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Perezhivanie nas aulas de matemática: gênero, raça e ciência
Perezhivanie in math classes: gender, race and science
Perezhivanie en las clases de matemáticas: género, raza y ciencias
Revista de Educação Matemática, vol.. 17, núm. 1, 2020
Sociedade Brasileira de Educação Matemática

Artigos Científicos

Revista de Educação Matemática
Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Brasil
ISSN: 2526-9062
ISSN-e: 1676-8868
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 17, núm. 1, 2020

Recepção: 29 Março 2020

Aprovação: 29 Junho 2020

Publicado: 20 Julho 2020

Copyright Revista de Educação Matemática 2020.

Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

Resumo: A presente narrativa pode ser muito mais um ensaio narrativo. Ensaio, porque busca a partir do estilo ensaístico elaborar certas formulações teóricas sobre a produção de narrativas, e narrativo, pois toma como seu meio de transmissão uma “estória”. Narrar é muito mais do que descrever, é posicionar a particularidade na sua relação dialética com a universalidade do cenário (LUKÁCS, 1965) em que os personagens que emergem da história, sejam imaginários ou reais, devem incorporar certas relações e características humanas fundamentais. É nesse sentido que este ensaio narrativo busca constituir seus personagens reais de uma experiência envolvendo raça, gênero e ciência-matemática. Serão três cenários diacronicamente separados e sincronicamente interligados: o cinema na escola, a investigação e a Feira de Matemática. Como instrumento de análise do narrar está a teoria histórico-cultural de Vygotsky desenvolvida nos seus últimos trabalhos em torno da categoria de Perezhivanie, que pode ser traduzido como vivência. Em suma, defendemos a pesquisa narrativa como uma investigação nas fronteiras entre arte e ciência, portanto, nosso método que buscamos expor deve ser entendido como um método estético-científico de pesquisa narrativa.

Palavras-chave: Perezhivanie, Ensaio narrativo, Método estético-científico, Pesquisa narrativa.

Abstract: The present narrative can be much more of a narrative essay. Essay because it seeks from the essayistic style to elaborate certain theoretical formulations on the production of narratives, and narrative, since it takes a story as its means of transmission. Narrating is much more than describing, it is positioning the particularity in its dialectical relationship with the universality of the scenario (LUKÁCS, 1965), in which the characters that emerge from history, whether imaginary or real, must incorporate certain fundamental human relations and characteristics. It is in this sense that this narrative essay seeks to constitute its real characters from an experience involving race, gender and mathematical science. There will be three scenarios diachronicly separated and synchronously interconnected: cinema at school, research and the Mathematics Fair. Vygotsky's historical-cultural theory developed in the latter around the category of Perezhivanie as an instrument of analysis of the narrative, which can be translated as experience. In short, we defend narrative research as an investigation on the frontiers between art and science, therefore, our method that we seek to expose must be understood as an aesthetic-scientific method of narrative research.

Keywords: Perezhivanie, Narrative essay, Aesthetic-scientific method, Narrative inquiry.

Resumen: La narrativa actual puede ser mucho más que un ensayo narrativo. Ensayo porque busca desde el estilo ensayístico elaborar ciertas formulaciones teóricas sobre la producción de narrativas, y narrativas, ya que toma una historia como medio de transmisión. Narrar es mucho más que describir, es posicionar la particularidad en su relación dialéctica con la universalidad del escenario (LUKÁCS, 1965), en el que los personajes que emergen de la historia ya sean imaginarios o reales, deben incorporar ciertas relaciones y características humanas fundamentales. Es en este sentido que este ensayo narrativo busca constituir sus personajes reales a partir de una experiencia relacionada con la raza, el género y la ciencia matemática. Habrá tres escenarios separados diacrónicamente e interconectados sincrónicamente: cine en la escuela, investigación y la Feria de Matemáticas. La teoría histórico-cultural de Vygotsky se desarrolló en este último en torno a la categoría de Perezhivanie como instrumento de análisis de la narrativa, que se puede traducir como experiencia. En resumen, defendemos la investigación narrativa como una investigación sobre las fronteras entre el arte y la ciencia, por lo tanto, nuestro método que buscamos exponer debe entenderse como un método estético-científico de investigación narrativa.

Palabras clave: Perezhivanie, Ensayo narrativo, Método estético-científico, Investigación narrativa.

Como narrar?

Se, na obra de Zusak (2011), o narrador é a Morte, na presente “estória”, quem narra é a Vida. Vida de quem sente, quem planeja, quem escuta, quem briga. Vida que a madrugada termina às 3h e o dia começa às 6h45, que tem sábados e domingos. Quem narra é vida de professor. Mas porque narra uma “estória” e não uma história? Diferente dos poetas frustrados que advogam que toda história é “estória”, aqui quero seguir como Aristóteles (2008) e assumir que quero ser escritor e poeta. A história é para poetas que deram errado, e esta “estória” merece um poeta/autor que tenta dar certo.

Vida de professor que narra “estória” também tem uma história própria. Esse narrador que nasce filho de mãe solteira, guerreira e operária. Mulher que José de Alencar não narrou, nem Lucíola nem Senhora, mas Maria. Maria das Dores, Maria dos Amores, Maria Madalena. Operária que guia quem narra para as lutas de classes, mulher-mãe solteira expõe a vivência do patriarcado. Por isso quem vos narra quer a “estória” de seus estudantes sobre raça, gênero e matemática.

Se muitos dos que narram sobre aulas de matemática querem expressar uma experiência deweyana ou então o que nos passa e acontece como Larrosa (2002), nesta narrativa vou por outro caminho. Em Psicologia da Arte, Vygotsky (2001) desenvolve a ideia de Perezhivanie[2] como o fenômeno pelo qual nos tornamos conscientes, interpretamos e emocionalmente nos relacionamos com um determinado evento. Nas aulas sobre pedologia, Vygotsky (2019, p. 72) desenvolve o conceito como sendo aquele “que nos permite estudar o papel e a influência do meio ambiente no desenvolvimento psicológico”[3] e, por fim, próximo a sua morte, quando busca entender o desenvolvimento das funções psíquicas superiores como um sistema capaz de se rearticular e reconfigurar, Perezhivanie se torna uma ferramenta teórico-analítica importante para o desenvolvimento da personalidade humana (VERESOV, 2016). Isto é, através da Perezhivanie, uma pessoa e, em especial, os educandos refratam uma experiência na consciência, é a síntese entre o emocional e o cognitivo. São vivências que nos exigem transformações pessoais (JEREBTSOV e PRESTES, 2019). Além disso, Veresov (2016) lembra que o uso da palavra categoria de maneira repetida para enunciar a lei geral do desenvolvimento das funções psíquicas superiores tem relação com a arte russa do período em que categoria representava um acontecimento dramático, emocionalmente forte e marcante de uma peça teatral. Dessa forma, o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, refratadas pela Perezhivanie, se constituem a partir de vivências dramáticas.

Que vivências dramáticas queremos narrar? Ou como podemos compreender as mesmas? É necessário lembrar que o estudo do desenvolvimento das funções psíquicas superiores se dá num processo, e não nos seus “frutos”. Isto é, aspectos do psiquismo já desenvolvidos dificilmente podem ser estudados, mas é o processo do desenvolvimento desses frutos, partindo de simples “botões”, que permite compreender o papel da Perezhivanie no processo de instrução[4]. Assim, a produção de narrativas é um instrumento científico-artístico importante para compreender os próprios processos de Perezhivanie do professor que busca narrar suas experiências e se torna consciente de suas transformações pessoais, tanto quanto o fenômeno da Perezhivanie da “estória” dos alunos que se narra expressando sua influência na aprendizagem matemática.

Narrar ou descrever? As narrativas nas fronteiras da ciência e da arte

Numa de suas célebres análises sobre o romance histórico, Lukács (1965) discute a diferença entre o narrar e o descrever. No descrever, existe um apreço aos detalhes, tudo “vem descrito com exatidão, plasticidade e sensibilidade” (LUKÁCS, 1965, p. 47), tal ênfase em procurar com exatidão todos os detalhes prejudica um elemento central da escrita que é a forma como as vivências dos personagens se interligam, se associam, se põem em movimento com o próprio cenário. No descrever, os detalhes não são importantes para o movimento dos personagens, podem simplesmente ser retirados, que a “estória” continua da mesma forma, com o mesmo ímpeto. Os detalhes, quando se descreve, retratam somente o espaço tridimensional do que está acontecendo, sendo incapaz de articular com o movimento do que se vive.

Na narrativa, por outro lado, o espaço tridimensional é parte da subjetividade que se narra, é crucial para o entendimento da vivência. Em uma narrativa, diferente de uma descrição em que se pinta um quadro estático de fundo sobre onde se acontecem coisas, o espaço se “articula numa série de cenas altamente dramáticas, que assinala uma profunda mudança” (LUKÁCS, 1965, p. 48). Na descrição, quem narra é um espectador do acontecimento, na narrativa, é o próprio participante.

Lukács (1965) se utiliza de dois romances para essa análise: Naná de Zola e Ana Karenina de Tolstoi. Os dois romances, em determinado momento, pintam um cenário envolvendo uma corrida de cavalos. Em Naná, Emile Zola descreve com perfeição todo o hipódromo, os cavalos e a corrida a que assiste Naná, sua personagem. A relação que Zola procura estabelecer da corrida com a trama é que a égua vencedora, também chamada de Naná, representa a ascensão social da personagem principal. Em suma, pinta-se um cenário para evidenciar um desfecho que não necessita da cena. Por outro lado, na corrida de Tolstoi, um dos participantes da corrida, Wronski, é amante de Ana Karenina que está grávida dele e assiste à corrida. Um segredo que atravessa a trama de Tolstoi e que terá um novo desfecho a partir da corrida. Wronski cai, sua vida está em risco, tal situação dramática se entrelaça com as vivências de Ana Karenina que resolve naquele momento contar tudo para seu marido. Na narrativa de Tolstoi, a corrida de cavalos não é trivial, é parte constituinte dos acontecimentos dramáticos, é catalisador e significante da nova relação dos personagens. É dessa análise que Lukács (1965) defende que a narrativa estimula a compreensão da realidade como um contínuo processo de transformação.

A narrativa então se concentra sobre uma categoria fundamental do estético, a particularidade. Segundo Lukács (1970, p. 167),

a análise do particular que constitui o ponto central organizador do processo da criação estética, ainda que em suas consequências ultrapasse os quadros do exame gnosiológico, revela-nos, porém, ao mesmo tempo, os traços específicos essenciais do reflexo estético da realidade.

Aqui Lukács chama a atenção para o que é central na produção de um conhecimento estético da realidade como um contínuo processo de transformação. Tal centralidade se refere à articulação dialética entre o singular, o particular e o universal. O singular nos remete àquilo que temos de específico, enquanto sujeitos históricos e individuais. A universalidade se refere ao ser social genérico, a uma cultura humana universal[5]. A particularidade é a síntese, e a realização do universal no indivíduo e do singular no universal. O particular é a expressão sintética entre os mais variados acúmulos do desenvolvimento do personagem, da sua personalidade, da sua psique, da sua subjetividade. Assim, a narrativa é o instrumento estético que permite a compreensão desse processo de desenvolvimento da subjetividade, seja de quem narra, seja de quem é narrado.

Entretanto, o particular não é algo que acontece a todo momento, ele é incorporado pelo personagem em momentos dramáticos (a categoria na arte russa usada por Vygotsky), essa é a tipicidade do personagem que se narra. Um personagem típico é aquele que, em sua particularidade, carrega consigo elementos da universalidade humana que, pela arte, pela refração[6] estética, pode se conhecer. Assim, a refração estética tem uma dupla dramaticidade, uma dupla Perezhivanie: a de quem narra e a de quem é narrado. Aqui já é possível compreender a proximidade da narrativa, como elemento promissor do romance em Lukács, com a categoria teórico-analítica de Vygotsky, Perezhivanie, que se quer parte de um método genético-objetivo.

O instrumento teórico Perezhivanie é, para Vygotsky, partícipe de um conjunto teórico da Psicologia Histórico-Cultural que tem como objetivo a produção de conhecimento científico sobre o desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Isto é, é parte de um método da ciência. Por outro lado, a narrativa como aqui expomos é parte de um movimento estético de produção de conhecimento sobre a realidade em suas diversas dimensões (subjetiva, singular, individual, social etc.). Defendemos, assim, que a produção de narrativas por professores/coletivos não somente produz conhecimento sobre suas experiências, mas são capazes de transformar suas práticas, visto que o narrar se centra no particular de ações dramáticas, emocionalmente fortes. Isto é, a narrativa é um importante instrumento estético para evidenciar a Perezhivanie, esta, um instrumento teórico-científico. Eis a pesquisa narrativa nas fronteiras entre o estético e o científico, uma pesquisa estético-científica.

A seguir, narraremos três cenários de uma experiência em aulas de matemática que buscam se centrar em Perezhivanie’s que aconteceram, que transformaram quem narra: vida de professor. O método narrativo que defendemos neste ensaio se consolida em um estilo de escrita que articula a diacronicidade com a sincronicidade. Em determinados momentos, alguns cenários parecerão cortados, como pulos históricos sem continuidade, em outros dois ou mais cenários se rearticulam numa Perezhivanie comum. A questão que se põe é a de que a narrativa, como a propomos aqui, de expressar as Perezhivanie’s de quem narra e é narrado – professor e alunos, se centra nessas experiências. Portanto, buscamos sempre o que é particular nessa singular história, e que, por isso, constrói “estória”. Pois é escolha, produto da memória e da imaginação (CLANDININ et al., 2016).

Cenário 1: Cinema na Escola e Estrelas além do Tempo

O dia era 6 de maio, o evento cronológico, a comemoração pelo dia da Matemática, o espaço tridimensional do acontecimento, um auditório da academia de polícia civil. A insubordinação coletiva[7] de uma escola leva estudantes do 9º ano para uma sessão de cinema e aula pública sobre gênero e raça. Em tempos de obscurantismo no governo federal, de ataques à liberdade de cátedra e da perseguição à criação mítica de um marxismo cultural, a escola intervém e leva seus alunos para discutir, sentir e minimamente entender as inter-relações de raça, gênero e ciências-matemáticas num espaço demarcado pelos mecanismos centrais da repressão, a polícia civil.

Não é ousadia, nem simples ingenuidade, é coletivo escolar que sabe da sua função social e não aceita recuar frente à beligerância conservadora. É coletivo resistência. Aferro à criticidade na escola que se repercute no vivenciamento do racismo norte-americano dos anos 1950/1960 através das telas de uma longa-metragem, Estrelas além do Tempo, retratando a história de três mulheres negras norte-americanas responsáveis pelos cálculos matemáticos, pela teoria computacional e matemática que levou o primeiro humano (homem) à Lua.

O café que era só para brancos, o banheiro que era só para brancos, bebedouros para brancos, ciência somente para brancos. Eis uma filmografia que choca e educa, que transmite e produz sentimentos, que escamoteia o racismo, escancara seu caráter estrutural e a conivência histórica das comunidades científicas. É matemática negra, que se pinta de negra (ou se descobre negra!) frente a uma forma branca e europeia predominante, limpa, esterilizada.

Que problema matemático é esse que as mulheres negras, Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson, precisam e conseguem resolver? Ou melhor, que problema matemático é esse que os homens brancos afirmam, em silêncio e no comportamento criminoso, que as mulheres negras não são capazes de resolver? Eis que a pergunta paira sobre as consciências dos educandos! É o problema Go/No Go, resolvido por mulheres negras, mulheres e negras. É o problema que levou um homem à Lua. Mesmo cavando seu espaço na ciência, tais mulheres negras ainda levam um homem branco à Lua. Eis o racismo estrutural novamente escancarado e o patriarcado em sua expressão profunda: mesmo quando mulheres e negros vencem, existem homens e brancos que usam essas vitórias e vencem mais. Entre o sentimento de repúdio, o enojamento do racismo escancarado, brota um problema matemático para resolver. Desvenda-se o racismo, desvenda-se a matemática: emocional e cognitivo, transformação pessoal numa experiência dramática: Perezhivanie! Não é ousadia nem ingenuidade, é coletivo resistência.

Aula pública que segue, contexto histórico sobre a corrida ao espaço, o evento Sputnik e a Guerra Fria, que de fria nada tinha. O que é feminismo? O que é antirracismo? Num momento Perezhivanie, em outro, história. História que se torna “estória”, que remodela e reconfigura: comunistas e capitalistas, vermelhos e azuis. A história da oposição que vira “estória” de sala de aula, que se repete e se memefica pelos grupos de whatsapp. Quem foi Stálin, o que foi a União Soviética? Comunistas comiam criancinhas? O que querem os comunistas? “Meu pai disse que os professores são tudo comunistas e não deveriam discutir política em sala de aula” – afirma um aluno. Ora pois, lhes indago, como narrador e professor, como posso então discutir política em matemática? É-me proibido? É proibido proibir já cantava a música.

“Se teu pai me diz que é proibido política, racismo, gênero e história em minhas aulas de matemática, eu lhe digo, com sombra nenhuma de ressentimento, um canetão voando à sua cara.” Olhares atentos, tenho a turma: Perezhivanie! Um evento emocionalmente dramático, me dão ouvidos, “o que disse aquele pai para o professor reagir assim?”. Eu tenho a turma, a turma me tem, me entende, me defende. Insubordinação coletiva, somos resistência.

Somos resistência.

Cenário 2: A investigação

O que fica do cenário 1? Fica o problema, fica o sentimento, ficam as reações. Fica tud

da matemática que fez três mulheres negras levarem um homem branco à Lua escancarado pela arte de uma filmografia em tempos de resistência num dos núcleos das forças repressivas. Não é mais a estéril denotação formalista de um problema matemático, é dotado de sentido: unidade simbólico-afetiva. É histórico, e se torna “estória”.

Mas que problema é esse? Go/No Go se refere a velocidade e trajetória ideal para a reentrada da nave espacial na atmosfera terrestre. Se acelerar demais, se desprende da gravitação da Terra e se perde no espaço, se desacelerar em excesso, perde a inclinação correta e abre a possibilidade de incineração. Não é um problema trivial. “Tem que saber Geometria Analítica”, a fala do filme. Meus alunos querem entender esse problema, querem resolvê-lo também. Mas esse problema histórico cabe numa sala de aula de matemática? Cabe sim, com as devidas análises.

O objeto da matemática não é o objeto da educação matemática e, nesse caso, a partir do objeto de pesquisa matemático era preciso reconstruir um objeto para a educação matemática. Não é vulgarizar, não é simplificar. É construir outro objeto, próprio da educação matemática. É vida de professor que ensina matemática.

Antes de tudo, precisamos entender o problema e, por vezes, uma investigação que procura entender melhor o problema é mais eficaz do que propriamente resolver o problema no processo de ensino-aprendizagem. Como se construiu esse objeto da educação matemática?

A trajetória parabólica de um projetil serve de inspiração para entender como a nave deve se comportar no seu pouso estando na atmosfera. Não temos base sobre gravitação universal, não sabemos calcular a influência do atrito do ar numa trajetória parabólica e me vêm à cabeça os típicos problemas físicos que mandam “ignorar o atrito do ar”. Essa decisão não é minha, é deles. O professor do laboratório de ciência é convocado, mestre em física, precisa ajudar ao coletivo. “Se quisermos considerar o atrito do ar no cálculo, o que precisamos fazer?” – questionam os alunos ao professor. Conversa vai e vem, e somente me lembro do que me arrepia: “É muito difícil, mas sei que tem como fazer usando integral dupla” responde o professor do laboratório de ciências aos alunos.

Seus olhos me fitam, eu estremeço. Cálculo 2 na faculdade e, se usarei duas variáveis, cálculo 3. Vêm-me as noites viradas para passar nas provas. “O que é isso professor?”, eu solto um sorriso amarelo, escrevo o símbolo no quadro, forçosamente me lembro da construção geométrica de Riemann, a explico e procuro deixar claro a relação dialética entre derivada e integral. Entendem o gráfico, entendem a ideia, mas não entendem mais nada.

Conto-lhes as “estórias” da faculdade, exponho minhas trajetórias e vivências com o conteúdo. Eles decidem, “vamos desconsiderar o atrito, isso é muito difícil”.

Decidimos, eles mais do que eu, e essa decisão deles por minha direta influência, que se devotarão a entender a trajetória de pouso da nave na atmosfera, após a reentrada. A investigação precisará de diversos conteúdos matemáticos que serão ou já foram desenvolvidos: equação do segundo grau, funções, sistemas de equações, função quadrática etc. Os conteúdos se desenvolvem ou retornam em espiral, para o objetivo final que é entender essa trajetória. Pelo andar da carruagem lhes afirmo: “quero que esse projeto vá para a Feira de Matemática”.

Alguns se entreolham, já sabem um pouco do que é a feira de matemática. Isso nos leva a outro cenário. O cenário final.

Cenário 3: Feira de Matemática

Dois meninos brancos

Não se fazem projetos/experiências alternativas para a feira de matemática, mas para o processo de instrução. A Feira é consequência. “Mas o que é a Feira?”. Tento explicar que é um espaço mantido por diversos professores em que se busca compartilhar aprendizados com outras escolas e outras pessoas, e existem diversos níveis (municipal, regional, estadual e nacional).

“O que faz pra passar de nível?” As indicações são feitas por uma comissão de avaliação onde alguns trabalhos são destacados para representar aquela comunidade em um nível superior. Infelizmente, assim como são feitos projetos para feiras, e não para aprendizagem, já existe uma cultura do rankeamento e da competição dentro do movimento de feiras de matemática, seja entre alunos, seja entre professores. Por fim, foi necessária toda uma conversa sobre os objetivos da participação e o papel dos representantes da turma.

Dois meninos brancos foram os escolhidos, eram os que estavam dispostos a participar. Dois garotos brancos apresentando um trabalho sobre gênero e raça na matemática, meus pensamentos e reflexões levaram-me longe: “onde errei? Como assim somente dois garotos brancos se dispuseram?”. Eram os dois garotos que mais se destacavam nas aulas de matemática, participaram ativamente de toda a produção e discussão. Ao que parece, nossas salas de aula ainda cultivam a ideia do destaque como expressão da representação da turma e, nesse quesito, as melhores notas no sistema de notas/descritores suplantou a discussão de representatividade de gênero e raça. “Paciência”, pensei. Vida de professor que segue.

A organização da apresentação do trabalho no dia da Feira ficou sob responsabilidade dos dois representantes com minha supervisão. Experientes de outra feira, sabiam exatamente do que precisavam: TNT preto, “imprime pra nós esses gráficos aqui sobre gênero e raça e o gráfico da função quadrática que representa a trajetória em folha tal e tal”. Não lembro mais a folha, lembro que era A3. Como é “estória”, você pode se questionar se eles falaram exatamente assim, lhe ajudo: não falaram assim, mas falaram parecido. Se avizinhava nesses dias de preparação a relação que encontraria seu auge no dia da feira: minha autoridade burocrática como professor sumiu.

Amarrei meu moletom sobre a cintura, calcei meus chinelos, minha marca registrada, usei meus shorts praianos e minha regata favorita. Saímos às 15h da escola, com transporte público, chegamos à escola em que se realizaria o evento, para organizar tudo. Encontramos nosso estande e então as discussões começaram.

“Nosso tema é Estrelas além do Tempo, do filme, seria legal termos uma noite estrelada em nosso estande”, falou um deles. Pega TNT preto, recobre todo estande e, na hora de fechar o teto, o problema: a lâmpada do estande deve ficar por fora ou por dentro do espaço demarcado pelo TNT? Não recordo como ficou, penso que, por fora, mas lembro da discussão sobre o fato da lâmpada esquentar pela resistência à corrente elétrica do material da qual ela era feito. Ciência, arte e decoração. “Professor segura aqui”, “professor estamos sem energia elétrica, pega a extensão”, “vê com a fulana de tal se ela tem mais cola quente”, “depois que a gente terminar aqui, vamos ir ali ajudar eles”. Terminando de organizar.

“Com licença” se aproxima uma professora desconhecida, também acompanhando alunos, “gostaria de saber quem é o professor orientador de vocês”. Eu solto uma gargalhada, barba na cara e 25 anos nas pernas, sou confundido com estudante. Que orgulho! Estava vivendo um conjunto de acontecimentos de Perezhivanie. Como pinto no lixo, feliz, animado, extasiado. Eu era estudante de novo, criança. Estava feliz.

Precisamos voltar para casa no outro dia são as apresentações. Vento sule[8], frio, pés roxos. Pego transporte, chego em casa. Banho e cama.

Eis o grande dia. Ansiedade minha e dos alunos. Treinam um pouco, tentam relembrar tudo que precisam explicar, anotam novas questões em seus cadernos e roteiros de explicação construídos. Tremedeira. “Professor eu fico com medo de explicar quando o senhor está perto.” Meu desejo era continuar olhando para eles o dia inteiro, sorrindo, orgulhoso, extasiado. Com sofrimento os abandono, os deixo voar. Me sinto mãe e pai, como pode isso? De tempos em tempos retorno para ouvir feedbacks, eles expõem as perguntas que lhes foram feitas, o que responderam e o que não sabiam responder.

“Professor tal disse que eu não poderia dizer gráfico para algo que era infográfico” – me fala preocupado um deles. Peço para que me aponte o tal professor, ao vê-lo lhes digo: “esse é chato mesmo, relaxa”. Não sei quem era até hoje.

“Professor, tal professor veio aqui e, quando falamos que desconsideramos o atrito porque precisaria de integral dupla, ele cutucou o professor que tava do lado e disse: ‘ali ó, não são fracos não’”. Solto um sorriso, reitero que eles não são fracos não.

Entrego os lanches, não querem comer. A ansiedade é enorme, o corpo biológico não consegue se sobrepor ao psicológico. O dia inteiro é uma grande Perezhivanie para os dois. Funções quadráticas, sistema de equações, física, história, gênero e raça refratados na psique por esse acontecimento dramático. O dia se direciona para o encerramento.

A cerimônia final, momento em que divulgam os destaques que passarão para o próximo nível. Eles querem, eu quero. Todos querem. Todos merecem. Procuro tranquilizá-los, digo estar orgulhoso e feliz por eles estarem ali, pela superação. Ficam com vagas de repescagem, para caso alguns trabalhos desistam. Essa é a Perezhivanie final, não muito positiva. Mas uma Perezhivanie que marca e que transforma. Voltamos para casa.

Fim do ciclo. Segue a vida. Vida de professor.

Considerações finais

A construção de uma narrativa em volta de Perezhivanie busca elucidar os papeis emotivos-cognitivos na autoformação do professor que narra, e dos alunos-acontecimentos que são narrados. De inspiração com a noção de categoria da arte russa, apresentamos três cenários e algumas Perezhivanies, formas que refrataram na consciência e na psique dos educandos, e principalmente desse narrador. Os movimentos diacrônicos e sincrônicos da narrativa buscam expressar a mesma forma irregular com que todas essas experiências foram refratadas pela Perezhivanie na psique de quem narra a “estória”.

Em suma, esses acontecimentos que exigem transformações não acontecem a todo momento, e nem sempre podem ser produzidos pelos professores. Entretanto, eles demonstram que os laços afetivos são tão importantes quanto uma clareza conceitual e teórica de objeto de ensino da matemática. Entendo assim, que as produções de narrativas em torno de Perezhivanie permitem um movimento de autoconsciência sobre a própria prática, pois, mesmo desconhecendo o conceito vigotskiano, nas narrativas, tais experiências são evidenciadas e trazidas à tona, à frente do palco e do cenário que se está a narrar.

Portanto, o aparato da teoria histórico cultural e sua ferramenta teórico-analítica da Perezhivanie demonstram grande potencial nas escritas e leituras de narrativas de professores que ensinam matemática.

Por outro lado, a forma sobre a qual se expõe um conteúdo em tela para análise, isto é, a forma pela qual se escreve uma narrativa não é discussão trivial. A forma é sempre relação posta pela consciência com o conteúdo que se quer expor, portanto, existem estilos de narrar que se assemelham ao ato de descrever que criticamos nesse texto. Enquanto pesquisadores narrativos, não temos compromisso, nem obrigação, de descrever tudo que ocorre, mas de sermos sensíveis, uma sensibilidade estético-científica, para os elementos de Perezhivanie.

Defendo, nesse sentido, que muitas das discussões e das críticas que a pesquisa narrativa tem recebido quanto ao seu estatuto de “ciência” podem ser resolvidas a partir de uma visão estético-científica das produções de narrativas.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. Tradução e notas de Anna Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

CLANDININ, Jean et al. Engaging in narrative inquiries with children and youth. Routledge, 2016.

JEREBTSOV, Serguei; PRESTES, Zoia. O papel das vivências da personalidade na instrução. Educação em Foco, v. 24, n. 2, mai. / ago. 2019.

LARROSA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista brasileira de educação, n. 19, p. 20-28, 2002.

LUKÁCS, Georg. Narrar ou descrever. Ensaios sobre literatura, v. 2, p. 43-51, 1965.

LUKÁCS, György. Introdução a uma Estética Marxista: Sôbre a Particularidade como Categoria da Estética. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. 2ª edição, Rio de Janeiro: civilização brasileira, 1970.

VERESOV, Nicolai. Perezhivanie as a phenomenon and a concept: Questions on clarification and methodological meditations. Cultural-Historical Psychology, v. 12, n. 3, p. 129-148, 2016.

VYGOTSKY, Lev. Psicologia da Arte. Martins Fontes: São Paulo, 2001.

VYGOTSKY, Lev. The Problem of the Environment in Pedology in: KELLOGG, David; VERESOV, Nikolai. LS Vygotsky’s Pedological Works. Springer, 2019.

ZUSAK, Markus. A menina que roubava livros. Editora Intrínseca, 2011.

Notas

[1] Doutorando e Mestre em Educação Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor da Rede Municipal de Educação de Florianópolis. Endereço para correspondência: Rua Heitor Bittencourt, 427 - apto 103 – Canasvieiras, Florianópolis/SC, Brasil. E-mail: guilhermewagn@gmail.com.
[2] Traduzido no português como Vivência.
[4] Importante lembrar que Vygotsky não usava nem aprendizagem nem ensino, mas instrução. Pois, instrução é verbo reflexivo e demonstra o processo dialético do desenvolvimento de um indivíduo com outros: eu posso instruir outros, mas também instruir-me ou instruir-se. Entretanto não faz sentido “ensinar-se” ou “aprender-lhe”.
[5] Lukács era marxista, o conceito de universal não tem relação com os ideais eurocêntricos. Universal quer dizer o movimento de toda a humanidade, frente as suas contradições, na produção da própria cultura com suas especificidades temporais, espaciais e étnicas.
[6] Lukács utiliza o termo reflexo, entretanto eu prefiro o termo refrata. Pois, pela Perezhivanie a realidade não é simplesmente refletida, mas refratada e isso é o que torna a consciência individual singular em vários aspectos.
[7] Temos discordado de determinadas pesquisas em Insubordinações Criativas na Educação Matemática que reiteram o papel do indivíduo e escondem o coletivo. A nosso ver, o preponderante numa insubordinação é o coletivo, não o indivíduo.
[8] Expressão dos manezinhos da ilha de Florianópolis sobre um vento que vem do sul e derruba as temperaturas drasticamente.
[3] “that allows us to study the role and influence of the environment upon the psychological development”.

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