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Recepção: 14 Dezembro 2020
Aprovação: 22 Fevereiro 2021
Resumo: Este artigo apresenta alguns resultados do projeto “Escuta criativa como uma abordagem metodológica para o ensino de música nos anos finais do ensino fundamental” (PIBIC/UFMG/PRPq/2019), desenvolvido no espaço das aulas de Artes de uma escola pública de Belo Horizonte (MG). A proposta consistiu na elaboração e aplicação de oito planejamentos didáticos envolvendo atividades de escuta criativa (DELALANDE, 2019; PAYNTER, 2010) em diálogo com outras linguagens artísticas (CAZNOK, 2008; SCHAFER, 2011). Os dados coletados por meio de observações, filmagens, fotografias e entrevistas realizadas com os jovens e com a professora de Artes revelaram que a escuta criativa mostrou-se como um caminho para a ampliação dos repertórios musicais e para o desenvolvimento musical dos jovens. A estratégia de integrar a música com outras linguagens artísticas propiciou diferentes modos de fruição musical e possibilitou um maior engajamento dos jovens com as atividades propostas durante as aulas.
Palavras-chave: Jovens, Escuta criativa, Integração entre as artes, Anos finais do ensino fundamental.
Abstract: This article presents some results of the project “Creative listening as a methodological approach to the teaching of music in basic education” (PIBIC / UFMG / PRPq / 2019), which was developed in the Arts classes in a public school in Belo Horizonte, MG. The proposal consisted of the elaboration and application of eight didactic plans involving creative listening activities (DELALANDE, 2019; PAYNTER, 2010) in dialogue with other artistic languages (CAZNOK, 2008; SCHAFER, 2011). The data collected through observations, filming, photographs and interviews with young people and with the Arts teacher, revealed that creative listening proved to be a way to expand the musical repertoires and the musical development of young people. The strategy of integrating music with other artistic languages provided different modes of musical enjoyment and enabled a greater engagement of young people with the activities proposed during classes.
Keywords: Young people, Creative listening, Integration between arts, Elementary school.
Introdução
O ensino de música na educação básica tem sido temática recorrente em pesquisas realizadas nas áreas de Educação Musical e Educação (PIRES; DALBEN, 2013; PEREIRA; GILLANDERS, 2019). Pereira e Gillanders (2019) analisaram 300 teses produzidas nos programas de pós-graduação em Música brasileiros, área de concentração em Educação Musical, entre o período de 1989 até 2017, e observaram uma incidência do desenvolvimento da temática nos anos iniciais do ensino fundamental, na educação infantil e, por último, nos anos finais dos ensinos fundamental e médio (p.121). Semelhante resultado havia sido observado no “estado da arte” das pesquisas sobre música na educação básica a partir da produção acadêmica dos cursos brasileiros de pós-graduação stricto sensu em Educação e Educação Musical (1972 a 2011), realizada por Pires e Dalben (2013).
A partir desses resultados, podemos inferir que, na escola, o ensino de música ocupa um lugar de importância na formação escolar das crianças, o que parece não acontecer na mesma proporção quando se trata da formação escolar dos jovens que estão cursando os últimos anos da escolarização.. Talvez a não presença da aula de música no currículo desses segmentos possa ser explicada pela iminência do vestibular, mas não somente. Há que se questionar também as razões que possam justificar o ainda tímido interesse pelas pesquisas sobre música, juventude e escola (ARROYO, 2009).
Como professora do curso de Licenciatura em Música, tenho me preocupado em desenvolver propostas para o ensino de música para os jovens por meio dos estágios supervisionados, Programas de Iniciação à Docência (PIBID e Residência Pedagógica), projetos extensionistas de formação de professores e de Iniciação à Pesquisa.2 Desde 2015, desenvolvo o projeto de pesquisa “Escutas mediadas e ampliadas: um estudo para o desenvolvimento de propostas metodológicas para o ensino de música na educação básica”, que propõe contribuir para o ensino de música nos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio por meio da realização de projetos-piloto em escolas públicas e também projetos de formação de professores de Música e Artes que atuam nessas etapas da escolarização. Trazer a escuta como atividade central para o desenvolvimento de abordagens metodológicas para o ensino de música nos segmentos finais da escolarização baseou-se nos seguintes pressupostos: 1) de que a música está presente na vida dos jovens de forma onipresente por meio de diferentes modos de escuta (POPPOLIN, 2012; RAMOS, 2012; SOUZA; TORRES, 2009; SOUZA, 2000), e 2) de que as músicas que os jovens escolhem para ouvir estão relacionadas com a definição dos grupos de convivência e com a demarcação das identidades sociais, étnicas, geracionais, de gênero, entre outras (SILVA, 2000, 2019; SOUZA; FREITAS, 2014).
É importante destacar que o fato de a música se fazer presente na vida dos jovens de maneira onipresente tem uma íntima relação com a facilidade de acesso aos diversos repertórios por meio das tecnologias portáteis. Pesquisas sobre escutas mediadas pelas tecnologias demonstram que as mídias digitais portáteis têm sido fundamentais não somente para o acesso dos jovens à música, mas também para a ampliação de repertórios e conhecimentos sobre gêneros musicais (POPPOLIN, 2012), bem como para o desenvolvimento de “novas maneiras de escutar música, mais híbridas, instáveis, móveis e singulares” (RAMOS, 2012, p.225). As tecnologias também são parte importante na construção dos múltiplos modos de escuta juvenis, visto que essas estão relacionadas com a “linguagem polissêmica: som + imagem + movimento” (SOUZA, 2000, p.48) trazida pelos meios midiáticos.
Os repertórios musicais dos jovens estão também imbricados com a construção de suas identidades e nos mostram a importância dos atravessamentos sociais, étnicos e culturais para compreendermos suas escolhas e seus modos de fruição musicais:
A música, como elemento de diferenciação de classe, aparece em vários depoimentos de jovens, especialmente quando associam repertório e gêneros musicais. Isto é percebido quando são indicadas músicas que revelam as diferentes preferências ligadas às significações étnico-raciais, por exemplo. O mesmo pode também ser mencionado quando se verifica que uma dada música é escolhida como tendo uma forte significação diferenciadora e com “marcas” identitárias. Os jovens identificam-se e se autorreferenciam com os de “sua idade”, seu grupo ou sua galera, por ouvirem ou curtirem as mesmas músicas e terem os mesmos gostos e escolhas musicais. (SOUZA; FREITAS, 2014, p.74).
Baseando-me na importância da música e na centralidade da prática de escuta na vida dos jovens, propus o projeto de Iniciação Científica “A escuta criativa como abordagem metodológica para o ensino de música na educação básica: elaboração e aplicação de estratégias interartes em sala de aula” (PIBIC/ UFMG/PRPq/2019).3 Este projeto foi desenvolvido em duas turmas do 9º ano do ensino fundamental de uma escola pública de Belo Horizonte (MG) e consistiu na elaboração e aplicação de oito planejamentos didáticos envolvendo a atividade de escuta mediada pela atividade de criação.
As atividades de escuta foram planejadas de acordo com dois princípios: a) o repertório deveria ser preferencialmente instrumental; b) as atividades de escuta deveriam ser propostas por meio da integração entre as músicas com as outras linguagens artísticas, como dança, artes visuais, literatura, cinema, teatro, entre outras. O primeiro princípio tinha como objetivo o direcionamento das escutas para a percepção dos elementos musicais presentes nas obras, e o segundo, experimentar diferentes modos de fruição musical e construir pontes para a compreensão da natureza imaterial da música.
A ideia de trazer a atividade de criação em diálogo com as outras linguagens artísticas foi amparada nos modos de fruição musicais polissêmicos trazidos pelos meios midiáticos e que são acessados pelos jovens quando assistem a videoclipes de suas bandas preferidas, imitam vozes e performances musicais de seus ídolos, se isolam em seus fones de ouvido imaginando cenas que marcaram suas vidas e/ou tocando instrumentos musicais imaginários concomitantes à escuta de suas músicas preferidas. Frente ao exposto, passo a apresentar alguns pressupostos que embasaram a presente proposta.
Escutar na escola
As escolas do Programa para a primeira infância de Reggio Emilia, na Itália, propõem a “pedagogia da escuta” como elemento central de sua proposta educativa, pois, como analisa Rinaldi (2017), “uma escola deveria ser primeiro e acima de tudo, um contexto do múltiplo escutar”. A autora explica que a pedagogia da escuta prevê o engajamento de professores e alunos no propósito de que todos devam ser “capazes de ouvir os outros e a si mesmos”. Segundo a autora, ouvir a si e ao outro “subverte a relação ensino/aprendizagem” e todos passam a ser apenas aprendizes. Além de contemporizar as diferenças entre os indivíduos, a pedagogia da escuta também tem como proposta desenvolver as “diferenças entre linguagens (verbal, gráfica, plástica, musical, gestual etc.)” (p.128). Rinaldi (2017) apresenta a pedagogia da escuta como um elemento central para todo o processo educativo, não especificamente para a aula de música. A proposta de trazer a escuta para a sala de aula precisa ir além da perspectiva da autora, uma vez que escutar é tarefa da educação musical.
Del-Ben (2015, p.123) afirma que “o que se ensina na escola deve servir para algo maior”. Na perspectiva da autora, “identificar conteúdos do ensino de música e suas finalidades”, ou seja, “questionar o que se ensina/aprende ou se deve ensinar/aprender na escola” é uma tarefa para a área, para os professores de música e para a escola. Para ela, a escola tem o dever de garantir que o que lá se aprende “tenha sentido para os alunos, dentro e fora da escola; e tenha sentido no presente, e não somente num futuro incerto, visando a estudos posteriores ou à conquista de um emprego, por exemplo”.
Na perspectiva da autora, “cantar, tocar, criar, escutar, analisar ou refletir, por exemplo, podem levar ao desenvolvimento de habilidades, ao domínio de procedimentos e à construção de conceitos musicais, mas não garantem, por si, uma formação básica” (DEL-BEN, 2015, p.123):
Num contexto marcado por finalidades, propósitos e intencionalidades, como é a educação básica, experiências musicais não podem ser imediatamente tomadas como experiências formativas da nossa humanidade (qualquer que ela seja). É preciso refletir se, e como, nossas práticas ou experiências de ensino e aprendizagem contribuem, de fato, para a formação dos alunos, e que formação é essa que buscamos quando ensinamos o que ensinamos. (DEL-BEN, 2010, p.123).
Brito (2003, p.187) considera que “aprender a escutar, com concentração e disponibilidade para tal, faz parte do processo de formação de seres humanos sensíveis e reflexivos, capazes de perceber, sentir, relacionar, pensar, comunicar-
-se”. Na mesma direção, Paynter (2010, p.13) afirma que “a experiência da música terá para nós um significado mais profundo se cultivarmos a capacidade de escutar atentamente”.
Tomar a escuta como um caminho para o ensino de música parece ter profundas implicações não só para o aprofundamento do conhecimento musical dos jovens, mas também para a construção de relações de alteridade entre eles. Saber ouvir o colega, o professor e o ambiente sonoro em que os jovens estão inseridos possui uma relação direta com a aprendizagem musical e com a aprendizagem para a vida. Escutar atentamente é, antes de mais nada, uma atitude, um colocar-se disponível a uma experiência de escuta. Como destacam Richter e Lino (2019), estar à escuta não diz respeito apenas à “pedagogia da escuta” (RINALDI, 2017), que ressalta “a relevância educacional da sensibilidade pedagógica dos adultos ouvirem crianças em suas necessidades e possibilidades e imprevisibilidades”, mas também ao destaque da “experiência de ambos se entregarem à potência de estar à escuta” (RICHTER; LINO, 2019, p.2).
Larrossa (2002, p.21) define experiência como “aquilo que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”. Para ele, o excesso de informações a que somos submetidos diariamente, bem como as pressões trazidas pelo produtivismo exacerbado, tem tornado a possibilidade de termos uma experiência cada vez mais rara, especialmente no ambiente escolar. Convencido de que a estruturação curricular das escolas marcada por seus recortes temporais e disciplinares não sejam espaços propícios à realização de experiências, Larrossa (2002) propõe que nos concentremos, então, em tomar os alunos como “sujeitos da experiência”: sujeitos que se caracterizam por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura ao novo, ao desconhecido, a novas provocações e experimentações.
Entendo a proposta do desenvolvimento do projeto de escuta e criação na aula de Artes/Música como um convite, uma provocação e um experimento. Creio que o espírito da experimentação possa provocar transformações no sentido da aula de música no espaço escolar. Penso também que encorajar os jovens a experimentarem outras escutas e outros mundos sonoros possa ser um caminho para o ensino de música, dentre tantos outros possíveis.
Escutar para criar e/ou criar para escutar?
Penso em músicos como Cage ou Ferrari, que fazem da escuta um ato de criação; que publicam mesmo em disco, dando-lhe uma faixa, uma paisagem sonora à beira do mar. É a escuta que lhe é concedida, que faz dela uma obra. Mas não pense que uma composição é ouvida de maneira muito diferente. A imagem perceptiva que você constrói é sua obra. […] Não vamos empobrecer a percepção, querendo educá-la. Não vamos torná-la trivial, genérica, padronizada, fornecendo com a música um manual de instruções. Como a invenção, uma escuta pode ser pessoal, criativa. (DELALANDE, 2019, p.140-141).
Delalande (2019), reforça que o maior erro que um professor pode incorrer é “empobrecer a percepção” de seus alunos, tornando-a “trivial, genérica, padronizada”. Para ele, assim “como a invenção, uma escuta pode ser pessoal, criativa”, e por isso acredita que no exercício da escuta criativa “a imagem perceptiva que você constrói é sua obra” (p.141).
A máxima de John Cage em tomar a escuta como um “ato de criação” significa, segundo Brito (2019, p.71), tornar o ouvinte um “músico-compositor”. Paynter (2010, p.13) compreende que escutar, nesta perspectiva, “exige um esforço de imaginação” do ouvinte para que “o mundo sonoro do compositor seja reconstruído dentro do indivíduo”. Ainda que se trate de “um nível de criatividade distinto de a de um compositor, ainda assim, [esta escuta] é um ato criativo. […] É como se tivéssemos projetado na música algo de nós mesmos que agora tem vida própria”. Para Paynter (2010, p.14), ensinar a escuta criativa implica assumirmos “o dever de ajudar os jovens a beneficiarem-se de algo além de um contato passageiro com a arte da música”. Para isso, é preciso lembrar que a experiência musical é sempre “sensorial e subjetiva”, que está relacionada “aos sentimentos, à imaginação e à invenção”. O autor ressalta que o papel da informação sobre a música deve servir “apenas de apoio”: “a música, se separada da “inteligência do sentimento, pouco tem a ver com a arte e com realidade da experiência musical”.
Outro aspecto muito importante para o ensino da escuta criativa, destacado por Paynter (2010, p.20), é a habilidade do professor de “saber fazer perguntas” que possam ajudar os estudantes a “tomar as decisões” para a produção musical, “tanto na interpretação quanto na composição”. O autor destaca também a importância da reflexão acerca “das criações e as apresentações de outros” como fonte de enriquecimento e inspiração de “nossas próprias tentativas”.
Silva e Barbosa (2017, p.5-6), no artigo “Escuta (cria)tiva: propostas para o desenvolvimento da escuta musical na educação básica”, ressaltam que “a experiência da escuta musical é uma atividade criativa e demanda grande intensidade em seu exercício”. Os autores sinalizam que a escuta criativa “pode ser desenvolvida com a prática, ainda que nunca se reduza a uma técnica. É um processo interior de conhecimento e descoberta”.
O artigo citado, escrito por uma educadora musical em diálogo com um compositor, traz a importância de considerarmos a escuta musical sob perspectivas advindas de ambos os campos de conhecimento. Para o compositor, a escuta musical é “uma atividade criativa e dinâmica, centrada na compreensão do código musical assim como estabelecido pela tradição”, e supõe “uma dimensão técnica”. Embora a compreensão dos aspectos técnicos, analíticos e musicais pertençam à educação musical, esse campo considera “as possíveis relações que se dão entre os sujeitos e as músicas a partir de suas experiências prévias, suas histórias de vida” (SILVA; BARBOSA, 2017, p.2).
Visto que “a experiência musical é carregada de forças que nos afetam, que nos transformam”, logo, “uma atividade educadora necessita considerar esse poder que a música tem de nos afetar e fazer surgir pensamentos, imagens ou emoções”. Desenvolver a escuta criativa seria, portanto, tomar a escuta como uma prática criativa, de modo que surja “uma reflexão que legitime a força expressiva da música, assim como a dimensão criativa do ato de escutar” (SILVA; BARBOSA, 2017, p.2).
Escutar e criar: provocações interartes na aula de música
O discurso musical é autossuficiente ou pode se referir a algo que não seja somente sonoro? Sua construção e recepção são fundadas exclusivamente em elementos sonoros “puros” ou estes podem apontar para algo além deles? Onde se encontra seu significado: em universo composto unicamente por sons ou em contexto que inclui elementos extramusicais? (CAZNOK, 2008, p.21).
As indagações de Yara Caznok advêm do problema de pesquisa “como as pessoas escutam música?”, realizada com músicos, artistas plásticos e ouvintes em geral. Nas escutas reveladas pelos sujeitos da pesquisa, a autora percebeu “a presença de aspectos que poderiam ser qualificados como visuais”, tanto na música vocal – “pela sugestão imagética trazida pelo texto” – quanto na música instrumental (CAZNOK, 2008, p.17-18).
A sugestão imagética presente na escuta identificada na pesquisa de Caznok (2008) pode ser exemplificada pela seguinte descrição do conceito/sensação de textura musical:
Um modo de compreender a noção de textura é compará-la a um tecido formado por um entrelaçamento de fios sonoros. Esses elementos poderiam ser a melodia executada por um grupo de instrumentos ou um fundo harmônico, ou ainda um elemento rítmico presente no registro grave. Para além do tecido, a textura sonora apresenta também uma face táctil em que a sonoridade pode ser percebida de forma mais volumétrica do que linear. Algumas vezes o som é como um fio entre os dedos; em outras, é preciso abrir os braços do ouvir para alcançar toda a amplitude da sonoridade. Pode-se falar também de cores e brilhos, tons escuros e claros. Assim como a luz que atravessa um vidro pode tomar diferentes direções, o sonoro pode ser percebido sinestesicamente, através de associações a outros sentidos, como visão, tato e mesmo olfato. (SILVA; BARBOSA, 2017, p.6).
Caznok (2008) analisa que a comunicação entre os sentidos ou a multissensorialidade presentes nas escutas não deve ser compreendida como o processo de fusão ou síntese no qual um sentido se torna preponderante e outro “coadjuvante”, pois essa perspectiva poderia acarretar a perda da autonomia da música (p.225). Contrário à perspectiva de Caznok (2008), Paynter (2010, p.18-19) afirma que “a música não pode se relacionar com a realidade tangível ou visível”. Para ele, “o fato de que falte à música o poder descritivo que a associe às palavras e às imagens visuais não é uma debilidade, é o seu forte”.
A perspectiva de Paynter (2010) está associada à corrente estético-filosófica absolutista, que “concebe a música como linguagem autônoma em relação a quaisquer outros conteúdos, considerando-a autossuficiente na construção e no estabelecimento de relações puramente sonoras, intramusicais” (CAZNOK, 2018, p.21). Já a perspectiva de Caznok (2008, p.22), por contraste, está associada à corrente referencialista, que “acredita que a música tenha seu significado assentado sobre a possibilidade de o mundo sonoro remeter o ouvinte a um outro conteúdo que não o musical”.
Creio que ambas as perspectivas não sejam necessariamente excludentes, mas complementares, pois trazem questões importantes para não perdermos o foco da linguagem artística em questão, a música. A ideia de propor a escuta em diálogo com outras linguagens está relacionada com a complexidade inerente aos processos de recepção musical e à interseção dos significados musicais com os significados afetivos, imagéticos, sociais e culturais, já demonstrados por Green (2008) em sua pesquisa sobre a teoria da construção social dos significados musicais.
A teoria dos significados de Green (2008) possui como fundamentação básica a relação entre os significados delineados e os significados inerentes presentes na música e na cultura e sua influência sobre a experiência musical individual e coletiva dos ouvintes. A autora esclarece que os significados musicais inerentes dizem respeito ao “material musical e suas relações intrínsecas”, correspondendo ao que podemos chamar de “sintaxe musical”. Esses significados são construídos a partir de percepções musicais individuais, enquanto os significados delineados são “conotações extramusicais que a música carrega, isto é, suas associações sociais, culturais, religiosas, políticas ou outras” (GREEN, 2012, p.63):
Não podemos notar os significados musicais inerentes sem conceber simultaneamente uma delineação fundamental: que aquilo que estamos ouvindo é um objeto cultural que reconhecemos – uma peça musical, uma encenação ou algum tipo de apresentação. Do mesmo modo, não podemos imaginar uma peça musical sem atribuir alguns significados inerentes a ela. (GREEN, 2012, p.63).
Ainda em relação à associação entre música e outros sentidos, Schafer (2011, p.278) critica o excesso de especialização do ensino das linguagens artísticas que trouxeram uma “inaturalidade básica das formas de arte existentes, cada uma utilizando um conjunto de receptores sensitivos, com a exclusão de todos os outros”, e questiona:
Por que foi fragmentado o sensorium? Simplesmente porque não temos uma forma de arte múltipla, na qual os detalhes da percepção corroborem ou se contraponham uma ao outro, como na própria vida? […] Separamos os sentidos para desenvolver acuidades auditivas específicas e uma apreciação disciplinada. A música é uma coleção de elegantes eventos acústicos, e seu estudo é útil e desejável, como um meio de cultivar a capacidade auditiva. Mas uma total e prolongada separação dos sentidos resulta em fragmentação da experiência. (SCHAFER, 2011, p.279).
A integração da música com outras linguagens artísticas nos processos de criação aqui proposta objetiva potencializar a força expressiva do discurso musical, criando possíveis sentidos e aproximações com os repertórios instrumentais. É importante frisar, porém, que promover o diálogo entre música e outras linguagens artísticas não significa propor analogias simplificadas entre sons e imagens, ou entre sons e movimentos, ou mesmo entre sons e palavras. Trata-se, portanto, da tentativa de criar pontes materiais para a compreensão do discurso imaterial, aproximações entre o dizível e o indizível inerente ao discurso sonoro e musical. Essa proposta também está relacionada ao aspecto democrático para o engajamento dos jovens nas atividades por meio da escolha de expressões artísticas que lhes sejam confortáveis.
Uma vez que as escutas musicais são sempre atravessadas por questões de ordem afetiva, sensorial e subjetiva (GREEN, 2008; CAZNOK, 2008; PAYNTER, 2010; SCHAFER, 2011), estas dimensões devem ser legitimadas durante o processo, considerando os possíveis encantamentos e/ou estranhamentos que as músicas possam vir a causar nas experiências de escuta. Acreditamos que a proposta de escutar criando ou criar escutando em diálogo com outras linguagens artísticas possa ser um caminho para a compreensão dos materiais, elementos expressivos e aspectos formais da obra, mas também um caminho para despertar a curiosidade dos jovens para mundos sonoros pouco explorados ou talvez ainda desconhecidos para muitos deles.
Escuta criativa na aula de Artes: fragmentos de um projeto
Iniciamos o projeto na escola convidando os 60 jovens do 9º ano do ensino fundamental (turmas A e B) a se tornarem “sujeitos da experiência” (LARROSSA, 2002) durante nove encontros a serem realizados na aula de Artes:4
Cena 1 – Eu e a música
Em nosso primeiro encontro, realizado com as duas turmas reunidas no auditório da escola, nos apresentamos e expusemos a nossa proposta a ser realizada. Dissemos a eles que gostaríamos de conhecer as suas músicas preferidas e que também gostaríamos de apresentar “as nossas músicas”. E assim fizemos. Disponibilizei uma caixa de som com bluetooth para que quem se sentisse à vontade a conectasse ao seu celular para mostrar a sua música preferida. Após muitas gargalhadas e cochichos, um menino se prontificou a colocar a sua música, um funk com uma letra cuja temática se referia a uma cantada de um homem sobre uma mulher para fazer sexo. Após muitas risadas e alguns constrangimentos por parte de algumas meninas e meninos, ao terminar a música, perguntei: “Alguém gostaria de falar um pouco sobre esta música que acabamos de ouvir?”. O menino, rindo juntamente com um grupo de amigos, disse: “Eles que me obrigaram a colocar esta música!”. Perguntei a ele se era só por isso que havia colocado a música mesmo ou se tinha algo que ele gostava naquela música. Disse a ele que, embora não conhecesse a música, havia achado o ritmo muito dançante. Seguiram as risadas, e uma menina pediu para falar: “Eu queria dizer que a letra desta música fala da mulher como se ela fosse vagabunda e que eu não gosto disso”. Mais risadas. Perguntei a eles se concordavam com a opinião da colega e se gostariam de conversar sobre isso, mas eles não quiseram, dizendo apenas que havia sido “zoação” colocar aquela música. Após este episódio, ninguém da turma quis mostrar suas músicas. Retomei a palavra e disse aos alunos que gostaria que fizéssemos um combinado sobre as aulas de música, o que chamei de “papo reto”: “Bem, nós temos uma proposta para fazer a vocês e gostaríamos de saber se estão dispostos a participar. Viemos aqui para conhecer as músicas de vocês e entender como vocês as escutam: o que sentem, pensam, imaginam quando escutam as músicas que gostam. Mas também gostaríamos de mostrar a vocês as nossas músicas. Serão nove encontros no horário da aula de Artes. Vocês topam?”. Os jovens, ainda tímidos, acenaram com a cabeça positivamente. Pedi a eles que trouxessem uma música instrumental para a próxima aula. Encerramos o nosso encontro de apresentação, pois estava impossível continuar pelo tamanho da turma, tamanho do auditório e pelo barulho ensurdecedor que vinha da aula de educação física que estava acontecendo na quadra de esportes, e que era “colada” ao auditório. (Diário de campo, 14 mar. 2019).
A cena acima traz uma situação de confronto de gênero e de geração quando o menino escolhe um funk “proibidão” como uma forma de testar a minha reação e a reação dos bolsistas. O fato de termos acolhido a música com tranquilidade e mostrado abertura para um debate sobre ela foi bastante inesperado para o grupo de meninos, assim como foi inesperada também a manifestação da aluna falando sobre o seu incômodo com a letra da música em meio à turma. Essa cena ilustra a importância de considerarmos os atravessamentos sociais, étnicos e culturais inerentes a todo e qualquer repertório musical e também nos leva à compreensão da não neutralidade das escutas musicais. Importante destacar a importância do diálogo franco com as turmas, deixando claro do que se tratava o projeto e de seu tempo de duração. Esta espécie de “pacto” dos jovens conosco foi retomado em muitos momentos do projeto para que eles cumprissem a sua parte participando ou não atrapalhando o desenvolvimento das aulas.
Cena 2 Sentindo e pensando a música instrumental
Na aula seguinte, já no espaço da sala de aula, recebemos os alunos (que vinham do recreio) com uma música instrumental. Percebemos que demoraram a se dar conta de que havia música e esperamos alguns minutos até que fossem se silenciando por iniciativa própria. Só então interrompemos a música, cumprimentamos a todos e perguntei: “Alguém trouxe uma música instrumental para ouvirmos?”. Uma menina pediu a caixa de som para conectar ao seu celular. Era uma música eletrônica, intermediada por breves tempos de pausa. Curiosa com a presença das pausas, após encerrarmos a escuta, comentei que havia achado interessante aqueles silêncios. A menina, rindo baixinho, explicou: “Na verdade, este é o acompanhamento de uma música que eu gosto muito que tem letra. Aí eu usei um aplicativo que separa o canto do acompanhamento”. (Diário de campo, 21 mar. 2019).
Após rirmos juntos dessa situação inusitada provocada pela solução criativa da aluna, propusemos um debate sobre o papel das letras de música em nossas escolhas musicais e retomamos o objetivo do nosso projeto. Na sequência, propusemos a atividade Sentindo e pensando a música instrumental, que consistia em escutar trechos de músicas instrumentais e anotar as percepções musicais e afetivas sobre as mesmas. Posteriormente às escutas, montamos um quadro com as diferentes opiniões de gosto, percepções musicais e sentimentos dos alunos acerca de cada trecho musical. Concluímos que, pelo fato de sermos únicos, ouvimos e sentimos as músicas de forma diferente.
Um fato importante a ser ressaltado é que, nas duas turmas, apenas uma aluna quis mostrar a música instrumental que havia trazido para esse dia. Não podemos afirmar se esta não participação dos outros alunos poderia estar associada ao desinteresse pela proposta ou ao receio de serem ridicularizados pelos colegas. O que podemos dizer é que, ao final da aula, um aluno me procurou em particular para dizer que havia trazido uma música e que me mostraria em um “outro momento”…
As cenas acima são importantes para ilustrar a dificuldade que é para os jovens se exporem musicalmente frente à turma de sala de aula, pois, especialmente para eles, música não é apenas um evento sonoro, mas uma parte importante da construção de suas identidades. Como disse Schafer (2011, p.24) para os jovens durante a aula de música: “Quem se arrisca a ser ridicularizado pelos seus gostos individuais em música (e isso vai acontecer) demonstra coragem”.
Os planejamentos das aulas de escuta criativa interartes foram estruturados a partir dos seguintes tópicos: informações e análise sobre as músicas/vídeos/imagens selecionados (autor, ano, conteúdos musicais presentes ou potencialmente evidentes na e a partir da obra); provocações (questões anteriores ou posteriores à atividade de escuta criativa); atividades de escuta criativa interartes (em diálogo com as provocações); e avaliação (gravação e/ou filmagem dos produtos artísticos criados, discussão sobre os resultados obtidos, análise crítica entre as diferenças e aproximações com a obra original e a recriação).
Fechando o projeto: o que é música para você?
Durante o projeto, os bolsistas se revezaram entre a aplicação dos planejamentos, observações e filmagens das aulas. Após as aulas, nós nos reuníamos na sala dos professores da escola para discutirmos sobre as reações da turma frente às propostas (envolvimento, participação, resistência), sobre os comentários e as dúvidas trazidas pelos alunos acerca das propostas e do repertório musical (familiaridade, estranhamento, uso de vocabulário musical) e para fazermos análises sobre aspectos didáticos e estratégias de mediação utilizadas. Estes encontros foram muito importantes para reestruturarmos nossos planejamentos e também para aperfeiçoarmos as atuações docentes dos alunos bolsistas.
A última aula do projeto, intitulada “O que é música para você?”, teve como objetivo realizar uma avaliação do projeto pelos alunos, bem como uma autoavaliação sobre os conhecimentos adquiridos por eles. A primeira atividade de avaliação consistiu em assistirmos juntos a um vídeo da retrospectiva das aulas para conversarmos acerca das impressões dos alunos sobre o projeto.
Dentre as avaliações dos alunos da escola sobre o projeto, vários destacaram a importância da adequação do espaço físico para a realização das atividades de escuta. Esse comentário estava relacionado com a mudança das aulas para o espaço da biblioteca da escola, que aconteceu a partir da terceira aula. Essa mudança deu-se em razão da necessidade do equipamento de áudio e vídeo para a aula de Música e Cinema, que estava disponível na biblioteca:
Eu achei a biblioteca o lugar mais legal para a aula de música. Aqui todo mundo fica em silêncio. Todo mundo presta atenção na escuta. Dá pra ouvir todos os sons que tem aqui ao redor, que de alguma forma complementam as músicas. Bem melhor do que o auditório, que é mais aberto e lá cada um escuta de um jeito, dependendo da posição em que a pessoa tá… (informação verbal).12
A biblioteca da escola era localizada no andar superior, longe das salas de aula, que ficavam no andar inferior, em sua maioria. Embora o espaço da biblioteca fosse menor do que as salas de aula e do que o auditório da escola, o fato de as mesas serem coletivas propiciou uma maior possibilidade de aproximação entre eles e de escuta das músicas trabalhadas nos projetos.
A necessidade de silêncio foi sendo construída a partir de exercícios de escuta dos sons do ambiente e das músicas com que os recebíamos na biblioteca. Nas primeiras vezes, era preciso pedir silêncio para que percebessem a presença da música. Com o passar do tempo, percebemos que os alunos passaram a entrar na biblioteca interessando-se por escutar e comentar a música daquele dia. Os cartazes afixados na entrada da biblioteca com os dizeres “Seu primeiro idioma é o silêncio: Seja fluente nele” e “Aqui o silêncio fala alto: Boa leitura” foram adaptados e utilizados nas aulas de música: “Aqui o silêncio fala alto: Boa escuta”.
Sobre a escuta de músicas instrumentais, os alunos avaliaram:
Achei legal vocês trazerem música sem letra. Consegui ouvir melhor as batidas. Quando tem letra, eu até escuto as batidas, mas não presto atenção nos instrumentos. (informação verbal).13
Foi uma experiência diferente… A gente nunca tinha feito atividade de música aqui [nas aulas de Artes], e as músicas eram diferentes. (informação verbal).14
Antes do projeto, a música para mim era só a letra e a batida. Agora eu entendi que qualquer coisa pode ser música: uma buzina pode virar música, um poema pode virar música. Você pode transformar tudo em música. (informação verbal).15
Eu acho que abriu a nossa mente para ouvir outras músicas, porque às vezes a mente é tão fechada só pra uma cultura ou só pra uma música. Então vocês abriram a nossa mente. A gente conseguiu ampliar a nossa visão, os nossos espaços... (Aluno, 9º ano, Turma A).16
A respeito de a escuta ser potencializada por meio da criação interartes, alguns alunos disseram que “escutar e criar histórias, danças ou músicas diferentes” havia tornado as aulas mais “divertidas”: “Eu achei muito legal eles [os bolsistas e voluntários] deixarem a gente criar as coisas que a gente quer”.
Outros, porém, disseram que descobriram que, para escutar música, era preciso ter “atenção”:
Eu gosto de músicas mais calmas e entendi que, para escutar melhor, é bom ficar olhando para o nada. Me concentrar só na música. Isso mudou pra mim. (Aluna, 9º ano, Turma B).
Escutar música com clipe é legal, mas acaba que a gente fica preso na história do clipe. Eu acho que tem que escutar mais só a música mesmo… (Aluno, 9º ano, Turma A).
Um dos jovens participantes se prontificou a conversar conosco sobre o projeto durante o recreio e revelou que era mestre de cerimônias (MC)17 e resolveu falar por meio de um improviso:
As avaliações dos alunos sobre o projeto revelaram a multiplicidade dos modos e dos sentidos de suas escutas musicais, bem como a necessidade de falar sobre música, compreender o que escutavam e o que sentiam. O silêncio e a ampliação do conceito de música foram descobertas importantes reveladas nas falas desses alunos.
A pertinência do diálogo interartes como elemento importante para a fruição dos jovens pode não ter feito sentido na percepção de alguns alunos. Isso talvez possa ter relação com o fato de estarem no ambiente escolar e de terem aprendido que música se escuta apenas com os ouvidos, assim como as artes visuais devem ser apreciadas apenas com os olhos. Ou talvez ainda pelo fato de eles próprios não entenderem a música como algo separado do corpo, do pensamento, do sentimento, do movimento, da imaginação, da poesia, da criação pictórica e dramática, por assim dizer. Nesse sentido, interpretei os depoimentos de alguns deles sobre a não relação entre escutar música em diálogo com outras linguagens como o entendimento que têm sobre a importância da atenção e da presença para escutar música.
Considerações finais
Este artigo procurou contribuir para a discussão sobre a importância das práticas criativas para o ensino de música nos anos finais do ensino fundamental, trazendo a escuta como proposta central. A ideia do projeto de construir e experimentar abordagens metodológicas para esse segmento possui relação com o tímido crescimento da temática música, juventude e escola, demonstrado nas pesquisas (PIRES; DALBEN, 2013; PEREIRA; GILLANDERS, 2019), e também com uma percepção particular sobre a lacuna na formação de professores nos cursos de Graduação em Música para trabalhar com música e juventude na escola.
Tomar a escuta como prática musical para o ensino de música na escola parece ser um caminho para o cumprimento dos objetivos educacionais da aula de música para este contexto. Sabemos que escutar música é uma prática cotidiana dos jovens, e por isso deve ser legitimada como atividade de ensino e aprendizagem musical na aula de música. Além disso, saber colocar-se em atitude de escuta é uma aprendizagem necessária para que a escola seja, de fato, inclusiva, acolha as diferenças e estabeleça um ambiente para o respeito entre os sujeitos que lá estão.
Pode-se dizer que houve uma mudança de atitude dos alunos no decorrer dos encontros, demonstrada pela crescente adesão e pelo engajamento às propostas do projeto, o que contribuiu para a construção de um ambiente de respeito de escuta de si e do outro. Essa percepção foi corroborada pela professora de Artes da escola, que acompanhou o projeto:
Eu passei a olhá-los de uma outra forma, e eles revelaram outras facetas que, até então, o senso comum ou o dia a dia ou os tempos escolares ofuscavam. Então, eu mudei o discurso: não são alunos que não querem nada. São alunos que querem, desde que a proposta seja significativa, interessante, desafiadora, criativa. (informação verbal).19
Vejo a proposta do desenvolvimento da escuta criativa a partir da perspectiva da cocriação da obra musical (PAYNTER, 2010; BRITO, 2019; DELALANDE, 2019) como um convite à construção da autonomia e do protagonismo juvenil, uma vez que permite aos jovens diferentes possibilidades de participação e engajamento com os repertórios musicais, seja por meio de interpretações dramáticas, pictóricas, corporais ou criação de arranjos, trilhas sonoras e composições musicais.
Embora a abrangência do projeto desenvolvido tenha sido modesta em número de participantes e turmas – 60 alunos e duas turmas de 9º ano –, alguns resultados mostraram-se relevantes. Observou-se que as atividades de escuta criativa propostas no projeto favoreceram a reflexão sobre os elementos musicais presentes nas obras trabalhadas, ampliaram o repertório e o vocabulário musical dos alunos, ao mesmo tempo em que os levaram a perceber o poder que a música tem de os afetar por meio de seus pensamentos, memórias e sensações.
Concordando que “saber fazer perguntas” é uma das principais habilidades que o professor deve ter para desenvolver a escuta criativa de seus alunos (PAYNTER, 2010, p.20), esse projeto ensinou-nos a construir provocações acerca das potencialidades criativas que percebemos nos repertórios musicais escolhidos para nossas aulas. Observamos que as questões que fazíamos antes ou depois da escuta (escutar para criar ou criar para escutar) das obras desafiaram os alunos a ouvir de forma concentrada para refletir e responder às provocações.
Merece destaque o papel das atividades avaliativas propostas no processo de ensino, as quais, em sua maioria, foram feitas por meio da análise comparativa entre as criações dos alunos e a obra original. Além de contribuir para o aprofundamento das percepções dos jovens sobre elementos do discurso musical, esse modelo avaliativo forneceu subsídios para observar as transformações de aprendizagem musical dos mesmos.
Sobre a pertinência dos diálogos interartes para o desenvolvimento da escuta criativa, penso que seja um caminho instigante para a participação dos alunos em propostas que incluem diferentes possibilidades de expressão e interpretação, mas também para a vivência de experimentações de fruição musical menos fragmentadas (SCHAFER, 2011). Além de deixar pistas para a escuta de repertórios ou sonoridades agregadas a outras materialidades artísticas, a contribuição desse estudo foi também provocar a sensibilidade dos alunos para a música por meio de sensações, pensamentos, interpretações e sentimentos, elementos fundamentais para a melhoria das relações com os outros, com o ambiente e, consequentemente, com a sociedade.
Concluo reforçando a necessidade da realização de propostas e de projetos de ensino de música para os jovens que estão nas escolas para a mudança do estado da arte das pesquisas sobre a temática, mas principalmente para a real inserção da aula de música nesses segmentos. Pensando no momento atual que estamos vivendo devido à pandemia, o projeto proposto possui uma grande potencialidade para ser pensado para o ensino a distância. A escuta mediada pelas infinitas possibilidades tecnológicas pode ser desenvolvida por meio de produções audiovisuais e processos de criação coletiva.
REFERÊNCIAS
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Notas
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