Dossiê
Recepção: 30 Maio 2020
Aprovação: 13 Setembro 2020
Resumo: No campo de estudo do repertório infantil, sob um olhar histórico e teórico musical, o objetivo deste artigo é lançar luz sobre o universo brasileiro, com vistas a enunciar fundamentos pertinentes ao que sejam obras para, por e com crianças. A pesquisa é qualitativa, aplicada e exploratória, e seu procedimento predominante é estudo de caso, incluindo revisão bibliográfica, análise documental textual e análise musical. A peça O Navio Pirata (CARDOSO, 1981), contextualizada e analisada por meio da Ficha de Análise CDG (NUNES, 2012) é, aqui, considerada a mais representativa do assunto investigado, dentre as publicadas na coleção Música Brasileira para Coro Infantil, da Funarte (BRASIL, 1979). Os resultados evidenciaram nela componentes teórico-musicais abertos e indicações expressivas de caráter performático, subjacentes, inspiradoras, transgressoras e passíveis de ampliações por parte dos intérpretes. Conclui-se que peças musicais infantis precisam prever e acolher coautorias caleidoscópicas, por parte das crianças, em suas partituras.
Palavras-chave: Proposta Musicopedagógica Cante e Dance com a Gente (CDG), Repertório para Sala de Aula, Possibilidades Musicopedagógicas, Lindembergue Cardoso.
Abstract: In the field of studying the children's repertoire, under a historical and theoretical musical perspective, the objective of this article is to shed light on the Brazilian context, to enunciate pertinent foundations to what are works for, by and with children. This research work is qualitative, applied and exploratory, and its predominant procedure is a case study, including bibliographic review, textual and musical analysis. The piece O Navio Pirata (CARDOSO, 1981), whose contextualization and analysis were conducted by the CDG Analysis Model (NUNES, 2012), is here considered the most representative of the subject investigated, among those published in the collection Música Brasileira para Coro Infantil, from Funarte (BRASIL, 1979). The results showed open theoretical-musical components and expressive indications of performative character, which are underlying, inspiring, transgressive and susceptible to expansion, by the interpreters. In conclusion, children's musical pieces need to foresee and welcome kaleidoscopic co-authorship, by children, in their scores.
Keywords: CDG Music Pedagogical Approach, Repertoire for Classroom, Music-pedagogical possibilities, Lindembergue Cardoso.
Introdução
Este artigo, a despeito de seu caráter analítico com rigor teórico-musical, aproxima-se de um ensaio. Seu objetivo é lançar luz sobre o universo do repertório musical infantil brasileiro4, sem necessariamente fixar qualquer proposta inicial de formação vocal-instrumental, apesar de o foco estar sob uma peça cuja formação é para coro infantil a três vozes. Contudo, é preciso perguntar: repertório para crianças, com crianças ou por crianças? Sob certo ponto de vista, esses são conceitos distintos; sob outro, inseparáveis, pois a fala, aqui, é precisamente sobre esses três aspectos, em suas diversas combinações. Joga-se com essas imprecisões, propositadamente; pois é desse jogo que se demonstra ter sido composta a peça O Navio Pirata, de Lindembergue Cardoso – a obra que, no entender destes autores, mais bem representa o ideal de repertório para coro infantil, dentre as publicadas na Coleção Música Brasileira para Coro Infantil, da Fundação Nacional de Artes (Funarte)5. A metodologia segue os passos da Ficha de Análise CDG6 (NUNES, 2012). Quanto ao tipo, a pesquisa tem abordagem qualitativa, natureza aplicada, objetivos exploratórios, e seu procedimento predominante é o estudo de caso, incluindo revisão bibliográfica, análise documental textual e análise musical.
Discorre-se sobre uma partitura para crianças, cuja escrita se finaliza apenas após ter sido executada, colaborativamente, com crianças e, de modo propositivo, por crianças. Mas não são proposições quaisquer; são, sim, proposições decorrentes de impasses compositivos destinados a um coro infantil, conduzindo cada um de seus cantores a escolhas e proporcionando-lhes espaços para ações coautorais. Estamos nos referindo a um imaginário “ponto exato”, no qual potência e ato se encontram, na experiência de executar esta obra coral, que foi menção honrosa no I Concurso Nacional de Composição para Coro Infantil da Funarte (BRASIL, 1979). Por muitos, foi considerada inacessível, irrealizável, com crianças de verdade; discordamos, veementemente. Veremos mais sobre isso, na sequência; de momento, afirma-se, que este texto resulta de procedimentos científicos associados a coloridos inusitados, próprios aos processos criativos e de formação. Trata-se daquilo, que, no entendimento da Proposta Musicopedagógica7 CDG, doravante PropMpCDG, contém a essência absoluta da infância: um vir-a-ser já sendo e vice-versa. E se trata disso numa perspectiva multimodal, transdisciplinar e in- tegradora, sob contextos musicais.
O I Concurso Nacional de Composição para Coro Infantil da Funarte
As peças contempladas no edital do I Concurso Nacional de Composição para Coro Infantil (BRASIL, 1979), promovido pela Funarte, pouco foram executadas entre coros infantis. Desde seu lançamento, estas obras têm sido consideradas “difíceis” pelos regentes. Acredita-se, que o sejam, se lidas de modo fechado; o que não nos parece ser o caso. Entende-se, nesta pesquisa, que tais peças foram escritas para serem lidas de maneira aberta, o que as tornam receptivas e aptas a revelarem possibilidades musicopedagógicas, como veremos adiante. Assim, na solicitação ao CEDOC, Centro de Documentação e Informação da Funarte, referente às cópias do edital e às partituras contempladas, foram encontrados dois volumes, aqui, chamados de Edital 1A, com inscrições até 31 de outubro de 1979, e Edital 1B, com inscrições até 15 de dezembro de 1979. Esse segundo texto é, basicamente, o mesmo que o primeiro; contudo, contém acréscimo de informações. Portanto, o documento escolhido para análise, neste trabalho, é o Edital 1B, doravante Edital de Regulamento.
No texto de apresentação do Edital 1B, consta que o concurso visou a “[…] estimular a criação de obras para coro infantil e formar, gradativamente, um repertório básico brasileiro nesse gênero, valorizando assim um repertório ainda insuficiente de nossa música” (BRASIL, 1979). Há preocupação em fomentar, gradualmente, a criação de um repertório nacional para coro infantil, por parte da Funarte, dado o número exíguo de composições voltadas a esse público, até aquele momento. No edital, constam três itens referentes: 1) à obra; 2) à inscrição; e, 3) aos julgamentos e prêmios. Nesta pesquisa, apenas os itens 1 e 3 serão discutidos. O primeiro item contém cinco subitens, conforme quadro a seguir.
Chama atenção o item 1.4: “A obra deverá utilizar textos de autores brasileiros ou do folclore nacional”, abrindo a possibilidade de que tais textos sejam, além de folclóricos, provenientes tanto de poetas consagrados da língua nacional, como também de autoria dos próprios compositores. No repertório candidatado ao concurso, há ambas opções; mas, na obra analisada neste artigo, o texto é próprio. Além dessa coincidência com os princípios compositivos da PropMpCDG, há outras, tais como: a não previsão explícita do uso de instrumentos e a priorização do uso da voz; a duração relativamente curta das peças; o ineditismo associado à fuga do meio comercial; e o aproveitamento de sons onomatopaicos e outros recursos vocais expressivos (o que, de certa forma, conflita com o rigor da exigência referente à extensão vocal). No Edital de Divulgação dos Resultados, publicado em 27 de dezembro de 1979 (BRASIL, 1979), constam 82 obras apresentadas, sendo 13 delas classificadas como finalíssimas, conforme Quadro 2.
Os números da segunda coluna não indicam sua classificação, no certame; apenas serviram de referência à análise, resultando em uma lista de aspectos musicais que identificam abertura às intervenções infantis, conforme visto no Quadro 2. A classificação foi dividida em dois primeiros, dois segundos e um terceiro prêmios, mais oito de menção honrosa. Como o edital permitiu a participação com o envio de mais de uma obra, dois dos compositores acima foram contemplados mais de uma vez: Korenchendler, com três obras, e Murilo Santos, com duas. Segundo o Edital 1B, item 3.1, o “julgamento será feito por uma comissão constituída de cinco membros, dentre compositores, professores ou intérpretes de reconhecida reputação […] designados pelo diretor do INM”8 (BRASIL, 1979, p.2). No Edital de Divulgação dos Resultados, constam os nomes da comissão julgadora: Aylton Escobar, Cleofe Person de Mattos, Edino Krieger, Elza Lakschevitz e Ricardo Tacuchian (BRASIL, 1979, p.1).
Além das treze obras contempladas, dezessete outras, também para coro infantil a três vozes, foram publicadas no âmbito da Funarte, na mesma época, conforme lista de títulos e compositores encontrada na contracapa das edições das obras premiadas.
Especula-se, que as obras do Quadro 3 tenham sido submetidas ao edital, pois seus compositores estavam ativos naquele período, além de as peças terem sido escritas para a mesma formação, coro infantil a três vozes.11
As obras premiadas, inclusive as com menção honrosa, serão editadas pelo PROMEMUS (Projeto Memória Musical Brasileira – INM/FUNARTE), e serão executadas publicamente através dos eventos do Programa Informar para Formar (Série Didática de Concertos) do INM/FUNARTE. (BRASIL, 1979).
Registra-se, que há uma série de outras obras publicadas para coro, no âmbito da Funarte12, em distintas coleções de partituras, provavelmente, originadas de encomendas ou compilações. Os projetos encontrados foram: Arranjos Corais da Música Folclórica Brasileira (para coro misto a capella); Concurso Nacional Funarte de Canto Coral13; Música Brasileira para Coro Infantil; Música Nova do Brasil; e Uma Canção de Natal – todas publicadas recentemente no âmbito do Projeto Música Coral do Brasil. Além desses, mais dois projetos, intitulados Música Brasileira para Coro Juvenil e Música Brasileira para Vozes Infantis.
Com base na observação global sobre tais partituras, foram identificadas algumas características compositivas que ensejaram pesquisas, já em andamento. Essas pesquisas têm autoria de pesquisadores do Grupo de Pesquisa PropMpCDG (Diretório CNPq, 1999 - atual), junto ao Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal da Bahia, como um desdobramento que se impôs ao presente estudo, tais como: conceito e uso da Temática Infantil (Canto Ciranda ao Chão, de Aylton Escobar; e O Morcego, de Nestor de H. Cavalcanti – para coro misto a quatro vozes); propostas de improvisação (Chromaphoneticos e Forrobodó da Saparia, de Lindembergue Cardoso – para coro misto a quatro vozes); desenvolvimento da ideia de obra aberta (Tema e Variações de Ser, Daniel Reginato; Trigo de Joio, de Fernando Ariani – para coro misto a três vozes); obras motivadoras da criatividade infantil (A História do Natal Contada pelas Crianças, de Mirian da Rocha Pitta; e Canto de Natal, de Ronaldo Miranda); etc.
Aspectos musicais que identificam abertura às intervenções infantis
No intuito de revelar os elementos expressivos do repertório das peças contempladas, no referido edital, foram prospectados aspectos musicais que identificassem abertura às intervenções infantis. É importante afirmarmos, aqui, que todas as obras contempladas no referido edital foram analisadas, globalmente, para extração dessa lista, à exceção de O Navio Pirata, de Lindembergue (CARDOSO, 1981), que foi trabalhada em detalhes. Justificamos o aprofundamento sobre essa peça, porque foi a que mais apresentou itens de análise, na perspectiva global. Tal constatação veio da observação comparativa entre as 13 peças, chegando-se à conclusão de não ser necessário, adentrarmos mais profundamente em todas, posto ser O Navio Pirata, suficientemente, representativa das demais. Em comum a todas elas, e particularmente relevante, aqui, constatou-se a necessidade de traduzir as propostas dos compositores e as práticas dos regentes e coros, que as executariam.
Entendeu-se, que os próprios compositores [contemplados no referido edital], ainda que reconhecidamente expoentes de uma geração, nunca realizaram as peças com coros infantis reais e tinham falta de visão prática sobre coros infantis, seus comportamentos e necessidades. Contudo, as propostas composicionais foram geniais e, oportunamente, se poderá discutir metodologias de trabalho que lhe darão aporte ao uso real destas peças em sala de aula. (UFRGS, 2009, RepMusPed, UE_14, grifo nosso).
A partir dos destaques acima, é necessário fazermos duas considerações importantes. A primeira delas diz respeito à “falta de visão prática sobre coros infantis”, por parte dos compositores contemplados. De fato, no consenso da época, predominou o entendimento de que tais peças, sendo “difíceis”, seriam inapropriadas aos grupos a que se destinavam, por distanciamento entre compositores e grupos reais. No entanto, um exemplo desses compositores, que está em nosso foco de estudo, reconhecidamente era expoente de sua geração, tinha visão prática sobre coros infantis, sim, e sabia reconhecer devidamente os “comportamentos e necessidades” artísticas do público infantil. Estamos falando de Lindembergue Cardoso.
Lindembergue Cardoso, desenvolveu um trabalho de educação musical inovador com crianças, na cidade de Salvador, na Bahia, a partir de 1970, alinhando o seu pensamento de compositor (membro-fundador do Grupo de Compositores da Bahia, idealizado por Widmer) ao de pedagogo (integrado aos princípios metodológicos do movimento oficina), tendo criado um método de educação musical através das propostas de exploração de sons, improvisação, criação e canto coral. (ROSA, 2005, p.142).
No Método de Educação Musical de Lindembergue Cardoso ([1972] 2006), encontramos roteiros e composições que registram suas primeiras peças autorais para coros infantis a cappella (ROSA, 2005). São elas: Cânone (para 4 grupos); Cânone (para 6 grupos); A Brincadeira (peça para vários grupos); O Parque (peça para vozes), que é uma suíte constituída de cinco peças – Sombrinha (4 grupos), Roda Gigante (de 1 a 8 grupos), Montanha Russa (5 grupos), Tobogã (5 grupos) e Escorregadeira (de 1 a N grupos); e, por fim Ave Maria (para solistas e coro). Nessas peças, podemos verificar o uso correto da prosódia em música, a criação de coreografias inteligíveis, em consonância aos textos, e a explicitação de seu processo de composição. Além disso, o Método de Lindembergue trata, na realidade, de
[…] uma introdução à criatividade da criança através das diferentes maneiras de explorar os sons ou, ainda, de procedimentos metodológicos para estimular o gosto pela exploração, manipulação e organização dos sons, bem como o de propiciar e desenvolver a sensibilidade musical, criatividade e expressividade. (ROSA, 2005, p.145).
Então, possivelmente, o problema não esteve tanto nas propostas dos compositores; antes, na capacidade de interpretação de suas propostas, por parte de regentes e professores. E este é o primeiro ponto que nos motiva. A segunda consideração diz respeito às “propostas composicionais geniais” (UFRGS, 2009), impressas nesse repertório. Aqui, devemos concordar e reiterar sua importância na História da Educação e Composição Musical brasileira, porque foram justamente tais “propostas geniais” que alavancaram a pesquisa, levando-nos aos seguintes questionamentos: como o repertório escolar infantil (este e outros) vem sendo inserido na Escola de Educação Básica? Quais são suas características e seus potenciais artísticos e pedagógicos? Que ferramentas de análise e composição são empregadas para aplicação da Música Contemporânea, em salas de aula? De que modo tudo isso influencia a prática de compor e ensinar no âmbito da formação musical? E mais, as partituras publicadas e escritas de modo bastante convencional podem representar o todo do mundo infantil? E, se não, como se acredita e se procurará demonstrar, o que mais se esconde por trás daquilo, que as partituras evidenciam? Mais uma vez, justifica-se, então, a relevância de um estudo como este, ao se propor a intermediar práticas compositivas e de performance.
Para o encontro de respostas aos questionamentos acima, foi necessário aplicar uma análise das peças, fundamentada na Ficha CDG (NUNES, 2012) – um material desenvolvido para análise e composição de canções –, extraindo delas seus potenciais de desdobramentos musicopedagógicos. Desta forma, foi possível evidenciar aspectos musicais em comum, identificando itens de abertura às intervenções infantis, nas obras desse repertório pioneiro e ousado para sua época, posto que foram criadas, especialmente, para um mesmo público genuíno, até então ainda pouco reconhecido. Os aspectos musicais que identificam abertura às intervenções infantis foram os seguintes (Quadro 4):
Assim, foram identificados 63 itens distintos, correspondentes às tomadas de decisões compositivas, e, dentre as 13 obras contempladas, a peça O Navio Pirata, de Lindembergue Cardoso, foi a que preencheu mais itens de análise, perfazendo um total de 50 deles. Por isso, uma análise mais atenta sobre ela se impôs como suficientemente representativa de todas. Destaca-se, que todos esses aspectos são também referidos para a criação de (Micro)Canções CDG e outras peças do Repertório CDG (NUNES et al., 2014). A principal razão para a escolha de O Navio Pirata, na realização de uma análise do seu potencial artístico e pedagógico, é exatamente esta: Lindembergue sintetiza e representa as ações e os ideais da PropMpCDG, oportunizando-nos demonstrar, em uma única obra, a essência do que se tem pensado e buscado sistematizar, no Processo de Composição de (Micro)Canções CDG. A partir daí, pode-se pensar na elaboração de um roteiro para o olhar docente, ou seja, um roteiro das percepções docentes sobre os atos de compor para, com e por crianças. Composição essa que pode ser articulada, tanto na perspectiva do compositor primeiro, que tem a tarefa de preparar uma obra musical concentrada em possibilidades musicopedagógicas, como na do professor que compõem e cuja tarefa é conseguir perceber o potencial criador; ou seja, o potencial catalisador dos processos criativos em aulas de Música, a partir de uma obra original apresentada.
Exemplos disso são alguns trabalhos de compositores que atuaram em sala de aula, compondo com os alunos, como Murray Schafer (1933), John Paynter (1931-2010), George Self (1921-1967) e Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005). O grande esforço, portanto, consiste na prospecção, identificação e coleta de aspectos musicopedagógicos já presentes, em obras disponíveis; contudo, ainda escondidos aos olhos e ouvidos, que só um professor ou regente, com espírito pesquisador, pode revelar. O esforço deste artigo está em enunciar, de modo mais econômico, ágil e óbvio possível, aquilo que um professor, sensibilizado e também preparado por meio de processos criativos, deve ser capaz de perceber e ter coragem de explorar, em uma obra dada, para ser executada por seu grupo específico de alunos. E isso é fundamental, principalmente, para a realização de obras de arte contemporâneas dirigidas às crianças.
Dentre as obras de Lindembergue Cardoso destinadas ao público infantil e infantojuvenil, publicadas fora do contexto da Funarte, citamos mais algumas, também consideradas representativas, sugerindo-as para estudos semelhantes a este:
• Suíte Infantil, para orquestra e coral infantojuvenil (1986);
• História do Arco da Velha, para coro infantil, piano, narrador criança e luz opcional (1986);
• Apresentação de Instrumentos, uma citação de músicas de vários autores populares, para orquestra sinfônica e coral infantojuvenil (1986);
• 4 Momentos da Infância, para orquestra, narrador e coro infantil (1984);
• Caleidoscópio, obra didática para orquestra de cordas e dedicada à “Orquestrinha” (Orquestra Infantojuvenil da UFBA) (NOGUEIRA, 2009, p.47) (1983);
• Fla π – Estória em Quadrinhos, para flauta e piano (1982);14
• Missa do Descobrimento, para coro infantil, piano e trombetas de tubo plástico (1981);
• Trio nº 3 para iniciantes de violino, violoncelo e pianista profissional (1975).
Além dessa produção, Lindembergue também fez arranjos de música popular, destinados a esse público, e compôs uma ópera infantil, em oito cenas, denominada A Lenda do Bicho Turuna, para solistas (uma voz feminina e uma voz masculina), duas flautas doce soprano, tambor, piano e coral infantil (uníssono) (1982)15. Segundo Nogueira (2009), a obra original é de 1974, e foi escrita para performance de adultos (solistas, coro e orquestra), porém, em seu subtítulo, consta “folc-ópera infantil baseada numa lenda nordestina”.
Na “versão infantil” (1982), consta uma anotação ao final da partitura, feita pelo compositor, em relação à instrumentação: “Qualquer elemento que queiram acrescentar, não deixem de fazê-lo” (CARDOSO apud NOGUEIRA, 2009, p.36), explicitando, em palavras, o caráter aberto de sua obra. Não se investigou, em profundidade, para se ter certeza sobre o que ele quis dizer; porém, dentro do que já foi estudado em sua obra, é possível deduzir que a indicação vá além da simples permissão para acréscimo ou da mera substituição de um instrumento por outro; ou seja, tudo indica que, aqui, o compositor abre espaço para o(s) intérprete(s) realizar(em) adaptações em sua obra, atendendo às necessidades de cada interpretação. A partitura da versão original, de 1974, além de conter indicações, descrevendo o conteúdo, o ambiente de cada cena, o resumo, as personagens, as indumentárias, a orquestração e o libreto, traz também no rodapé da página 1 o seguinte dizer: “Para crianças, não por crianças” (CARDOSO apud NOGUEIRA, 2009, p.57), afirmando, destarte, o público destinatário e indicando sensibilidade para dois tipos de obras. Assim, A Lenda do Bicho Turuna é produção Poiética, enquanto obra aberta, se fazendo no decurso que separa uma versão da outra, por primeiro como espaço de fruir e, por segundo, como espaço de fruir-criar, “pro-duzir”, no sentido de levar algo do não ser ao ser (AGAMBEN, 2013), se fazendo na presença.
Poiética (de poiëtique), [é o] termo cunhado por Paul Valéry […] para estudar a gênese de um poema. René Passeron ampliou a significação para o conjunto de estudos que tratam da criação na instauração da obra, notadamente da obra de arte. […] O objeto da Poiética não se constituiu pelo conjunto de efeitos de uma obra percebida, não é a obra acabada, nem a obra por fazer; é a obra se fazendo. (REY, 2002, p.134, grifo nosso).
Sob tais visões, propõe-se uma perspectiva de produção na presença, discorrendo-se sobre O Navio Pirata, como exemplo e passo esclarecedor do que se disse até aqui e ampliando-se subsídios pertinentes à fundamentação dos processos compositivos da PropMpCDG.
O Navio Pirata
Como já explicitado, dentre as obras contempladas no I Concurso Nacional de Composição para Coro Infantil, da Funarte (BRASIL, 1979), O Navio Pirata foi uma das oito peças que recebeu menção honrosa. Sua estreia oficial ocorreu em 1986, na Sala Cecília Meireles, Rio de Janeiro, pelo Coro Infantil do Teatro Municipal, sob regência de Elza Lakschevitz (NOGUEIRA, 2009, p.29)16. Também como vimos, O Navio Pirata é a que mais se aproxima da possibilidade de fornecer subsídios ao cumprimento dos objetivos elencados nesta pesquisa, porque contém a maioria dos itens de análise dos materiais levantados na lista de aspectos musicais que identificam abertura às intervenções infantis. A partir daqui, realizaremos uma análise dos materiais musicais e cênicos da peça, com base em dois referenciais, além é claro, de sua partitura e dos elementos do Quadro 4, quais sejam: o trabalho desenvolvido pela professora Dra. Jaqueline Câmara Leite (quando aluna do curso de Doutorado em Música, na Universidade Federal da Bahia), no âmbito da disciplina Análise Composicional I, ministrada pelo professor Dr. Wellington Gomes (UFBA, 2016); e a Partitura de Espetáculo de O Navio Pirata, elaborada por integrantes do Grupo de Pesquisa PropMpCDG, sob orientação da professora Dra. Helena de Souza Nunes (NUNES et al., 2018b), para performance da peça, realizada em formato Recital Musicopedagógico, juntamente com o público adulto participante do Encontro Regional Nordeste da ABEM, na Universidade Católica de Salvador (UCSAL), em 20 de setembro de 2018 (NUNES et al., 2018a). Inicia-se por seu texto:
Devido à sua extensão, o texto pode ser considerado um micropoema que, a depender de um estudo de sua documentação poiética, comprovando tal conjectura, já se configuraria como uma microcanção em potencial. É o primeiro argumento para se afirmar, nesta pesquisa, que O Navio Pirata é uma microcanção ampliada, independentemente de se ter conhecimento da eventual existência de uma prévia leadsheet musicalmente concentrada, como seria sua norma compositiva (NUNES, 2015). Em relação à duração da peça, o compositor a estimou em três minutos e cinquenta segundos, respeitando o regulamento expresso em Quadro 1, no tópico anterior. Em nota referente à peça, Lindembergue afirma:
Tentei criar um clima que ficasse bem próximo da criança. Para isso, usei elementos do seu mundo, quais sejam: a estorinha de um navio com a sua tripulação; a vassoura (grumete), o mestre (capitão) e os outros marujos. O tema, que tem características folclóricas, e os sons onomatopaicos que, de certo modo fazem parte do seu dia-a-dia. Por certo, pensei em compor uma peça, como se fosse um desenho animado. (CARDOSO, 1981).
Considerando-a como um “desenho animado”, ou um minimusical, a peça possui personagens solistas, conforme expressos em partitura: duas figuras protagonistas – o Vassoura (grumete) e o Mestre (capitão) – e várias personagens coadjuvantes, como os diferentes Marujos (cada um pode ter características distintas dos demais, nos gestos, figurinos, adereços, por exemplo), e mais os imaginários e supostos Piratas do “navio inimigo a bombordo”, ambas coletivas. A Partitura de Espetáculo (NUNES et al., 2018b), nos fornece uma ideia de como poderia ser conduzido o processo de ações corporais e cênicas, assim como quem conduziria este processo, no caso, o professor e os estudantes – estes últimos assumindo as demais personagens, em itinerância de papéis-liderança. Nessa partitura, a do espetáculo, foram identificados mais dois intérpretes solistas, entendidos aqui como personagens situadas entre a real presença no palco e nos bastidores, as quais, sem exposição exagerada, podem ser consideradas figuras estruturais, destinadas a garantir o fluxo dos acontecimentos. São elas: o Afinador e o Cestinha.
A música está distribuída em 95 compassos e três cenas (NUNES et al., 2018b), sendo que, em cada uma delas, há três ações principais, conforme esquema a seguir.
CENA 1
Sugere-se, que, ao contrário do que comumente se espera e está fundamentado em uma análise dos materiais musicais e cênicos de uma peça, O Navio Pirata não inicie no seu compasso 1. Sendo compreendida como um minimusical, posto ser cantada e encenada, entende-se ser necessário iniciá-la por uma etapa de preparação, aqui chamada de Ambientação, na qual as personagens se dispõem no palco de acordo com ações explícitas e implícitas, previstas para o transcorrer da obra. Na Ação 1A (Ambientação), as personagens ou estão fora de cena ou estão “congeladas” em cena. Embora “as cortinas” se abram e as luzes se acendam, deixando o público conhecer uma cena de visão estacionária, há dois aspectos a considerar: 1) a cena está construída pelos artistas-crianças, porque foi construída antes de tudo começar para o público; e 2) a despeito de visualmente parada, a cena pode promover a contação de uma história, por meio de movimentos sutis particulares e informações sonoras, integrando a todos em um ambiente marinho. Assim, algumas crianças, no palco, nos bastidores e/ou misturadas ao público, podem produzir efeitos sonoplásticos, como vento, tempestades, chuvas, mar etc. Inclusive, pode-se usar esse momento como um levare, explorando a paisagem sonora implícita, mas efetivamente circundante. Essa ambientação pode não somente aparecer na parte inicial, mas durante todo o percurso da peça, explorando ainda a Gestalt da obra e equilibrando partes musicais e cênicas de figura ou de fundo, posto que o navio continuará navegando, durante toda a estorinha que está sendo contada.
Em seguida, na Ação 1B (Diálogo falado), com a sonoplastia de fundo (ou não), dá-se início ao diálogo previsto em partitura, entrando em cena os dois protagonistas, cujo conflito estabelecido é responsável por trazer unidade à obra: o Mestre e o Vassou- ra. O diálogo deve explorar a fala expressiva, como em uma cena musical, incluindo as indicações de recursos vocais, escritas por Lindembergue:
1º menino – Ô... VASSÔURA! (gritado)
2º menino – SENHOR, MESTRE! (gritado) 1º menino – JÁ LAVOU O NAVIO?
2º menino – NÃO, SENHOR... (humildemente)
1º menino – ENTÃO, VÁ PRA PRANCHA! (imperativo, com vigor)
Obviamente, tal recurso vocal exige disposição cênica e postura emocional, mas evidencia relações e caracteriza as personagens, estabelecendo o conflito que, como dito, é o que garante unidade ao todo da peça. Compreender isso pode ser utilizado como uma experiência de tolerância e vida em sociedade. No campo da performance musical, evidencia-se o comprometimento de todos, mesmo que temporariamente discordantes e/ou sem participação de relevância maior, com uma obra completa, autossuficiente e bela. Antes de cantar a primeira nota da partitura, é prevista a ação de um Afinador, que “deve ser feita por um dos meninos” (CARDOSO, 1981), utilizando-se de um diapasão. Na Partitura de Espetáculo aqui referida (NUNES et al., 2018b), o Grupo de Pesquisa PropMpCDG decide colocar o piano para cumprir tal função. Mais adiante, esse instrumento também pode ser incluído, a critério do regente, como apoio ao canto e como auxiliar na manutenção do fluxo da peça. Logo após fazer soar a nota Lá, o pianista junta-se ao grupo de marujos, acompanhando o canto. Essa foi uma possibilidade, dentre muitas outras, a ser explorada de acordo com o contexto e os instrumentos disponíveis em sala de aula. Importantes, aqui, são pelo menos dois aspectos: o papel de uma afinação universal, incluindo-se aí a possibilidade de integração com outras disciplinas (além da Música, também Física e História, por exemplo); e o valor de uma liderança genuína, a qual, sem ter um papel de destaque em cena, é quem, discretamente, oferece o referencial para organização, pacificação e integração do conjunto, à medida que lhe fornece o referencial de afinação, para todos.
Os diálogos, agora cantados e numa releitura irônica do que foi falado, dão início à Ação 1C (Diálogo cantando). Eles surgem do coro, a partir de um humor, anteriormente, estimulado pelo capitão: “Ô vassoura! Já lavou o navio[?]” (c. 1-4), em Lá uníssono, nota dada pelo Afinador, num gesto de apoio e reforço à afinação do conjunto. Logo após, nos compassos 4 a 14, ocorrem novas formas de expressão para o mesmo texto, empregado em diálogo 1B, sendo entrecortadas por momentos de voz falada, inaugurando humores distintos. Subentende-se, que a nota Lá, utilizada nos compassos iniciais (c 1-4), foi escolhida para coincidir com a mesma nota do diapasão, que vibra na frequência de 440 hertz (Lá3), sem se preocupar com a transposição para outra altura, posto que tal tarefa “deve ser feita por um dos meninos”, como previsto por Cardoso (1981, p.1). A frase inicial (c. 1-4), caracterizada como chamamento, a partir dessa nota Lá, é um motivo recorrente na peça, como podemos notar nas variações de alturas, resumidas no Ex. 2, a seguir. Tal decisão expressa a inclusão de todos, facilitando a qualquer aprendiz compreender uma das funções do maestro, dando-se conta do tanto que há, nela, para ser aprendido.
Entre colchetes, estão os números dos compassos correspondentes. As frases possuem, praticamente, o mesmo desenho melódico: descendente, ascendente, descendente, em graus conjuntos; e ascendente e descendente, realizado em saltos de mesmo intervalo (exceto nos c. 1-4). Interessante notar, que o intervalo entre a nota inicial e a nota final é sempre de uma terça, à exceção dos c. 5-11 (5ª justa). Em média, a frase é realizada no espaço de três compassos, exceto nos compassos iniciais (c. 1-4 e 5-11), onde a interjeição “Ô” é destacada, com durações maiores do que nos demais inícios da frase, como se fosse um alerta do Capitão para a ação que se tornará recorrente na peça. A frase é repetida com a mesma pontuação: primeiro, exclamação e depois, interrogação (“Ô vassoura! Já lavou o navio?”), exceto nos compassos iniciais (1-4). Tal gesto reforça o que já afirmamos em estudos anteriores (NUNES, 2015), isto é, a depender da frase, uma pergunta resultaria em uma inflexão vocal direcionada do agudo ao grave, o que é o caso dessas frases. Além disso, uma mesma pontuação pode gerar distintas construções rítmicas e melódicas, de acordo com sutilezas da intenção da mensagem. É assim, portanto, que texto e música se completam, explicitam-se. Por fim, observando o todo do Ex. 2, é possível constatar que a recorrência da frase é interrompida apenas em três momentos: c.12-21 (entre as ações 1C e 2A); c. 28-34 (entre as ações 2A e 2B); e c. 61-88 (entre as ações 2C e 3B); ou seja, a primeira e última intervenções estão em espaço de transição entre cenas, delimitadas no Ex. 2 por barras duplas. Em síntese, temos, aí, um dos reforços à hipótese de que a frase em tela seja resquício de uma microcanção, fruto da Cena 1 e, mais especificamente, o material dos compassos 5 a 12 (partes C a G, do Exemplo 1), que usa na íntegra o micropoema.
Na Cena 1, em Sol Maior, constam respostas cantadas em coro ao Capitão – “Senhor! Mestre!” (parte D) e “Não, senhor!” (parte F). Tais ações são atribuídas ao Grumete e aos Marujos e, em ambas intervenções, as cadências são deceptivas (acordes de Ré Maior e Mi menor), revelando um jogo de submissão dos Marujos ao Capitão versus contrariedade, reforçado pela dinâmica de que esses procuram sobrepujar sua autoridade, cantando em fortissimo. Conforme bem pontua Leite (2016), a dinâmica de intensidade, nesse trecho, revela que o Grumete, unido ao restante da tripulação, é mais forte que o Capitão: mesmo sendo claramente intimidado ao recuar em piano (E), recupera uma “autoridade” no crescendo até o forte do compasso seguinte. A percussão corporal (H), palmas e pés – gestos representativos de aprovação, que remetem ao universo militar – expressam submissão da tripulação, resolvendo, pelo menos tempora- riamente, o impasse. Tais intervenções de palmas e pés sugerem a possibilidade de explorar movimentos corporais cênicos, ora espontâneos, ora intencionais; mas sempre disciplinados, coerentes, harmonizados e, o mais importante, representando códigos de intenções expressivas apropriadas ao que se passa em cena. Segue-se uma fermata que pontua o fim da Cena 1.
CENA 2
Iniciando em anacruse para o compasso 15 e se estendendo até o compasso 71, a Cena 2 é formada por três novas ações: 2A (Ex. 3 e 4); 2B (Ex. 5); e 2C (Ex. 6). As duas primeiras ações se passam sob o ambiente harmônico de Fá Maior. Na primeira ação, a frase “vá pra prancha” (Ex. 3), em divisi, é repetida pelo coro que canta o acorde de Fá Maior. Essa ação dá continuidade à cena anterior (Ex. 1), remetendo à ideia de que os Marujos, submissos, estão contrariados, mas também hipnotizados com a ordem do Capitão, repetindo-a incessantemente (LEITE, 2016). Por outro lado, essa submissão já pode conter algum deboche, por exemplo, o que resultaria em expressões faciais pertinentes e em gestos feitos de modo disfarçado, ridicularizando e provocando o Capitão e/ou o Vassoura. Cada opção, a ser feita pelo grupo, inclusive combinando-as, pode conduzir a caminhos distintos e muito divertidos. Esse seria um modo de espichar a cena, dando mais espaço às expressões dos coadjuvantes.
A Ação 2A (Divertimento dos Marujos) é dividida em dois momentos: sob as díades em Fá7M (c. 15-20), os marujos dão início a um deboche decidido, que introduz o segundo momento (c. 20-29), correspondente ao diálogo imaginado e representado por eles, os Marujos, sobrepondo-se à imagem e aos gestos implícitos das personagens protagonistas, o Mestre e o Vassoura. Na leitura de Nunes et al. (2018b), o Mestre está “fora de cena”, mas o Vassoura se movimenta por toda ela, “atordoado” com o bullying dos Marujos. Então, em 2A, os Marujos se divertem com o conflito, associando-se e/ou não ao Vassoura, respondendo por ele. Como o compositor não deixa claro se os Marujos imitam o Capitão por deboche ou por opressão compartilhada, fica tal decisão a cargo dos intérpretes. Neste momento, pode-se trazer ao debate as Formas e seus Conteúdos, as noções filosóficas de verdade, de civilidade e de conduta gentil, além de um rico jogo de expressões, mais uma vez, conectando-se disciplinas.
Na Ação 2B (Estrutura Imitativa), compassos 30 a 50, as três vozes (ou os três grupos de marujos) participam, em jogo imitativo, utilizando-se da mesma estrutura rítmico-melódica e de intensidade, configurando um gesto similar ao acorde inicial da Cena 2 (c. 15-20). Primeiramente, a nota de entrada de cada voz resulta no acorde de Fá Maior (c. 29-31), sob o movimento ascendente de notas, iniciando em Fá (voz 3), Lá (voz 2) e Dó (voz 1), uma solução pedagógica para o ensino de um stretto de fuga, por exemplo. Gesto semelhante ocorre entre os compassos 35 a 37, sob as notas iniciais de Lá (voz 3), Dó (voz 2) e Mi (voz 1), respectivamente e Lá (voz 3), Mi (voz 1) e Dó (voz 2), entre os compassos 41-42. A partir do compasso 36, há uma sequência de “choques” de 2ª maior, que se repetem em quatro ciclos mais ou menos regulares (Sib-Dó, Sib-Dó, Ré-Mi, Sol-Lá, Sol-Lá), até o compasso 43.
Aqui, também, várias formas de expressão podem ser exploradas: de deboche (os Marujos caçoam do Vassoura), de bajulação (os Marujos tentam agradar ao Capitão, aderindo em apoio à sua ordem), de alienação por meio de ações impensadas, de lamento e comentários entre si, e outras. Todos esses climas de acontecimentos dentro do navio podem ser decididos pelos executantes, tanto enfatizando um desses, como explorando simultaneidades, que podem variar de apresentação para apresentação, renovando as possibilidades de concentração e interesse pela tarefa e aprimorando a escuta. Tais variações podem servir como temas de debate e reflexão que perpassam a sala de aula e qualificam a interpretação: os Marujos são malvados ou bons? Eles são amigos ou inimigos do Vassoura, respectivamente, do Mestre? Eles são donos de suas decisões? Essas e outras perguntas, ao serem respondidas, vão definindo escolhas interpretativas e promovendo reflexões de caráter socioafetivo, disciplinares e até político. Em circunstâncias como essa, a Música exerce seu papel de “despertar o tempo”, referido por Thomas Mann ([1924] 2016) e, mais recentemente, por Daniel Barenboim (2009), promovendo e esclarecendo seus vínculos com a vida real do cotidiano escolar, comunitário, familiar e até mesmo individual dos educandos. Afinal, ao pensar sobre o assunto e a forma de expressá-lo, cada executante precisará ter respondido, para si mesmo, que tipo de marujo entende que é e deseja ou precisa ser, quando cada escolha será necessária, porque se decidirá por uma ou por outra alternativa e o que é fundamental para o professor de Música: como ele codificará e decodificará todas essas ideias em sons e silêncios, em performances e escutas... musicais. Num momento em que as crianças tinham menos voz do que hoje e que o país estava afundado em uma ditadura, essas respostas parecem ter sido provocações existenciais, sustentadas por processos criativos e preocupações pedagógicas, em Música. Ainda valem, hoje? O que se passa a nosso redor, que atualiza, revela sua importância ou torna desnecessária, uma obra como essa?
O gesto de transição da Ação 2B para a Ação 2C ocorre entre os compassos 46 a 49. Nesse trecho, é cantado o texto “Ô vassoura! Já lavou o navio?”, encerrando a ação imitativa, em blocos de acordes, intensidade fortissimo, e pontuando-a com uma batida de pé dos Marujos (c. 50). Aqui, o compositor se utiliza novamente de gestos do ambiente militar, talvez até batendo os calcanhares, acompanhado do gesto com as mãos, em continência. Segundo Leite (2016, p.11), “esse momento deixa clara a autoridade do Capitão e sua influência sobre os marujos que, mediante as ameaças, imitam sua fala e atitude, [possivelmente] na esperança de, um dia, assumirem sua posição”. Por outro lado, uma eventual e surpreendente reação autoritária, por parte dos Marujos, também pode esconder reações de oposição... Tal contrariedade pode ser combinada pelos intérpretes e gerar debates. Obviamente, as escolhas musicais decorrentes serão distintas, diante de uma ou outra decisão, cabendo ao professor formatá-las, adequada e coerentemente, por meio de elementos da linguagem musical.
Na terceira e última ação da Cena 2, Ação 2C (Pergunta e Resposta), compassos 50 a 71, há um retorno ao ambiente harmônico de Sol Maior, ocorrendo um novo debate, agora desenvolvido entre as três personagens principais (o Mestre, o Vassoura e os Marujos); ou seria ainda o deboche dos Marujos? O texto característico do Mestre (voz 1), contraposto ao conteúdo melódico e às nuances das dinâmicas presentes, destaca as demais personagens (Vassoura – voz 2, e Marujos – voz 3) que, em posição de submissão, possuem apenas elementos rítmicos, em voz falada, gestos que denotam, mais uma vez, o caráter servil dos Marujos, “forçados” a entrarem no jogo maquinal de sincronização e repetição. De certa forma, poder-se-ia discutir, aqui, a possibilidade de que os Marujos, em sincera, mas covarde parceria com o Vassoura, tentam dissuadi-lo de sua desobediência... Abre-se aí novo leque de possibilidades sonoras e cênicas: como representar tal conflito, musicalmente, sem deformar a obra original? Quais os limites da ação coautoral dos intérpretes e quais os limites merecidos e/ou impostos pelo autor original? Como reconhecê-los e como se autorizar a jogar com eles? O quanto o professor precisa conhecer de Música e o quanto precisa dominar de conceitos referentes a outras disciplinas, para poder decidir? Como poderia associar seus ensinamentos sobre Música aos conhecimentos ministrados por outros professores? De que modo, em outros momentos e sob outras circunstâncias, tais experiências já foram conduzidas?
Acredita-se, então, que o repertório comportamental e de domínio geral desse professor (LEITE, 2018; ZORTEA, 2013) exerça uma contribuição decisiva sobre todos esses processos educativos e contribua, positivamente, para a transdução de aspectos da vida real e de jogos de faz de conta, em possibilidades musicais. Não será, exatamente este, o papel do ensino de Música na infância e na juventude?
A resposta insistente e contínua do Grumete (“Não, senhor!”) denota uma ambiguidade, que, tanto responde à pergunta do capitão (“Já lavou o navio?”), quanto demonstra irritação com a ousadia dos Marujos que, envolvidos por fanatismo e cegueira, o sentenciam à morte (“vá pra prancha”) (LEITE, 2016). O momento é encerrado com o coro de Marujos, por medo e/ou condicionamento, ordenando ao Vassoura para a prancha, já sinalizando seu cumprimento à ordem, mesmo que, possivelmente, a con- tragosto. Essa percepção é reforçada por meio da diminuição de intensidade (desde o c. 59) e do uso de agógica rallentando (c. 63). Nos compassos seguintes (c. 64-71), já em andamento mais lento (semínima igual a sessenta), há o momento de transição para a última Cena. Ela correspondente à seção de efeitos sonoros vocais, que remetem à movimentação dos Marujos sobre o navio e sobre o desfecho da ação, encerrando o diálogo por intermédio da exploração de sons vocais em “x” (c. 64-65), em “s” (c. 66- 68) e, em jogo livre de estalos de língua, com a utilização da sílaba “ló” (c. 69-71). Após esse momento, chega, então, a salvação do Vassoura: a entrada em cena do Cestinha que anuncia “Navio inimigo a bombordo” (c. 71). Percebe-se, então, que nada como um inimigo comum para reunir forças antagônicas... Como interpretar isso, cênica e musicalmente? Eis aí um novo ponto importante do debate de um processo criativo, envolvendo questões morais.
CENA 3
A Cena 3 é constituída de três novas ações derradeiras: 3A (Ex. 7), 3B (Ex. 8) e 3C (Ex. 9 e 10). A Ação 3A (Pega o inimigo), compassos 72 a 85, em andamento mais rápido e mudança para o compasso ternário composto, é marcada pela execução, em tutti crescendo, do texto falado “Pega o inimigo!”, a partir do c. 72.
Durante quatorze compassos, a ação é ornada através de nuances de intensida- de: pianissimo – crescendo – fortissimo – diminuindo – pianissimo, efeito sonoro que sugere movimentação cênica de deslocamento espacial (correria caótica ou coletiva?), durante o qual a tripulação se une, envolvida nos preparos para o confronto. Esta ação culmina com um fortissimo súbito (c. 83), seguido de glissando descendente, a partir da nota mais aguda possível (c. 84), sinalizando gesto intenso e decisivo. Gera-se a paisagem sonora de um cenário de flechas e balas de armas de fogo: o glissando descendente e decrescente remete a um arremesso, que chega a seu alvo, ou não. Eis, então, o exemplo de um outro ponto a ser decidido pelos intérpretes, porque resultará em efeitos cênicos e sonoros distintos. A pausa geral (P.G.), no compasso seguinte, pro- duz mais dramaticidade à cena, como se os vencidos estivessem no chão... Ou teriam sido jogados ao mar? Ou... simplesmente, não é possível saber?! De qualquer forma, há decisões a serem tomadas, para que, só então, se possa realizá-las, musicalmente: os vencedores ou se deixam ficar no chão, perplexos e extenuados com a luta, mas se achando vencedores; ou, sob uma outra ótica, reagem, ao se perceberem como um exército de incitados à luta, mas que, finalmente, se dá conta de ter sido condicionado, iludido, enganado. E, aí, se negam a continuar lutando, ou voltam sua ira contra uma possível injustiça que está sendo cometida dentro do navio... A referida pausa, nesse caso, serviria à tomada de consciência de cada um ter sido feito de valentão sem causa, movidos por ódios vãos contra inimigos fantasmas. Mas qual a escolha dos intérpretes? Como representarão sua decisão em linguagens artísticas? Nos dois casos, o cansaço domina a todos; mas, como Fênix, algo novo renasce das cinzas…
A Ação 3B (Terra à vista), compasso 86, inicia com este algo novo: uma voz até então calada, gritando “Terra à vista!”. Assim, partindo de alguém até então invisível, ecoa, mais uma vez, o alerta de algo unificador, lá fora: um interesse! Esse gesto traz novo vigor à peça e aos seus realizadores. Subentende-se, que esse gesto seja originado do Cestinha, que, embora não apareça como solista, na partitura original, estabelece mais uma vez um novo e decisivo momento à cena. A ação é seguida de um compasso sem métrica, onde as crianças criam com a mesma frase, “terra à vista”, um efeito de multidão. Em princípio, parece ser o mesmo zum-zum-zum da cena anterior; mas, desta vez, percebe-se participação autêntica de interesses individuais, pois a dinâmica coletiva não se encolhe, nem cresce escondida atrás de um grito único e condicionante. Em lugar disso, todos conversam com todos, olham-se, interagem, perguntando, afirmando, informando, apropriando-se da novidade e se admirando. Mais uma vez, essas duas partes, Ações 3A e 3B, parecem testemunhar uma determinada percepção de sociedade e a posição política do compositor.17
De qualquer forma, entende-se ser este um espaço compositivo oferecido no intuito de integrar a Música às escolhas de vida; e vice-versa. Cabe lembrar, que este é, também, um dos Princípios Compositivos da PropMpCDG, para a criação de repertório musicopedagógico. Mas, ainda sobre a Ação 3B, a Fermata, posta na barra dupla entre os compassos 88 e 89, indica um momento de reflexão dos marujos sobre as cenas apresentadas. Eles constatam, em meio às suas peripécias navais, que o maior problema não se encontra na negligência do Grumete, dentro no navio; mas, sim, nas dificuldades e privilégios encontrados por todos e disponíveis a todos, fora dele; ou seja, “a aproximação de outro navio, a constatação de que são inimigos, a luta com os mesmos, e os diversos perigos que o mar reserva” (LEITE, 2016, p.17). E, ao cabo de uma luta unida, o reconhecimento de uma nova chance, uma retribuição de gosto coletivo: “Terra à vista!”. Assim,
[…] ao relacionar a possibilidade de intervenção direta e criativa dos intérpretes [em relação] aos acontecimentos externos, no contexto do navio, o compositor desperta nossa atenção para a autonomia, à independência e à espontaneidade como condições decisivas para o despertar da existência de outros horizontes e da necessidade de vivenciar uma nova realidade, que liberte. (LEITE, 2016, p.17).
Mas nada se resolve em passes de mágica; é preciso vigiar, para que não se caia em novos conflitos. Possivelmente, o compositor quer falar sobre isso, enquanto o coro explora o efeito de multidão, e enquanto o Mestre e o Vassoura retornam ao diálogo falado, diálogo idêntico ao texto previsto em 1B. Refletindo-se sobre o poder de pequenas sementes de discórdia, os intérpretes precisam decidir a finalização da peça. A ação, então, é encaminhada, contrapondo este diálogo em separado e o efeito de multidão, com um compasso em crescendo de intensidade, que conclui numa mesma fermata, sob a barra dupla final. Sim, os Marujos, agora, parecem rumar para uma posição clara; mas permanece em aberto um fato: o último grito dos Marujos, “Então, vá pra prancha!”, será dirigido ao Vassoura, para que se atire da prancha, ou ao Mestre, para que faça isso? A depender da decisão tomada, os recursos artísticos e as ações criativas serão distintas, o certo é que, aqui, se pode criar uma divertida cena de ironia ou uma devastadora cena de vingança. Como tratar, artisticamente, tal impasse?
É importante mais uma vez lembrar, que O Navio Pirata (CARDOSO, 1981) foi composto durante a ditadura militar, no Brasil (1964-1985), envolvendo acontecimentos que influenciaram, profundamente, a produção artística e intelectual no país. Período em que, sob censura estatal, compositores da época lançavam mão de metáforas para expressar suas inquietações políticas, conscientizando a população sobre a “isotopia política menos evidente” (RUFINO, 2008, p.111), mas vigente no país. Naquele contexto, temas infantis foram largamente utilizados para fazer adultos pensarem sobre conflitos políticos; e o público infantil, até então grupo de interesse menor, acabou alcançado por meio dessas intervenções artísticas. Embora, até o momento, não exista um estudo que comprove que, em O Navio Pirata, Lindembergue usou de metáforas para expressar sua inclinação política, Leite (2016, p.18) afirma que “os conflitos apresentados [na obra] são típicos da convivência humana, principalmente, quando se trata de relação de poder”, apontando, assim, para essa possibilidade, também corroborada pelos autores deste artigo.
Observe-se, que na Ação 3C (Coda), compassos 89 a 95, a personagem Diapasão retorna com sua nota Lá, recuperando ordem na cena por intermédio de um foco sonoro, depois do caos vivido pelos tripulantes. Na sequência, sob ambiente harmônico de Ré Maior, a frase, cantada em uníssono, é semelhante à interpretada na Ação 1C (Diálogo cantado), antes em Fá Maior: “Ô vassoura! Já lavou o navio?”. Em seguida, também em tutti, é cantado “Não, senhor!”. Nessa resposta há divisi de vozes conduzido a uma cadência modulante: D – F7M/A, surpreendendo o ouvinte. Mais uma vez, parece se evidenciar um discurso político do compositor, à medida que, a uma imposição única, trazida por um uníssono, segue-se uma resposta com diversidade de alturas, finalizando de modo distinto do que seria o, automaticamente, esperado. Sugere-se, que se trate aqui de uma representação de esperança: a esperança do nada, um grito que, simplesmente, aponta um novo rumo. O novo rumo está fora do navio; mas quem o identifica, Cestinha, e o outro que o organiza, Diapasão, estão dentro dele. Até então discretos e insignificantes, continuam assim, sem aparente proeminência, misturados àquela mesma tripulação que antes agia sem pensar e que, agora, parece estar disposta a escolher e determinar os acontecimentos sinalizados por eles...
Por fim, por meio do uso de voz falada, a ordem “Então vá pra prancha” (c. 92-95) parece não fazer mais sentido, posto que os Marujos, ao voltarem toda a sua atenção para a nova terra a ser explorada, agora já à vista, a encaram como uma grande brincadeira. Tal algazarra pode advir de menosprezo, de deboche ou até mesmo de uma imperdoável ingenuidade. Isso, porque a tal da terra que se avista pode ser um ponto de fuga, diante do risco de uma ordem não cumprida, dada pela autoridade máxima do navio; ou, talvez, a oportunidade de novos e mais ricos mundos… Seja como for, existe uma ação inerente e velada, reforçada pela mudança de andamento (semínima 120), em intensidade fortíssima, seguido de glissando ascendente, sob o som da letra “x” (som que antecede a última sílaba de “prancha” e que conclui, em altura mais aguda possível, sob o som da sílaba “cha”). Em outras palavras: quem tiver capacidade, que a identifique! Definitivamente, os dois últimos compassos inspiram à produção do efeito lúdico-sonoro de atirar-se à água. Mas... quem deve se atirar nela? E com qual finalidade? Se o texto, aí, for levemente modificado para “chuá” (que podem ser repetidos, em ecos), poderá representar os próprios Marujos, nadando rumo à terra... Ou por engasgos, representando afogamentos… Decisão essa que poderá caber aos intérpretes, incluindo uma finalização específica e propositiva, criativa, a exemplo do que foi feito com a parte inicial da obra.
Assim, considerando e justificando as interpretações colocadas até aqui, cita-se Nogueira (2012), que traz importantes contribuições em relação às premissas estéticas das obras de Lindembergue, destacando, como preponderantes, os seguintes aspectos:
[…] intimidade com a música folclórica e popular brasileira; religiosidade; criatividade tímbrica (sobressaindo o uso de materiais alternativos com função instrumental); ecletismo resultante da interação entre tradição (em especial de raiz brasileira nordestina) e inovação; atitude heterodoxa no uso de sistemas musicais; valorização da expressão cênica na concepção musical; abertura à interação criativa do(s) intérprete(s); e direcionamento aos conjuntos de estudantes e amadores. (NOGUEIRA, 2012, p.11, grifo nosso).
Em atenção às premissas ideológicas e estéticas, identificadas por Nogueira (2012), é possível depreender que diversas dessas, particularmente as três últimas, em destaque, estão explícitas em O Navio Pirata. Essas características, em processos de criação musical para performance do público infantil, precisam ser mais bem exploradas por compositores e autores que se ocupam com isso. Mesmo que exista grande variedade de ambientes sonoros inusitados e distintos, como o uso frequente de alterações de intensidade e agógica, mudanças de métrica regular para irregular, notas estranhas e inesperadas, tais características, somadas aos recursos cênicos e à reflexão crítica, servem como elementos facilitadores na apreensão dos aspectos musicopedagógicos, na performance de O Navio Pirata. Defende-se que, por tais caminhos de aproximação à obra, uma peça de aceitação historicamente considerada difícil, passa, agora, a ser acolhida como definitivamente executável e impressionantemente educativa.
Conclusões
Uma imersão nas obras contempladas no I Concurso Nacional de Composição para Coro Infantil, publicadas no âmbito da Funarte, na passagem das décadas de 1970 a 1980, culminou no aprofundamento da peça tida, pelos autores deste estudo, como a mais representativa da coleção: O Navio Pirata, de Lindembergue Cardoso. Por intermédio de contextualização e análise, foi possível identificar seus componentes teórico-musicais, assim como dar-se conta de suas indicações expressivas de caráter performático, subjacentes e inspiradoras, passíveis de ampliações. Para encontrá-los, tanto componentes teórico-musicais como indicações expressivas, do ponto de vista metodológico, foi necessário empregar uma análise específica, sustentada pela Ficha de Análise CDG (NUNES, 2012). Por intermédio do exame minucioso de cada detalhe escrito por Lindembergue, procurou-se identificar possíveis desdobramentos dos diferentes momentos da peça. De certa forma, pode-se afirmar que se realizou uma aproximação caleidoscópica a ela, da qual se concluiu que o modo de ler e entender o que está escrito em partituras de obras musicopedagógicas e, eventualmente, de obras artísticas, mas sob abordagens musicopedagógicas, tem características próprias e particulares.
Ao nos referirmos a obras mais atuais, cujo grafismo está no limbo entre o convencional e o não tradicional, o entendimento delas acaba exigindo ampliação das regras de leitura e escrita, por meio de bulas e legendas, por exemplo. Mas não é apenas disso que estamos falando; em se tratando de peças infantis, é preciso ir além. É preciso que o compositor se posicione com ousadia e generosidade diante das partituras de suas criações, aceitando que elas, além do código musical, seja ele tradicional ou inovador, possam estar abertas a intenções implícitas, ou seja, partituras que induzam o leitor à compreensão e a decisões sobre aquilo que, até ser realizado por ele mesmo, não teria como ser representado. Pelo menos, não sem prejuízos advindos de redução e empobrecimento, pois apenas as intérpretes-crianças poderão desenterrar suas riquezas… Por isso, o compositor precisa prever e acolher a coautoria. Mas como proceder, para que isso aconteça? Certamente, assinalar, àquele que realizará sua peça, que tais contribuições criativas, por parte dos executantes, não são apenas permitidas, mas sobretudo desejadas. Encorajar seu intérprete a se sentir parte do processo de composição da obra é uma providência, aparentemente, sem muita importância; contudo, rompe com paradigmas enraizados na mentalidade musical, que tem, no compositor, quase um deus. Assim, liberar os executantes da submissão e do constrangimento de serem capazes de, apenas e com rigor, interpretarem a partitura, sendo fiéis à ideia do compositor, é, sem dúvida, necessário. Também é possível que o compositor indique possibilidades alternativas, em determinadas passagens, as quais poderão funcionar como modificações eventuais, ou mesmo descortinar continuidades inesperadas. Além disso, o final da peça pode ser escolhido, entre duas ou mais possibilidades, previamente escritas pelo compositor, mas definidas pelos executantes. Uma obra em forma Rondó, por exemplo, onde uma estrutura fixa de retorno garante a consistência da peça em seu conjunto e intervenções dentro de um determinado tempo, que estimule a imaginação dos participantes, pode ser outra alternativa.18
A propósito, afirma-se que, a rigor, qualquer peça a ser realizada com grupos infantis acaba, sempre, diante deste impasse: a obra e seu criador precisam dobrar-se à criança, e não o contrário. Portanto, tal submissão deve não apenas ser aceita e prevista, mas, conscientemente, proporcionada pelo compositor. Já por parte de regentes e professores, mesmo obras consagradas precisam receber essa aproximação flexível e flexibilizadora de sua versão registrada e oficial. Se isso não for permitido nem conveniente, sob o ponto de vista artístico, definitivamente, não é uma obra para ser executada por crianças; poderá ser uma obra para crianças, enquanto experiência de apreciação, mas isso já ultrapassa os limites deste texto. A despeito de tudo, insiste-se: não existe obra inacessível, irrealizável, com crianças de verdade; tudo depende da abordagem usada. Resumindo, uma obra composta para ser executada por e com crianças deve, sempre, comportar soluções potenciais que só passam a existir quando traduzidas e/ou inven- tadas por atos coautorais das próprias crianças.19
Assim, destaca-se a sensibilidade de Lindembergue Cardoso para as realidades do mundo infantil. Sem dúvida, sensibilidade de importante pioneirismo na Música Brasileira e cujo valor, ainda hoje, permanece quase sem par, principalmente, em seu gênero. Contudo, a despeito disso, percebe-se a insistente permanência de aspectos de um mundo adultocentrado. O exemplo mais evidente está nas marcas de suas convicções políticas. Não há investigação suficiente, para se afirmar que estas marcas tenham sido intencionais ou expressões ingênuas; contudo, o que aqui importa é que refletem preocupações de um mundo adulto, à época, ameaçado em suas liberdades; e não sentimentos e sensações próprias às crianças. Mas... e que sentimentos e sensações seriam esses, que poderiam ser traduzidos em repertório infantil? Sim, muito há para ser estu dado, pensado, arriscado... ideias que precisam ir muito além do uso de diminutivos, da oferta de canções de plástico, de alienar-se sob disfarces de super-heróis, ou de con- tentar-se com formatos midiáticos.
O universo da infância é multifacetado e misterioso, muito mais rico e mais fértil do que se possa supor. O faz-de-conta e o real se encontram num mesmo instante, povoando vazios de modo criativo, espalhando segredos com ingenuidade, e compartilhando experiências espontâneas, para, com tudo isso, construir e se apropriar de conhecimentos novos. Esforços por dizer o indizível, favorecidos pelo acesso a múltiplas formas de expressão, todas elas amalgamadas, musicalmente, desafiam o intérprete infantil a continuar se esforçando por compreender e enunciar “o que há” e “o que pode haver” em cada experiência vivida. E vice-versa. A composição musical ofertada às crianças, portanto, precisa ser rica em possibilidades, não em soluções, nem em expectativas; deve ser instigante e acolhedora, sem precisar de exaustivos treinamentos para encontrar sua perfeição. Todo o universo infantil se renova com rapidez e é caleidoscópico. E isso precisa ser respeitado, em e por meio de experiências musicais, que, sem impor, desafiem a criança a perceber e identificar as provocações da vida, a imaginar e propor saídas, a assumir o que daí aparecer, a criar e a saber-se criadora.
Desejava-se lançar luz sobre o universo do repertório infantil brasileiro. Encerra-se a investigação com essas formulações sobre como compor e executar música, dentro dele. Ao mundo adulto cabe estar atento a paradigmas musicais com fundamentação teórica consistente sobre composição, análise e performance, para que sejam oferecidos suportes musicais seguros às crianças. Protegidas por tais referenciais, elas se tornarão capazes de perseguir horizontes de sons e silêncios, figurações de alturas e intensidades sonoras, caráter, forma… em seus próprios esforços por entendimento, criatividade e competências. Propõe-se, então, que compositores, professores e regentes se empenhem na busca por um jeito peculiar e funcional, por excelência, de compreender e conduzir o Repertório Infantil. Um jeito que seja instruído, mas aberto; lúcido, mas imaginativo; seguro, mas flexível; e suficientemente corajoso para transgredir expectativas, equilibrando erudição com formatos rebeldes, mas cheios de riquezas escondidas nas expressões musicais para, com e por crianças. Compreender o repertório musical infantil, a partir de uma sensibilidade que o reconheça assim iluminado, é como embarcar em um navio pirata e navegar por mares, às vezes revoltos, mas sempre vivos, da Musicopedagogia.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O homem sem conteúdo. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
BARENBOIM, Daniel. A música desperta o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Fundação Nacional de Arte (Funarte). Edital do I Concurso Nacional de Composição para Coro Infantil. Edital de Chamada (2p.) e Edital de Divulgação dos Resultados (2p.). Rio de Janeiro: INM, 1979.
CARDOSO, Lindembergue. O Navio Pirata. Para coro infantil a três vozes. Rio de Janeiro, Funarte, [1979] 1981. Partitura impressa (11 p.).
CARDOSO, Lindembergue. Educação musical: método. In: NOGUEIRA, Ilza (org.). Marcos Teóricos da Composição Contemporânea na UFBA. [S. l.: s. n.], [1972] 2006. v. II. Disponível em: http://www.mhccufba.ufba.br. Acesso em: 19 fev. 2020.
KRAEMER, Rudolf Dieter. Dimensões e funções do conhecimento pedagógico- musical. Trad. Jusamara Souza, a partir do texto original, publicado na revista Musikpädagogische Forschung, n. 16, p. 146-172, 1995. Em Pauta, Porto Alegre, v.11, n. 16/17, p. 48-73, abr./nov. 2000.
LEÃO, Raimundo Matos de. Transas na cena em transe: teatro e contracultura na Bahia. Salvador: Ed. UFBA, 2009.
LEITE, Jaqueline Câmara. Análise de O Navio Pirata. Trabalho de conclusão da disciplina Análise Composicional I, oferecida no curso de doutorado em Educação Musical, da Universidade Federal da Bahia, e ministrada pelo professor Wellington Gomes. Salvador: UFBA, 2016.
LEITE, Jaqueline Câmara. Caminhos do repertório na formação de professores de Música: um estudo sobre o PROLICENMUS. Tese (Doutorado em Educação Musical) – Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.
MANN, Thomas. A montanha mágica. São Paulo: Companhia das Letras, [1924] 2016.
MÁRSICO, Leda Osório. A criança e a música: um estudo de como se processa o desenvolvimento musical da criança. Porto Alegre: Globo, 1982.
NOGUEIRA, Ilza. Catálogos Web de Lindembergue Cardoso. Catálogos Web de Compositores Contemporâneos da UFBA. Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal da Bahia, 2009. v. 2.
NOGUEIRA, Ilza. Lindembergue Cardoso: aspectos de uma obra plural. Per Musi, Belo Horizonte, n. 25, p. 7-26, jan./jun. 2012.
NUNES, Helena de Souza. A canção brasileira infantil na perspectiva da Ficha CDG para Análise e Composição de Canções. Revista Brasileira de Estudo da Canção, Natal, v. 1, n. 1, p. 151-173, jan./jun. 2012.
NUNES, Helena de Souza et al. Microcanções CDG: Primeiros Registros. In: CONFERENCIA LATINOAMERICANA Y PANAMERICANA DE LA SOCIEDAD INTERNACIONAL DE EDUCACIÓN MUSICAL (ISME), 9 e 2., 2013, Santiago. Anais eletrônicos […]. Santiago: Faculdade de Artes, Universidade do Chile, 2014. p. 641-649. Disponível em: https://www.dropbox.com/s/p9icgy21rh2qwmq/Actas%20ISME%20 Chile%202013%20final. pdf?n=55569819. Acesso em: 12 mai. 2014.
NUNES, Helena de Souza et al. Recital Musicopedagógico CDG. In: ENCONTRO REGIONAL NORDESTE DA ABEM, 14., 2018, Salvador. Anais eletrônicos […]. Salvador: UCSal, 2018a. Disponível em: http://www.abemeducacaomusical.com.br/ conferencias/index.php/nd2018/regnd/paper/view/2985. Acesso em: 15 nov. 2019.
NUNES, Helena de Souza et al. Grupo de Pesquisa Proposta Musicopedagógica CDG – Oficina Recital Musicopedagógico CDG: um jeito diferente de compartilhar Música com o público. Partitura de Espetáculo da obra de CARDOSO, O Navio Pirata. Rio de Janeiro: Funarte, 1981 (material didático entregue aos participantes). In: ENCONTRO REGIONAL NORDESTE DA ABEM, 14., 2018, Salvador. Anais […]. Salvador: UCSAL, 2018b.
NUNES, Leonardo de Assis. Composição de Microcanções CDG no PROLICENMUS: uma discussão sobre o confronto entre respostas por antecipação e liberdade para criar. Dissertação (Mestrado em Educação Musical) – Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.
NUNES, Leonardo de Assis. Para além da composição de Microcanções CDG: desdobrando-as em possibilidades musicopedagógicas. Tese (Doutorado em Educação Musical) – Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020.
PAZ, Ermelinda. Edino Krieger: crítico, produtor musical e compositor. Rio de Janeiro: SESC, 2012. v. 2.
REY, Sandra; BRITES-UFRGS, B.; TESSLER, E.; LANCRI, J. Por uma abordagem metodológica da pesquisa em artes visuais. In: BRITES, Blanca; TESSLER, Élida (org.). Metodologia da Pesquisa em Artes Visuais. Porto Alegre: UFRGS, 2002. p. 123-140.
ROSA, Lilia de Oliveira. Música Brasileira para Coros Infantis (1960-2003): catálogo on-line com obras a cappella. 2005. 306 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.
RUFINO, J. Entre homens e animais: análise semiótica de letras de canções infantis. Mal-Estar e Sociedade, Barbacena, n. 1, p. 111-128, nov. 2008.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL. Moodle. Repertório Musicopedagógico. Unidades de Estudos de 01 a 30 do Curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidades Parceiras, vinculado ao Programa Pró-Licenciaturas do MEC (2005), produzidas por Helena de Souza Nunes e Clarissa de Godoy Menezes. Porto Alegre: UFRGS, 2009.
VETROMILLA, Clayton Daunis. Política cultural nos anos 70: controvérsias e gênese do instituto nacional de música da Funarte. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE POLÍTICAS CULTURAIS, 2., 2011, Rio de Janeiro. Anais […]. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011. Disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/interna.php?ID_S=124&ID_M=2210. Acesso em: 15 nov. 2018.
WÖHL-COELHO, Helena de Souza Nunes. Cante e Dance com a Gente: ein Projekt für die Musikerziehung in Brasilien. Frankfurt: Peter Lang Verlag, 1999.
ZORTEA, Tiago C. Notas sobre repertório comportamental. Oxford: [s. n.], 2013.
Notas