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NEM TODO TRAJETO É RETO: LIMITES E POSSIBILIDADES PARA A SENSIBILIZAÇÃO DE ESTUDANTES DE DESIGN DE MODA POR MEIO DO ENSINO DE MODELAGEM
Revista de Ensino em Artes, Moda e Design, vol.. 4, núm. 2, 2020
Universidade do Estado de Santa Catarina

Revista de Ensino em Artes, Moda e Design
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2594-4630
Periodicidade: Bimestral
vol. 4, núm. 2, 2020

Resumo: Este trabalho apresenta como escopo pensar o ensino de modelagem sob a luz da Pedagogia dos Saberes Sensíveis. Ao partir do reconhecimento de que as meto-dologias de ensino atuais são reflexo da lógica cartesiana de construção do conhe-cimento, objetiva-se explorar os limites e possibilidades vislumbrados no ensino e aprendizagem de modelagem do vestuário, visando sensibilizar os estudantes desta área para as tantas conexões que derivam do diálogo entre uma peça vestível e o corpo humano. Mais especificamente, parte de relatos de experiência e inquietações das pesquisadoras como estudantes e docentes desta disciplina, bem como de re-visão bibliográfica desta temática, para traçar o panorama do ensino de modelagem vivenciado, suas relações com o processo de ensino e aprendizagem e com a cons-trução do conhecimento pelos profissionais de cursos superiores de Design de Moda. O estudo aponta a presença marcante do caráter instrucional nas práticas didático--pedagógicas da modelagem tradicional, reforçada pelas metodologias e materiais didáticos que se concentram no estabelecimento de ordens de execução e modelos pré-determinados. Por fim, esboçam-se alguns caminhos menos retilíneos para o en-sino e aprendizagem deste componente curricular que pode ser encarado, no con-texto educacional, não apenas como uma etapa do processo produtivo, mas também a partir da potencialidade em se constituir território de experimentação estética.

Palavras-chave: Modelagem do Vestuário, Ensino e aprendizagem, Saberes Sensíveis.

Abstract: This paper aims at presenting a scope of pattern making teaching under the no-tions of Sensible Knowledge Pedagogy. Taking into consideration that the principle of current teaching methodologies are a reflection of the Cartesian Logics of the know-ledge construction, the aim of the present study is to explore the limits and possibi-lities of the teaching and learning process of pattern making, aiming at encouraging the students of the area to establish various connections that might arouse from the dialogue between a garment and the human body. More specifically, it starts from the reports and concerns of the researchers as students and teachers of this course, as well as the bibliographic reference of this theme, attempted to trace an overview on the pattern making teaching as an experience, its relationships with the teaching and learning process and with the knowledge construction by the professionals of the Fashion Design College Degree. The study points to the remarkable presence of the instructional character of the teaching practices in regards to the tradicional pat-tern making, enhanced by methodologies and instructional materials that concentra-te on the establishment orders and pre-determined models. Finally, some paths are outlined less rectilinear for the teaching and knowledge of this subject that can be confronted, in an educational context, not only as a step for the productive process, but also from the capability of building a territory within esthetic experimentation.

Keywords: Pattern making, Teaching and learning process, Sensible Knowledge Pedago-gy.

Resumen: El presente trabajo tiene como finalidad reflexionar sobre la enseñanza de mo-delado de vestuario en base a las ideas de las Pedagogías Sensibles. Teniendo en cuenta que las actuales metodologías de enseñanza son un reflejo de la lógica carte-siana en la construcción del conocimiento, el objetivo de este estudio es explorar los límites y posibilidades vislumbrados en la enseñanza y aprendizaje de modelado, con la intención de sensibilizar a los estudiantes de esta área hacia las múltiples cone-xiones que se derivan del diálogo entre una pieza de vestir y el cuerpo humano. Más específicamente, se parte de relatos de experiencias e inquietudes de las investiga-doras como estudiantes y docentes de dicha disciplina, así como de la revisión biblio-gráfica de esta temática para trazar el panorama vivido en la enseñanza de modelado, sus relaciones con el proceso de enseñanza y aprendizaje, y con la construcción del conocimiento por parte de los profesionales de los cursos superiores de Diseño de Moda. El estudio muestra una notable presencia del carácter instructivo en las tra-dicionales prácticas didáctico-pedagógicas de modelado, reforzada por las meto-dologías y materiales didácticos que se concentran en el establecimiento de reglas de ejecución y modelos predeterminados. Por último, se esbozan algunos caminos menos rectilíneos para la enseñanza y aprendizaje de este componente curricular que se puede afrontar, en el contexto educativo, no solo como una etapa del proceso productivo, sino también desde el propio potencial de constituirse territorio de expe-rimentación estética.

Palabras clave: Modelado de Vestuario, Enseñanza y Aprendizaje, Pedagogías Sensi-bles.

1 PONTUAÇÕES INICIAIS

A modelagem costuma ter cadeira cativa nos currículos de cursos superiores da área de Moda. Não por acaso. Ela é ferramenta fundamental para a construção dos produtos do vestuário e, portanto, recurso por meio do qual se promove a ma-terialização do objeto vestível e dos sentidos que derivam da interação entre corpo e artefato.

Pode ser entendida tanto como o conjunto de traçados a partir dos quais o ma-terial têxtil é cortado para fins de confecção, quanto como a atividade que dá origem aos mesmos. Como prática, relaciona-se com um conjunto extenso de conhecimen-tos, técnicas, métodos, materiais e tradições que vêm se modificando ao longo dos anos conforme o contexto e o objetivo de sua utilização.

Esta conexão direta entre as atividades produtivas da modelagem e da costura resulta na tendência de associar a modelagem à sua aplicação industrial. Contudo, levanta-se neste trabalho a hipótese de que é possível encará-la para além do repas-se de um conjunto de regras e técnicas que trazem para o plano do palpável as ideias criadas anteriormente no papel. Especialmente por tratar, neste caso, do contexto de ensino superior voltado para o campo da criação. Por isso, levando-se em considera-ção que o exercício da modelagem demanda uma gama de habilidades perceptivas, interpretativas e de capacidade de manipulação de formas, essa prática pode ser vista também a partir da potencialidade inerente da modelagem em se constituir enquan-to campo expressivo, criador de sentidos, ou seja, de experimentação estética.

Com isso não se pretende diminuir a importância da aplicação da modelagem sob o signo da produtividade. Seu mérito dentro desse contexto é indiscutível e a prática de modelar, nessa perspectiva, dialoga com conhecimentos construídos por meio de longos anos de aperfeiçoamento e dedicação de profissionais, docentes e pesquisadores sérios dessa área.

A perspectiva da modelagem como ferramenta para o desenvolvimento das capacidades criativas é ainda pouco trabalhada no ambiente acadêmico e dialoga, conforme se verá mais adiante, com pedagogias que despontam como alternativas ao modelo tradicional de ensino, como é o caso da Pedagogia dos Saberes Sensíveis, aporte teórico deste trabalho.

Assim, é objetivo do presente estudo abordar os limites e possibilidades presen-tes no ensino de modelagem para aproximá-lo de uma prática que dialogue mais es-treitamente com a incerteza própria dos processos de criação. Trata-se de reflexões e propostas para o ensino e aprendizagem da modelagem que favoreçam o acesso a experiências da percepção e do saber, de experimentações estéticas em relação

à produção de sentidos e de trajetos discursivos outros que não só os já instituídos no ensino tradicional de modelagem. De maneira mais específica, procura-se tra-çar o panorama e os paradigmas que norteiam o ensino de modelagem atualmen-te encontrados na realidade dos cursos superiores de Design de Moda; estabelecer paralelos entre a perspectiva educacional corrente, o perfil do egresso dessa área e a Pedagogia dos Saberes Sensíveis, de forma a identificar compatibilidades e disso-

nâncias entre elas. Por fim, de maneira propositiva e tomando as próprias vivências das pesquisadoras como ponto de partida, procurou-se esboçar algumas estratégias que permitem ampliar as possibilidades de sensibilização e reflexão dos estudantes por meio da modelagem.

O interesse na investigação da temática em questão surgiu, sobretudo, das in-quietações das pesquisadoras em suas práticas docentes da disciplina de modelagem, bem como do contato com as propostas da abordagem pedagógica supracitada. A partir da compreensão de que houve expressiva alteração no contexto educacional desde que os primeiros referenciais para o ensino de modelagem foram sistematiza-dos, entende-se que a pertinência dessa investigação introdutória se dê justamente no caráter reflexivo-propositivo em relação às estratégias empregadas para o ensino de modelagem em vista dos objetivos e perfis almejados para a formação dos sujeitos e futuros profissionais do campo da Moda.

Metodologicamente, este estudo utiliza-se tanto dos relatos de experiência das

pesquisadoras como estudantes de Design de Moda e docentes da disciplina de mo-delagem em diferentes instituições de ensino superior, quanto de revisão bibliográfi-ca sobre essa temática, para estabelecer o cenário de discussão que se segue.

2 PANORAMA HISTÓRICO DO ENSINO DE MODELAGEM E SUA HERANÇA NOS CURSOS SUPERIORES DE DESIGN DE MODA

Tradicionalmente, a prática da modelagem conecta-se tanto à origem da pro-fissão dos alfaiates, quanto à atividade informal e cotidiana de desenvolvimento de trajes no ambiente familiar. Segundo Riffel (2003), as roupas eram a princípio confec-cionadas em casa, por meio da criação de ovelhas ou cultivo do linho, tecelagem ma-nual e posterior montagem das peças. Nesse contexto, a qualidade e o acabamento das roupas era bastante distante do que atualmente se conhece e sua confecção era bastante restrita.

Já no caso da alfaiataria, o trajeto aconteceu de maneira mais regulamentada, pois o conhecimento e domínio das técnicas de corte e confecção de peças do ves-tuário eram transmitidos aos familiares mais próximos ou aprendizes de confiança. De acordo com Riffel (2003), as oficinas de alfaiates se configuravam nos moldes das corporações de ofícios1, que se tornaram estruturadas e influentes (política e eco-nomicamente) em meados dos séculos XI e XII, contexto do desenvolvimento das cidades e do advento do comércio. Passos (2016), por sua vez, complementa com a informação de que é no período medieval que se estabelece o comércio de produtos manufaturados entre Oriente e Ocidente, sendo que “de todos os produtos em circu-lação, os produtos têxteis tinham maior presença no comércio” (PASSOS, 2016, p.14).

Ainda de acordo com Passos (2016), as corporações de ofícios eram conheci-das especialmente por sua hierarquia organizacional, composta por mestre, oficial e aprendiz. Em geral, os aprendizes não eram remunerados e trabalhavam por um lon-go período nas oficinas de alfaiataria para aprender com os mestres o ofício de corte e confecção de trajes. Muitas vezes, moravam na casa dos mestres.

Finalizads os anos como aprendizes, poderiam então tornar-se oficiais de al-faiate e abrir o próprio negócio, ou ainda seguir trabalhando com seus mestres por alguma remuneração. Comenta Riffel (2003) que, no entanto, o alcance do grau de mestre ficava limitado a aprendizes fora do eixo familiar dos mestres, pois além dos exames de maestria a que eram submetidos os aprendizes, havia uma série de exi-gências legais e morais presentes nos regulamentos desse ofício, “como o pagamen-to de direitos, o nascimento legítimo e a filiação à burguesia” (RIFFEL, 2003, p.13).

Alguns historiadores, como Laver (2005), registram mudanças no vestuário masculino e feminino em torno do século XIV, com diferenciações entre os sexos e presença de modelagem mais ajustada em relação ao corpo. É no contexto de Re-nascimento europeu que se tem registro de estudos geométricos do corpo e uma busca por certa padronização das técnicas de alfaiataria com vistas a melhorar seu resultado e agilizar sua execução. Data de 1589 o primeiro livro que se tem conheci-

mento sobre técnicas de alfaiataria. Publicado em Madrid por Juan de Alcega, intitu-la-se Libro de Geometria, Pratica y Traça (BEDUSCHI, 2013).

Na sequência de publicações com vistas ao compartilhamento das informações relativas à alfaiataria, cita-se a obra Arte da Alfaiataria, de 1830, do alfaiate francês H. Guglielmo Compaign. Na publicação podem ser encontradas as primeiras tabelas de medidas e o princípio do escalado que revolucionou a atividade de corte na Europa (RIFFEL, 2003).

O público atuante na atividade de alfaiataria era o masculino, pois apenas em 1675 foi permitido às mulheres trabalhar com costura e fundar suas próprias corpo-rações (BELSCHANSKY, 2011). A partir dessa data, as modistas, que até então tinham o direito de confeccionar apenas a roupa íntima feminina, conquistaram o direito de executar todo tipo de vestuário feminino em suas oficinas. Segundo Riffel (2003), esse modelo se difunde pela Europa e põe fim a atuação exclusiva dos homens na atividade de corte e costura.

Embora houvesse, pontualmente, algumas publicações voltadas ao registro e repasse de técnicas de corte e costura, foi no ano de 1841 que o ensino na área de moda institucionalizou-se oficialmente. O francês Alexis Lavigne, mestre alfaiate da Rainha Eugênia, lançou os primeiros cursos para aprendizes de alfaiates pela École Guerre-Lavigne, em Paris. Após a morte de Alexis, sua filha, Alice Guerre, assume o negócio e o direciona ao público feminino (BELSCHANSKY, 2011; ESMOD, 2019), am-pliando aos poucos seu rol de cursos e alcance.

A consolidação da noção de design, porém, ocorreria apenas na década de 1960, acabando por impactar a concepção do trabalho de costura e criação de moda. Nes-se sentido, em 1976, a École Guerre-Lavigne passa a assumir o nome que carrega até hoje, École Supérieure des Arts et Techniques de la Mode (ESMOD). Com método de ensino patenteado, a escola conta atualmente com vinte unidades em treze diferen-tes países, incluindo o Brasil, e é ainda referência mundial no ensino desse campo do conhecimento, segundo Belschansky (2011) e o próprio site da instituição (ESMOD, 2016).

No Brasil, a prática da modelagem também apresentou relações com a alfaia-taria e a atividade vinculada à produção caseira de vestuário, especialmente com o processo de migração de famílias de artesãos e camponeses europeus em meados do século XIX (RIFFEL, 2003). Contudo, a história da institucionalização do ensino de modelagem no país se aproxima mais do ensino tecnicista voltado à preparação de mão-de-obra para a indústria, ou seja, voltado às classes populares (BELSCHANSKY, 2011).

A demanda pelos produtos do vestuário foram crescendo por conta do apa-recimento das primeiras fábricas de roupas no início do século XX, de maneira que os cursos profissionalizantes de corte e costura se proliferaram pelo país. Foi esse o período de abertura do Instituto Profissional Feminino, datado de 1911, no bairro do Brás, na cidade de São Paulo. A instituição dedicava-se ao ensino dos ofícios de corte e costura e à preparação para as funções doméstica. Também fundam-se, neste mo-vimento, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), aberto em 1942, e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), em 1946 (BELSCHANSKY, 2011).

Mesmo com os esforços no sentido de garantir a qualificação da mão-de-obra, Belschansky (2011) aponta que os profissionais que atuavam nessa área quando se deu o aquecimento da indústria da moda brasileira nas décadas de 1950 e 1960 eram praticamente autodidatas. Por falta de capacitação de profissionais, muitas empre-sas recorriam à cópia como garantia para a confecção das peças, comenta a autora. Como complementa, “essa classe, assim como as costureiras são até hoje, era limita-da a aprendizado em cursos livres em instituições reconhecidas ou não, ou até mes-mo a aprender em casa com mães, tias ou avós” (BELSCHANSKY, 2011, p. 69). Ainda conforme a autora, foi somente no ano de 1994, a partir de uma parceria entre a já citada ESMOD e o SENAC, que iniciou o funcionamento da primeira turma de Bacha-relado em Design de Moda com Habilitação em Modelagem do Brasil, no ano de 1999 (BELSCHANSKY, 2011).

Portanto, a origem da prática de modelagem no Brasil transitou entre a informa-lidade de quem aprendeu a atividade através de manuais, com familiares ou mesmo por meio de tentativas e erros, e o ensino de caráter técnico e sistematizado, voltado

à atuação nas indústrias. Pode-se dizer que as heranças marcantes do percurso tri-lhado pela área de modelagem no país ainda se fazem presentes em sala de aula na atualidade, mesmo em se tratando do contexto de cursos superiores de Design de Moda voltados à formação de profissionais para atuar nos setores criativos. A pre-sença majoritária das mulheres nos cursos e a predominância de modelos para esse público nas obras sobre modelagem; a persistência de bibliografias de cunho ins-trucional, em que prevalecem os “comos” em detrimento dos “por quês”, conforme apontam as pesquisas de Iervolino (2014) e Belchansky (2011); a linguagem técnica e sucinta; bem como os métodos de realização da atividade assinalam algumas das marcas desse legado.

Em trecho retirado do prefácio do livro Modelagem Industrial Brasileira, refe-rência nacional no estudo de modelagem e escrito por Duarte e Saggese em 2008, é possível captar o caráter tecnicista marcante no ensino de modelagem:

Passo a passo, decifra-se a gola xale, entende-se a blusa marinheira tão preza-da por Gabrielle Chanel, ela mesma, uma mestra da modelagem, e é possível até ter sucesso no decote drapeado, que sempre dá a impressão de ser obra do acaso. Estes detalhes podem ter explicações sociológicas ou culturais, mas as páginas deste livro são mais objetivas. Aqui, tudo é cálculo e precisão [...] (DUARTE; SAGGESE, 2008, p. 7).

É compreensível, portanto, que a atividade de modelagem seja hegemonica-mente atrelada a sua função industrial, técnica e de precisão, ou seja, voltados à prá-tica do trabalho.2 Esse caráter garante o aumento contínuo da qualidade dos pro-dutos e competitividade das indústrias têxteis e do vestuário brasileiros e não está, neste trabalho, sendo questionado. Aborda-se, sim, a ampliação do uso da atividade

de modelagem para fins educacionais de outra natureza, no sentido de somar abor-

dagens ao invés de suprimir uma ou outra.

2.1 Distintas dimensões da modelagem para o ensino superior

Dentro do que se instaurou como cânone para o ensino de modelagem, tanto em cursos técnicos e tecnológicos quanto em bacharelados, costuma-se abordar o ensino desta atividade por meio de duas técnicas distintas: a modelagem plana, geo-métrica ou bidimensional, e a moulage, também chamada tridimensional ou draping3. As técnicas de modelagem hoje sistematizadas, plana ou moulage, podem ser desen-volvidas a partir de diferentes métodos, ou seja, há muitas formas de se executar uma base planificada ou de trabalhar o tecido sobre o busto.

Porém, pode-se notar que algumas características são intrínsecas a cada uma das técnicas. Assim, para fins de explanação sobre as particularidades de cada uma, este estudo utiliza a abordagem de Emídio (2018), que organiza as técnicas por meio de duas dimensões e finalidades, a saber: “1) técnica-criativa, voltada à concepção do vestuário; 2) técnica-produtiva, para a produção do vestuário [...]” (EMÍDIO, 2018, p. 62, grifo da autora). Sobre essas dimensões, nos esclarece a autora que,

Enquanto na primeira se avalia as propriedades, comportamentos, caimentos e estruturas do tecido, considerando as demandas dos usuários quanto às questões sensoriais, ergonômicas, práticas e estética-simbólicas dos produtos, a segunda ava-lia as questões de viabilidade técnica-produtiva dos referidos materiais, ou seja, as-pectos relacionados às questões de produção e reprodução dos produtos (EMÍDIO, 2018, p. 86).

Nas palavras de Emídio (2018), a dimensão técnica-criativa, conectada ao pro-cesso de criação, é contemplada pela moulage, pois carrega em si as naturezas téc-nica e criativa. Por isso, é identificada pela autora como um “recurso criativo, de ex-perimentação e de estudo, e como meio de representação e de verificação das ideias geradas” (EMÍDIO, 2018, p. 63). Em contrapartida, à modelagem plana é conferida a dimensão técnica-produtiva, pois é a técnica predominante no meio produtivo e vin-cula-se à produção em série. Trata-se então de um recurso de produção industrial, “potencializadora no atendimento às funções práticas do produto junto ao usuário, bem como fundamental para a assertividade do processo de produção industrial dos produtos” (EMÍDIO, 2018, p. 63).

De fato, percebe-se que a origem das técnicas e sua aplicação acabam por im-pregná-las de sentidos e potencialidades distintas, porém complementares. Diante disso, cabe uma avaliação do emprego delas no contexto educacional, já que a abor-dagem didático-pedagógica direciona a lógica de produção de conhecimento.

Além disso, é importante tomar consciência das reais potencialidades de cada técnica, para que não se incorra na “supervalorização de um único instrumento, técnica ou método, em detrimento de outras possibilidades” (EMÍDIO, 2018, p. 62). Como pondera a autora, trata-se então de relacionar a técnica de modelagem aos objetivos, direcionamentos, contexto e aos fins almejados com o ensino.

3 TRAJETOS PESSOAIS E PROFISSIONAIS NA MODELAGEM

As autoras iniciaram o contato com a produção de peças do vestuário em casa, ora acompanhando com curiosidade a mãe, que com sua Singer fazia pequenos con-sertos e peças simples, ora montando peças de roupas para bonecas com retalhos de tecidos.

Alguns anos mais tarde, mais especificamente em 2006 e 2009, iniciaram os estudos no curso de Moda. No início ficaram deslumbradas com tudo o que era pro-posto e tudo o que era “novo” e encantador naquele universo acadêmico. Mesmo iniciando os estudos em anos diferentes, aparentemente as coisas continuavam a funcionar da mesma forma.

Mal haviam experimentado desenvolver os primórdios de uma modelagem quando adentraram a sala reservada à prática dessa disciplina na universidade. Sem demora, as então acadêmicas receberam uma lista extensa e dispendiosa de mate-riais de modelagem e a indicação para realizar a cópia da apostila que guiaria a disci-plina. Tudo parecia bastante preciso e técnico, mas instigante e desafiador ao mesmo tempo. As disciplinas de modelagem iniciavam pelo estudo da modelagem infantil e masculina, seguidas da introdução à modelagem feminina. Posteriormente, prosse-guia-se para a modelagem feminina avançada, sendo um semestre para cada etapa.

Seguiram pela modelagem plana, cumprindo meticulosamente as ordens de execução, medidas, orientações de uso dos materiais, repetições dos exercícios em diferentes escalas para fixação do conteúdo, embora, na maioria das vezes, sequer compreendessem a lógica de tantas regras e medidas. Mas as autoras e estudantes à época tinham consciência de que os exercícios seriam cobrados tal qual constavam na apostila de modelagem e, por este motivo, os executavam à risca.

Até que no 6º semestre de curso as pesquisadoras entraram em contato com a técnica de moulage. Comumente, essa disciplina é trabalhada somente após algu-mas fases de modelagem plana, fato observado tanto no curso onde as autoras se graduaram, quanto nas instituições onde viriam a atuar como docentes anos mais tarde. A moulage faz o caminho inverso da modelagem plana, é um método utili-zado para transformar a forma tridimensional em bidimensional, já que principia a construção das peças do vestuário com os tecidos diretamente sobre um manequim ou corpo humano. Considera-se a modelagem uma das etapas mais importantes na construção do vestuário. Para desenvolvê-la, são necessários cálculos de execução e conhecimentos sobre o corpo humano, como também conhecimentos sobre os aspectos ergonômicos que envolvem a construção e o equilíbrio do corpo e como o mesmo se “comportará” perante o caimento, as texturas e os volumes dos modelos propostos.

O método de trabalhar diretamente sobre o busto no desenvolvimento das pe-ças é um dos recursos mais utilizados pelas autoras quando desenvolvem peças para alguns poucos clientes ou artigos para uso pessoal. Une-se a essa prática um pouco dos princípios de alfaiataria e, por vezes, porém mais pontualmente, a modelagem plana. Ou seja, recorre-se a esse processo de modelagem a maior parte das vezes que se deseja ou necessita criar.

Quando iniciaram o trabalho como docentes de modelagem, contudo, as pes-

quisadoras se confrontaram com os mesmos métodos reprodutivistas com os quais tiveram contato enquanto estudantes. Assim, propunham exercícios seguindo as or-dens de execução de que dispunham, algumas vezes por determinação dos materiais didáticos do local de trabalho, outras por hábito ou mesmo insegurança de princi-piantes.

Com o passar do tempo, puderam identificar, a partir da prática docente, as di-ficuldades para promover nos estudantes uma compreensão e uma visualização dos efeitos que o traçado geométrico sobre o papel ou no sistema CAD proporcionariam após a confecção daquela peça. As dificuldades talvez residam no fato de o ensino ser fracionado, pois em geral, costuma-se finalizar as atividades de modelagem para, em outra disciplina no semestre seguinte, realizar os testes das mesmas.

Sendo assim, a preocupação ainda existia em relação à dependência de ordens de execução, à forma mecânica como os conteúdos se davam com a aplicação das regras prontas, à reprodução de modelos pré-definidos que nem sempre condiziam com a realidade de consumo da região, além de padrões estéticos idealizados. Enfim, a ausência de diversidade de olhares sobre a prática da modelagem era uma realida-de. Por outro lado, havia a necessidade da formação de caráter instrumental para o desempenho da função de modelista no contexto fabril, em especial porque ambas as autoras iniciaram suas carreiras enquanto docentes de cursos técnicos e tecnoló-gicos na área do vestuário.

À medida que adquiriam mais confiança e experiências, as docentes começa-ram a inserir pontualmente informações adicionais, questionar certas regras e bus-car, quando possível, outras formas de provocar os estudantes para que compreen-dessem os sentidos e origens dos cânones utilizados no ensino da modelagem, bem como incentivá-los a percorrer outros caminhos. Foi com esta intenção que as linhas que seguem se desenrolam.

4 NOVAS PERSPECTIVAS PARA A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

A inserção de novas ferramentas e tecnologias digitais, a ampliação do acesso

à educação e as mudanças em relação ao compartilhamento e produção de infor-mações apresentam-se como algumas das transformações em curso que tendem a impactar o ensino e os processos de produção de conhecimento de maneira signifi-cativa. Conforme Araújo (2014), após a terceira revolução educacional, cujo resulta-do foi a ampliação do acesso à escolarização e a conseguinte redução na qualidade da mesma, apresenta-se a necessidade de “reinvenção” da educação.

O modelo de escola e de universidade consolidado no século 19 tem agora, também, de dar conta das demandas e necessidades de uma sociedade de-mocrática, inclusiva, permeada pelas diferenças e pautada no conhecimento inter, multi e transdisciplinar (ARAÚJO, 2014, p. 110).

Em consonância com o que aponta Araújo (2014), é importante salientar que não se trata de criar uma antagonia entre tradição e inovação. Garantir a conserva-ção, a transmissão e o enriquecimento do conhecimento historicamente acumulado

é uma das funções sociais da educação, uma vez que o novo necessita de alicerces sobre os quais possa ser erigido.

Para Araújo (2014), essas modificações serão sentidas, no âmbito educacional, por meio de três dimensões: nos conteúdos, na forma e nas relações entre professor e estudante4. Contudo, o cerne da renovação está alicerçada justamente sobre a ter-ceira dimensão, ou seja, em torno do papel desempenhado pelos sujeitos envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem. Assim, conforme ressalta o autor,

A reinvenção das práticas educativas deve considerar um sujeito que constrói sua inteligência, sua identidade, e produz conhecimento por meio do diálogo estabelecido com seus pares, com professores e com a cultura, na própria realidade cotidiana com o mundo em que vive (ARAÚJO, 2014, p. 112).

Essa perspectiva aponta para o uso de metodologias ativas de aprendizagem, caracterizadas pela centralidade no estudante, autor do conhecimento, e o papel mediador do professor nesse processo. Fundamenta-se, portanto, no desenvolvi-mento da autonomia e da capacidade de “aprender a aprender” dos sujeitos.

É com o olhar voltado para a postura ativa e reflexiva do aluno, bem como para o papel fundamental do docente em conduzir o processo dialético de construção do conhecimento que as autoras Pimenta e Anastasiou (2014) empregam o termo ensinagem5. Segundo defendem, é preciso superar o processo tradicional de ensino, centrado na fala do professor e na memorização de conteúdos pelos alunos, já que “[...] a ação de ensinar não se limita à simples exposição dos conteúdos, mas inclui a necessidade de um resultado bem-sucedido daquilo que se pretendia fazer - no caso, ensinar” (PIMENTA; ANASTASIOU, 2014, p. 207, grifos das autoras). É por este motivo que, além de “o quê” e de “como”, deve-se estimular a reflexão dos “por quês”, ou seja, do pensamento autônomo.

A alteração do paradigma educacional vigente, ainda ancorado na visão moder-na do conhecimento, também chamado cartesiano6 ou pensamento simplificante, depende do interesse e da ação conjunta dos atores envolvidos na educação. Essa prática tradicional de ensino, compartimentalizada, centrada no papel do professor, racionalizadora e ordenada nos é bastante familiar e é ainda predominante nos siste-mas de ensino brasileiros.

A Pedagogia dos Saberes Sensíveis adentra o espaço do ensino como uma abor-dagem alternativa a essa lógica, cuja relação com o paradigma da complexidade, defendido pelo francês Edgar Morin, é direta. Também chamada de pedagogia dos afetos, a abordagem em questão encontra-se no limiar entre os campos da educação e da estética. Por esse motivo, centra-se na construção do saber por meio da experi-mentação estética, cuja relação com a percepção e a sensibilidade é indissociável. A

relevância dessa linha pedagógica voltada para a formação da percepção acontece, como demarca Farina (2010, p.3), no fato de que “é a partir do que somos capazes ou não de perceber que produzimos conhecimento sobre nós mesmos e sobre o real.” Portanto, origina-se de uma educação guiada pelo e para o sensível.

O presente trabalho encontra na abordagem da educação estética o seu aporte teórico, pois entende-se que está alinhada com as necessidades de formação dos estudantes para um ensino condizente com o que Morin chama de “educação na era planetária” (MORIN, 2007). Os alicerces dessa educação contemporânea são nítidos e desafiadores: “aprender a ser”, “a fazer”, “a viver juntos” e “a conhecer” (MORIN, 2005). É por esse motivo que se defende o desenvolvimento da sensibilidade no âm-bito educacional, pois como acrescenta Arenhardt et al (2006, p. 6), é uma das tarefas do ensino preparar “sujeitos sensíveis e competentes para continuar se construindo, adquirindo autonomia e domínio do processo, fazendo aflorar do próprio olhar, uma sensibilidade de ser – estar no mundo”.

5 CAMINHOS POSSÍVEIS PARA UM ENSINO DE MODELAGEM PELO SENSÍVEL:

PROPOSIÇÕES A PARTIR DO PERFIL PROFISSIONAL DO DESIGNER DE MODA

Como fenômeno social, a moda encontra expressão pela busca e promoção do novo, alcançado por meio de recursos de criação diversificados. Sabe-se ainda que os processos que englobam a criatividade e a inovação são, por natureza, complexos e de caráter multidimensional. Isso porque demandam um grau elevado de interco-nexões, capacidade de análise, identificação de cenários e novas analogias para que ocorram.

Por esse motivo, o perfil dos sujeitos que atuam na área de modelagem se as-senta de maneira direta sobre sua capacidade de criação do novo. Nesse caso, por-tanto, a presença da criatividade não é apenas desejada, mas fundamental para o desempenho das atividades ligadas à sua profissão.

Conforme o Projeto Pedagógico do curso de Bacharelado em Moda da Univer-sidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)7, são objetivos do curso promover a for-mação de profissionais que apresentem “criatividade e apropriação do pensamento reflexivo e da sensibilidade artística para projetar, planejar e desenvolver o produto de moda” (UDESC, 2016, p.11), de forma a interpretar e traduzir, por meio de suas criações, as necessidades de grupos sociais, indivíduos ou comunidade em relação “[...] aos problemas tecnológicos, socioeconômicos, gerenciais e organizativos, bem como a utilizar racionalmente os recursos disponíveis, além de conservar o equilíbrio do ambiente” (UDESC, 2016, p.7-8).

Essa perspectiva de formação na área de Moda demanda um olhar para a com-plexidade, de forma a contemplar os aspectos referentes ao processo produtivo em sua relação indissociável com o sistema social, político, econômico e ambiental nos quais está inserido.

Conforme apontado anteriormente, sabe-se que a lógica que norteia a constru-ção dos conhecimentos e sua legitimação acaba por definir as abordagens de ensino feitas em relação ao objeto de estudo. Desse modo, abaixo são esboçadas algumas proposições, tecidas a partir de reflexões sobre e para a prática docente das pesqui-sadoras em relação ao ensino de modelagem no contexto de cursos superiores de Moda ou Design de Moda. Nossa intenção centra-se no aprimoramento e aproxi-mação da abordagem de ensino de modelagem com os princípios pedagógicos dos saberes sensíveis.

A) Primeiro a percepção, depois a abstração

Esta primeira proposição parte da premissa de que o processo de construção do conhecimento se origina com o desenvolvimento da percepção, e consequente-mente, com a capacidade de nos tornarmos sensíveis ao objeto sobre o qual, poste-riormente, teceremos reflexões racionalizadas. No caso da modelagem, sabe-se que a atividade inicia a partir do estudo do corpo. As bibliografias da área indicam esse tópico para o começo da disciplina, os estudiosos da modelagem e antropometria também. Porém, é costumeiro iniciar o ensino de modelagem por meio do traçado planificado das formas e volumes do corpo.

Defende-se aqui, no entanto, que a iniciação do aprendizado da modelagem seja por meio da moulage. Conforme definido anteriormente, esta técnica está mais conectada com os aspectos técnico-criativos do que a modelagem plana, que difi-culta o processo de sensibilização do estudante para os volumes, movimentos do tecido e do corpo. Por conseguinte, torna complexa a compreensão das questões antropométricas, ergonômicas e estéticas que norteiam as regras empregadas na modelagem e que seriam mais facilmente compreendidas por meio da tridimensio-nalidade, característica da moulage.

Reconhecido por suas criações e cursos, o criador Jum Nakao desenvolve, há anos, oficinas de modelagem. Sua proposta assenta-se no entrelaçamento entre arte e moda, já que o profissional toma como princípio “a percepção da tridimensiona-lidade do corpo no espaço e suas infinitas possibilidades de vesti-lo a partir de uma visão escultórica e volumétrica” (JUM NAKAO, 2019, on-line). A abordagem didática de Jum Nakao apoia-se, portanto, na percepção primeira do corpo e se dá por meio da modelagem tridimensional. Assim, o criador parte dos princípios de espacialidade e, por meio da utilização de decalque corporal, propõe “compreender os princípios lógicos da modelagem para libertar a criatividade sobre novas formas de vestir. Sem cálculos e fórmulas” (JUM NAKAO, 2019, on-line).

Nessa perspectiva, acredita-se que o contato inicial da modelagem por meio da percepção - esta que se dá por meio do contato direto do sujeito com o objeto, e não por meios teóricos -, dos volumes e reentrâncias do corpo, das linhas de simetria e assimetria, dos mecanismos de articulação dos seus membros, abriria um caminho mais frutífero para a introdução aos estudos da modelagem. Dessa forma, os estu-dantes já estariam sensibilizados em relação ao corpo e seus volumes, suas particu-laridades e potencialidades quando enfim fossem apresentados aos conteúdos de modelagem plana, de caráter mais abstrato.

B) Tempos de diversidade

Este aspecto recai sobre a percepção de que os materiais didáticos de modela-

gem do vestuário não contemplam traçados, interpretações ou estímulo ao desen-volvimento de modelos para diferentes tipos de corpos. Isso se estende, inclusive, para a modelagem tridimensional.

Como dito anteriormente, usualmente o ensino de modelagem concentra sua aplicação na prática do trabalho. Por esse motivo, seus conteúdos são desenvolvi-dos a partir da tabela de medidas, no intuito de agilizar e padronizar os resultados. O corpo usado como base para o desenvolvimento das atividades de modelagem são, em geral, os corpos medianos - tamanho 42 para o feminino -, com medidas propor-cionais entre si.

Tendo em vista as recentes discussões em relação aos padrões estéticos do-minantes, cabe aqui apontar a necessidade de inserção de distintas concepções de corporeidade no ambiente acadêmico, de maneira a incentivar reflexões e contri-buições para uma sociedade de respeito à diversidade. Onde estão contemplados o corpo obeso, o corpo idoso, o corpo com deficiência no ensino de modelagem? Isso sem adentrar o campo de discussão sobre gênero, temática que têm impactado sobremaneira no consumo de moda, e ainda está distante do contexto de ensino de modelagem.

Acredita-se, portanto, que a prática de pensar e modelar para diferentes bioti-pos e perfis possa ser inserida no ambiente de sala de aula, principalmente a partir do questionamento do padrão estético para o qual se costuma criar e do desejo ou não de reafirmação do mesmo por parte dos estudantes.

Além disso, cabe ainda questionar a escolha dos modelos de vestuário propos-tos pelos materiais didáticos de modelagem, cuja relação com os primórdios dessa atividade ainda se faz presente. Em análise realizada pelas autoras em três diferentes bibliografias de modelagem - apostilas de modelagem da UDESC (2017), Modela-gem Industrial Brasileira, de Duarte e Saggese (2010) e Aprenda a costurar, de Brandão (1967) -, percebe-se a centralidade da figura feminina, público-alvo dos materiais de modelagem e costura por motivos que já foram anteriormente abordados. Percebe--se, igualmente, a permanência de formas, modelos e vestígios de uma subjetividade feminina ainda conectada aos valores relacionados ao decoro, à valorização de um corpo magro e jovem e ao seu papel na estrutura familiar patriarcal.

C) Nem todo trajeto é reto, nem o mar é regular

A reflexão desse item se debruça sobre o uso recorrente de ordens de execução no ensino de modelagem. Com presença marcante nas bibliografias da área, esse recurso reforça o caráter instrucional com que a temática é abordada. Em estudos voltados para o ensino de modelagem, Iervolino (2014), Emídio (2018) e Belschansky (2011) destacam problemáticas atreladas ao ensino de modelagem por meio de or-dens de execução.

Embora configurem um artifício importante para o registro e sistematização dos conhecimentos da área, as pesquisas apontaram que, além de problemas identifi-cados na estruturação e comunicação eficaz, as ordens de execução, por si só, são insuficientes para promover o entendimento profundo dos conteúdos e das regras, bem como contribuem para o distanciamento de um processo autônomo e reflexivo de aprendizado. Conforme destaca Emídio (2018, p. 111),

[...] ensinar modelagem no contexto de projetos de design de moda contem-porâneos, não pode se resumir em demonstrar ao aluno as possibilidades de configurações previstas com base em regras rígidas e de forma arbitrária, ao contrário, deve-se levar o aluno a ampliar seu repertório de conhecimento e de domínio técnico-criativo e técnico-produtivo nesta área, para proposi-ções inovadoras.

Acredita-se que a utilidade das ordens de execução possa residir na construção das bases para o exercício da modelagem plana. Trata-se da representação dos con-tornos do corpo por meio de traçados geométricos e são utilizados como ponto de partida para a interpretação de modelos. Do ponto de vista de sua aplicação em con-textos onde se requer velocidade no trabalho, esse recurso é de grande valia. Contu-do, do ponto de vista da construção do conhecimento pelo estudante, as ordens de execução não deixam muitas dúvidas de que apresentam limitações, como apontado pelas pesquisadoras.

Problemática maior se dá na aplicação de ordem de execução voltada para a interpretação de modelos. Nesse caso, a proposta em si é incoerente mesmo com a prática profissional do modelista em ambiente fabril, que dificilmente recorrerá a al-gum manual que indique em quantos centímetros deverá descer a partir do pescoço para que se tenha um decote “V”. A interpretação é variável de acordo com o efeito que se deseje conferir a peça final. Portanto, pré determinar todos os procedimentos consistiria em encarar a atividade de modelagem como algo estanque. Além disso, pode-se promover nos estudantes a falsa ideia de que há uma única maneira de se realizar determinado modelo.

Em prática de sala de aula é possível perceber que esse recurso causa um pro-cesso automatizado de reprodução das ações propostas pelo material, muito em-bora possa haver esforços docentes ou interesse de discentes para contextualizar e compreender aquela informação. Esse método, como acrescenta Emídio (2018), não comporta o pensamento complexo necessário para a promoção de um aprendizado significativo e capaz de atuar frente aos problemas reais, tampouco estimula a aqui-sição de competências e habilidades que possibilitem ao sujeito aplicar os conheci-mentos adquiridos em novos contextos ou ideias.

D) Interconexões, transversalidades

Partindo da contribuição de autores que se debruçaram sobre a temática do en-sino inter e transdisciplinar, e tendo como paradigma a Pedagogia dos Saberes Sensí-veis, despontam como estratégias possíveis para o alcance deste panorama o uso da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), a Aprendizagem Baseada em Problemas e por Projetos (ABPP), ou ainda a metodologia da problematização, detalhados nos trabalhos de Araújo e Sastre (2016); Araújo (2014); e Pátaro (2008). As metodologias de ensino baseadas em problemas partem do princípio de centralidade do sujeito aprendente em contextualização direta com sua realidade, e contemplam diferentes estratégias para a sua execução: projetos integradores; temas transversais ou ainda temas centralizadores do processo de ensino e de aprendizagem.

Nos centros de ensino onde as autoras atuam como docentes, nota-se a pre-sença de projetos interdisciplinares voltados à conexão de uma parcela das unidades curriculares de uma fase específica. Contudo, com exceção das atividades voltadas para a coleção de formatura, as disciplinas seguem independentes entre si, cada qual

responsável por parte da orientação do projeto, que compete em espaço e tempo com os demais conteúdos do semestre.

De maneira geral, as experiências com projetos indicam resultados positivos no que diz respeito à participação, à autonomia, ao interesse e ao desenvolvimento de capacidades de resolução de problemas pelos estudantes. Apresenta-se, portanto, como um recurso valioso na busca de um processo de ensinagem efetivo.

6 LIMITES E POSSIBILIDADES: POSSÍVEIS PONTOS DE PARTIDA

Como inicialmente abordado, constava como objetivo deste estudo a investiga-ção sobre as barreiras e potencialidades identificadas no ensino de modelagem em relação à sua capacidade de sensibilizar os estudantes, com vistas a promover uma aproximação da abordagem da Pedagogia dos Saberes Sensíveis.

Foi possível identificar que o ensino de modelagem ainda se conecta com o caráter instrumental, característico do contexto de surgimento do ensino da área no Brasil. Esse perfil tem dupla origem: a) a modelagem ensinada de maneira informal, por meio de cursos livres, por familiares que dominavam as técnicas ou através de manuais que promoviam a atividade do corte e costura, em geral, direcionada às mu-lheres e em sintonia com sua formação para os serviços domésticos; e b) a formação proveniente dos cursos técnicos, voltados para constituição de obra para a indústria e por meio dos quais o ensino de modelagem foi sistematizado e organizado formal-mente.

Em qualquer uma das duas situações, é possível perceber características co-muns: a presença da mulher como trabalhadora e público-alvo dessa atividade, o caráter instrucional, tecnicista e sistematizado dos materiais didáticos, o uso recor-rente de ordens de execução, a manutenção de métodos, linguagem e recursos para a execução das atividades pertinentes a prática da modelagem e mesmo a constância de modelos do vestuário e concepções estéticas ao longo dos anos (saia lápis, vesti-do com recorte princesa e assim por diante). Essas características, acrescidas do en-rijecimento das práticas de ensino, emolduram algumas das limitações vislumbradas ao longo das pesquisas e dificultam a abordagem do tema na perspectiva do sensível.

Pondera-se, contudo, que enquanto área de pesquisa, e mesmo em relação à sua presença no âmbito de cursos superiores, a modelagem está em processo de amadurecimento, assim como acontece com o dinâmico campo da Moda. Como apontado, o primeiro curso superior brasileiro exclusivamente voltado para o estudo da modelagem iniciou apenas em 1999. Mesmo em se tratando da presença anterior a esta data nas grades curriculares de cursos de Moda ou Design de Moda, acredita--se que a maturação da modelagem ainda esteja em processo de desenvolvimento.

Em relação às reflexões provenientes da prática docente, bem como das inquie-tações para com a abordagem do ensino de modelagem, acredita-se que são trajetos possíveis para uma aproximação deste com o campo do sensível. Promover práticas que insiram o estudante no centro do processo de aprendizagem, ou da ensinagem, estimular a reflexão e a construção de momentos de experimentação estética seriam, portanto, importantes balizadores do processo de construção do conhecimento por

outro viés pedagógico.

Em se tratando do contexto de cursos superiores com o compromisso na pro-moção da criatividade e da inovação, acredita-se que as estratégias apresentadas possam ampliar as possibilidades de aplicação da modelagem para além da concep-ção de um mero recurso técnico desvinculado de um pensamento crítico e das eta-pas criativas. Assim, apesar de reconhecer a importância das técnicas e procedimen-tos da atividade de modelagem em ambiente industrial, defende-se, neste trabalho, o uso de meios de sensibilização dos estudantes para o corpo e a diversidade de olhares sobre sua relação com o vestir.

Por fim, salienta-se que as considerações aqui apresentadas surgiram das in - quietações e da intenção de aprimoramento do fazer docente das pesquisadoras em direção a uma prática pelo e para o sensível, que seja significativa, pautada na cons-trução dialógica do conhecimento e comprometida com a formação profissional e cidadã. Portanto, surgem, antes de tudo, da própria reflexão do ser/ estar no mundo das pesquisadoras, assim como da afirmação de um ensino possível tanto quanto almejado8.

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