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"As duas bandas da cuia: Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil”
“The two bands of the gourd: immaterial cultural heritage of Brazil”
“Las dos bandas de la calabaza: patrimonio cultural inmaterial de Brasil”
Revista Presença Geográfica, vol.. 07, núm. Esp.02, 2020
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Artigos

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 07, núm. Esp.02, 2020

Recepção: 15 Setembro 2020

Aprovação: 10 Outubro 2020

Resumo: A temática deste artigo “As duas bandas da cuia: patrimônio cultural imaterial do Brasil” é fruto da rica vivência e desdobramento das pesquisas intituladas “As cuias bordadas de Aritapera: conhecimento, saber e arte, e “Pintando cuias, pintando vidas: tradição e arte pelas mãos da família Camargo Fona. As cuias bordadas e pintadas constituem um fazer artesanal de origem indígena, e sua importância consiste nas relações, contextos e aos modos de vida que envolvem o universo ribeirinho e urbano, sua relação com o espaço amazônico, a utilização dos recursos naturais e sua manutenção para produção sustentável das cuias bordadas e pintadas. Todos estes elementos são de grande interesse para a Geografia Cultural Humanística, pois os estudos geográficos na comtemporaneidade têm ampliado o seu campo de pesquisa ao buscar compreender a condição espacial das relações humanas, bem como a dimensão simbólica da cultura. O referido artigo tem o desafio de expor uma temática pouco conhecida no contexto acadêmico, e justifica-se por possibilitar o debate e ensejar novos estudos, ao desvelar para a sociedade, o universo do artesanato das cuias de Santarém. Deste modo, nosso objetivo compreende sobre a importância do reconhecimento e patrimonialização do modo de saber-fazer o artesanato de cuias, no tocante aos dois seguimentos – bordadas e pintadas, no município de Santarém-Pará.

Palavras-chave: Cuia bordada, Cuia pintada, Patrimônio Cultural, Artesanato, Amazônia.

Abstract: The theme of this article “The two bands of the gourd: immaterial cultural heritage of Brazil” is the result of the rich experience and unfolding of the researches entitled “The gourds embroidered by Aritapera: knowledge, knowledge and art, and “Painting gourds, painting lives: tradition and art by the Camargo Fona family. Embroidered and painted gourds constitute an artisanal craft of indigenous origin, and its importance consists of the relationships, contexts and ways of life that involve the riverside and urban universe, their relationship with the Amazonian space, the use of natural resources and their maintenance for sustainable production of embroidered and painted gourds. All of these elements are of great interest to Humanistic Cultural Geography, as contemporary geographic studies have broadened their field of research by seeking to understand the spatial condition of human relations, as well as the symbolic dimension of culture. The aforementioned article has the challenge of exposing a theme little known in the academic context, and it is justified for enabling the debate and giving rise to new studies, by unveiling to society, the universe of Santarém's handicrafts. In this way, our objective is to understand the importance of recognizing and patrimonializing the way of knowing how to make handicrafts in gourds with regard to the two segments – embroidered and painted, in the municipality of Santarém-Pará.

Keywords: Embroidered gourd, Painted gourd, Cultural Heritage, Crafts, Amazon.

Resumen: El tema de este artículo “Las dos bandas de la calabaza: patrimonio cultural inmaterial de Brasil” es el resultado de la rica experiencia y desarrollo de las investigaciones tituladas “Las calabazas bordadas en Aritapera: conocimiento, saber y arte, y “Pintar calabazas, la pintura vive: tradición y arte de la mano de la familia Camargo Fona. Las calabazas bordadas y pintadas constituyen uno que hacer artesanal de origen indígena, y su importancia radica en las relaciones, contextos y formas de vida que involucran al universo ribereño y urbano, su relación con el espacio amazónico, el aprovechamiento de los recursos naturales y su mantenimiento para una sostenible producción de calabazas bordadas y pintadas. Todos estos elementos son de gran interés para la Geografía Cultural Humanista, ya que los estudios geográficos en la época contemporánea han ampliado su campo de investigación buscando comprender la condición espacial de las relaciones humanas, así como la dimensión simbólica de la cultura. El citado artículo tiene el desafío de exponer un tema poco conocido en el contexto académico, y se justifica por posibilitar el debate y dar lugar a nuevos estudios, al desvelar a la sociedad, el universo de la artesanía en las calabazas de Santarém. De esta manera, nuestro objetivo es comprender la importancia de reconocer y patrimonializar la forma de saber hacer artesanías en calabazas, en lo que respecta a los dos segmentos - bordado y pintado, en el municipio de Santarém-Pará.

Palabras clave: Calabaza bordadas, Calabaza pintadas, Patrimonio cultural, Artesanía, Amazonas.

INTRODUÇÃO

Santarém é um município localizado a oeste do estado do Pará, principal centro urbano e socioeconômico da região do Baixo Amazonas. É uma cidade margeda pelos rios Tapajós e Amazonas, privilegiada pela rica natureza amazônica, marcada por forte tradição indígena, onde se destaca os saberes artesanais, em especial, o modo de se bordar e pintar cuias.

O processo de produção artesanal das cuias é um saber indígena conhecido desde o século XVI, através dos registros de observações feitas por expedicionários no decorrer da ocupação e colonização da Amazônia. Através dos ancestrais indígenas, as populações ribeirinhas locais aprenderam os saberes e fazeres de sua produção, bem como o extenso uso ritualístico, doméstico, decorativo, entre outros.

Em Santarém existem artesãos na cidade e comunidades de várzea que, ao longo dos anos, introduziram técnicas diversificadas agregando novos elementos estéticos e significados às cuias, ampliando sua trajetória, pois até hoje continuam a produzí-las.

Aritapera, que também é um recorte espacial deste artigo, é a região composta por comunidades de várzea, citadas anteriormente, pertencente ao município de Santarém. A região do Aritapera localiza-se às margens do Rio Amazonas; é caracteristicamente composta por igarapés, lagos, restingas e rios, marcada pelas cheias de inverno e pelas estiagens de verão, sendo essas passagens distribuídas em períodos de semelhante duração ao longo do ano (SOUSA, 2018). A comunidade Centro do Aritapera é a vila[4] da região, onde geralmente acontecem os principais encontros, reuniões, celebrações e festividades.

Aritapera, como é usual em toda área de várzea em Santarém, é uma região onde as comunidades ribeirinhas têm o ritmo da vida cotidiana inspirado diretamente no ritmo das chuvas. A alternância entre secas e cheias se reflete de forma bem marcada em todas as instâncias da vida social dos moradores: na disposição das casas, nas atividades econômicas, nas festas, no planejamento das escolas.

Conhecer o processo de reelaboração dos diferentes modos de produção das cuias pintadas de Santarém nos motiva a compreender seu contexto cultural, o qual proporcionou a continuidade histórica deste bem cultural, até o seu reconhecimento como patrimônio.

O conceito de bem cultural está relacionado ao conceito de patrimônio que, etimologicamente, significa a herança, bens e riqueza que o ‘pai’ deixa ao seu filho (IPHAN, 2012). Ampliando este conceito, de acordo com a Constituição Federal do Brasil de 1988, patrimônio cultural diz respeito às categorias de bens culturais de natureza material e imaterial, quer sejam tomados individualmente ou em conjunto, sendo portadores de referência sobre a memória, identidade e ação da diversidade dos grupos que formam a sociedade brasileira (BRASIL, 1988).

Assim, um patrimônio cultural de um grupo ou sociedade diz respeito à multiplicidade dos conhecimentos, como os saberes, fazeres, expressões, práticas e seus produtos, que remetem à sua própria história, memória e identidade, sendo que a preservação de um patrimônio não é exclusividade de órgãos governamentais, pois a educação patrimonial deve estar alinhada com os agentes culturais e sociedade em geral para que estes, no exercício da cidadania, melhorem sua própria qualidade de vida (IPHAN, 2012, p.12-33).

Em 2015, os modos de se fazer cuias pintadas em Santarém ganham destaque ao receber do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o reconhecimento de Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, através do ofício do modo de produzir o artesanato típico, conhecido como cuias pintadas, o qual foi inscrito no Livro de Registro dos Saberes, em 11 de junho do referido ano (IPHAN, 2020).

O presente estudo intitulado "As duas bandas da cuia: patrimônio cultural imaterial do Brasil" tem por objetivo ampliar o conhecimento sobre a dimensão do espaço cultural, e ainda, compreender a importância da patrimonialização do modo de bordar e de pintar cuias em Santarém, para isso, o estudo apresenta breve apresentação, seguido dos tópicos sobre a inserção da cuia como artefato cultural na sociedade santarena, os pólos de produção das cuias em Santarém, as cuias bordadas e pintadas enquanto patrimônio cultural, e finalmente, as considerações finais.

Espera-se que o estudo sirva para ampliar o debate a cerca da temática em questão, dando visibilidade e proporcionando novos estudos, pois este não tem a pretensão de ser o único, haja vista que o processo de reconhecimento de um patrimônio é um desafio, não somente aos grupos produtores, mas para a sociedade em geral que deve estabelecer os mecanismos de sua proteção e salvaguarda.

Cuia nossa de todos os dias

O termo cuia ou cúi, ou kúi designa a vasilha produzida a partir do fruto da árvore científicamente conhecida como Crescentíae cujete, Linn; do qual os indígenas confeccionavam varios artefatos (LERY, 1961). Assim, os saberes de sua produção foram repassados ao longo de gerações por ancestrais indígenas, de modo que até hoje a cuia está inserida no cotidiano de diferentes comunidades, quer sejam indígenas, quilombolas ou ribeirinhas, que fazem deste objeto um bem cultural.

Para melhor compreender os saberes inerentes ao artesanato de cuia de Santarém, faz-se necessário esclarecer alguns conceitos, um deles, o de patrimônio cultural. Segundo a Declaração dos Direitos Humanos, se refere:

Às práticas, representações, expressões, conhecimentos e competências – bem como os instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais que lhes são associados – que as comunidades, grupos e, eventualmente, indivíduos reconhecem como parte de seu patrimônio cultural” (NAÇÕES UNIDAS, 2008).

Outro conceito é o de bens culturais, que em concordância com GRUNBERG (2000, p.162), entendemos que os bens culturais são aqueles pelo qual podemos identificar a história, o lugar e a cultura de um povo.

Neste sentido, as cuias de Santarém são bens culturais de origem indígena, sendo que os conhecimentos dos modos de produção tradicional passados de uma geração a outra são foco de observações e registros desde o século XVI (CARVALHO, 2011, p. 18). Os saberes de sua produção transcendem o caráter estético e utilitário de uso doméstico e decorativo, pois expressam a diversidade da cultura brasileira, em especial, no contexto amazônico, mobilizando memórias, identidades, histórias de vidas e de resistência que permitem a continuidade histórica deste objeto.

Esse trato com a cuia foi registrado por Alexandre Ferreira, ainda no século XVI.

A matéria de que as índias fazem as cuias, e o fruto da árvore, que elas chamam Cuya-inha, e os Portugueses... Cuyeira. A cuieira, quase todo o ano dá fruto; gasta dois meses para amadurecer, que é quando a recolhem: o sinal de que está madura, é quando batido o fundo com as costas de uma faca, ele tine; isto é como a casca adquire, pela madureza uma consistência lignosa, produz aquele som (FERREIRA, 1933, p. 58)[5].

Estudos recentes, como o inventário sobre as cuias do Baixo Amazonas, documento fundamental para embasar os processos artesanais da cuia, ainda tomam os registros de Alexandre Ferreira como um marco importante para explicar a utilização do fruto da cuieira – cuia.

A confecção de cuias tingidas com pigmentos naturais e decoradas com traços, incisos constitui, provavelmente, uma das tradições artesanais mais antigas do baixo curso do rio Amazonas, persistente até os dias atuais. Na passagem do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira pela Amazônia entre 1786 e 1789, foram, pela primeira vez, registrados detalhes referentes a processos e técnicas de produção, modelos e circuitos comerciais envolvendo as cuias que mulheres indígenas preparavam na região (CARVALHO, 2011, p.19).

Ainda neste sentido, Alexandre Ferreira explica com detalhes sobre o tempo de plantio da cuieira:

Uma boa cuieira chega a dar por ano 120 até 130 frutos, que vem a ser 260 cuias, partido cada fruto em duas metades. Planta-se ou de semente, ou de estaca: no primeiro caso, necessita de passar 5 anos, para frutificar, no segundo bastão, 2 anos: cresce tanto nas varjas, como nas terras firmes, e uma particularidade tem, que, ainda que seja queimada, arrebenta de novo, vegeta, e frutifica como dantes. A árvore é há muito conhecida do Naturalista, e se acha no sistema de Lineo com o nome de Creacentia Cuyete[6] (FERREIRA, 1933, p.58).

Um dos ícones da literatura brasileira – Mário de Andrade – também, poeticamente, registrou sobre a utilidade da cuia e especifica que a origem de sua confecção artesanal é da cidade de Santarém-PA.

Distraidamente peguei na minha linda cuia de Santarém e me abanei com ela. Mas vento não vinha e caí em mim: Ah… cuia de Santarém não serve de abano. Naturalmente, de primeiro, os índios estavam precisando de recipientes, repararam no fruto de casca dura, criaram a primeira cuia. Mas era áspera por dentro e facilmente atacada do bicho. E os índios levaram anos, centenas de anos, com a cuia servindo mal, até que um dia descobriram o verniz de cumatê. E a cuia envernizada apresentava agora um bonito polido negro e era objeto duradouro, impossível de bicho atacar. A cuia servia. Integralmente! (ANDRADE, 1939, p.1).

Depois que Mário de Andrade descobriu este artesanato e sua utilidade, fica encantado também por sua beleza, como podemos observar no trecho seguinte:

Pois dessas tradições complexamente humanas deriva a cuia de Santarém. A cuia serve para infinitas, materiais e simbólicas coisas. Na cuia se guarda o acassá[7] como se esconde um pedacinho do escrito alheio que prejudicava o nosso ataque. E pela posse desta linda cuia de Santarém, os que me buscam sentem mais prazer de estar aqui, e mais espertada a tendência a solidarizar comigo. E nada, nunca mais impedirá que para as gentes do Rio de Janeiro ou de Boston, que já têm recipientes mais lógicos e duráveis, entre uma cuia feia e outra linda, a linda seja a preferida, a conservada, a mais capaz de despertar a comoção, a convicção, a solidariedade [...] Não. A minha cuia de Santarém servirá pra muitas coisas. Até pra abano ruim. Mas eu não a trocaria pelo melhor dos abanos, mesmo nesta hora indecisa em que o ar me falta. Hei de guardar contra tudo e todos a minha linda cuia de Santarém (ANDRADE, 1939, p. 2).

Diante do exposto, podemos perceber que a cuia está integrada à paisagem cultural de Santarém. E antes de conhecer os segmentos que se destacam na produção tradicional das cuias deste município, é importante informar que existem inúmeras possibilidades de utilização e ornamentação criativa de uma cuia, e que, através de processos técnicos-estéticos, se pôde sugerir a seguinte classficação que não tem a pretensão de ser única: cuia natural; cuia natural rascunhada; cuia natural alisada; cuia natural pintada; cuia preta; cuia preta rascunhada; cuia preta rascunhada e pintada e cuia pintada com paisagem (CAMARGO FONA, 2016).

Outra classificação fundamentada em critérios étno-estéticos foi proposta por Raul Lody (2008) em sua obra “Brasil bom de boca: temas de antropologia da alimentação”, conforme descrito a seguir:

1. Cuia lixada; 2. cuia lixada e laqueada; 3. cuia laqueada; 4. cuia laqueada e acrescida de desenhos por incisões e bordados, com temas étnicos indígenas da Amazônia; 5. Cuia laqueada e acrescida de desenhos por incisos e pinturas; 6. Cuia laqueada e pintada, policromia que exibe motivos da fauna e da fauna amazônica (LODY, 2008).

De acordo com o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, na obra Almanaque Pitinga, encontramos ainda a seguinte classificação das cuias, de acordo com sua funcionalidade: Cuias grandes (peixe-boi), são utilizadas para fazer Xaxim, fruteira grande, vaso grande, bolsa grande; Cuia Paraná, faz-se bandas (beiras lisas e recortadas), bolsinhas, vaso médio, sobremesa; Cuia maracá, se pode fazer copos, rodinhas (apoios), baldinhos; Cuia comprida, faz-se jarras, travessas, rodas (apoios), copos e Cuia cuitita, serve para fazer copinhos (CNFP, 2011).

Dentre estas diferentes classificações, este estudo destaca os modos de fazer artesanal das cuias pintadas, especialmente as variedades de cuias pretas e bordadas, e as cuias pintadas com paisagens, que se configuram na contemporaneidade como as variedades mais produzidas e comercializadas no município de Santarém. Ambas as variedades motivaram o desenvolvimento deste trabalho, e serão metaforicamente arguidas como as duas bandas da cuia.

As técnicas do fazer artesanal

O fazer artesanal das cuias pretas, bordadas/rascunhadas do Aritapera tem uma característica específica, pois é realizado majoritariamente por mulheres, e o fazer artesanal das cuias pintadas com paisagens é realizado por mulheres e homens artesãos, nos dois casos, as artesãs e artesãos dispensam destreza em movimentos rígidos e ao mesmo tempo delicados ao fazer a incisão dos grafismos e pinturas.

Tocar e manipular coisas com a mão produz um mundo de objetos – objetos que conservam sua constância de forma e tamanho [...]. O lugar é uma classe especial de objetos [...] Uma pessoa que manipula um objeto sente não apenas a sua textura, mas as suas propriedades geométricas de tamanho e forma [...]. A pele é capaz de transmitir certas ideias espaciais e pode fazê-lo sem o apoio dos outros sentidos, dependendo somente da estrutura do corpo e da capacidade de movimento (TUAN, 2012, p. 23-24).

A produção do artesanato em cuias obedece aos seguintes procedimentos: o primeiro passo é colher o fruto da cuieira, para isso, as artesãs podem ou não ter em mente o tipo de peça que irão confeccionar, pois para cada peça, existe um tipo de (formato e tamanho) de cuia específicos.

Depois do fruto colhido, ele é partido ao meio para a retirada do miolo, o que as artesãs chamam de bucho ou tripa da cuia. Após a retirada dessa massa, as cuias são colocadas na água, dentro de um recipiente, que geralmente são baldes e bacias, lá ficam até que a cuia esteja pronta para receber o próximo processo.

A próxima etapa é a raspagem, feita com o auxílio de faca, facões e colheres, e de um pano que é colocado sob as pernas para dar suporte à cuia para que ela seja raspada com firmeza. A raspagem serve para tirar todo o resíduo que ainda possa existir dentro da cuia, inclusive os “calombos”, pequenos caroços do próprio fruto. Feita a raspagem, vem a próxima etapa que é o alisamento, também se entende por polimento, processo que deixa as cuias bem limpas, lisas e uniformes, de acordo com a peça desejada. O polimento e acabamento são feitos na parte externa da cuia, com a utilização de lâminas, folha seca de embaubeira, língua e escama de pirarucu secos. Nesse processo de polimento, as artesãs fazem a medição das bordas, com o auxílio de uma fita métrica, para que fiquem todas uniformes, principalmente quando são feitos pedidos de jogos, os quais elas denominam de “família”, que são combinações de um determinado número de peças feitas da menor para a amaior.

Após o polimento ou alisamento, as cuias estão preparadas para receber o tingimento, que é feito com o cumatê. A casca dessa árvore com a qual se faz o tingimento, geralmente é comprada de marreteiros, em feixes, pois a espécie é encontrada em área afastada da várzea, à qual chamam de colônia. Essa casca é colocada dentro d’água “de molho”, em um recipiente, geralmente em baldes, raramente em bacias de plástico. Lá ficam durante dias, até que se perceba que o corante avermelhado da casca foi liberado. Feito isto, as artesãs preparam um jirau, para o qual também chamam de puçanga, onde colocam as cuias e realizam o tingimento com o cumatê, auxiliado com penas de galinha.

Nessa puçanga, as cuias são postas para que o tingimento seja fixado, lá permanecem durante dois ou três dias, no processo de virar e desvirar as cuias, ou peças de cuias. Nesse processo, as peças são cobertas com cinza e nelas é borrifada urina humana, pois contém amônia, o que permite com que a cuia fique preta. É importante frisar que as artesãs da Associação dispensam bastante cuidado neste processo, uma vez que, se elas não forem bem tingidas, as cuias podem apresentar falhas e automaticamente serem excluídas da próxima técnica, que é a insisão (rascunhos) dos grafismos, paisagens e pintura e, como também, serão excluídas da comercialização.

Sabemos que o fazer artesanal das cuias bordadas e pintadas, e seu largo uso no cotidiano de muitas famílias foram aprendidos desde os tempos dos ancestrais indígenas da região, e que em Santarém existem artesãos em várias comunidades de várzea, com destaque para a região do Aritapera, por meio das artesãs da ASSARISAN, como descreveremos adiante, e ainda, artesãos na cidade, com destaque para a família ‘Fona’ e ‘Camargo Fona’, que ao longo de 100 anos introduziram técnicas diversificadas, agregando novos elementos estéticos e significados às cuias, ampliando sua trajetória, pois até hoje continuam a produzi-las. O processo de produção de uma cuia pintada com paisagem, também conhecida como cuia pintada, cuia preta pintada com paisagem, cuia de paisagem ou cuia com paisagem, se inicia pelo procedimento anteriormente descrito até tornar a cuia preta, e, após sua comercialização, chegam aos diferentes ateliês da família Camargo Fona, que de forma exclusiva, imprimem por sobre a cuia preta, novo valor estético, ou seja, a cuia é preparada para ser pintada com cenas da região e pode também receber de forma opcional o rascunho ou entalhe geométrico com escrita personalizada nas bordas, e em seguida é impermeabilizada com verniz (CAMARGO FONA, 2016).

No que tange à pintura de paisagem sobre a cuia preta, esta foi criada pelo Mestre João Fona, na década de 1920, o qual repassou suas técnicas de pintura nas cuias aos irmãos, em especial, ao irmão mais novo, Pedro Fona, e este último, por sua vez, junto com sua esposa, notabilizaram-se nesta arte, ampliando sua atividade de produção de cuias a todo seu segmento familiar, desenvolvendo novas técnicas, como descrito no procedimento a seguir: escolha da cuia, marcação da careca da cuia, molho, raspagem, lixamento (opcional), limpeza, secagem, encascar (pintura base), secagem, leve lixamento (apenas se a pintura base for alvaiade), desenho, pintura com paisagem, secagem, limpeza da borda da paisagem, rascunho decorativo das bordas, pintura das bordas, limpeza das bordas, secagem, brilho e impermeabilização e secagem.

A banda da cuia bordada


FIGURA 01
Cuias bordadas do Aritapera
Fonte: SOUSA, Á. Fabíola. Acervo da pesquisa, outubro de 2015 e novembro de 2016.

A vida das mulheres de Aritapera é marcada pela tradição do artesanato conhecido como cuias pretas. Este saber-fazer artesanal é secular e foi registrado por Alexandre Rodrigues Ferreira ainda no século XVI.

Tem-se como nome científico da cuia – Crescentia Cujete. Entre as artesãs de cuias, se costuma dizer que a árvore cuieira é nativa, o que significa ter nascido naturalmente na região, sem a interferência humana. Contudo, sabemos que no século XVI já se tinha registros de plantação da cuieira, mas, para as artesãs, chegou a ser novidade, quando, por intervenção de um projeto[8], foi ensinado a técnica de plantio através de estacas.

Existe a preocupação por parte das artesãs da Asarisan quanto a pouca produtividade de algumas espécies de cuias, especialmente as de tamanho grande, que são deficitárias, principalmente nas comunidades Enseada, Centro do Aritapera e Carapanatuba, pois são as comunidades mais afetadas pela enchente do rio Amazonas, o que dificulta a plantação e crescimento das cuieiras, inclusive, nem todas as cuieiras que foram plantadas pelo projeto nasceram e as que nasceram estão em um processo lento de desenvolvimento.

Devido a essa escassez do fruto, as artesãs o compram de donos de cuiais da comunidade Cabeça d’Onça, a qual também integra a Asarisan. Esta comunidade dificilmente é atingida pela enchente, ao contrário, a vazante – seca – é mais intensa, o que, de alguma forma, facilita a produção e comercialização do fruto em seu estado natural.

A maioria das mulheres relata que, desde a infância, conhecem esse trabalho: “desde que eu me entendi, cuido em cuia”[9], afirmam no linguajar local. Entretanto, elas não entendiam esse “cuidar em cuia” como trabalho artesanal especializado, apesar de se tratar de um conjunto de técnicas extremamente detalhadas, e sim, apenas como trabalho de finalidade doméstica que contribui para a renda familiar. Também não assumiam esse ofício como identidade profissional, por isso, não se diziam artesãs, mas apenas que “cuidavam em cuia”.

As cuias que produzem destinam-se ao uso próprio e ao comércio. Sobre esse ponto, Santos afirma que “o trabalho feminino em Aritapera contribui não apenas para aumentar a renda da unidade doméstica [...], mas em muitos casos representa o único recurso ao alcance da mão, principalmente em situações desfavoráveis” (SANTOS, 1982, p. 35).

Criação da Associação das Artesãs Ribeirinhas de Santarém – ASARISAN


FIGURA 02
Mapa de localização das comunidades da Região do Aritapera que compõem a Assarisan
Fonte: Elaboração DURAN, Elenice, 2017 a partir de dados da pesquisa de campo, 2016.

A Associação das Artesãs Ribeirinhas de Santarém – Asarisan foi criada em 2003, composta por cinco comunidades da Região do Aritapera, são elas: Centro do Aritapera, Enseada do Aritapera, Carapanatuba, Cabeça d’Onça e Surubim-Açú. A criação da Associação foi um divisor de águas na vida das mulheres de Aritapera. Foi por meio dela que elas se descobriram enquanto artesãs e tiveram sua autoestima elevada.

O trabalho com o artesanato não só contribui para o reconhecimento dos seus lugares de morada – comunidades da região do Aritapera, por pessoas externas, apreciadoras ou não desta arte, como mudou significativamente o valor da renda de suas famílias.

O Centro Nacional de Cultura e Folclore Popular – CNFCP foi responsável pelos primeiros passos para a criação da Associação – Assarisan, por meio da antropóloga Luciana Carvalho, que coordenou e realizou pesquisas na região, sob o âmbito do Programa Artesanato Solidário, com o projeto Cuias de Santarém, em 2002.

Raimunda, da comunidade Enseada do Aritapera, em seu relato, deixa nítida a importância que o trabalho artesanal, feito na associação, tem na vida de cada mulher.

Hoje nós somos reconhecidas, não somente por nome, mas nós somos reconhecidas pelo trabalho, é um trabalho que levou os nomes das nossas comunidades, e não só o nome, mas levou as pessoas a nos respeitarem, a nos darem valor, não só como aquela mulher que fica lá na beira do fogão pra fazer a comida, aquela mulher que fica só pra lavar a roupa em casa, mas aquela mulher que hoje, até os esposos já olham e dizem: não, eu tenho uma companheira de vida em casa, uma companheira que eu tenho que dar valor, eu tenho que respeitar. Porque naquela época, tanto a mulher quanto o marido eram atrasados, porque não conheciam certos valores, um não conhecia o valor do outro. Hoje não, hoje cada marido dá valor a sua esposa, porque sabe que ela tem um respeito, ela tem uma habilidade, além de ela ter habilidade ela tem uma ciência tão grande, ela tem a parte do saber, do saber e do educar, e isso ninguém vai tirar dela, ninguém, só se o Senhor quiser deixar mesmo! (Raimunda Pereira, Enseada do Aritapera, dezembro de 2015).

Independente de cuidarem dos afazeres domésticos, do roçado ou do pescado, todas as mulheres da casa contribuem de forma direta ou indireta no trabalho do artesanato de cuias lisas[10] ou ornamentadas. Essa é uma produção local na qual o saber e o fazer são transmitidos pelas mulheres mais velhas às mulheres mais novas. Além de configurar-se como uma prática cultural feminina tradicional, o artesanato de cuias é ainda hoje uma fonte de renda importante para o sustento das famílias da região, e sem dúvidas, trouxe empoderamento a essas mulheres.

O artesanato de cuias mudou minha vida assim, porque a renda foi mais, a gente teve como investir mais na educação dos filhos da gente... pro dia a dia, pras coisas pessoais, tudo que precisamos pro melhor, pros filhos da gente. Então eu achei que levantou, mas assim, é uma responsabilidade bem grande que a gente tem sobre esse trabalho, conhecimento, é... vários cursos que nós já fizemos (Genilda Lopes Rodrigues, Cabeça d’Onça, dezembro de 2015).

Como bem relata a artesã Genilda, essa mulher passou a se reconhecer enquanto artesã por meio da associação, o que agregou à ocupação de doméstica outra função remunerada, a de artesã.

A banda da cuia pintada


FIGURA 03
Cuias pintadas Camargo Fona
Fonte: CAMARGO FONA, Angelsea A. L.

De acordo com Fonseca (2006-a), no início do século XX era comum a venda das cuias nas feiras do trapiche, e para os viajantes dos navios que passavam por Santarém, sendo que as cuias eram produzidas na periferia da cidade ou na região de várzea, pelas conhecidas cuieiras, grupos de mulheres e até homens que se reuniam em puxiruns para produzirem cuias.

Ao apitar do navio, fosse dia ou noite alta, as cuieiras desciam as ruas, rumo ao trapiche, os balaios repletos das mais lindas cuias pintadas, que eram disputadas pelos viajantes. Nessas cuias, como ainda hoje, predominavam as paisagens amazônicas, feitas pelas mãos de Artistas natos, salientando-se o incomparável João Fona [...]. Pedro Fona, seu irmão mais novo [...] mas não somente as cuias eram pintadas, como algumas delas recebiam incisões com letras góticas, trabalhadas a ponta de canivete, com saudações e dedicatórias feitas na hora, de acordo com o capricho do comprador que ficava boquiaberto ante a rapidez e perfeição com que as gravações eram feitas (FONSECA, 2006-a).

Assim como as cuieiras, a família ‘Fona’, um grupo de artistas plásticos e artesãos autodidatas com múltiplas habilidades na escultura, música, fotografia, restauro, também se dedicavam à pintura em geral e às cuias, mas, inicialmente, faziam apenas no rascunho ou bordado das cuias pretas, até serem aprimoradas por João Batista Alves Pereira, conhecido como João Fona, que em relato particular, é o próprio artista que fala do surgimento da sua pintura em cuias:

Mais ou menos no ano de 1920, tive a feliz ideia de pintar uma cuia com tinta a óleo, com motivos da paisagem amazônica. Isto fiz por mero diletantismo. No entanto, a cuia pintada despertou a atenção de quantos a viram. Vendi-a por bom preço. Tal acontecimento levou-me a pintar em seguida um número sem conta de cuias, cuja venda me proporcionava um bom lucro. Cuias pintadas por mim espalharam-se por todo o Brasil e pelo exterior (FONSECA, 2006-b).

O novo produto fez tanto sucesso que as encomendas aumentaram exponencialmente, fazendo com que este mestre envolvesse sua própria família, esposa, filhos, irmãos, entre outros, para ajudar na produção e venda das famosas cuias pintadas com paisagens, que garantiram por anos o sustento de suas famílias.

É importante ressaltar que a inovação é um aspecto muito importante da dinâmica cultural da sociedade, pois as técnicas, saberes, costumes, valores, conhecimentos, entre outros, se modificam ao longo dos tempos, haja vista que a criatividade e inquietude humana sempre buscam novas soluções às suas necessidades. Assim, o Mestre João Fona inovou, como o próprio verbo sugere, tornar novo, renovar, introduzir novidade ao produzir as cuias com a técnica de pintura a óleo, tornando este artefato um produto inovador. Em 2010, a Secretaria Municipal de Turismo de Santarém – SEMTUR organizou o Inventário da Oferta e Infra-Estrutura Turística de Santarém e registrou que a pintura das cuias com paisagens pintadas a tinta óleo foi uma experiência bem sucedida do Mestre João Fona, que logo transmitiu sua técnica ao irmão mais novo, Pedro Paulo Xavier Camargo, conhecido como Pedro Fona, que o ajudou a popularizá-las. Este, por sua vez, aprendeu observando seus irmãos a arte da pintura, mas foi com João Fona que aprendeu a pintar as cuias, inicialmente à tinta óleo. Ao dedicar-se nesta categoria, com o tempo, aprimorou sua própria técnica introduzindo a tinta acrílica, até se destacar como o grande represente das cuias pintadas com paisagens, em Santarém, destinando mais de 60 anos de sua vida à pintura, até tornar-se uma referência cultural na produção das cuias pintadas com paisagens amazônicas, como afirma Amorim (1999):

[...] o maior artesão santareno da pintura de cuias é o Sr. Pedro Paulo Xavier de Camargo [...], que desde a infância, juntamente com sua família, dedicava-se ao magnífico ofício de retratar nas cuias detalhes riquíssimos da região, demonstrando a beleza da fauna e da flora amazônica, como as canoas, os pássaros e a paisagem bucólica das beiras dos rios e igarapés (AMORIM, 1999).

Pedro Fona recebeu em vida, e postumamente, títulos, condecorações e honrarias em reconhecimento ao seu talento e dedicação a arte neste município. Assim como seu irmão João, Mestre Pedro Fona e sua esposa Raimunda Maria Beatriz da Silva Camargo repassaram suas técnicas e os desígnios de sua arte para seu segmento familiar “[...] legando já aos filhos e netos a continuidade da feliz experiência do irmão na década de 20” (SEMTUR, 2010). A partir de João Fona, seu segmento familiar e de seus seis irmãos, conhecidos como ‘Os Fona’ temos a primeira geração de pintores em cuias, e a partir de Pedro Camargo Fona, sua esposa e seus 12 filhos, conhecidos como família ‘Camargo Fona’ temos a segunda geração de artistas e artesãos pintores que se dedicaram ao rascunho e à pintura de forma exclusiva das cuias com paisagens amazônicas, entre outros produtos artesanais.

No início da década de 1980, a fama das cuias do Mestre Pedro e de sua família fez do seu ateliê ‘Casinha’, a rota de muitos turistas, visitantes políticos, religiosos, jornalistas, artistas, empresários e alunos querendo comprar, conhecer e aprender as técnicas do habilidoso artista. Do núcleo familiar deste mestre, seguiram outras gerações de pintores, onde podemos identificar os seguintes pólos produtores que estão em plena atividade em Santarém, produzindo além das cuias vários artigos artesanais: Ateliê Camargo Fona é o local de trabalho de Inês Camargo Fona, que também o compartilha com seus irmãos Eugênio Camargo Fona, Benjamim Camargo e seu sobrinho Pedro Paulo Camargo Fona Neto. Esté é o maior ateliê desta família que recebe não só outros irmãos para o trabalho coletivo, mas qualquer um que deseje conhecer e aprender o ofício de pintura. Temos ainda o ateliê de Socorro Camargo, ateliê Antônio Camargo e o ateliê de Emanuel Camargo, sendo que este desenvolve oficinas de pinturas em cuias no Serviço Social do Comércio (SESC) para a comunidade em geral. A partir de 2016 membros desta da família Camargo Fona criaram o projeto ‘Cuias pintadas de Santarém a Salvaguarda de nosso patrimônio’ e desenvolvem palestras e oficinas de educação patrimonial para escolas e universidades de forma voluntária, e sem fins lucrativos.

Diante do exposto, podemos afirmar que as cuias são importantes objetos que expressam a cultura santarena e o modo de viver destes importantes núcleos produtores. Concorda-se com Claval (2001) ao afirmar que “A cultura transforma-se, também, sob o efeito das iniciativas ou das inovações que florescem no seu seio” e assim ocorreu com o artefato cuia, que ao longo dos séculos seu fazer e uso são conhecidos na sociedade brasileira, sobretudo em Santarém, onde ela se tornou um artesanato típico até ser reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando que cada vez mais a Geografia Cultural e Humanística tem ampliado e estimulado novos estudos, onde a análise espacial está relacionada com o vivido, a partir da percepção das subjetividades humanas, como realidades indissociáveis; e voltando seu interesse às particularidades das condições que humanizam o sujeito, a Geografia Cultural destaca-se pelo distanciamento do pensamento racionalista que contribuiu para uma visão de mundo alicerçada em dicotomias.

Deste modo, a Geografia Cultural possibilitou acesso ao conhecimento, através do estudo das relações dos grupos, da pessoa e das representações simbólicas artísticas, que estão carregadas de vínculos afetivos com os lugares de pertencimento.

A construção deste artigo foi um casamento de saberes, de memória, de arte e de lugares, tendo como protagonista, a cuia.

Reunimos resultados de duas pesquisas que demonstram como o saber-fazer artesanal organiza, e ao mesmo tempo modifica o espaço e a vida das artesãns e artesãos que dão forma e beleza a um fruto conhecido em toda a Região Norte. A várzea ou a terra firme, o “interior” (Aritapera) e a cidade (Santarém) são lugares transformados e reconhecidos pela existência de mulheres artesãs e de todo um seguimento da família Fona e Camargo Fona, pelo genuíno fato de criarem e de fazerem arte em cuia.

Como vimos neste artigo, o registro do modo de fazer o artesanato de cuias fomentou a afirmação da identidade das mulheres e da Família Fona e Camargo Fona, por meio do artesanato, pois a população chega a reconhecer e a denominar o artesanato de cuias como “cuias de Aritapera”, “cuias de Santarém”.

Foi uma longa trajetória para que as mulheres artesãs associadas chegassem à consolidação de seu trabalho artesanal, sem deixar de mencionar o apoio que tiveram de vários parceiros, como já foi registrado neste artigo. Esta longa trajetória permitiu que essas mulheres tivessem autonomia financeira e vencessem preconceito de gênero dentro de suas próprias casas, com seus parceiros.

Entre a família Fona e Camargo Fona não é diferente. A tradição artística e o legado construídos, não só com as cuias pintadas, mas com diversos seguimentos faz a sociedade santarena ser privilegiada e reconhecida por meio de seus artistas e de suas criações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AMORIM, Antonia Terezinha dos Santos. Santarém: Uma síntese histórica. Canoas: Ed. ULBRA, 1999.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

CAMARGO FONA, Angelsea A. Lobato. Pintando cuias, pintando vidas: Tradição e arte pelas mãos da família Camargo Fona 2015. 284 f. Dissertação, Mestrado em Geografia, Programa de Pós Graduação Mestrado, Universidade Federal de Rondônia. Porto Velho, 2016.

CARVALHO, Luciana. O artesanato de cuias em perspectiva – Santarém. Rio de Janeiro: IPHAM, CNFCP, 2011.

CARVALHO, Luciana; SANTOS, A.M. Terra água, mulheres e cuias: Aritapera, Santarém, Pará, Amazônia. Belém: Prodetur, 2012.

Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Almanaque Pitinga. Organização de Aída Bezerra e Renato Costa. -- Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2011.

CLAVAL, Paul. A Geografia Cultural. Tradução: Luíz Fugazzola Pimenta e Margareth de castro Afeche Pimenta. 2ª Ed. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2001.

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Memórias sobre as cuyas (1786). Revista Nacional de Educação. Março de 1933, nº6, p. 58-63.

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GRUNBERG, Evelina. Educação patrimonial: utilização dos bens culturais como recursos educacionais. Cadernos do CEOM. Ano 14 nº12. UNOESC, Chapecó, jun. 2000.

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LERY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, [1961]1980

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TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar. A perspectiva da experiência. Londrina: Eduel, 2012.

FONSECA, Wilson. Raimundo Fona 1893-1941- Obra Musical Remanescente. Santarém, 2006-b.

Notas

[4] Denomina-se vila a comunidade considerada principal, centro de uma região, ou de um grupo de comunidades na área rural (interior) de Santarém. Geralmente é a comunidade mais desenvolvida ou a mais antiga
[5] Ortografia do texto atualizada pelas autoras.
[6] Corresponde à Crescentia Cujete, nome científico dado à cuia. Ortografia do texto atualizada pelas autoras.
[7] O Acaçá Àkàsà ou Eko é uma comida ritual do candomblé e da cozinha da Bahia. Feito com milho branco ou vermelho.
[8] Em conversa informal com uma artesã, ela não soube dizer quem ou qual instituição havia desenvolvido o projeto nas comunidades onde funcionam os núcleos de trabalho da Associação das Artesãs Ribeirinhas de Santarém – ASSARIAN.
[9] As mulheres artesãs utilizam essa expressão para identificarem o trabalho com as cuias, sem distinção das peças artesanais produzidas pela Asarisan e pelas não associadas à entidade. Todas as mulheres da região que de alguma forma trabalham com a cuia dizem que “cuidam em cuia”.
[10] Cuias sem ornamentos, “não bordadas”.

Autor notes

[1] Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia, Mestra em Geografia pela mesma instituição e pesquisadora do Grupo de estudo e pesquisa sobre o modo de vida e culturas amazônicas - GEPCULTURA/PPGG/UNIR
[2] Mestra em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia e pesquisadora do Grupo de estudo e pesquisa sobre o modo de vida e culturas amazônicas - GEPCULTURA/PPGG/UNIR
[3] Graduação em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia (1989), Mestrado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (1994), Doutorado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (2000) e Pós-Doutor pela Universidade Estadual de Londrina (2016). Professor Titular do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) (2018). Coordenador do GepCultura - Grupo de Estudos e Pesquisas Modos de Vidas e Culturas Amazônicas


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