceito têm incluído desde prevenção de conflitos à reconstrução da paz pós-conflito. Atualmente o termo tem sido utilizado como sinônimo para construção de Estados, mudança de regime, intervenção humanitária e governança (Tschirgi, 2014;Cravo, 2018).
Ao mesmo tempo em que as atividades de construção da paz se expandiram, um corpo crescente de literatura se desenvolveu com o objetivo de debater as características fundamentais, as práticas e as limitações do peacebuilding no pós-conflito (Richmond, 2005, 2010; Chandler, 2013; Duffield, 2007; Macginty, 2016; Paris, 2004). Para Oliver Richmond e Roger MacGinty, a construção contemporânea da paz pós-conflito faz parte de uma narrativa essencialmente liberal de práticas de intervenção internacional (Richmond, 2005, 2010a; Macginty, 2010, 2011, 2013, 2016). Essa narrativa foi influenciada pelo conceito de “paz liberal” que vem de uma longa tradição ocidental, de vivências em conflitos violentos e de reflexões a respeito da paz. No centro deste enquadramento, está a crença de que democracias raramente entram em conflito entre si, advinda da teoria da “paz democrática”1. Entretanto, a paz liberal não deve ser confundida com a paz democrática, uma vez que a primeira além de compreender uma tese sobre a ausência de conflito entre democracias abarca um conjunto de valores e práticas políticas, econômicas e sociais de caráter liberal cujo objetivo é mitigar os efeitos dos conflitos armados por meio da construção de democracias liberais (Cavalcante, 2013).
De acordo com Guerra e Blanco (2018), é possível considerar o predomínio da abordagem da construção da paz liberal no cenário internacional pós-Guerra Fria partindo do pressuposto de que o surgimento do termo foi condicionado à forma como a comunidade internacional estava conduzindo as atividades contra o que era percebido como ameaça à segurança, ou seja, o alargamento das práticas da paz no cenário internacional ocorreu em função dos elementos considerados como perigosos à paz e a segurança do sistema internacional (Guerra e Blanco, 2018). Assim, a crítica de Richmond (2005) ao modelo estabelecido no pós-guerra Fria mostra que a definição da paz está normalmente escondida nos debates sobre como responder aos conflitos. Para ele, a “paz” tem sido conceitualizada no cenário internacional como uma atividade ocidental derivada da guerra, das grandes conferências ou de um conjunto de normas institucionalizada associadas à noção liberal que estabelece a paz para os Estados, Impérios ou para seus principais blocos. Os atores internacionais são capazes de criar qual tipo de paz será estabelecida (Richmond, 2005)2.
Para as abordagens mais destacadas do próprio campo intelectual das Relações Internacionais, a dicotomia entre guerra e paz ocupa um espaço fundamental. Embora tal suposição seja compreensível, dado o contexto histórico das Grandes Guerras, no qual reside o surgimento da disciplina, pouco foi discutido, no posterior desenvolvimento epistemológico do campo, sobre a natureza desses dois fenômenos internacionais, embora uma quantidade substantivamente maior tenha sido dedicada a compreender o fenômeno da guerra (Sutch e Elias, 2007). Enquanto a discussão considerada mainstream manteve o debate sobre a paz relegado ao esquecimento, uma tradição mais crítica já refletia se o antagonismo real não se daria entre paz e violência - em especial, a tradição alavancada por Johan Galtung e que fundamentaria o campo dos Estudos Para a Paz (Galtung, 1969).
Tendo em vista essas discussões, o presente artigo tem como objetivo geral oferecer uma visão crítica à paz liberal a partir da importância da restauração dos relacionamentos a nível local. A metodologia utilizada é pautada em uma abordagem qualitativa com revisão de literatura. O artigo divide-se em três seções. A primeira seção buscará compreender o que é paz e o desenvolvimento do conceito no âmbito teórico. A segunda seção aborda o contexto histórico e como o conceito de paz foi tratado dentro da agenda de construção da paz das Nações Unidas. Assim, será possível observar como o termo de construção da paz busca estabelecer um tipo específico de paz, a paz liberal. Por fim, a terceira seção abordará uma das perspectivas críticas à paz liberal da ONU, em especial a abordagem empreendida por Lederach. Essa análise crítica traz a discussão sobre a essência da construção da paz, os relacionamentos.
2. PENSANDO A PAZ NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
Em diferentes épocas, línguas e civilizações a paz têm um significado diferente. De acordo com Richmond (2014), “a história da paz é tão antiga quanto a própria humanidade, e certamente tão antiga quanto a guerra”. O realismo clássico afirma que a guerra é o estado natural da humanidade, e por isso qualquer espécie de paz é sempre frágil e momentânea. A paz muitas vezes tem sido uma peça subserviente ao poder e aos interesses. O fato de a história a respeito da paz ser raramente contada (“apesar de sua onipresença”) beneficia as elites que veem a violência como ferramenta política e econômica (Richmond, 2014, p. 1). Johan Galtung (1981), teórico e um dos principais nomes dos “Estudos para a Paz” procurou à luz da cosmologia social de várias civilizações, analisar o conceito de paz. Na sua visão, um diálogo entre as civilizações e entre as religiões é primordial e uma necessidade óbvia que pode contribuir para formar conceitos de paz mais ricos. No pensamento Ocidental, embora sejam semelhantes ao seu equivalente “paz”, o shalom hebraico, o eirene grego e a pax romana abarcam algumas diferenças importantes (Galtung, 1981)3.
A tradução hebraica de paz, shalom, aparece na religião judaica como uma relação entre Javé (Yahweh - Deus) e o seu povo escolhido de Israel. A aliança de Deus com o Povo naturalmente resulta em justiça e prosperidade para esse povo. O shalom pode referir-se à paz com Deus, mas não com outras pessoas. A exclusividade do conceito faz com que o Povo Escolhido seja o responsável em administrar a paz aos outros em virtude do status conferido a eles por Deus. A tradução grega de palavra paz “eirene” refere-se à “união”, “restauração”, “reconciliação”, “harmonia” entre outros. A ideia é de um conceito racional típico dos gregos, de relacionamento direto entre “diferentes”, não somente por meio da fé em um Deus. Na tradição cristã primitiva, os ensinamentos de Jesus Cristo seguem a tradução grega e se distinguem do significado de paz da origem judaica. Cristo não fez referência a nenhum povo escolhido, mas sim a uma nova ordem, um Reino dos Céus. A paz de Cristo no sentido do amor ágape (amor altruísta) é vista como ações ativas de boa vontade e auto-entrega. Não há posição especial para o Povo Escolhido nem promessa de domínio (Galtung, 1981).
Em contraste a essa perspectiva, entre os Romanos, a paz (pax) está ligada essencialmente à ausência de guerra. A pax romana é derivada da mesma raiz de pacto ou acordo (pacta sunt servanda - "os tratados devem ser observados") e está associada a tranquilitas, quies, otium (tranquilidade, descanso e lazer), e a securitas (segurança) do Império Romano (Bainton, 2008, p. 17). Manter a segurança era o foco, pois, a pax romana era uma paz determinada por um centro de poder que visava manter o status quo e a segurança das suas fronteiras. Tomando isso como um fato, a violência era justificada (bellum justum) como um pretexto para uma paz que seria construída (si vis pacem, para bellum – se quer paz prepare-se para a guerra) (Wengst, 1987). A guerra tinha um papel central na história de Roma. Segundo Goldsworthy (2016), os romanos eram guerreiros natos “hábeis na política de dominar os outros”. Foi assim que Roma tornou-se um dos Impérios mais bem sucedidos do mundo em termos de lutas. Manter o exército forte e o domínio sobre a população fazia com que a “paz” fosse mais duradoura (Goldsworthy, 2016, p. 10).
De acordo com Galtung (1981), esse é o conceito que predomina no mundo Ocidental, uma paz egoísta e autointeressada. Nas abordagens teóricas e práticas que tratam de alguma forma da busca pela “paz”, o foco principal é a manutenção da ordem interna, segurança do Estado e equilíbrio de poder. Nesses termos, “paz” era tratada como sinônimo de segurança estatal (Galtung, 1981). Durante a Guerra Fria, os Estudos Tradicionais de Segurança Internacional ou Estudos Estratégicos foram fundamentados nessa perspectiva predominantemente estadocêntrica que é definida pela utilização da força militar por parte dos Estados contra as ameaças que eles enfrentam (que são predominantemente ameaças militares) (Buzan y Hansen, 2012). Nas Relações Internacionais, o mainstream é dominado por essa abordagem que corresponde à perspectiva teórica do Realismo Clássico de Hobbes, Maquiavel, Carr, Morgenthau entre outros, que é predominante no contexto entre guerras, o qual tem no Estado e nas dinâmicas de poder sua principal explicação para os fenômenos internacionais (Richmond, 2005).
Em resposta a essa abordagem estadocêntrica e militarista dominante desde o final da Segunda Guerra Mundial, um grupo de estudiosos (que incluía o supracitado Johan Galtung) passou a refletir sobre a guerra como um fenômeno geral, com propriedades semelhantes que, como coloca Galtung, diz respeito à violência que acontece em vários âmbitos, sejam nas relações internacionais, na política nacional, na economia, nas comunidades, nas famílias e no âmbito individual (Ramsbotham, Woodhouse e Miall, 2005). De maneira geral, esses teóricos buscaram contestar as perspectivas realistas da política internacional, da segurança, e da guerra, a fim de encontrar um novo referencial que não fosse o Estado e a sua segurança nacional. Foi com essa perspectiva, que emergiram os estudos críticos de segurança, juntamente com as pesquisas da paz, que fornecem um “contraponto normativo clássico aos Estudos Estratégicos, buscando reduzir ou eliminar a utilização da força nas relações internacionais” e colocar o indivíduo como principal referencial (Buzan e Hansen, 2012, p.73).
Dessa forma, enquanto os acadêmicos realistas defendem a pax romana baseados na máxima de “aquele que deseja a paz prepare-se para a guerra”4, os estudiosos da paz defendem a paz não como um mero produto de vitórias militares entre guerras inevitáveis ou como uma categoria utópica e inatingível, mas como uma pujante categoria capaz de criar práticas baseadas no pressuposto radical de que “se buscarmos a paz devemos nos preparar para ela” (Dunn, 2005, p. 1). Em outras palavras, a paz é uma categoria que promove uma transformação profunda da realidade a partir de ações não violentas e cooperativas entre os indivíduos (Pureza e Cravo, 2005, p. 6). Logo, o grande desafio de Galtung foi superar o medo da palavra “paz” na academia. Diante disso, ele deu inicio aos “Estudos para a Paz”5 que contou com uma pesquisa interdisciplinar, transdisciplinar e multidimensional para pensar e dar foco exclusivo à “paz”, a partir de duas categorias epistemologicamente distintas, a paz negativa e a paz positiva (JPR, 1964).
A paz negativa é definida como aquilo que a paz não é ou que ela nega: violência física (direta) e a guerra. Essa noção traduz tanto a concepção utilizada pelo Realismo nas Relações Internacionais e pelos Estudos Estratégicos quanto a percepção popular de movimentos pacifistas, que geralmente enxergam a paz como a não-guerra. Na segunda categoria – paz positiva - a definição de paz é ampliada a partir de tudo o que ela pode incorporar, seja mudança de mente, de relacionamentos e trocas entre grupos sociais, mudanças na educação, na pesquisa, na comunicação, transformação social e econômica, cooperação institucional entre grupos e nações, e quaisquer outras propostas que estejam envolvidas com a integração humana. Nessa segunda perspectiva, a paz não se define somente como ausência de violência física e direta, embora esta continue a ser uma dimensão necessária, mas se amplia, abrangendo iniciativas que promovam ações de integração, bem como construção de um sistema globalmente integrado, onde os seres humanos possam alcançar seus potenciais por meios não violentos (Oliveira, 2017).
A definição de paz de Galtung (1969) foi seguida pela consideração de que “a violência está presente quando os seres humanos estão sendo influenciados de tal maneira que as suas realizações somáticas estão abaixo das suas realizações potenciais” (Galtung, 1969, p. 170). Dentre as várias tipologias que ele utiliza, três estão presentes nas dinâmicas dos conflitos: A violência direta, pessoal ou visível que se manifesta quando há a destruição dos meios utilizados pelos seres humanos para atingirem suas capacidades. A violência estrutural é o tipo de violência relacionada com uma estrutura social exploradora, repreensiva e injusta cujas consequências para as sociedades e para os indivíduos são pobreza, desigualdade e injustiça (Galtung, 1969, 1996). E a violência cultural que apareceu na sua obra somente nos anos 1990 mediante observações dos acontecimentos ocorridos durante esse período. Este último tipo de violência é identificado a partir de qualquer ataque relativo à cultura e às identidades da sociedade. Na violência cultural aspectos simbólicos da vida humana como religião, ideologia, arte, linguagem, ciência, etc, podem se tornar elementos capazes de reforçar as formas diretas e estruturais de violência (Galtung, 1990).
Na prática, as discussões teóricas de Galtung contribuíram para a criação de ações e a possibilidade de intervenções com o objetivo de estabelecer a paz. Em meados da década de 1970, Galtung abordou três possibilidades de intervenção em prol da paz em contextos de conflitos violentos que são: o peacekeeping, o peacemaking e o peacebuilding. Respectivamente, o peacekeeping (manutenção da paz) constituía uma abordagem “dissociativa” do conflito. O objetivo era manter a distância entre os antagonistas por meio da assistência de um terceiro. O peacemaking (promoção da paz), por outro lado, abrangeu a resolução de conflitos, contudo, é geralmente direcionado à preservação dos atores e não para a estrutura que produz a violência. Diferente dessas duas abordagens, o peacebuilding (construção da paz) é necessariamente uma abordagem “associativa” capaz de lidar com todas as formas de violência e relações sociais em seu sentido mais amplo. As práticas ligadas ao conceito de construção da paz devem remover as causas profundas dos conflitos violentos e buscar promover o diálogo entre as partes. Além disso, devem oferecer alternativas para situações em que a guerra possa ocorrer (Galtung, 1976, p. 104).
Visto que os termos peacekeeping, peacemaking e peacebuilding são conhecidos atualmente por fazer parte das chamadas operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU), quando Galtung teorizou a respeito desses termos na década de 70 apenas o termo peacekeeping tinha alguma notoriedade no cenário internacional, dada à operação desdobrada em 1956 em Suez. Assim, pelo menos o termo peacekeeping tornou-se conhecido mais pelas práticas do que pela teoria. Os outros termos propostos por Galtung representam dentro desse panorama uma tentativa pioneira de teorizar sobre as operações de paz e de propor um léxico adequado às diferentes abordagens à paz (Oliveira, 2017, p. 158).
Diante dessas discussões, é possível observar que o conceito de paz é rico em significados. Nesse sentido, a abordagem dos Estudos para a Paz é importante porque cobre a lacuna de pesquisas que esclareçam e contestem o conceito de paz nas Relações Internacionais. Considerando essas questões, o artigo segue com o debate a respeito da operacionalização por parte das Nações Unidas do conceito de paz. O objetivo é perceber como o conceito de paz foi tratado e transformou-se em uma estratégia de implantação de um modelo específico de paz diante de um contexto internacional conflituoso. Todavia, no decorrer das mudanças ocorridas no cenário internacional os teóricos buscaram contestar esse enquadramento.
3. A PAZ LIBERAL DA ONU
Nos primeiros anos, desde a fundação da ONU até o fim da Guerra Fria, as operações de paz tinham um caráter essencialmente militar, cujo objetivo era manter ou preservar a paz (peacekeeping) no cenário internacional. As primeiras operações chamadas de “operações tradicionais” eram compostas por um corpo militar levemente armado que era enviado a um país em situação de conflito com o objetivo de supervisionar acordos de cessar-fogo; fortalecer a confiança entre as partes em conflito e manter a ordem por meio da criação de buffer zones (zonas tampão). Um dos exemplos mais significativos da atuação da ONU nessas operações de manutenção da paz durante a Guerra Fria foi a operação destinada a acabar com a Crise de Suez em 1956. A operação UNEF I (1956-1967) era baseada em três princípios fundamentais: imparcialidade, consentimento e não uso da força. A imparcialidade significava o não posicionamento dos peacekeepers em favor de alguma das partes, antes eles deveriam agir para ajudar as partes a atingir a paz. Imparcialidade não quer dizer neutralidade uma vez que os agentes não podem ser passivos a atos que contrariem os mandados. O consentimento das partes diz respeito à necessidade de que estas concordem com a presença das Nações Unidas (Faganello, 2013).
Diante de uma ordem internacional marcada por um sistema bipolar, em meio a um cenário em que as ameaças eram estritamente de natureza estatal, o objetivo das primeiras operações de paz durante a Guerra Fria ficou limitado a estabilizar as hostilidades para que os Estados pudessem gerir suas divergências por meios pacíficos. De maneira geral, o objetivo das operações de paz tradicionais era não permitir a retomada de um conflito entre os Estados. Assim, essas operações priorizaram a manutenção do equilíbrio de poder, o respeito à soberania nacional e, portanto, a paz negativa (Guerra e Blanco, 2018). Por isso, segundo Richmond (2010a), no campo teórico predominavam as suposições realistas, estadocêntricas e militaristas que colocavam a segurança dos Estados como sinônimo de paz. Sob o realismo, os teóricos acreditavam que os conflitos eram inerentes à natureza dos Estados. Assim, na prática, no campo da Resolução de Conflitos um terceiro “neutro” tinha que intervir para gerir (sem resolver) os conflitos que existissem (Richmond, 2010b).
Com o aparente declínio das guerras interestatais, o contexto estratégico para a paz na ONU começa a mudar e o Conselho de Segurança passou a promover de forma mais ativa a contenção e resolução pacífica de conflitos regionais. Todavia, ao passo que as guerras entre os Estados diminuíram, os conflitos intraestatais aumentaram principalmente nas regiões mais pobres do mundo, locais esses marcados pela baixa capacidade estatal de gerir a violência (United Nations, 2008). Vale salientar, conforme explica Kaldor (1999) que os atores externos, incluindo os Estados, continuam a fazer parte dessas “novas guerras”, com a diferença de que as fronteiras entre o externo e o interno ou o público e o privado já não são facilmente identificáveis. No geral, esses conflitos eram considerados tanto a causa quanto à consequência dos chamados Estados “fracos”, “frágeis”, “fracassados” ou colapsados (Kaldor, 1999)6.
Nesse contexto, surgiram as operações de construção da paz. O termo “construção da paz” apareceu pela primeira vez na ONU em 31 de janeiro de 1992 na “Agenda para a Paz” (An Agenda for Peace), elaborada pelo então Secretário-Geral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali. A Agenda é resultado de um processo de reformulação do conceito de paz, impulsionada como visto, pela teoria proposta por Galtung. Logo, levando em consideração as propostas de Galtung, a “construção da paz” foi definida inicialmente como “atividades de reconstrução de instituições e infraestrutura de nações dilaceradas pela guerra civil e por conflitos, e construção de um compromisso mútuo pacífico entre nações anteriormente em guerra”. Em 1995 no Suplemento da Agenda para a Paz, Boutros Boutros-Ghali definiu a construção da paz como “esforços para identificar e apoiar estruturas que tendem a consolidar a paz e promover um senso de confiança e bem-estar entre as pessoas na esperança de evitar a reincidência do conflito” (United Nations, 1992, 1995)7.
Inicialmente, as operações de construção da paz eram um complemento às funções de manutenção da paz e promoção da paz da Organização das Nações Unidas. Sobretudo porque era desejo da ONU manter os acordos de cessar fogo e continuar monitorando os combatentes. Contudo, com as mudanças no cenário internacional pós-Guerra Fria, o objetivo da construção da paz teve que ser ampliado. Segundo Tereza Cravo (2013, p. 24), em comparação às primeiras gerações de operações de paz, essa nova geração passou a visar “a criação de estruturas para a institucionalização da paz”. Mais do que a eliminação do conflito armado, as operações de construção da paz buscavam criar uma paz positiva, por meio da eliminação das causas profundas dos conflitos violentos. Ou seja, mitigar os fatores profundos que fazem com que os atores usem a violência para resolver suas desavenças (Cravo, 2013, p. 24).
Nesse sentido, as atividades de “construção da paz” passaram a envolver um conjunto de esforços para “construir os fundamentos para a paz”. Grande parte dessa necessidade de “remontar os alicerces da paz” deu-se devido às experiências falhas. Segundo Call e Cook (2003, p. 240), das 18 operações de paz em andamento entre 1998 e 2002, 13 tornaram-se regimes autoritários após a intervenção da ONU (Call e Cook, 2003 apud Beevers, 2018). Em alguns lugares a paz era tão frágil e violenta que se assemelhava a uma “paz virtual” ou “paz apenas no nome” (Richmond e Franks, 2007 apud Beevers, 2018). Além disso, segundo Beevers (2018, p. 25), na maioria dos países recém-saídos de conflitos violentos, a pobreza profunda e as desigualdades socioeconômicas, que provavelmente estavam entre as “causas reais” do conflito, permaneceram intactas (Beevers, 2018).
Com a percepção de que os Estados Falidos eram a principal causa dos conflitos, a ONU passou a ressaltar a importância de as atividades de construção da paz fossem voltadas a construir instituições governamentais para prevenir que os Estados falhassem e recaíssem em conflitos (Beevers, 2018). A convergência do peacebuilding com as atividades de statebuilding (construção de Estados) deu-se devido à necessidade de que a transição da guerra para a paz fosse bem sucedida. Essa convergência culminou no que ficou conhecido como “projeto liberal”. Esse projeto é baseado em um acordo implícito entre os atores internacionais de que a construção da “paz liberal” seria a melhor resposta aos conflitos no pós-Guerra Fria. Oliver Richmond (2010a, p. 22) chama esse acordo de “consenso sobre o peacebuilding”8 (Richmond, 2010a). Contudo, é preciso considerar, conforme explica Roger MacGinty (2016), que é o projeto liberal não foi aplicado de maneira uniforme. Grande parte das democracias liberais emergentes de guerra civil são descritas como “pseudo democracias”, na medida em que imitam os procedimentos e características das democracias representativas ocidentais, mas não tem uma cultura política que incorpora a democracia na sociedade em geral (Macginty, 2016).
O mote fundamental da paz liberal parte da ideia de que a paz e a segurança só podem estar asseguradas em um mundo dominado por democracias liberais, cuja institucionalidade multilateral constitui o seu instrumento central. Essa fórmula, em primeiro lugar, inspirou a criação da Liga das Nações, sendo um dos quatorzes pontos idealizados pelo presidente Norte Americano Woodrow Wilson. E, em segundo lugar, a Carta do Atlântico, que arquitetou a criação das Nações Unidas em 1945. No curso dessas ideias, notam-se “ciclos de mobilização diplomática e/ou militar das potências ocidentais” que ante a liderança dos Estados Unidos e apoio das instituições multilaterais defendiam e disseminavam a “bandeira democrática”. Segundo Hist (2014, p. 10) o “arco cronológico que cobre o último século revela quatro momentos da campanha em prol da democracia” que aconteceu em primeiro lugar com o fim da Primeira Guerra Mundial mediante o surgimento de novas potências europeias. Em segundo lugar, com a Segunda Guerra Mundial mediante a aliança entre aliados a fim de libertar os países da ocupação nazifascistas. Em terceiro lugar com a Guerra Fria, por meio da aliança atlântica em defesa da democracia na Europa Ocidental. E por fim, o quarto momento aconteceu no pós-Guerra Fria por meio da promoção da democracia pelo mundo árabe (Hirst, 2014).
Logo, quando os Estados Unidos saíram vitoriosos da Guerra Fria, ficou claro que os princípios liberais deveriam ser o principal mecanismo para a resolução dos conflitos contemporâneos e criação de uma paz sustentável no pós-conflito (Kemer, Pereira e Blanco, 2016). Segundo Blanco e Morayta (2014, p. 274) “depois da Guerra Fria, praticamente ninguém mais duvidou que os Estados deveriam se assemelhar a uma democracia liberal”. Roland Paris admite que a democratização e a mercantilização liberal se tornaram as características mais notáveis em praticamente todas as operações de construção da paz nos anos 90, mesmo diante da multiplicidade de agências, países e organizações focadas no peacebuilding. Claramente, isso pode ser visto na equação típica do peacebuilding que incluía: Promoção dos direitos civis e políticos; preparação e administração de eleições democráticas; elaboração de constituições nacionais para codificar os direitos; treinamento de oficiais da polícia e da justiça; promoção e desenvolvimento de organizações independentes da sociedade civil e transformação de grupos guerrilheiros em partidos políticos democráticos; promoção da economia de livre mercado; estímulo à iniciativa privada e redução do papel do Estado na economia (Paris, 2004).
Atualmente, o debate acadêmico sobre a construção da paz em termos da paz liberal tem sido dominado por “vozes críticas”, que são dedicadas a discutir as falhas desse modelo de paz internacionalmente hegemônico. De acordo com Roger MacGinty (2013), existe um grande abismo entre a teoria e a prática da construção da paz devido ao tipo de paz que é “feita”. No período pós-Guerra Fria, o otimismo em torno das ações de construção da paz fez com que muitos acreditassem que as sociedades poderiam ser aperfeiçoadas por meio de soluções institucionais prontas. A grande maioria dessas atividades ocorre no sul global, mas são projetadas, dirigidas e financiadas pelo norte global. Isso significa que para muitos a paz é algo imposto de fora para dentro (top-down) ou do Norte Global para o Sul Global. Dessa forma, MacGinty afirma que “esperança e otimismo nem sempre levam ao resultado desejado”. Para ele, “a paz não pode ser ‘feita’ para acontecer”. A paz “muitas vezes é um subproduto ou um feliz acidente de outros processos que não estão diretamente relacionados com a construção da paz” (Macginty, 2013, p. 1-3). Nesse sentido, a perspectiva crítica propõe a ampliação da discussão sobre o conceito de paz, como será visto a seguir.
4. RELACIONAMENTOS: A ESSÊNCIA DA CONSTRUÇÃO DA PAZ
Como supracitado, o termo “construção da paz” é hoje considerado a principal diretriz que orienta as ações internacionais em favor da paz. Teoricamente, essas ações pressupõem que houve a transição exitosa de um estado de violência para um estado de perfeita paz. Contudo, nem sempre o cessar fogo, a vitória militar ou um acordo de paz implicam em alcance da paz. Terminar “bem” uma guerra é sem dúvida um dos grandes desafios das guerras contemporâneas (Patterson, 2013). Segundo Mona Fixdal (2012, p. 1), “qualquer resultado moralmente aceitável para uma guerra requer um equilíbrio entre os objetivos da justiça e da paz”. O final da guerra deve ser seguido por um “melhor estado de paz”, mais justa e estável do que existia antes do começo das hostilidades (Fixdal, 2012). Pensando nisso, um grupo de estudiosos de vanguarda que contou com Peter Wallensteen, e Madhav Joshi9, começaram a refletir sobre a “qualidade da paz” (Quality Peace) que segue com o fim da guerra. A questão fundamental que norteou essa pesquisa foi descrever os períodos pós-conflito ou pós-acordo de paz que foram propícios para a paz duradoura entre antigos inimigos (Joshi e Wallensteen, 2018). Conforme assevera Mac Ginty (2016), “a qualidade da paz que foi entregue pela construção da paz liberal muitas vezes deixou a desejar” (Macginty, 2016). Por isso, é importante refletir sobre qual o conceito de paz que está sendo seguido com o fim das hostilidades.
A “qualidade da paz” em uma sociedade pós-acordo de paz é medida levando em consideração inicialmente o consentimento e o comprometimento das partes com a implementação do próprio acordo. Nessa lógica, segundo Joshi e Wallesteen (2018), a construção bem-sucedida da paz por meio de acordos não visa somente evitar a retomada do conflito, mas também visa: promover provisões de segurança confiáveis por meio de reformas do setor de segurança; desenvolver mecanismos para resolução de disputas por poder ou recursos por meio de reformas no setor de governança; contribuir para a reconstrução e abertura de oportunidades econômicas nos segmentos marginalizados da população; promover a reconciliação; abrir espaço para que a sociedade civil cobre do governo o fornecimento de bens e serviços aos cidadãos quando necessário (Joshi e Wallensteen, 2018, p. 6). Merece destaque nesse conceito proposto por Joshi e Wallesteen o foco dado à restauração dos relacionamentos quebrados por meio da reconciliação.
Segundo Wallensteen (2015), a “qualidade da paz” rompe com a dicotomia proposta por Galtung em termos de paz negativa versus paz positiva, pois afirma que a paz tem que ter uma qualidade particular além da ausência de guerra. O propósito das estratégias de construção da paz é encontrar caminhos para que o conflito entre as partes não seja renovado. Contudo, para Wallensteen (2015), as práticas devem primeiramente buscar entender a origem das discordâncias que geraram o conflito e depois remover as causas das incompatibilidades (se necessário). Dessa forma, a noção de “qualidade da paz” ajuda a questionar sobre se o ambiente pós-conflito tem condições de regular as incompatibilidades presentes em um cenário de divergência. Além de observar se o ambiente atende aos padrões de dignidade, segurança e previsibilidade, ou seja, se as pessoas podem planejar sua vida sem serem impedidas (Wallensteen, 2015).
A abordagem focada nos relacionamentos segue as proposições colocadas por um dos nomes mais conhecidos no campo da transformação de conflitos, John Paul Lederach10. Para Lederach (2011) a construção da paz está focada no que ele chama de “imaginação moral”. A imaginação moral é a “capacidade de imaginar algo enraizado nos desafios do mundo real, porém capaz de fazer nascer o que ainda não existe”. Na construção da paz, a imaginação moral é a capacidade de gerar mudanças advindas dos próprios locais (Lederach, 2011, p. 31). O propósito de Lederach é pensar que a paz pode ser construída mediante um processo de transformação da violência que envolve em grande medida a reconciliação entre as partes, ou seja, a restauração dos relacionamentos quebrados. Para que a reconciliação aconteça, é preciso identificar as relações de interdependência entre as partes e reconhecê-la como um espaço capaz de agrupar sentimentos e percepções que possam ser compartilhados e transformados em relacionamentos duradouros (Lederach, 1997).
Na maioria das vezes, o êxito das ações em prol da paz no cenário internacional é mensurado levando em consideração a contenção e/ou cessação das hostilidades. Mas, se a percepção da paz for ampliada por meio da consideração da importância das relações e da promoção da justiça por meio da reconciliação é provável que nem sempre esta análise seja tão positiva. Para Lederach (2011), antes e depois de firmado um acordo de paz é preciso considerar o processo para que esse acordo seja mantido. Para sustentar a paz em cenários de extrema violência profundamente arraigados na sociedade é preciso ampliar a percepção das relações e dos processos que estão sendo construídos (Lederach, 2011). Nesses termos, de acordo com Lederach (1997) a reconciliação está ligada a quatro virtudes: a verdade que envolve o reconhecimento do erro e a validação das perdas e experiências dolorosas; a misericórdia que envolve perdão, compaixão e aceitação; a justiça que envolve busca por direitos individuais e coletivos, restituição, e reestruturação social; e a paz que envolve segurança, harmonia e bem-estar (Lederach, 1997, p. 29).
A abordagem de Lederach se enquadra dentro de uma das perspectivas críticas ao modelo de paz liberal. Toledo e Facchini (2017) dividem os estudos críticos em três grupos: reformistas, estruturais e virada local. As críticas reformistas não questionam o liberalismo econômico e nem a democratização política, mas sim a forma como são implementadas, levando em consideração a adequação do local ao arcabouço proposto pelas operações de paz. As críticas estruturais são pautadas principalmente por ideias neo-gramscianas e pós-estruturalistas, por isso, veem o peacebuilding como um mecanismo de manutenção da ordem capitalista mundial. A virada local critica principalmente a não inserção do local no processo de peacebuilding (Toledo e Facchini, 2017, p. 154).
No geral, uma das questões fundamentais levantadas pelo discurso crítico é a alegação da presença de um pressuposto ocidental, racional, secular e universal na construção da paz liberal. O argumento é que o projeto liberal não é neutro como afirma ser e reflete valores hegemônicos e necessidades políticas, econômicas e geoestratégicas dos Estados ocidentais. Nessa perspectiva, a construção da paz liberal estaria afastada das instituições tradicionais locais como família, clãs e grupos religiosos (Newman, Paris e Richmond, 2009; Chandler, 2013, p. 41; Tuck, 2016). A segunda questão que é discutida pelos autores críticos tem a ver com essa experiência normativa da construção da paz liberal. Conforme aponta Roberta Maschietto (2016, p. 518), são os próprios princípios normativos que legitimam as ações internacionais, pois se imagina que, no cenário internacional, os princípios ligados à liberalização política são eminentemente “bons”. A crítica que resultou na chamada “virada local” é derivada justamente da refutação dessa dimensão normativa, “que confunde valores ocidentais com valores universais” (Maschietto, 2016).
A crítica de Lederach, que está fundamentada na abordagem da transformação de conflitos, incorpora à discussão sobre construção da paz variáveis muitas vezes esquecidas, como é o caso da religião. A transformação de conflitos, como explica Hugh Miall (2004, p. 4) é “um processo de engajamento e transformação de relações, interesses, discursos e, se necessário, a própria constituição da sociedade que apoia a continuação do conflito violento”. A construção da paz vista por esse ângulo sugere um engajamento de todas as partes do conflito enfatizando o apoio das partes dentro do conflito e não a mediação de atores externos. Para essa perspectiva “o conflito construtivo é visto como agente vital ou catalisador das mudanças” (Miall, 2004). Nas palavras de Lederach:
A transformação de conflitos deve vislumbrar, incluir, respeitar e promover ativamente recursos humanos e culturais de dentro de um determinado ambiente. Isso envolve um novo conjunto de lentes através do qual nós não vemos principalmente o cenário e as pessoas nele como o “problema” e o estranho como a "resposta". Em vez disso, entendemos o objetivo de longo prazo da transformação como validar e construir pessoas e recursos dentro do cenário. (Lederach, 1995 apud Miall, 2004, p. 5).
Appleby (2000) analisa a participação dos atores religiosos na transformação de conflitos sob três circunstâncias sócio-políticas distintas, que ele chama de: mobilização de crise, mobilização de saturação e mobilização de intervenção. Em cada modalidade, há interdependência entre religião, indivíduos, organizações e governo. A mobilização de crise diz respeito ao papel da religião em momentos de crise aguda de se envolver/ser envolvida ativamente na dinâmica social promovendo mudanças políticas, como foi o caso da mobilização gerada por Gandhi na comunidade hindu em apoio à resistência não violenta. A mobilização de saturação ocorre em casos de conflitos como o da Irlanda do Norte. Os líderes religiosos atuam em vários níveis do conflito, condenando a violência sectária, criticando os beligerantes, encorajando os esforços de pacificação, promovendo o diálogo ecumênico entre si e proporcionando ações sociais. A mobilização intervencionista envolve a capacidade mediadora da religião. Essa abordagem é a mais promissora da construção da paz religiosa, na visão de Appleby (2000).
Em suma, a construção da paz vista pela óptica da transformação de conflitos, diz respeito a um conjunto de processos abrangentes e contínuos que se dirige à sociedade como um todo. Na transformação de conflitos, que está no “coração da construção da paz”, as relações são o foco. Portanto, mesmo reconhecendo que os processos de construção da paz podem ocorrer em nível nacional e internacional (topo), essa definição não exclui os esforços do nível de base. Nesse sentido, atores religiosos que fazem parte da base são centrais na construção da paz e transformação de conflitos, pois podem influenciar as estruturas de crenças de uma sociedade e contribuir na restauração dos relacionamentos rompidos e do tecido social (Fabra-Mata e Jalal, 2018). Além disso, construtores da paz religiosos são conhecidos por se concentrar mais em aspectos emocionais, espirituais, relacionais e insistirem no estabelecimento da paz positiva por meio da reconciliação e do diálogo, aspectos esses muitas vezes ignorados pelos construtores da paz seculares guiados pela paz liberal como é o caso da grande maioria dos componentes das Nações Unidas (Garred e Abu-Nimer, 2018).
5. CONCLUSIONES
A palavra “paz” é comum na maioria das línguas. As pessoas podem falar sobre tratados de paz ou tempos de paz. No âmbito teórico, de acordo com Richmond (2010a), a convergência do peacebuilding com o statebuilding culminou no “projeto liberal”. Esse projeto diz respeito a um consenso entre os atores internacionais de que a melhor maneira de conter a escalada da violência no sistema internacional deveria ser por meio dos pressupostos liberais da “paz liberal” que incluem liberalização dos mercados e estabelecimento de democracias liberais (Richmond, 2010a). Para os teóricos, esse método representa uma imposição da paz de cima para baixo (top-down) que deixa de “dar voz” aos locais.
Nessa perspectiva crítica, os teóricos começaram a questionar qual paz estava sendo construída. John Paul Lederach foi um desses teóricos, que chamou atenção para a essência ou a “alma” da construção da paz que na visão dele encontra-se nos relacionamentos entre os indivíduos. Para Lederach, a construção da paz deve ser focada em um tipo de “imaginação moral” que diz respeito à aptidão de gerar transformação dos próprios locais (Lederach, 2011). Dessa forma, há um foco maior na restauração de relacionamentos quebrados por meio da reconciliação e não na construção de Estados como propõe a abordagem tradicional da construção da paz liberal da ONU. Com o foco das ações de construção da paz voltadas para a restauração dos relacionamentos, os atores religiosos podem atuar de forma mais efetiva no cenário internacional. A inclusão dos atores religiosos na construção da paz pode expandir tanto a visão sobre fatores esquecidos na perspectiva tradicional da paz liberal quanto o tipo de paz que está sendo construída ao longo do processo.
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Notas
Autor notes
Informação adicional
Cómo citar / citation: Costa, J.K. y
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