A contribuição de Malba Tahan para a Educação Matemática: a atualidade das lições do mestre
Recepção: 30 Novembro 2017
Aprovação: 21 Janeiro 2018
Publicado: 01 Maio 2018
URL: http://portal.amelica.org/ameli/jatsRepo/173/1732035010/index.html
DOI: https://doi.org/10.25090/remat25269062v15n192018p277a293
Resumo: Este artigo tem como objetivo identificar os saberes docentes construídos por quatro estudantes de licenciatura em matemática ao analisarem as potencialidades didáticas de uma história em quadrinhos que apresenta o clássico problema dos 35 camelos de Malba Tahan. Os sujeitos desta pesquisa são estudantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) de uma fundação educacional situada na zona oeste do Rio de Janeiro. Trata-se de uma pesquisa qualitativa em educação que, devido ao número reduzido de sujeitos e às especificidades do contexto, caracterizou-se como um estudo de caso. Para coleta dos dados, acompanhamos quatro encontros do programa. Neles, os estudantes tiveram oportunidade de resolver o problema, ler uma história em quadrinhos que o descreve, planejar, realizar e refletir sobre a realização de uma atividade que visa discutir o problema com alunos do sexto ao nono ano da escola municipal onde são estagiários. Fundamentam a pesquisa as ideias de Tardif sobre os saberes docentes. Segundo ele, os saberes docentes são bastante diversificados e podem ser classificados em saberes da formação profissional, saberes disciplinares, curriculares e existenciais. São destacados aqui os saberes disciplinares e curriculares. Nos saberes disciplinares reconhecemos as crenças e concepções dos estudantes sobre a matemática e o seu ensino e foram predominantes as visões instrumental, absolutista e logicista da matemática. Nos saberes curriculares são enfatizados os documentos oficiais que orientam o ensino e percebemos o desenvolvimento de uma visão crítica em relação aos Parâmetros Curriculares Nacionais de matemática para o terceiro e quarto ciclo do Ensino Fundamental e aos materiais didáticos oficiais da rede municipal do Rio de Janeiro no que concerne ao ensino de frações. Nossos sujeitos salientam a necessidade de uma abordagem mais clara e profunda dos significados que podem ser associados às frações.
Palavras-chave: saberes docentes, licenciatura em matemática, frações.
Abstract: This article aims to identify the teaching knowledge built by four undergraduate students in mathematics when analyzing the didactic potential of a comic book that presents the classic problem of the 35 camels of Malba Tahan. The subjects of this research are students of the Institutional Program of Initiation to Teaching Grants (PIBID) of an educational foundation located in the western zone of Rio de Janeiro. It is a qualitative research in education that, due to the small number of subjects and the specificities of the context, was characterized as a case study. For data collection, we follow four meetings of the program. In them, students had the opportunity to solve the problem, read a comic book that describes it, plan, perform and reflect on the accomplishment of an activity that aims to discuss the problem with students from the sixth to the ninth year of the municipal school where they are trainees. The research is based on the ideas of Tardif on the teaching knowledge. According to him, the teaching knowledge is quite diverse and can be classified into knowledge of professional training, disciplinary, curricular and existential knowledge. Disciplinary and curricular knowledge are highlighted here. In the disciplinary knowledges we recognize the students' beliefs and conceptions about mathematics and its teaching and were predominant the instrumental, absolutist and logicist views of mathematics. In curricular knowledge we emphasize the official documents that guide the teaching and we perceive the development of a critical vision regarding the National Curricular Parameters of mathematics for the third and fourth cycle of Elementary School and the official didactic materials of the municipal network of Rio de Janeiro in the which concerns the teaching of fractions. Our subjects emphasize the need for a clearer and deeper approach to the meanings that can be associated with fractions.
Keywords: teacher knowledge, bachelors degree in mathematics, fractions.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo identificar los saberes docentes construidos por cuatro estudiantes de licenciatura en matemáticas al analizar las potencialidades didácticas de un cómic que presenta el clásico problema de los 35 camellos de Malba Tahan. Los sujetos de esta investigación son estudiantes del Programa Institucional de Becas de Iniciación a la Docencia (PIBID) de una fundación educativa situada en la zona oeste de Río de Janeiro. Se trata de una investigación cualitativa en educación que, debido al número reducido de sujetos ya las especificidades del contexto, se caracterizó como un estudio de caso. Para la recolección de los datos, acompañamos cuatro encuentros del programa. En ellos, los estudiantes tuvieron la oportunidad de resolver el problema, leer un cómic que lo describe, planificar, realizar y reflexionar sobre la realización de una actividad que busca discutir el problema con alumnos del sexto al noveno año de la escuela municipal donde son pasantes. Fundamentan la investigación las ideas de Tardif sobre los saberes docentes. Según él, los saberes docentes son bastante diversificados y pueden ser clasificados en saberes de la formación profesional, saber disciplinares, curriculares y existenciales. Se destacan aquí los saberes disciplinarios y curriculares. En los saberes disciplinarios reconocemos las creencias y concepciones de los estudiantes sobre las matemáticas y su enseñanza y fueron predominantes las visiones instrumental, absolutista y logicista de las matemáticas. En los saberes curriculares se enfatizan los documentos oficiales que orientan la enseñanza y percibimos el desarrollo de una visión crítica en relación a los Parámetros Curriculares Nacionales de matemáticas para el tercer y cuarto ciclo de la Enseñanza Fundamental ya los materiales didácticos oficiales de la red municipal de Río de Janeiro que se refiere a la enseñanza de fracciones. Nuestros sujetos subrayan la necesidad de un enfoque más claro y profundo de los significados que pueden ser asociados a las fracciones.
Palabras clave: conocimientos docentes, licenciatura en matemáticas, fracciones.
Introdução
Este artigo tem como objetivo identificar os saberes docentes construídos por quatro estudantes de licenciatura em matemática ao analisarem as potencialidades didáticas de uma história em quadrinhos que apresenta o clássico problema dos 35 camelos de Malba Tahan. A pesquisa que apresentamos é parte de um projeto mais amplo que visa identificar os saberes docentes (TARDIF, 2014) construídos por estudantes de licenciatura em matemática que participam do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) na Fundação Educacional Unificada Campograndenses.
Como coordenadores do PIBID na instituição, fomos motivados pelo interesse que os bolsistas demonstraram por um pequeno texto, escrito por Marlon Tenório, que apresenta e soluciona o problema dos 35 camelos utilizando a linguagem das histórias em quadrinho. Em síntese, tal problema consiste na seguinte situação (MALBA TAHAN, 2010):
Em uma herança, havia 35 camelos para serem divididos entre três filhos. O primeiro filho deveria ficar com metade dos camelos, o segundo filho deveria ficar com a terça parte dos camelos e o terceiro com a nona parte dos camelos. Se 35 não é divisível por 2 nem por 3 nem por 9, e não sendo possível fracionar um camelo, como o problema poderia ser solucionado?
Diante desta situação, o homem que calculava acrescentou um camelo à herança, fez a distribuição tal como solicitada e ainda lhe sobraram dois camelos, causando a impressão de que ele fez uma mágica. A questão central é tentar explicar esta suposta mágica. É evidente que a sobra de 2 camelos se deve ao fato de que , no entanto, esta justificativa não foi tão facilmente entendida pelos sujeitos da nossa pesquisa e provocou uma série de discussões matemáticas que, posteriormente, tornaram-se discussões de didática da matemática. Fundamentados em Tardif (2014), consideramos que estas discussões favorecem a construção de saberes docentes pelos futuros professores e nos propomos a investigar este processo. Para um delineamento mais claro da investigação, na próxima seção descrevemos as ideias e pesquisas sobre formação de professores que foram relevantes para nosso estudo. Na sequência, apresentamos o método, a análise de dados e tecemos nossas considerações finais.
Formação de professores e saberes docentes
Tendo em vista nossos objetivos, é evidente que nossa pesquisa se enquadra na linha da formação de professores. Segundo Brito e Alves (2008, p. 27), “as discussões atuais sobre a formação de professores situam-se em um movimento, iniciado há cerca de três décadas, que busca a profissionalização do ofício de ensino”. E, como essas autoras garantem, tal profissionalização pressupõe a definição da natureza dos saberes que embasam a prática docente.
Sobre o saber docente, Tardif (2014, p. 36) o define como “um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e existenciais”. Os saberes da formação profissional são aqueles provenientes das instituições formativas. É nesses espaços que o professor tem contato com as ciências da educação e com os saberes pedagógicos. Ou seja, os saberes profissionais têm como finalidade a formação intelectual, científica e a constituição de um arcabouço de elementos que vão auxiliá-lo em sua prática pedagógica. Já os saberes curriculares referem-se aos “programas escolares (objetivos, conteúdos, métodos)” (TARDIF, 2014, p. 38) de que o professor precisa se apropriar para implementar na sua atividade educativa de forma crítica e reflexiva, enquanto os saberes disciplinares correspondem aos diversos campos do conhecimento à disposição da sociedade, que são oferecidos pelas instituições educacionais na forma de disciplinas, sendo a matemática um exemplo. Por fim, os saberes existenciais relacionam-se à prática habitual e ao conhecimento dos espaços onde estão inscritos. Segundo Tardif (2014), esses saberes são gerados da experiência e são por ela legitimados, “incorporam-se à experiência individual e coletiva sob a forma de habitus e de habilidades, de saber-fazer e saber-ser” (TARDIF, 2014, p. 39). Ainda de acordo com esse autor, esses saberes
[...] não provêm das instituições de formação nem dos currículos. Estes saberes não se encontram sistematizados em doutrinas ou teorias. São saberes práticos (e não da prática: eles não se superpõem à prática para melhor conhecê-la, mas se integram a ela e dela são partes constituintes enquanto prática docente) e formam um conjunto de representações a partir das quais os professores interpretam, compreendem e orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas as suas dimensões. Eles constituem, por assim dizer, a cultura docente em ação. (TARDIF, 2014, p. 48-49)
Identificados os tipos de saber, é importante observar que Tardif (2014) não estabelece nenhuma espécie de hierarquização entre eles, uma vez que todos eles são contributos essenciais que compõem a prática do professor. Contudo, um dado relevante que Tardif (2014) verificou em suas pesquisas diz respeito às relações que os professores mantêm com esses saberes: eles, em geral, se enquadram na condição de portadores ou transmissores desses saberes, e não de produtores.
Diante desse quadro, inferimos que ele se deve especialmente às crenças e concepções que os professores construíram ao longo de suas vivências, quer profissionais, quer como estudantes desde a educação básica. Reconhecemos que “as crenças e concepções são uma espécie de lente ou de filtro, que os professores utilizam para interpretar seu processo formativo. Além disso, elas dispõem e dirigem as experiências docentes” (BARRANTES; BLANCO, 2004 apud BRITO; ALVES, 2008, p. 29).
Há, então, forte conexão entre as crenças e concepções e a prática, de modo que as crenças e concepções conduzem as ações educativas e são validadas pela prática, assim como a reflexão sobre a prática pode engendrar novas concepções ou reelaborar as existentes. Nesse sentido, Nacarato, Mengali e Passos (2015) ressaltam que o conhecimento do professor, suas crenças e concepções sobre a matemática e seu nível de confiança para desenvolver o ensino/aprendizagem dessa disciplina se manifestam em sala de aula. Segundo elas, a postura de transmissor em vez de produtor de saberes se deve à metodologia de ensino tradicional que os professores experienciaram enquanto alunos da escola básica e que continua na educação superior, onde o ensino privilegia resultados e não conceitos, e que ocorre de forma totalmente mecanizada, desprovida de significados, com pouca ou nenhuma participação dos alunos. Para clarificar o entendimento sobre a metodologia tradicional, essas autoras apoiam-se na descrição de AlrØ e Skovsmose (2006):
Ambiente escolar em que os livros-texto ocupam papel central, onde o professor atua trazendo novos conteúdos, onde aos alunos cabe resolver exercícios e o ato de corrigir e encontrar erros caracteriza a estrutura geral da aula. (apud NACARATO; MENGALI; PASSOS, 2015, p. 72)
Nacarato, Mengali e Passos (2015) orientam que as instituições formativas devem elaborar estratégias para desconstruir esses saberes que foram adquiridos durante a escolarização. Nessa direção, Brito e Alves (2008), consideram que quando os estudantes, futuros professores, refletem sobre suas crenças e concepções relativas à matemática, ao ensino e à aprendizagem, podem ser levados a modificá-las de modo a construir saberes docentes indispensáveis à sua futura prática docente. Mas, como iniciar esse processo de reflexão?
Nóvoa (2009) entende que a profissão docente é muito mais que a competência de saber transmitir um determinado conhecimento, reconhece a importância dos trabalhos de investigação científica desenvolvidos pelos especialistas educacionais e de todo arcabouço teórico ou metodológico, do ponto de vista científico e pedagógico, para a constituição do ser professor. Porém, defende que os professores mais experientes deveriam ocupar uma posição central no processo formativo dos mais jovens e que é necessário considerar o conhecimento profissional docente, que se constrói na reflexão do que se faz no cotidiano da profissão. Segundo esse autor, a construção da identidade docente passa pelo entrelaçamento entre as dimensões pessoal e profissional, num movimento de produção de um conhecimento pessoal dentro do conhecimento profissional. Sintetizando toda essa argumentação, Nóvoa (2009) conclui:
No essencial, advogo uma formação de professores construída dentro da profissão, isto é, baseada numa combinação complexa de contributos científicos, pedagógicos e técnicos, mas que tem como âncora os próprios professores, sobretudo os professores mais experientes e reconhecidos. (NÓVOA, 2009, p. 216)
Corroborando com essas ideias, Barth (1993) destaca, ainda, a valorização da formação e da reflexão teórico-epistemológica do professor ao afirmar que é preciso conhecer as teorias que estão implícitas na prática dos professores e, ao mesmo tempo, propiciar condições para que estes avancem no sentido de modificar suas concepções, posturas, crenças e ações de prática educativa. Já Pimenta (2002) acrescenta que a consideração da reflexão sobre a prática está pautada em uma análise de implicações sociais, econômicas e políticas que permeiam o ato de ensinar e questiona as condições concretas que o professor tem para refletir. Para a autora, considerar essas questões é importante para não incorrer no erro de achar que a prática isolada, por si só, é suficiente para a construção do saber docente, é essencial também para que o ato de reflexão não ocasione um individualismo, acreditando-se que se resolvem todos os problemas da prática ao refletir sobre esta. Em outras palavras, Tardif (2014) encerra a mesma ideia:
[...] o conhecimento da matéria ensinada e o conhecimento pedagógico (que se refere a um só tempo ao conhecimento dos alunos, à organização das atividades de ensino e aprendizagem e à gestão da classe) certamente são conhecimentos importantes, mas estão longe de abranger todos os saberes dos professores no trabalho. (TARDIF, 2014, p. 260)
À luz dessas ideias, vislumbramos que, ao longo de sua formação, o futuro professor de matemática se torne apto a planejar suas aulas, escolhendo os recursos didáticos mais adequados, valorizando aspectos interdisciplinares e transdisciplinares nas aulas e na organização curricular e reconhecendo as etapas da aprendizagem que seus alunos estejam vivenciando. Nos cursos de licenciatura em matemática não pretendemos formar cientistas sociais, nem psicólogos, nem matemáticos, mas sim indivíduos capazes de pesquisar sobre sua prática, integrando estas três áreas do conhecimento e promovendo uma aprendizagem significativa da matemática. Logo, vamos ao encontro de Alarcão (2001) quando afirma que é inconcebível:
(...) um professor que não se questione sobre as razões subjacentes às suas decisões educativas, que não se questione perante o insucesso de alguns alunos, que não faça dos seus planos de aulas meras hipóteses de trabalho a confirmar ou infirmar no laboratório que é a sala de aula, que não leia criticamente os manuais ou as propostas didáticas que lhe são feitas, que não se questione sobre as funções da escola e sobre como elas estão a ser realizadas. (p. 5).
Assim, Alarcão (2001) defende que, para que um professor seja bem sucedido na sua profissão, ele também tem que ser um pesquisador, um investigador de suas práticas. Trazendo esta reflexão para a formação de professores que ensinam Matemática, Serrazina (2003) sugere que os cursos de formação devem criar condições para que seu egresso seja:
– um facilitador da aprendizagem significativa dos alunos, gerando conhecimento escolar, uma vez que são os alunos que aprendem e o professor deve ser capaz de criar as melhores condições para que isso aconteça;
– um investigador dos processos de ensino/aprendizagem que acontecem na sua turma, gerando assim conhecimento profissional;
– um constante construtor do currículo, conduzindo experiências com os seus alunos, refletindo sobre elas e reformulando-as;
– um gerador de conhecimento didático significativo ao investigar sobre os processos de desenvolvimento do currículo. (SERRAZINA, 2003, p. 69).
Tendo em vista o embasamento teórico apresentado, levantamos a hipótese de que as reflexões sobre as potencialidades didáticas de uma história em quadrinhos que apresenta o clássico problema dos 35 camelos de Malba Tahan poderia contribuir significativamente para a formação inicial de professores de matemática. Além da reflexão coletiva de questões específicas do ensino e da aprendizagem matemática, os sujeitos de nossa pesquisa, por serem bolsistas do PIBID, tiveram a oportunidade de planejar e aplicar intervenções de ensino com base na história em quadrinhos em uma escola municipal da rede pública do Rio de Janeiro. Desse modo, as reflexões se pautaram também em experiências práticas. Aprofundamos os detalhes sobre como reflexões e práticas foram orientadas na próxima seção, onde apresentamos nosso método de pesquisa.
O método
Nossa pesquisa é uma pesquisa qualitativa e, sendo assim, Goldenberg (1999) faz algumas considerações sobre pesquisa qualitativa em Ciências Sociais que julgamos relevantes. Na sua visão, nesse tipo de pesquisa o investigador não se preocupa em estabelecer quantificações do grupo investigado, mas sim com o entendimento aprofundado da realidade de cada indivíduo, grupo, organização ou instituição, suas trajetórias e subjetividades. Segundo ela, “os dados qualitativos consistem em descrições detalhadas de situações com o objetivo de compreender os indivíduos em seus próprios termos” (GOLDENBERG, 1999, p. 53). Lüdke e André (2014) trazem uma caracterização de pesquisa qualitativa em educação:
(...) envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo do que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes. (LÜDKE; ANDRÉ, 2014, p.14)
Além dessas características, Lüdke e André (2014) bem como Araújo e Borba (2013), também apontam que, na pesquisa qualitativa, a fonte direta de dados é o ambiente natural sob investigação, o pesquisador considera importante a apreensão do significado atribuído pelos participantes à sua realidade e suas ações, e a indução é o método empregado na análise dos dados. Complementando esse raciocínio, D’Ambrósio (2002) entende que esse método é uma forma de inovação. Segundo esse autor, a pesquisa qualitativa “lida e dá atenção às pessoas e às suas ideias, procura fazer sentido de discursos e narrativas que estariam silenciosas. E a análise dos resultados permitirá propor os próximos passos” (D’AMBRÓSIO, 2013, p. 21).
Entre tantos modelos de pesquisa qualitativa, escolhemos o estudo de caso. Gil (2008, pp. 57-58) nos assegura que “o estudo de caso é caracterizado pelo estudo profundo e exaustivo de um ou de poucos objetos, de maneira a permitir o seu conhecimento amplo e detalhado”. Complementando, Yin (2005, p. 32) afirma se tratar de “um estudo empírico que investiga um fenômeno atual dentro do seu contexto de realidade, quando as fronteiras entre o fenômeno e o contexto não são claramente definidas e no qual são utilizadas várias fontes de evidência”. Nesse sentido, a construção de saberes docentes pelos bolsistas do PIBID é um fenômeno atual e contínuo em que não é possível delimitar claramente os momentos de construção de um saber específico. Os processos de construção de saberes disciplinares, currriculares, existenciais e de formação profissional se entrelaçam de modo que nos é possível reconhecer as circunstâncias em que apenas um tipo de saber se destaca em relação aos demais. No presente artigo analisamos aquelas em que prevaleceram os saberes disciplinares e curriculares.
Os primeiros indícios desses saberes foram ressaltados nas entrevistas que realizamos no processo de seleção dos bolsistas de 2017 e nas reuniões iniciais do projeto em que os estudantes revelaram suas crenças e concepções sobre a matemática e o seu ensino. No entanto, na vivência da sequência de atividades que tiveram como principal recurso didático a história em quadrinhos, os alunos tiveram oportunidade de rever seus saberes e reconstruí-los sobre bases mais críticas. Esta sequência foi composta por quatro encontros com quatro horas de duração. No primeiro encontro, foi proposta ao grupo de 20 bolsistas a resolução do problema dos 35 camelos, o que, de imediato, conduziu à reflexão sobre os aspectos matemáticos e didáticos do problema. No segundo encontro, divididos em grupos com 4 componentes, os estudantes efetuaram a leitura da história em quadrinhos e debateram sobre os aspectos didáticos do problema ser apresentado neste formato. No terceiro encontro, também divididos em grupos com 4 componentes, os futuros professores planejaram de uma atividade visando discutir o problema dos 35 camelos nas turmas de sexto a nono anos da escola municipal onde realizam um estágio semanal de 4 horas. E, finalmente, o quarto encontro foi destinado à análise dos dados coletados na implementação das atividades na escola.
Os encontros foram gravados e todas as falas foram transcritas. Pedimos também aos alunos que fizessem um relatório por escrito descrevendo a aplicação da atividade que planejaram. Para fazermos uma análise mais apurada, acompanhamos com mais rigor apenas um dos quatro grupos e seus componentes, na análise que segue, são denominados A, B, C e D.
Análise
Muitos saberes foram construídos pelos estudantes, contudo nos voltamos para os saberes disciplinares e curriculares, categorias em que se enquadra a maioria dos dados. A seguir, analisamos os dados de cada categoria separadamente.
Saberes disciplinares
No trabalho de Baraldi (1999), em que ela reflete sobre as concepções matemáticas e suas implicações para o ensino de um grupo de estudantes de licenciatura em matemática, identificamos sete tipos de concepção, a saber: a) a concepção pitagórica, que restringe a matemática às ações de contar e calcular; b) a concepção platônica, que contextualiza a matemática em si mesma e a vê como uma ciência abstrata, pronta e acabada, que somente pode ser apreendida intelectualmente; c) a concepção absolutista, em que o conhecimento matemático é entendido como o portador das “verdadeiras”, indiscutíveis e absolutas verdades e representante do único domínio de conhecimento genuíno, fixo, neutro, isento de valores; d) a concepção logicista, que procura reduzir todas as verdades matemáticas aos conceitos lógicos; e) a concepção formalista, que transcreve a matemática num sistema formal, onde a lógica seria apenas um instrumento; f) a concepção construtivista, que visa à reconstrução do conhecimento matemático através de métodos finitos; e g) a concepção falibilista, que não permite que o conhecimento matemático seja separado do conhecimento empírico, da física e de outras crenças. Dessas, as concepções absolutista e logicista, juntamente com a concepção instrumental, prevista nos estudos de Thompson (1992), confirmaram-se inicialmente em nossa pesquisa.
No primeiro encontro, propusemos aos estudantes que resolvessem em pequenos grupos o problema de Malba Tahan. Em seguida, refletimos coletivamente sobre as soluções apresentadas e também sobre as possibilidades de um ensino a partir da resolução de problemas. As concepções que expomos aqui foram inferidas com base nas concepções dos estudantes sobre o que é a resolução de problemas e seu papel na aprendizagem matemática.
Ao se depararem com o enunciado do problema, dois estudantes, A e B, não conseguiram resolvê-lo e pouco se entusiasmaram para buscar uma solução, alegando que aguardariam para assistir as soluções dos demais colegas. Durante as apresentações frequentemente um aluno interrompia a fala do outro a fim de questionar os argumentos usados e compará-los com aqueles que empregou em sua resolução. As interrupções incomodavam A e B, pois, segundo eles, impediam que acompanhassem a resolução que estava sendo apresentada. Nas palavras de A: “a resolução de um problema tem princípio, meio e fim e, se o professor for interrompido toda hora, o aluno nunca vai conseguir aprender”. Observamos que, em suas crenças acerca da resolução de problemas matemáticos, A e B trazem resquícios do absolutismo, que desconsidera a argumentação como estratégia de construção de conceitos e resolução de problemas. Dado que nessa concepção, a matemática é uma ciência pronta, ela deve apenas ser transmitida e aquele que a desconhece deve ter o máximo de concentração para captar todas as informações. Assim, ainda percebemos a influência da visão absolutista, embora Zorzan (2007, p. 83) afirme que:
A tendência da modelagem matemática / resolução de problemas exige do professor o trabalho de condução do estudo matemático, literalmente excluindo a relação transmissor – receptor no ensino da disciplina. O professor, em sua função de conduzir o processo, deverá, pela sua competência técnica e política, problematizar as questões norteadoras do tema e conteúdos abordados. A Educação Matemática, nesta perspectiva, assume a matemática como linguagem para o estudo de problemas e situações reais, devendo proporcionar aos sujeitos o uso da imaginação criadora e o desenvolvimento da capacidade de ler e interpretar a realidade e os saberes matemáticos.
Cabe destacar que, como Brito e Alves (2008, p. 33) salientam, dificilmente é única a concepção de um professor sobre matemática. Tal fato pode ser verificado nas falas de todos os sujeitos da pesquisa que, uma vez questionados sobre o papel da resolução de problemas na aprendizagem matemática, apresentavam a primeira como o principal objetivo desta última, o que pode ser exemplificado na fala de B: “resolver problemas é importante para a aprendizagem matemática porque é para isso que a matemática serve”.
Outro exemplo da visão instrumental da matemática também esteve expressa na fala de C, que afirma que, “no cotidiano nos deparamos com problemas e, nas aulas de matemática, o professor deve ensinar os alunos a resolver”. Esta visão, segundo Brito e Alves (2008, p. 33), está muito presente em documentos oficiais, como os Parâmetros Curriculares Nacionais de matemática para todos os níveis de instrução, e no discurso de muitos professores que o utilizam para justificar o ensino deste campo do saber.
D também identifica o ato de ensinar matemática com a resolução de problemas ao afirmar que “se o aluno não aprende a resolver problemas, as aulas de matemática se transformam em decoreba”, mas para ele, “a matemática na escola é útil para duas coisas: ensinar a resolver problema e desenvolver o raciocínio lógico para que os alunos fiquem mais inteligentes”. O segundo aspecto a ser priorizado possui uma conotação logicista explícita que nos remete a ideia de que a matemática é um conjunto de estruturas lógicas que, na medida em que os alunos o compreendem, desenvolvem-se cognitivamente. De acordo com o logicismo, garante Heijenoort (1967), a matemática – ou uma parte dela – reduz-se à lógica – ou a uma parte da lógica. Gottlob Frege foi um dos primeiros a defendê-lo. Frege examinou, por exemplo, como a lógica poderia estar na base de algumas verdades matemáticas, mais precisamente aquelas da aritmética. Nesta corrente também encontramos matemáticos como Dedekind, que estabeleceu a construção do conjunto dos números reais, através da teoria dos Cortes; e Peano, que formalizou e inseriu a simbologia nos teoremas matemáticos de conjuntos. Ainda hoje a matemática é entendida como um conjunto de estruturas lógicas por alguns professores que insistem na prática de aulas expositivas em que, inicialmente, a definição de um conceito é apresentada muitas vezes destituída de qualquer contextualização, seguida de suas propriedades e teoremas associados. Além disso, a associação do desenvolvimento cognitivo dos alunos ao estudo das estruturas lógicas da matemática tem conduzido a equívocos, sendo o principal deles aquele que associa o baixo desempenho em maemática ao desenvolvimento cognitivo supostamente insuficiente do aluno. Sabemos, por Patto (1990), que o baixo desempenho dos alunos nas disciplinas escolares é um dos elementos constituintes do fracasso escolar que, por sua vez, é determinado por uma série de fatores, como a valorização da profissão docente, as políticas educacionais de formação inicial e continuada de professores e a estrutura física e pedagógica das escolas.
Durante as atividades promovidas nos outros três encontros, principalmente no último, onde refletimos sobre as vivências do problema de Malba Tahan com os estudantes de sexto a nono ano da escola municipal, percebemos que os sujeitos de nossa pesquisa reelaboraram seus saberes sobre o conhecimento disciplinar. Em suas respostas iniciais, a visão instrumental da matemática apresentada correspondia ao uso imediato do conhecimento matemático nas questões mais simples do dia a dia, como efetuar pagamentos, obter e comparar medidas e ler gráficos e tabelas constantes nos meios de comunicação. Em suas reflexões sobre as participações dos alunos de sexto a nono ano na resolução do problema, C e D relatam que descobriram na prática que, esses, ao usarem a matemática como instrumento para lidar com as situações problema, desenvolvem métodos próprios e conceitos matemáticos específicos da situação vivenciada: “eles quiseram resolver o problema e tentaram lembrar tudo o que sabiam que pudesse ajudar, mas pensavam de uma forma que eu nunca tinha pensado e faziam uns cálculos diferentes do que a gente fez aqui (referindo-se ao primeiro encontro), mas tinham lógica e davam certo” (C). Esta fala confirma a visão instrumental da matemática, mas, associada a outras falas do mesmo aluno, revela o entendimento de que as situações problema são elementos chave para a produção de conhecimentos matemáticos. Conhecimentos estes que não são formais, não são escolarizados, possuem características específicas da situação, o que impede a restrição dos conhecimentos matemáticos a estruturas lógicas. Sobre estes conhecimentos, assim como D’Ambrósio (2002), os estudantes defendem que podem servir de ponto de partida para os processos de construção de conhecimentos matemáticos em sala de aula. Destacando, então, a importância da resolução de problemas, eles compreenderam que onde se vivencia um problema pode haver produção de conhecimentos matemáticos. A matemática passa a ser vista como instrumento para resolver problemas em outras áreas do conhecimento como Física, Química, Engenharias etc, enquanto a resolução de problemas passa ser compreendida como uma oportunidade de produção desses conhecimentos.
Também refletindo sobre as vivências na escola municipal, A e B referem-se à postura argumentativa dos alunos desse nível de escolaridade como um aspecto positivo: “eles gostaram muito da história em quadrinhos e não paravam de falar e perguntar. Quando vi, eu estava apenas dando pistas e eles iam conseguindo entender a situação e esclarecer a sobra de dois camelos depois da divisão” (A). Os futuros professores também atentaram para o fato de que, antes mesmo de começarem a resolver o problema, os alunos demonstravam possuir conhecimentos matemáticos. Estes fatos os levaram a rever a visão absolutista da matemática. Isso não significa que a abandonaram completamente. Sabemos das ideias de Tardif (2014) e Nacarato, Mengali e Passos (2015) que a reelaboração de uma concepção é lenta e precisa de vários elementos que causem impactos sobre a concepção anterior. A participação nesse projeto é apenas um desses elementos.
Saberes curriculares
Os saberes curriculares foram sendo explicitados e construídos principalmente durante o encontro para planejar a discussão do problema na escola municipal e no último encontro de reflexão sobre os dados coletados nessa discussão. No encontro de planejamento, os licenciandos questionaram sobre a adequação da situação problema para as turmas do sexto ao nono ano. Como B questionou: “A partir de que ano eles vão conseguir entender o problema?” Ou, como nas palavras de C: “Todos vão saber matemática o suficiente para resolver ou para, pelo menos, acompanhar a resolução do problema? Em síntese, podemos dizer que se preocupavam com a adequação da situação problema ao nível de desenvolvimento proximal dos alunos (Vygotsky, 1984) dos alunos. Entretanto, buscavam apenas na experiência de estágio com as turmas, que possuíam desde o início de 2017, sem sequer admitir a possibilidade de buscar orientações em documentos oficiais como os PCN e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Diante da despreocupação dos licenciandos em relação às orientações oficiais para o ensino de fração, sugerimos que acessassem estes documentos, procurando conhecer suas colocações para o ensino de matemática e, em especial, para o ensino de frações e confrontá-las com as experiências práticas que possuíam. Estas ações geraram novas reflexões como podemos observar nas citações a seguir:
- Não é dito claramente em que ano temos que trabalhar os problemas com frações. (A)
- Eu acho que tem que ser em todos os anos só aumentando um pouquinho a dificuldade de um ano para o outro. (D)
- É. Eu também acho isso. As apostilas do município fazem isso, mas em cada ano é uma coisa totalmente diferente. No sexto ano os alunos têm que ficar representando as frações. No sétimo tem expressões numéricas com frações, frações com sinal negativo. No oitavo tem até que marcar fração na reta numérica. É tudo fração, mas uma coisa bem diferente da outra. (C)
Percebemos que D sinaliza o entendimento da proposta de um ensino em espiral (BRUNER, 1986) e C reconhece que em cada ano é trabalhado um significado das frações. Sobre estes significados, Barbosa e Freitas (2016, p. 2) esclarecem:
O significado de fração como medida se assemelha ao parte-todo. Ele também trata da divisão de uma unidade em partes iguais; porém, em vez de destacar a parte, passamos a destacar pontos numa reta numérica.
Outro significado para as frações é a ideia de quociente da divisão de um número inteiro por outro diferente de zero. Por exemplo: se temos cinco barras de chocolate para dividir igualmente entre sete pessoas, a fração 5/7 representa o quociente que identifica quanto cada pessoa vai receber. Também podemos associar frações ao significado de razão entre duas grandezas. Fazemos isso quando queremos comparar essas grandezas. Um exemplo desse significado pode ser visto quando se diz que o salário de uma pessoa é 1/2 do salário da outra.
Finalmente, o significado operador ocorre quando a fração assume o papel de transformar uma situação inicial para produzir uma situação final. Quando calculamos, por exemplo, uma fração de uma quantia, a situação inicial é a quantia, o operador é a fração e a situação final é a quantia correspondente a essa fração.
Cabe mencionar que, C, assim como os outros licenciandos, desconhecia esta classificação para os significados das frações. No entanto, sua fala levantou a possibilidade de abordagem dos mesmos junto aos bolsistas presentes. Não demorou muito para que concluíssem que:
O domínio desses significados por parte dos professores é de suma importância para assegurar a qualidade do processo de ensino e aprendizagem. É transitando entre as diversas representações e os diversos significados associados às frações que os estudantes avançam no processo de construção de conceitos. Os professores precisam estar cientes desses significados para poder propor situações que envolvam todos eles e desafiem os estudantes (BARBOSA e FREITAS, 2016, p. 2).
Após esta constatação, nossos sujeitos criticaram os documentos. Na opinião deles, este tema é abordado de modo muito superficial e deveria ser dada uma atenção maior a ele, com explicações mais detalhadas e, inclusive, exemplos. Observamos, assim, uma apropriação crítica dos saberes contidos nos documentos tal como proposto por Serrazina (2003).
Os questionamentos sobre pré-requisitos e linguagem também ocorreram tanto no planejamento quanto na reflexão sobre os dados coletados na escola. O trecho a seguir, extraído do diário de bordo de C, motivou o início da conversa sobre pré-requisitos no encontro para reflexão:
No reforço escolar do PIBID, na Escola Municipal Rosária Trotta, com a turma de 7º ano, foi apresentado o problema da divisão dos camelos que teria que ser feita entre três irmãos. Por meio da conversa, ao serem questionadas se teria como fazer tal divisão, a metade, a terça parte e a nona parte de 35 camelos, as alunas presentes observaram que não poderia se fazer tal repartição, uma vez que um dos irmãos não poderia receber metade de um camelo, por exemplo. Ao explicar que o viajante acrescentou o camelo que ele e o seu amigo usavam pra viajar, totalizando 36 camelos, e perguntar se a nova repartição seria possível, pela divisibilidade por 2, 3 e 9, elas observaram que sim. (C)
Neste trecho, é possível reconhecer que o planejamento que havia sido feito (distribuir a história em quadrinhos entre os alunos do 7º para que lessem e depois estabelecer um debate sobre o problema dos camelos) foi alterado. Perguntados sobre a alteração no planejamento, C e seus colegas de grupo responderam que a dificuldade apresentada pelos alunos na leitura e interpretação da história em quadrinhos foi o principal motivo para que alterassem. Segundo eles, os alunos não se atinham ao problema matemático exposto na história e suas leituras, na maioria dos casos, se restringiam à decodificação dos sinais da língua portuguesa. Para iniciarem a reflexão sobre o problema, precisavam, então, apresentar o problema oralmente para os alunos. Este fato foi mencionado pelos outros grupos que atuaram com turmas de 6º e 7º anos e podemos dizer que os bolsistas que conseguiram trabalhar com a história em quadrinhos foram aqueles que desenvolveram seus planejamentos em turmas de 8º e 9º anos.
Outro aspecto importante no trecho está no fato de os licenciandos sugerirem aos estudantes de 7º ano que se valessem dos critérios de divisibilidade por 2, 3 e 9 para analisar a situação. A reflexão sobre este fato, ocorrido também na vivência de outros grupos, levou C e seu grupo a levantar a hipótese de que os critérios de divisibilidade são um pré-requisito para o entendimento de frações. Inicialmente os licenciandos tenderam a validar esta hipótese, porém o próprio relato de C a seguir os levou a refutá-la:
A abordagem foi interessante porque no decorrer da aula foi trabalhado exercício de divisão com resultado não inteiro, como a divisão de 35 por 2, um assunto que o professor supervisor tinha pedido para trabalhar, pois alguns alunos estavam com dificuldade. (C)
De acordo com o relato, não tendo sucesso ao sugerir os critérios de divisibilidade, os licenciandos recorreram às divisões de 35 por 2, 3 e 9 e à análise dos restos dessas divisões, o que os permitiu avançar na discussão do problema junto aos alunos. Assim, os critérios de divisibilidade não foram pré-requisitos para a resolução do problema e, contrariamente ao que esperavam, a discussão do problema motivou a retomada do estudo da divisão e abriu caminhos para uma futura abordagem dos critérios de divisibilidade. O entendimento de que o planejamento é algo vivo e flexível (RON, 2010) e de que a aprendizagem não é algo linear (VERGNAUD, 2009) foram indiscutivelmente duas grandes contribuições para a formação inicial dos futuros professores sujeitos de nossa pesquisa.
Considerações finais
Em nossa pesquisa procuramos analisar os saberes docentes construídos por estudantes de licenciatura em matemática quando discutem e planejam intervenções de ensino ou atividades didáticas que utilizam como recurso o problema dos camelos de Malba Tahan e uma história em quadrinhos que o apresenta. Para coleta dos dados, realizamos quatro encontros dentro do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência de uma fundação educacional na zona oeste do Rio de Janeiro e procuramos acompanhar a participação de quatro estudantes.
Nos encontros, os estudantes puderam resolver o problema, ler uma história em quadrinhos que o descreve, planejar, realizar e refletir sobre a realização de uma atividade que visa discutir o problema com alunos do sexto ao nono ano da escola municipal onde são estagiários. As ideias de Tardif sobre os saberes docentes foram o quadro teórico principal. Segundo ele, os saberes docentes podem ser classificados em saberes da formação profissional, saberes disciplinares, curriculares e existenciais. Destacamos aqui os saberes disciplinares e curriculares.
Nos saberes disciplinares reconhecemos as crenças e concepções dos estudantes sobre a matemática e o seu ensino e foram predominantes as visões instrumental, absolutista e logicista da matemática. Nos saberes curriculares são enfatizados os documentos oficiais que orientam o ensino e percebemos o desenvolvimento de uma visão crítica em relação aos Parâmetros Curriculares Nacionais de matemática para o terceiro e quarto ciclo do Ensino Fundamental e aos materiais didáticos oficiais da rede municipal no que concerne ao ensino de frações. Nossos sujeitos salientam a necessidade de uma abordagem mais clara e profunda dos significados que podem ser associados às frações. É evidente que nossos dados não podem ser generalizados, entretanto esperamos, com eles, contribuir para uma reflexão mais ampla sobre a formação inicial e continuada de professores que ensinam matemática.
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Ligação alternative
https://www.revistasbemsp.com.br/index.php/REMat-SP/article/view/143 (pdf)