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Recepção: 26 Fevereiro 2021
Aprovação: 03 Maio 2021
Financiamento
Fonte: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
Número do contrato: Processo nº 2018/01418-2
Resumo: Visando contribuir com os estudos de Harmonia, propõe-se um levantamento, com comentários, de expressões fundamentais da literatura musical grega, com base em Aristóxeno de Tarento (século IV a.C.). Sob essa proposta de análise semântica, também se procura perceber a organização de seu tratado de Harmonia, haja vista suas partes e uma metodologia. Por conseguinte, apontam-se alguns princípios filosóficos que norteiam a atividade musical, como a necessária disposição crítico-poiética do μουσῐκός (mousikós) e o conhecimento da episteme musical. Também incluem-se breves comentários sobre a tradição da literatura musical em latim, expressa desde Martianus Capella e Fabius Fulgentius, aproximadamente no século V d.C., até os teóricos mais tardios, com Sethus Calvisius e Blanchinus Veronensis, já no início dos séculos XVII e XVIII respectivamente, todos herdeiros de Aristóxeno e de seus epígonos, em menção a Aristides Quintiliano, Cleônides e Ptolomeu.
Palavras-chave: Teoria musical, Epistemologia, Harmonia, Aristóxeno de Tarento, Teoria musical medieval.
Abstract: Seeking to contribute to the studies of Harmony, we propose a data collection, with commentaries, of primary expressions of Greek musical literature, from Aristoxenus of Tarentum (4th century BC). Moreover, through that semantic analysis, we aim to understand the organization of his treatise on Harmony, highlighting its parts and methodology. Consequently, we point out some philosophical principles from musical thoughts, such as the critical-poetic posture of the μουσῐκός (mousikós) and the knowledge of the musical episteme. Thus, we include shorts comments on the tradition of the musical literature in Latin, found in authors such as Martianus Capella and Fabius Fulgentius, approximately in the 5th century AD, to later theorists, with Sethus Calvisius and Blanchinus Veronensis, already in the early 17th and 18th centuries respectively, all heirs of Aristoxenus and his epigones, in mention of Aristides Quintilian, Cleonides and Ptolemy.
Keywords: Music Theory, Epistemology, Harmony, Aristoxenus of Tarentum, Medieval Music Theory.
INTRODUÇÃO
Com vistas à compreensão de parte do pensamento teórico-musical de Aristóxeno de Tarento (século IV a.C.), o músico primordial, o estudo7 divide-se em partes contíguas que tratam:
a) sobre Aristóxeno de Tarento, em um comentário biográfico muito breve;
b) sobre alguns princípios filosóficos em sua teoria, considerando o vir a ser um músico, o processo de escuta e a memória musical;
c) sobre a organização dos Elementos de Harmonia, haja vistas suas partes;
d) sobre noções de teoria musical, feito um levantamento semântico conciso;
e) sobre a expansão dos fundamentos de Aristóxeno, com destaque aos teóricos medievos, herdeiros das fontes gregas, e ao conceito de σύστημα τέλειον (sýstēma téleion).
Sob essa disposição, apresenta-se um estudo de teor epistemológico que visa comentar alguns aspectos dos tratados musicais de Aristóxeno, percebendo a lógica de seu pensamento no processo de concepção de noções de teoria musical. Em nossa atividade de leitura, trabalha-se sempre com as fontes primárias, estabelecidas nas edições de Marquard (1868), Westphal (1883) e Macran (1902), em diálogo com especialistas, com destaque a Gibson (2005), dentre outras referências indicadas na bibliografia.8 O músico de Tarento, importante discípulo de Aristóteles, cunhou diversos conceitos que fundamentaram a tradição teórico-musical, continuados por seus epígonos, a citar, Cleônides, Ptolomeu e Aristides Quintiliano, além de outros pensadores da música, sem mencionar a Antiguidade tardia, a Idade Média e o Renascimento, com destaque a Martianus Capella, Cassiodorus, Boethius, Franchinus Gaffurius e Henricus Glareanus,9 dentre outros autores de expressão latina, com extensão ao século XVII e XVIII, com Sethus Calvisius e Blanchinus Veronensis. Mesmo após mais de vinte séculos, eles ainda expressam fundamentos diretamente estabelecidos por Aristóxeno.
Em resumo, considerando a importância da obra de Aristóxeno à música, ainda mais, com destaque ao processo de ordenação e de teorização do conhecimento musical, propõe-se, neste estudo, um comentário filológico de expansão epistemológica 10 sobre o tratado de Harmonia, com destaque à divisão da teoria, à terminologia musical e ao processo de construção teórica. Em palavras mais breves, procurando perceber o modus faciendi de Aristóxeno na organização da episteme musical, sob uma análise de teor semântico-epistemológico, ressalte-se a consequência do pensamento grego ao conhecimento musical.
1 SOBRE ARISTÓXENO, O MÚSICO PRIMORDIAL
Aristóxeno de Tarento11 (Ἀριστόξενος ο Ταραντίνος) foi o principal μουσῐκός12 da Grécia Antiga, aproximadamente no século IV a.C. Também filósofo, um profícuo historiador e um dos principais discípulos de Aristóteles, o Estagirita (384-322 a.C.), organizou o conhecimento musical e cunhou importantes conceitos, como o de σύστημα13 (systema, em latim), que será tratado neste estudo. Em função da importância de seus textos, principalmente dos tratados de harmonia e ritmo, tornou-se a principal e mais fundamental referência de pensador da Música.
Entre comentadores e estudiosos da Antiguidade, tanto gregos (incluindo a Grécia romanizada), como Cleônides, Ptolomeu, Plutarco, Diógenes Laércio, Aristides Quintiliano, quanto romanos, como Cícero, Marciano Capela (já na Antiguidade tardia), sem excluir os pensadores medievais, como Boécio e Cassiodoro, Aristóxeno era tomado como o principal μουσῐκός. Foi filho também de um músico, Espíntaro, seu primeiro professor. Em seu percurso filosófico-musical, foi discípulo de importantes pensadores, tais quais Lámpro de Eritreia, o pitagórico Xenófilo e, principalmente, Aristóteles, o Es tagirita.
Costuma-se dizer que Aristóxeno ofendera a seu último mestre, que estava já no final da vida, por ter escolhido Teófrasto, outro discípulo, para ser o sucessor de sua escola. Talvez Aristóxeno se considerasse o mais importante dos aristotélicos? Essa contenda entre discípulo e mestre é uma referência obscura na História, uma vez que não existe nenhuma declaração, de fato, de Aristóxeno contra Aristóteles (TRENDELENBURG, 1826). No entanto, Arístocles, segundo Eusébio (Praeparatio Evangelica, XV, 2; 791c), comenta que Aristóxeno nunca ofendera o mestre.
Mas quem acreditou no que Aristóxeno, o músico, estava dizendo em sua “Vida de Platão”? (F H G II 282, 33, 35). Diz que, enquanto Platão peregrinava, estando bem longe de casa, alguns estrangeiros colocaram-se contra ele, construindo um Perípato. Certamente supunham que se referia a Aristóteles, quando, na verdade, Aristóxeno sempre falou bem de Aristóteles. (Aristocles, Phil., f 2.22-26, grifos nossos).14
Aristóxeno deixou importantes obras das quais restaram, ainda incompletas, o seu Elementos de Harmonia (Αριστοxενου Αρμονικα Στοιχεια), em três livros, e o Elementos de Ritmo (Αριστοxενου Ρυθµικών Στοιχείων), em dois livros fragmentários (A e B), além de outras obras bem mais fragmentárias. Comenta-se,15 no entanto, que tenha escrito muito sobre História, Filosofia e Educação, dentre outros assuntos de seu escopo.
Em relação à sua escassa bibliografia, a principal fonte é a Suda (ἡ Σοῦδα), um extenso léxico, de teor enciclopédico, com mais de trinta mil entradas, sobre os mais diversos assuntos e personagens. Nela encontra-se o verbete “Aristóxenos”:
Aristóxeno: filho de Mnésio, ou então de Espíntaro, o músico é oriundo de Tarento, na Itália. Enquanto vivia em Mantineia [na Arcádia Grega], tornou-se um filósofo e com certeza não falhou em colocar-se à disposição da música. Foi discípulo de seu pai, de Lámpro de Eritreia, de Xenófilo, o pitagórico, e, por fim, de Aristóteles. Enquanto o seu mestre estava morrendo, Aristóxeno insultou-o, porque foi esquecido como sucessor de sua escola, perdendo para Teófrasto, embora tivesse muito maior reputação entre os discípulos de Aristóteles. Viveu durante o período de Alexandre e o tempo posterior, depois dos jogos olímpicos de número 111, sendo contemporâneo de Dicearco de Messênia [no Peloponeso]. Ele compôs obras sobre Música, Filosofia e História, além de obras de natureza pedagógica; os seus livros estão ao número de 453.16
Tendo o reconhecimento de que Aristóxeno tenha sido não somente um instrumentista ou um filósofo, mas, acima de tudo, um μουσῐκός, foi, senão, o pensador primordial da arte da música. Para ele, não bastava tocar um instrumento, mesmo que corretamente, para ser um μουσῐκός. A rigor, o conhecimento musical não se expressa, necessariamente, com um instrumento musical em mãos. O requisito fundamental é ter ciência dessa arte em sua abstração e percepção, mediada pela inteligência empática, sem palavras de censura (λόγον ἀνεπίληπτόν, lógon anepílēptón, em Elem. Harm.17 I, 21.14), que é o desejo de querer ouvir e aprender em primeiro lugar, em postura humilde.
É imprescindível, portanto, a quem quer ser músico dominar a episteme musical (ἐπιστήμης, epistḗmēs), por meio da contemplação teórica (θεωρέω, theōréō).18 O músico, pois, deve assimilar tudo aquilo que se refere à música, sendo esta sua condição: “[…] καὶ τὰς ἄλλας περιεχούσης ἐπιστήμης, δι’ ὧν πάντα θεωρεῖται τὰ κατὰ μουσικήν. αὕτη δ’ ἐστὶν ἡ τοῦ μουσικοῦ ἕξις (Elem. Harm. I, 1, 13-15).19 Em palavras breves, o músico deve ter o conhecimento intelectual e sensorial dos assuntos relacionados à música – tais quais a Harmonia, a Melodia e o Ritmo, dentre outros tópicos referentes à episteme musical.
Em síntese, o conhecimento musical completo, haja vista a faculdade de conhecer e de observar sistematicamente, é condição do μουσῐκός. Em outras palavras, o músico é quem domina a ciência da música. Nesse sentido, o estudo de Harmonia seria uma das partes do vir a ser um μουσῐκός, considerando-a em todas as suas sete subdivisões,20 assim resumidas em: gêneros, intervalos, notas, escalas, tonalidades, modulações e melodias.
Em resumo, Aristóxeno deixa claro, em seus tratados, que conhecer muito bem a Harmonia é, portanto, um dos requisitos do μουσῐκός. Além de contemplar com inteligência a natureza da arte musical, deve-se ter a sagacidade de aprender a música (ξύνεσίς, xýnesís) com consciência sensorial (αἴσθησις, aísthēsis) e memória (μνήμη, mnḗmē).
Por conseguinte, quem reúne os sons que se tornam melodia, tanto pela audição quanto pela inteligência, é capaz de distinguir o movimento que é produzido sucessivamente a vir a ser a melodia, como partes futuras da música. Em relação a isso, é dupla a faculdade da música: a percepção e também a memória. Portanto é necessário perceber, de um lado, o que virá a ser, guardando na memória o que já passou. Definitivamente não há, porém, outra forma de compreender a música. (Elem. Harm., II, 48,11-18).21
O músico, por excelência, domina, principalmente e não exclusivamente, o conhecimento sobre a harmonia e sobre o ritmo, o qual cabe também ao teatro, à escultura, à dança, à literatura, dentre outras artes, porque elas se valem, de alguma forma, da sucessão (gestos, passos, sílabas), logo da simetria, dos movimentos, ou seja, do ῥυθμός (rhythmós), como fenômeno especial do tempo (χρόνος, khrónos).22 No entanto, é sempre necessário, por questão de fulcro teórico, restringirem-se os conceitos abordados e as reflexões feitas ao domínio estritamente musical, tendo em vista que tempo é uma categoria primordial e muito genérica; e ritmo, geral às artes.
Nos Elementos de Ritmo, Aristóxeno comenta sobre a ampla natureza do ritmo, sendo necessário, por essa razão, ater-se ao sistema musical. Assim, afirma:
O ritmo possui, de fato, inúmeras naturezas. Já foi falado, anteriormente, sobre a espécie de cada um, sobre os motivos por meio dos quais tiveram mesmos nomes e sobre em que se baseia cada um. Mas agora devemos falar sobre o ritmo estabelecido especificamente na música. (Elem. Rit., II, 17.3-7).23
Consciente das semelhanças nominais e das partes da ciência musical, sob uma rigorosa percepção metodológica do objeto de estudo e uma inteligência sensorial, o músico, portanto, é capaz de compreender a natureza dessa arte, em específico. Logo, o músico é quem tenha uma lucidez sobre a φύσις da τέχνη (phýsis; tékhnē ou téchnē), isto é, a natureza dessa arte.
Portanto, o verdadeiro músico, isto é, o μουσῐκός, não é apenas quem executa um instrumento, mesmo que habilmente, quanto menos de modo curioso. Assim, como não existe um matemático que desconheça a natureza dos números, ou um dançarino sem rítmica, não existe um músico que ignore a natureza dos sons, suas regras, partes e princípios. Novamente, não se trata jamais do curioso que executa um instrumento ingenuamente, mas do artista que, tal qual um cientista e um filósofo, se coloca em busca do conhecimento e da percepção unidos pela inteligência, em que a clareza sobre a natureza da arte não pode ser embasada em opinião. Logo, é princípio do vir a ser músico a precisão da percepção (αἰσθήσεως ἀκρίβεια, aisthḗseōs akríbeia). Assim, afirma o músico: “Já ao músico, é de sua condição – tendo-a de origem – a precisão do ouvido24” (Elem. Harm. II, 42.21-22, grifos nossos).
Nesse sentido, sob liberdade metafórica, a arte confia aos artistas que deseja a configuração poética, sem contrapor prática e teoria,25 não obstante a linguagem. O músico, poeta e artesão,26 vale-se, pois, da postura filosófica e da ποίησις (poíēsis), sob contemplação intelectual associada a uma percepção precisa dos sentidos, sempre atentos. Em uma metáfora permissiva, o músico deixa-se encantar pela ποίησις, invenção artística em superação da linguagem, tal qual um “Hesíodo” se deixe conduzir primeiramente pelas Musas.
Extrapolando o pensamento de Aristóxeno, esta antiga metáfora, em paralelo literário, pode sintetizar poeticamente os requisitos do artista, que sabe ouvir e ver, muito bem, as revelações (ἀληθέα,30alēthéa) das Musas. Por essa razão, o artista é profeta da verdade. O μουσῐκός, portanto, não deixa de ser o grande ouvinte das Musas, em contemplação intelectual, inteligência empática e sensorialidade precisa.
2 A HARMONIA SEGUNDO ARISTÓXENO
Como se sabe, Aristóxeno não escreveu seus tratados ex nihil e não foi o primeiro ou o mais antigo teórico de música, sendo, na verdade, discípulo de muitos pensadores da aritmética, como Pitágoras, quem chegou a conhecer. No entanto, foi ele quem sistematizou, de fato, o estudo de música, sem excluir a percepção. O tarentino, obstinado pela sistematização epistêmica, cunhou importantes conceitos para estudar a natureza musical, a ponto de tornar-se o “pai da musicologia”, pelo modo original e metodológico com que organizou o conhecimento filosófico musical, sob esteira aristotélica.
Aristóxeno, como mencionado, recebeu influências da escola pitagórica, que foi responsável, dentre outras questões, por estabelecer razões numéricas no estudo dos intervalos, a fim de explicar sobre a sua natureza. Além disso, ele conviveu com diversos filósofos atenienses que expunham seus pensamentos sobre música, ora a partir da teoria mística da Harmonia das Esferas,32 ora à luz de novas tentativas de teorização. Naturalmente, também foi influenciado por seu pai, o músico Espíntaro, e por outros mestres. Mas a sua principal influência foi, sem dúvida, Aristóteles.
Em seus tratados, como chegaram até nós, Aristóxeno cita raros teóricos, para comentar, na verdade, sobre suas tentativas ou seus equívocos.
[…] no entanto, ninguém até hoje se preocupou em delimitar cuidadosamente a diferença de cada uma das notas. E, decerto, sem essa diferenciação, será muito difícil falar sobre elas. Por isso, é preciso não aceitar o que Laso e também os discípulos de Epígono supuseram, a quem extensão confundia-se com nota, a fim de que falemos com um pouco mais de rigor. (Elem. Harm., I, 7.16-22).33
Nessa passagem, por exemplo, ele comenta sobre a importância de delimitar (διορίζω, diorízō) a natureza dos sons musicais (φθόγγος, phthóngos), isto é, das vozes ou das notas de um instrumento musical. Afirma ainda que, caso se deseje ter precisão de sentido, será necessário evitar os equívocos de Laso de Hermíone34 e de alguns pensadores da escola de Epígono de Ambracia, ambos contemporâneos que, segundo Aristóxeno, não distinguiam Πλάτος (plátos, extensão, amplitude) de φθόγγος (voz, nota).
Erátocles, um teórico musical do século V a.C., no entanto, como cita Aristóxeno,35 foi o único, de todos os predecessores, que tentou desenvolver uma das partes do estudo de Harmonia, referente à natureza das escalas, porém, segundo o epígono de Aristóteles, de modo falho e sem demonstração. Mais do que isso, obteve resultados falsos, tendo falhado no estudo da percepção (αἴσθησις). Pode-se notar a importância que o discípulo de Aristóteles dava à demonstração e à percepção como fundamento metodológico do estudo teórico de música, mesmo sem a materialidade do canto ou do instrumento. Ou seja, embora o assunto seja tratado de forma abstrata, isto é, pelo pensamento, sem necessariamente executar um instrumento, o estudo do μουσῐκός não deve prescindir nem de argumentos verdadeiros, nem do senso estético, isto é, a razão sob a luz da sensorialidade.
O músico também menciona Platão e Aristóteles, logo no início do segundo livro (II, 39.4 – 40.13), desaconselhando o método do primeiro e defendendo o segundo. Ou seja, nesse ponto, há um comentário com que o discípulo enaltece a metodologia de Aristóteles e critica a organização de Platão. No caso, este, também de nome Arístocles, divulgou uma palestra sobre as coisas boas (ἀγαθός,36 agathós), a que foram os interessados em recompensas da fortuna, tais quais tesouros, saúde e força (πλοῦτον, ὑγίειαν, ἰσχύν, ploûton, hygíeian, iskhýn ou ischýn). No entanto, Platão palestrou sobre ciência, números, geometria e astronomia, dentre outros assuntos de seu escopo, que considerava serem as verdadeiras fortunas do homem. O resultado foi o fracasso da exposição em função do público, de índole incompatível com o palestrante. Por isso, Aristóxeno elogia o modo como procede Aristóteles, sempre informando, primeiramente, o assunto de que tratará e a disposição do estudo. A Aristóxeno, portanto, é sempre desejável a informação preparatória, demonstrando preferência à organização e à metodologia aristotélicas em detrimento da ironia platônica.
Em função dessa postura que preze o rigor metodológico, os tratados de Aristóxeno são organizados em partes muito bem-definidas, com propostas claras e específicas, sempre introduzindo o assunto e, depois, sintetizando ou recuperando os passos. Em cada uma delas, preza-se a clareza na distinção entre categorias e subcategorias, diferenciando-as. Essa proposta, portanto, teoriza o objeto de estudo, muito bem-definido, por meio do estabelecimento de conceitos e subconceitos.
Assim, do córpus analisado pelo grego, qual seja, a episteme musical, mais especificamente a parte da Harmonia, depreendem-se elementos primordiais, principalmente por dedução, tendo clareza em cada tarefa a ser cumprida para a compreensão do todo. Feito isso, Aristóxeno analisa cada elemento, a fim de entender-lhe a natureza e, se necessário, a quantidade ou os valores numéricos (ἀριθμός, arithmós). Note-se ainda que, frequentemente, ele procura distinguir conceitos emparelháveis (por exemplo, diferença entre canto e fala, entre afinação e altura, entre grave e agudo etc.). Em cada elemento, pode-se depreender subelementos, repetindo o mesmo processo de análise, sob padrão. Em síntese, essa organização visa compreender a natureza da episteme musical, partindo da natureza dos gêneros à construção da melodia (monódica), a μελοποιία (melopoiía). Ou seja, quanto mais próximo das últimas seções, mais próximo do estudo do fenômeno melódico.
A Harmonia mais especificamente está dividida em sete partes, conforme o quadro a seguir. Nele é possível identificar cinco colunas, descritas da seguinte maneira:
2ª coluna: aponta o assunto de que trata a parte, em apenas uma única palavra (as correspondências latinas foram retiradas de Fulgentius37), com breve comentário; 3ª coluna: apresentam-se os elementos primordiais da parte, valendo-se da sequência de
línguas: grego, latim e português;
4ª coluna: descrevem-se os objetivos38 mais gerais da parte;
5ª coluna: se necessário, incluem-se observações sobre a parte.
Assim, por meio dessa descrição, procura-se expor a organização dos Elementos de Harmonia. Em acréscimo, é necessário considerar o caráter didático do quadro, sem pretensão de fôlego, haja vista as distintas tarefas e discussões em cada seção ou parte. Segue o quadro:
A divisão do estudo de Harmonia tem seu fundamento em função da interdependência das partes, haja vista os conceitos necessários à compreensão da etapa seguinte. Essa organização é esclarecedora porque planeja a gradação do conhecimento. Assim, a última etapa depende do conhecimento das seis anteriores; mas a segunda etapa, somente da primeira; já uma terceira parte prescinde de conceitos posteriores, em função dos elementos subsumidos. Há, em síntese, uma organização gradual, a partir de que se infere uma postura didática e metódica de Aristóxeno.
Além da divisão das partes do estudo de Harmonia, organizadas no Quadro 1, também se arrolam, em novo quadro, alguns conceitos que compõem, principalmente, a Harmonia. Esse segundo quadro apresenta 65 entradas que procuram dispor noções fundamentais, em caráter sintético, como um glossário, a fim de tentar apontar algum princípio lógico-teórico.
O quadro é composto por cinco colunas em que se dispõe uma numeração, em algarismo arábico, à guisa de contabilização de entradas, e mais quatro colunas relativas ao conteúdo lexical. Na segunda, indicam-se os termos; na terceira, o respectivo significado, em contexto musical. Após essas colunas, insere-se outra em que se aponta, se necessário, o termo solidário ao léxico da entrada, conforme a natureza da expressão. Por exemplo, ao verbete γένος (génos), associam-se as expressões διάτονος (diátonos), χρωματικός (khrōmatikós) e ἐναρμόνιος (enarmónios), porque estão contidas no primeiro; já βαρύτης (barýtēs, grave) faz relação com ὀξύτης (oxýtēs, agudo), porque se opõem. Essas relações lexicais podem ajudar a perceber a constituição metodológica da obra de Aristóxeno ou a sua sistemática. Por fim, há, ainda, a localização das expressões na obra do músico, priorizando a primeira ocorrência ou o trecho mais relevante.
A ausência, em alguns autores, de um rigor epistemológico ou de uma falta de sistematização teórica foi alvo de crítica por Aristóxeno. O seu julgamento de alguns teóricos anteriores consistia muito em função da falta de exame sistemático ou de demonstração. Por essa razão, procurando fazer o que criticou, estendeu o estudo dos sistemas ou das escalas a um alto nível de “sistematização”. Afirma Gibson (2005, p. 162) que “Aristóxeno critica os teóricos anteriores pela falta de exame sistêmico e promete, no Livro I [dos Elementos de Harmonia], que fará uma discussão extensa sobre os systemata […]”.49 Infelizmente, supõe-se que a descrição minuciosa dos systemata tenha sido uma das partes perdidas de seu Elementos de Harmonia.
A partir deles [dos “Elementos de Harmonia” e das obras de Cleônides], podemos inferir que uma enumeração sistemática dos sistemas de escala foi uma das principais inovações das secções perdidas dos Elementos de Harmonia. É provável que aí incluísse uma enumeração das formas (είδος) dos intervalos de quarta, quinta e oitava e uma descrição dos sistemas perfeitos máximo e mínimo. (GIBSON, 2005, p. 162).50
Tendo em vista esse processo de “sistematização” teórica, principalmente sobre os systemata, o Quadro 2 procura evidenciar a coerência terminológica da teoria, mas sem pretensão de fôlego. Trata-se, na verdade, de uma amostragem, já que o quadro a seguir não tem índole exaustiva. Quanto às variantes, em função de metaplasmos, optou-se, em muitos casos, pelo nominativo singular; em outros, pela forma mais consagrada da palavra.
Conceito Conteúdo semântico Termo solidário Referência
Em resumo, haja vista o processo de construção de uma teoria, Aristóxeno preocupa-se em definir a sua área de reflexão, a episteme musical e as tarefas que devem ser realizadas para compreender determinado domínio, quer a Harmonia quer o Ritmo, delimitando os conceitos ao sistema musical. Em outras palavras, limita a episteme à área musical, ainda mais em se tratando de noções que operam de modo muito semelhante entre as artes.
3 EXPANSÃO DOS CONCEITOS GREGOS NA IDADE MÉDIA E NO RENASCIMENTO
O Modo que serviu de base prás especulações teoricas dos gregos foi o Dorico ou Doristi considerado nacional por excelencia. Pela união de mais 2 Tetracordes a êle, um no agudo outro no grave, e repetição no grave da nota mais aguda, obtiveram a serie completa dos 15 sons diatonicos da Citara. A êste Sistema de 15 sons, acrescido dum Si Bemol central de função modulante, chamaram de Sistema Teleion (Sistema Completo) e consideraram imutável. (ANDRADE, 1929, p. 23).
Esta seção procura descrever o fenômeno de preservação ou alteração do conteúdo semântico de conceitos da literatura musical, a partir de Aristóxeno, considerando a forte influência entre o músico grego e os teóricos da Idade Média e do Renascimento, principalmente. Toma-se como modelo o conceito primordial de sistema, sob acepção complexa, acompanhado do adjetivo, isto é, sempre σύστημα τέλειον (sýstēma téleion). Embora σύστημα seja um léxico comum da língua grega (como termo isolado), atribui-se a Aristóxeno o estabelecimento da palavra σύστημα sob uma acepção moderna, de teor neológico, constituindo um sintagma com o adjetivo τέλειον, traduzido como sistema máximo ou conjunto completo das notas musicais, principalmente. Note-se que, fora desta expressão musical ou mesmo da música, a palavra não se configurou como conceito filosófico nem científico na Antiguidade. Durante a Idade Média e no Renascimento, a expressão σύστημα τέλειον passou a ser citada em latim ainda exclusivamente no campo da teoria musical: absoluta, integra, et perfecta systemata. Henricus Glareanus (1547) foi, talvez, o primeiro a utilizar sua tradução literal: systema maximo. Já Vincenzo Galilei (1581)53 trabalha, em italiano, com a expressão systema massimo.
Mais tarde, Galileu Galilei (1632) adota sistema massimo, em italiano, para referir-se às cosmografias de Ptolomeu e Copérnico, valendo-se daquela mesma expressão dos estudos musicais de seu pai, Vincenzo, também seu professor, de quem recebeu forte influência intelectual, tendo com ele aprendido grego e latim. Galileu, tal como Kepler, apreciava metáforas musicais em sua filosofia e ciência – mesmo com a ressalva de que, ao contrário de Kepler, Galileu não levava a sério o mito lendário da Harmonia das Esferas. De qualquer modo, após Kepler e Galileu, a acepção de systema nas diversas áreas do conhecimento será invariavelmente a de um σύστημα τέλειον.
Já na literatura musical da Idade Média e do Renascimento, em específico – isto é, permanecendo em contexto teórico exclusivamente musical –, não se observaram outros usos do termo senão aquelas acepções assim estabelecidas:
a) restritas à semântica de escala musical;
b) restritas a subclassificações (systema immobile, systema maximum, systema integrum etc.);
c) junção de elementos em função (logo, sistemas na harmonia, no ritmo etc.);
d) potência de junção, no caso, de elementos constituintes, delimitada seja por esquemas, seja por elementos harmônicos, tais quais notas, intervalos, tons, que expressam funções específicas (logo, havendo a possibilidade, também, de assistemático, arrítmico, amelódico54 etc.).
Embora durante parte da Idade Média o conceito de systema tenha deixado de ser utilizado, esquecido e substituído no contexto da escolástica por expressões latinas como “doutrina”, “instituição” ou “arte” (no sentido de “modo” ou “maneira”), ainda houve consideráveis teóricos que se mantiveram próximos das fontes gregas, sob expressão máxima em Aristóxeno. Remigius Altisiodorensis, por exemplo, afirmava que
[…] tom é a extensão no sistema grego; já no latino, o intervalo entre uma corda e outra com uma extensão predeterminada. (Musica, 931, 3-4)55
Note-se a acepção em um sentido que poderíamos entender como sistema harmônico, ou seja, a escala musical como relação entre as notas. Dessa forma, entendem-se as notas como alturas musicais e o tom como sinônimo de voz ou corda, no contexto latino, tal qual no português brasileiro dos tempos coloniais.
Ainda em relação às notas, destaquem-se as suas conjunções, tendo como referência os intervalos musicais, sua tessitura e demais possibilidades de representações numéricas. Assim, em outras palavras, Remi d’Auxerres, seu nome gentílico, no contexto da Musica enchiriadis (século IX), foi quem fortemente empregou o conceito grego de systema em grafia latina, dando-lhe um sentido substancial e consubstancial à expressão grega. Remi d’Auxerres afirma ainda que
[…] o sistema é a amplitude da voz, ou seja, um intervalo grande, como consequência dos vários modos, isto é, do som. (Musica, 931, 3-4, grifo nosso).56
Essa acepção é consoante a outros teóricos, inclusive a Hucbaldus. Em textos de Hucbald de Saint-Amand, contemporâneo e colega de Remi d’Auxerres (lembrando aqui também os três intervalos fundamentais referidos desde Filolau):
Assim também o diapasão (oitava), como é entendido por todos, produz consonância de oitava em oitava e contém em seu sistema duas superiores (isto é, a quarta e a quinta). Em relação a isso, a oitava é referida por todos como sinfonia, pois os antigos não usavam mais que oito cordas. (Musica, X, 8).57
Mantém-se, nessa afirmação, a operação de intervalos mediada sempre pelos referenciais da 4ª, da 5ª e da 8ª, respectivamente, diatessaron, diapente e diapason, em equivalência direta grega.
Posteriormente, vários autores medievais e do Renascimento vão retomar as concepções de Remi d’Auxerres, citando-o diretamente em relação às práticas musicais a partir do conceito de systema. Em menção: Rudolf von St. Trond (1070-1138), Heinrich Eger von Kalkar (1328-1408), Johannes Ciconia (1335-1411), Franchino Gaffuri (1451- 1522), Georg Rhau (1488-1548), Sebald Heyden (1499-1561), Francisco Salinas (1513-1590), Girolamo Mei (1519-1594), Friedrich Beurhusius (metade do século XVI), Sethus Calvisius (1556-1615), entre outros, com destaque a Glareano (1488-1563).
Dessa forma, é possível arrolar os autores que, de forma mais direta, expressaram o conceito de systema a partir de Aristóxeno. No quadro a seguir, indicam-se os nomes desses estudiosos, seguidos do século de referência (aproximado), do título da obra (somente as primeiras palavras) e da quantidade de entradas localizadas (sem intenção exaustiva). Ainda, segue uma última coluna contendo observações genéricas, quer se trate mais de menção ao termo quer se trate de definição de conceito, à guisa de constatação. Ressalte-se que a varredura foi feita por meio do repositório de textos latinos intitulado Thesaurus Musicarum Latinarum, sitiado em ambiente virtual pela Indiana University Jacobs School of Music.
Desde Aristóxeno de Tarento e seus epígonos – a citar, Aristides Quintiliano, Cleônides e Ptolomeu, quem mais se valeu da expressão sýstema téleion –, o termo nunca se reduziu, filosoficamente, a um sistema exclusivo de notas e escalas musicais, mas manteve o vigor metafórico inicial, inferindo-se a presença, explícita ou implícita, de seu termo complementar, téleion, sob coerência de sentido que atribui a uma potencialidade máxima, passível de sistematicidade.
Nesse ponto, não seriam as notas, como parte dos elementos fundamentais da constituição harmônica, as únicas possibilidades de junção a configurar um sistema. Em outras palavras, não é exclusivamente a junção de notas o mecanismo responsável por produzir melodia, mas os diversos elementos combinantes, considerando, por exemplo, a δύναμις (dýnamis) ou a organização do δίεσις (díesis), respectivamente, a função ou funcionalidade da nota e a possibilidade de divisão do τόνος (tónos). Além dos elementos da harmonia, também o ῥυθμός (rhythmós) submete-se ao fenômeno do systema (análogo à harmonia), valendo-se de estruturas igualmente funcionáveis, passíveis de junções, em possibilidades mínimas e máximas. No caso do systema maximo (conferir Fig. 1), sua natureza é a continência exaustiva de elementos em que se insere o proslambanomenos (προσλαμβανομηνοσ), que é a nota mais grave em um sistema de escala, abaixo ao tetracorde inferior, mesmo em se tratando de uma não realização acústica.
A seguir, com a intenção de concluir esta seção, segue uma ilustração metafórica de nossa exposição teórico-musical, a partir de uma pintura atribuída ao flamengo Jan Van Eyck (1390-1441). Sem relação direta, apenas sugere-se, um pouco mais poeticamente e sem pretensão analítica, um diálogo entre pintura e música.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há desdobramentos teórico-musicais que vieram de uma percepção metafórica e inventiva (de cunho neológico e poiético) sobre o mundo, por exemplo, a relação entre notas musicais e planetas, sob perspectiva imagética. Esse viés inicialmente místico ganhou outros olhares que configuraram os sons e o céu especialmente a partir de números (por exemplo, com Pitágoras), percebendo, em tudo, razões. Com Aristóxeno, pela primeira vez, houve a consolidação de uma teoria musical de fato, embora houvesse tentativas anteriores, desde Laso de Hermíone. Assim, partindo dos estudos de Pitágoras, não deixando de avaliar nenhum antecessor e mantendo diálogo com os seus contemporâneos atenienses, o discípulo de Aristóteles fundamentou sua teoria harmônica e rítmica, em que estabeleceu neologismos musicais (por assim dizer, uma teoria neológica no sentido de atribuir a um léxico comum da língua grega uma acepção moderna, de teor filosófico, inventiva e complexa).
Outrossim, já não apenas sob orientação filológica, percebe-se um fenômeno epistemológico de transmissão de noções primordiais que nascem da música e, perpassando mais de vinte séculos, chegam às ciências, sob o olhar de astrônomos, tais quais Galileu, Kepler e Newton, em continuidade. Nesse movimento, os teóricos de música medievos e renascentistas foram fundamentais para a continuidade de conceitos de teoria musical, sob invenção grega, mas perpetuação latina.
Também, procurou-se compreender o modus faciendi de Aristóxeno, haja vista a construção teórica e seus desdobramentos nocionais. Vale incluir que, apesar de Cícero e de Vitrúvio Polião mencionarem Aristóxeno, a transposição do termo grego σύστημα para systema, em latim, foi posterior, já a partir dos séculos IV ou V d.C., fruto dos trabalhos dos mitógrafos da Antiguidade tardia, leitores fundamentais de Aristóxeno, como Marciano Capela e Fábio Fulgêncio.
Chamou-se atenção do fenômeno epistemológico de transposição conceitual entre áreas, no caso, da música às ciências, e o seu apagamento filosófico posterior, já na acepção geral mais recente, pós-século XVIII, desfeito o sintagma, sýstēma téleion. Assim, em pesquisas futuras, talvez seja possível esclarecer relações de sentido entre a música e as outras áreas, principalmente as ditas “ciências duras”.
Em outras palavras, dessas transposições epistemológicas mais recentes, parece haver o fortalecimento de um espírito antimetafórico, cada vez mais crescente nas ciências, que tenha desbotado o efeito lúdico primevo, que desejava ver nas notas musicais alguma semelhança com planetas e estrelas, num amálgama (coerente) do conhecimento.
Em palavras livres, não se trata de saber se o céu deixou de ser uma partitura infinita, mas de entender a perda do complemento téleion e do descrédito da área das Artes e da Filosofia quiçá por um positivismo descontrolado cujas consequências resultam no esquecimento da Música como campo do conhecimento. Ainda pior, surge, em tempos mais recentes, uma postura que não vê – ou porque não sabe ou porque não quer – a absoluta diferença entre a Música, sempre em sua solidariedade “poiética-prática-teórica”, e a Kulturindustrie (Indústria da Cultura), cuja produção kitsch58 já está totalmente desvinculada da ποίησις (poíēsis).
Por fim, em alusão aos hexâmetros 84 a 86 do Livro I das Metamorfoses de Ovídio, poeta da Roma antiga, pergunta-se: quando voltaremos a olhar, de fato, o céu?
Nessa passagem referente ao episódio da Antropogonia, a criação do homem, emblematicamente o poeta diferencia o homo dos outros animais pela capacidade de contemplação da natureza, ao mover a cabeça para o alto e olhar o céu. Esse ato é uma forma de respeito à φύσις (phýsis) da natureza (Ovídio era um epicurista), em contemplação theorica. O céu, as estrelas e os planetas, desse modo, guardariam – espécie de lastro do pensamento – as histórias e a música do mundo, em viva metáfora, unindo artes e ciências. E parece existir, não fortuitamente, um fenômeno literário que, de alguma maneira, tenha afixado os mitos nas enormes constelações.
Agradecimentos
Pesquisa realizada com apoio da FAPESP. Processo nº 2018/01418-2, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
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