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Textos, canções e sons no Brasil pós-1964: o Grupo de Teatro Opinião em cena*
Texts, songs, and sounds in post-1964 Brazil: the Opinião Theater Group on stage
Revista Orfeu, vol.. 5, núm. 3, 2020
Universidade do Estado de Santa Catarina

Dossiê

Revista Orfeu
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN: 2525-5304
Periodicidade: Semestral
vol. 5, núm. 3, 2020

Recepção: 06 Junho 2020

Aprovação: 21 Outubro 2020

Este trabalho está licenciado sob uma licença Creative Commons Attribution 4.0 International License. Autores mantém os direitos autorais e concedem à revista o direito de primeira publicação.

Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.

Resumo: Este texto aborda a importância histórica do Grupo de Teatro Opinião (1965- 1980) e dos seus espetáculos como expressão política de resistência à ditadura militar no Brasil. Na esteira disso, focalizo de que forma a utilização do discurso musical afeta o espectador não só por meio dos parâmetros sonoros, mas igualmente pela sua capacidade de sugerir imagens e de inventar espaços e lugares ao criar figurações cênico-dramáticas. Enfatizo, como características fundamentais desse teatro musicado, a mistura de tradições culturais e a produção/criação artística dos atores/ cantores. Daí a pertinência da discussão sobre o contraponto entre as linguagens musicais e plásticas na composição da polifonia intrínseca ao espetáculo teatral.

Palavras-chave: Grupo de Teatro Opinião, sons, encenação.

Abstract: This text addresses the historical importance of the Opinião Theater Group (1965-1980) and its performances as political expressions of resistance to the Brazilian military dictatorship. Accordingly, I focus on how using musical discourse affects the audience not only through sound parameters, but also through its ability to suggest images and invent spaces and places by creating scenic-dramatic figurations. I highlight as the crucial characteristics of this musical theater the mix of cultural traditions and actors/singers’ artistic production/creation. Thus, it is relevant to discuss the counterpoint between musical and plastic languages in the composition of the polyphony that is inherent to theatrical performance.

Keywords: Opinião Theater Group, sounds, staging.

Teatro e música

A experiência do teatro musicado no Brasil conheceu uma de suas fases mais férteis durante as décadas de 1960 e 1970. Nesses anos, o teatro brasileiro frequentemente se organizou sob o formato de espetáculo cantado para responder de modo crítico ao regime militar instaurado em 1964. As soluções estéticas mobilizadas nessas peças reeditaram as práticas nacionais da farsa e do teatro de revista, assimilaram influências estrangeiras (como dos alemães Erwin Piscator e Bertolt Brecht e do musical americano) e, acima de tudo, afirmaram caminhos artísticos originais capazes de envolver o público. Os textos musicais registraram instantes históricos, ao mesmo tempo em que fixaram tendências que transcenderam aquela conjuntura específica, deixando lições estéticas às quais se pode voltar hoje, entre elas as estratégias épicas, isto é, as narrativas (a maneira de a música se inserir no enredo) e os diálogos em verso. Como a atividade musical dialoga com outros campos do fazer artístico, trata-se, portanto, de compreender o “fato música” como uma “colcha” extensa e complexa de relações dinâmicas e plurais. Estas variam entre a semiologia, a história, a sociologia, a antropologia, técnica e arte, ideologia e política, e comportam relações que se exprimem dentro e “fora” do fenômeno musical. Daí o interesse em analisar três montagens do Grupo Opinião, a junção da música e do teatro como expressões de engajamento e de intervenção sonora que fluíam nos espetáculos e para fora deles nos tempos difíceis da ditadura militar brasileira, que ainda mostraria fôlego para perdurar, com maior ou menor força, por longos 21 anos.

“Eu não mudo de opinião”

No Brasil pós-golpe militar de 1964, o ambiente de tensão instaurado acirrou antagonismos de toda ordem que se espraiaram pelos campos sociais, políticos e culturais. O teatro se destaca nesse contexto por se organizar em posição de luta contra o regime, mantendo assim uma postura militante. Na época, o grupo de artistas, que esteve ligado ao Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), reuniu-se com o intuito de criar um foco de resistência e protesto contra aquela situação. Foi então produzido o espetáculo musical Opinião, com Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão (depois substituída por Maria Bethânia), cabendo a direção a Augusto Boal.2 O espetáculo apresentado no Rio de Janeiro, em 11 de dezembro de 1964, no Teatro Super Shopping Center, marcou o nascimento do grupo e do espaço teatral que veio a se chamar Opinião.3 Os integrantes do núcleo permanente eram Oduvaldo Vianna Filho (o Vianinha), Paulo Pontes, Armando Costa, João das Neves, Ferreira Gullar, Thereza Aragão, Denoy de Oliveira e Pichin Plá. “Uma das atividades do CPC era fazer teatro político de rua, como o Auto do cassetete, Auto da reforma agrária, Auto do Tio Sam. Quando veio o golpe criamos o Grupo Opinião” (FERREIRA GULLAR, 2006a, p.33).

Desse modo, em dezembro de 1964, com direção de Augusto Boal, estreava o Show Opinião (criação de Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Armando Costa), uma referência no teatro brasileiro contemporâneo. O show foi organizado no famoso Zicartola – restaurante do sambista e compositor Cartola e de sua companheira Zica –, onde ocorriam reuniões de músicos, artistas, estudantes e intelectuais (CASTRO, 2004, p.85). Foi esse o ambiente catalisador da união de interesses de experientes dramaturgos e músicos, com diferentes estilos e atuações no campo cultural, que resultou num roteiro inédito: um espetáculo musical que continha testemunhos, música popular, participação do público, apresentação de dados e referências históricas,4 enfim, um mosaico de “canções funcionais”5 e de tradições culturais.6 Tanto o enredo quanto o elenco eram notadamente heterogêneos e talvez seja esse o motivo pelo qual o Opinião tenha começado sua trajetória com sucesso. O grupo privilegiou, desde a estreia, a forma do teatro de revista, numa mescla de apropriações e ressignificações do “popular” e do “nacional”, abrindo igualmente espaço para apresentações com compositores de escolas de samba cariocas.7

João das Neves, que dirigiu o Opinião por dezesseis anos, recorda:

O nosso trabalho era fundamentalmente político e, assim, pesquisar formas nos interessava – e interessa – muito. […] A busca em arte não é apenas estética – ela é estética e ética ao mesmo tempo. Eu coloco no que faço tudo o que eu sou, tudo o que penso do mundo, tudo o que imagino da possibilidade de transformar o mundo, de transformar as pessoas. Acredito na possibilidade da arte para transformar. Se não fosse assim, eu não faria arte; faria outra coisa. (NEVES, 1987, p. 21).8

Podemos afirmar que o espetáculo não só focalizava, como também mistificava “novos lugares da memória: o morro (favela + miséria + periferia dos grandes centros urbanos industrializados) e o sertão (populações famintas, […] o messianismo religioso […] e o […] coronelismo)” (CONTIER, 1998, p.20). Por meio da música, as interpretações e discussões a respeito dessas realidades fluíam no espetáculo, alternadas por depoimentos dos “atores” que compartilhavam, fora do palco, as mesmas dificuldades canta das por eles, como nos casos de João do Vale (nordestino retirante) e Zé Kéti (morador de uma favela carioca). Já Nara Leão – conhecida como a musa da bossa nova que personalizava a classe média – assumia uma postura de engajamento e se posicionava de forma ativa e questionadora da realidade brasileira.

Meu nome é João Batista Vale. […] Moro na Fundação da Casa Popular de Deodoro, rua 17, quadra 44, casa 5. Duas horas, sem encontrar ladrão, chega lá. Tenho duzentas e trinta músicas gravadas, fora as que vendi. De quinhentos mil réis pra cima já vendi muita música. […] Minha terra tem muita coisa engraçada, mas o que tem mais é muita dificuldade pra viver. (VALE apud COSTA et al., 1965, p.19).

Meu nome é José Flôres de Jesus. […] Vida de sambista vou te contar. Passei oito anos em estúdio de rádio, atrás de cantor, até conseguir gravar minha primeira música: o samba – “A voz do morro”. Aí ele teve mais de 30 gravações. […] O dinheiro que ganhei deu pra comprar uns móveis de quarto estilo francês e comi três meses carne. Dava pra ir à feira nos domingos e trazer cesta cheia de compras. (ZÉ KÉTI apud COSTA et al., 1965, p.19-20).

Meu nome é Nara Lofego Leão. […] Ando muito confusa sobre as coisas que devem ser feitas na música brasileira, mas vou fazendo. Mas é mais ou menos isso – eu quero cantar todas as músicas que ajudem a gente a ser mais brasileiro, que façam todo mundo querer ser mais livre, que ensinem a aceitar tudo, menos o que pode ser mudado. (LEÃO apud COSTA et al., 1965, p.20).

Esse movimento de aproximação das diferenças num palco de teatro foi conduzido por uma tendência ainda de caráter cepecista, uma vez que, nos CPCs, o principal lema era portar-se como transmissor de uma mentalidade revolucionária para o povo e assim atingir a tão utópica revolução social.9 Não poderia ser diferente, pois os dramaturgos do Opinião, como Vianinha e o poeta Ferreira Gullar, eram membros ativos dos Centros Populares de Cultura e utilizavam suas peças, inclusive o musical Opinião, como meio de “fazer emergir” na plateia “valores novos” e uma “capacidade mais rica” de sentir a “realidade” (KÜHNER; ROCHA, 2001, p.54-55), no intuito de estabelecer uma identificação entre os atores e o público. Segundo Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves, “encenava-se um pouco da ilusão que restara do projeto político-cultural pré-64 e que a realidade não parecia disposta a permitir: a aliança do povo com o intelectual, o sonho da revolução nacional e popular” (HOLLANDA; GONÇALVES, 1995, p.23-24).

Mas não só a união de música e teatro tornou o Opinião uma referência. Sua relevância histórica se evidenciou, entre muitos motivos, graças ao momento no qual foi gerado: a estreia do show ocorreu quando o golpe militar ainda não completara um ano de vida e é tida como a primeira grande expressão artística de protesto contra o regime. A respeito disso, comenta Augusto Boal (2000, p.226):

Eu queria que escutassem não apenas a música, mas a ideia que se vestia de música! Opinião não seria um show a mais. Seria o primeiro show de uma nova fase. Show contra a ditadura, show-teatro. Grito, explosão. Protesto. Música só não bastava. Música ideia, combate, eu buscava: música corpo, cabeça, coração! Falando do momento, instante!10

Também chama atenção a configuração geral do espetáculo, que, em forma de arena, não dispunha de cenários, somente de um tablado onde três “atores” encarnavam situações corriqueiras daquele período, como a perseguição aos comunistas, a trágica vida dos nordestinos e a batalha pela ascensão social dos que viviam nas favelas cariocas; tudo isso, acrescente-se, regado a música que visava alfinetar a consciência do público. O repertório, embora fosse assinado por compositores de estilos diversificados, percorria uma linha homogênea de contextos regionais, concedendo-se amplo destaque a gêneros musicais como o baião e o samba. As canções cantadas – por sinal, várias delas marcaram os anos 1960 a ponto de frequentarem inclusive a parada de sucesso – exprimiam uma fala alternativa e ilustrativa no musical. Em “Borandá”, de Edu Lobo, Nara Leão fazia ressoar, com sua voz melancólica, a tristeza dos retirantes que, impelidos pela seca, eram obrigados a abandonar a zona rural nordestina (“Vambora anda / Que a chuva não chegou / Borandá / Que a terra já secou / Borandá / Já fiz mais de mil promessas / Rezei tanta oração / Deve ser que eu rezo baixo / Pois Meu Deus não me ouve, não / É borandá etc. / Vou me embora, vou chorando” (LEÃO apud COSTA et al., 1965, p.28-29). Em “Carcará”, a composição mais emblemática do negro maranhense João do Vale, em parceria com Zé Cândido, a mesma intérprete desfiava a história dessa ave sertaneja, apelando para metáforas sobre sua valentia e coragem; nessa canção era possível perceber a relação que se estabelecia entre o carcará e a ditadura militar, que investia com toda fúria contra os que a ela se opunham. Vejamos mais alguns exemplos:

1. a condição do nordestino retirante, no olhar de Zé Kéti (apud COSTA et al., 1965, p.44), em “Favelado”:




2. a questão da terra em “Missa Agrária”, de Gianfrancesco Guarnieri e Carlos Lyra (apud COSTA et al., 1965, p.39):







3. a esperança no futuro em “A voz do morro”, de Zé Kéti, e em “Quarta-feira de cinzas”, de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra:




Incluir o(s) marginalizado(s) na cena teatral brasileira não foi um mérito exclusivo do show. Basta lembrar de Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri.12 Contudo, o formato musical e o roteiro não cronológico diferenciavam o show pela aproximação que esses elementos propiciavam entre palco e plateia. Como decorrência de toda a sua concepção, o Show Opinião se calcava no pressuposto de que a representação da realidade se alinha com a perspectiva de “teatro verdade” e implica a criação de um ambiente de comunhão e igualdade entre todas as partes envolvidas no espetáculo, sobretudo o público, como se todos tivessem um denominador comum: estariam unidos por pertencerem, de maneira inescapável, à mesma realidade.

Vários autores preocupados com a situação pós-golpe refletiram acerca da importância do teatro, dos dramaturgos e atores que foram personagens ativos desse período de repressão. Entre eles, podemos mencionar Maria Helena Kühner e Helena Rocha, que examinam a formação do Grupo de Teatro Opinião (e o show inaugural) como referência de postura política no início do governo militar. Na leitura da análise por elas desenvolvida, é possível vislumbrar uma expressão de urgência de mudança almejada por um grupo que muitos qualificavam de “idealistas, utópicos, românticos, ingênuos, loucos […] que viveram a geração da utopia” (KÜHNER; ROCHA, 2001, p.34-35) e que nela criavam e se apoiavam, a fim de fazer do musical a primeira manifestação de engajamento do teatro brasileiro após a ditadura.13

Um exemplo disso era a utilização da música regional, tão presente na constituição do show Opinião. O conteúdo dessas representações transita entre o público e o privado, mostrando as mazelas da vida individual do trabalhador e do ambiente ao seu redor. Uma vez identificada essa fagulha de inconformismo, o público do teatro, ali, diante do palco, tem a oportunidade de “retomar a posse de si mesmo, de reencontrar o próprio nome (‘Eu sou’), de situar-se no plano social” (KÜHNER; ROCHA, 2001, p.69).

Logo, por meio desse acontecimento cênico, visualiza-se um leque de possibilidades revolucionárias dado pelas representações culturais. O teatro, portanto, passa a se caracterizar não somente como meio de encenação da realidade na qual se encontra, mas também como divulgador de lugares e sentidos político-culturais. Destaco, aqui, alguns trechos especialmente de duas músicas do espetáculo que empolgavam a pla- teia que superlotava o teatro naquelas noites sombrias. Na primeira, “Opinião”, Zé Kéti cantava: “Podem me prender / Podem me bater / Podem até deixar-me sem comer / Que eu não mudo de opinião”.14 Na segunda, “Carcará”, pela voz de Nara Leão, João do Vale narrava as aventuras de um pássaro voraz do sertão, que não morre porque, com seu bico volteado que nem gavião, “pega, mata e come” (COSTA et al., 1965, p.41-42).

Opinião foi a primeira aula dada ao público sobre como reaprender a ler certas obras de arte – ensinamento extremamente útil nos anos (de censura) que se seguiram. O clima, na plateia compacta, ensopada de suor e envolvida pelas paredes de concreto do teatro, era de catarse e sublimação. Vivia-se a sensação de uma vitória que tinha sido impossível lá fora. (SEM AUTORIA apud KÜHNER; ROCHA, 2001, p.72).

O sentimento de transformação política está presente em todo o corpo da peça. Suas origens musicais, o passado dos integrantes no cenário de oposição e intervenção política, bem como as particularidades dos atores estreantes, tornam-se intrigantes peças de um complexo quebra-cabeça que faz desse espetáculo uma importante referência na trajetória engajada do teatro brasileiro. Para Dias Gomes, “a plateia que ia assistir ao Show Opinião, por exemplo, saía com a sensação de ter participado de um ato contra o governo” (GOMES, 1968, p.11).15

Segundo Gullar, o show musical era “bem-humorado, engraçado, irreverente, que colocava as questões políticas, mas de uma maneira muito discreta”

[…] todo mundo percebia, mas a censura não percebeu o que tava sendo colocado ali, quando ela se deu conta, já era tarde, porque o espetáculo tinha se tornado um sucesso […], o teatro vendia ingressos, lotações inteiras com um mês de antecedência, então a ditadura não tinha coragem de proibir o espetáculo que tinha tamanha popularidade, mas eles aprenderam a lição e a partir daí eles começaram a censurar outras peças. (GULLAR apud COUTINHO, 2011, p.156).16

“O teatro, que bicho deve dar?”

Depois do sucesso do show Opinião, uma nova produção entrava em cartaz, no dia 21 de abril de 1965: o espetáculo Liberdade, liberdade, coletânea de textos de autores sobre o tema, reunidos por Flávio Rangel e Millôr Fernandes.17 Em fins de 1965, com Brasil pede passagem, elaborado por todos os integrantes do grupo, é repetida a fórmula da colagem. No entanto, nesse caso, o espetáculo é proibido.18

No dia 9 de abril de 1966, com a direção de Gianni Ratto, a peça Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come (de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar) é encenada pelo grupo no Rio de Janeiro e conquista os prêmios Molière e Saci.19 É interessante frisar que o “bicho” dá início à coleção Teatro Hoje, da editora Civilização Brasileira, coordenada por Dias Gomes:

Cada novo volume deverá responder a esta pergunta: isto serve à busca de caminhos próprios para o nosso teatro? […]

Importante é dar aos nossos autores, diretores e atores, as armas necessárias para prosseguir na revolução iniciada na década de cinquenta, quando um surto de dramaturgia nativa ameaçou lançar as bases de um teatro brasileiro autêntico. […] Este movimento está sendo, no momento, contido por fatores políticos e econômicos, que dificultam o acesso ao palco dos nossos melhores autores, desencorajando-os a prosseguir em suas pesquisas.

[…] só a análise aprofundada [da] realidade, com o consequente equacionamento dos nossos problemas e o estudo do comportamento do nosso homem em face deles, poderão levar-nos a uma dramaturgia brasileira autêntica. É preciso sermos fiéis ao nosso povo e ao nosso tempo. (GOMES apud VIANNA FILHO; GULLAR, 1966, s.p.).

Na visão de João das Neves, o “bicho” diz muito da forma de trabalho do grupo:

O “bicho” começou a surgir após alguns de nós termos visto o filme Tom Jones, que nos causou a todos viva impressão. O mais entusiasmado, como sempre, era o Vianna. Bom, dias após o Sérgio Ricardo nos convidou para ouvir em sua casa a leitura de uma peça sua […]. Saímos de lá sem muito entusiasmo. […] Vai daí eu comentei […] que a peça do Sérgio tinha uma bela ideia desperdiçada. Seria legal seguir um caminho parecido com o do filme, que daria um texto do barulho. E sugeri que escrevêssemos o tal texto. Vianinha logo pegou a bola com a paixão que o caracterizava e na reunião seguinte decidimos que iríamos definitivamente tentar escrever a peça. Resolvemos ainda que o roteiro seria coletivo. Todos nós participaríamos de sua elaboração, o que efetivamente aconteceu. À medida que o roteiro foi ganhando corpo, decidimos que Vianinha e eu escreveríamos o texto em prosa e que o Gullar o versificaria posteriormente. E assim procedemos. Eu ia para a casa do Vianinha, […], pegava uma cena e o Vianna pegava outra. Ele ficava no quarto e eu na pequena saleta. Feito isso, mostrávamos um para o outro nosso trabalho e repassávamos para o Gullar, que os punha em versos. Em uma das reuniões de avaliação, o Vianna disse-me (e aos demais) que não estava se sentindo bem porque eu escrevia sem mostrar a ele, o que, sinceramente, me chocou. Fiquei tão magoado com isso que na mesma reunião abdiquei de continuar escrevendo o texto. A essa altura o primeiro ato já estava todo pronto e o roteiro final também. Vianna e Gullar continuaram a tarefa. Acho que foi o primeiro grande mal-estar dentro do grupo. Mal-estar que se acentuou porque, ao terminarem a redação final do texto, o Vianinha propôs que nós três assinássemos a autoria, o que eu recusei. A gente acabou passando por cima disso, mas alguma coisa ali se quebrou. (NEVES apud KÜHNER; ROCHA, 2001, p.92-93).

Utilizando linguagem e temas da literatura de cordel, o espetáculo narra em versos a saga de um camponês, Roque, que, à semelhança de um João Grilo (de Auto da compadecida),20 supera suas muitas vicissitudes com inventivas estratégias de sobrevivência – mostrando que a “engenhosidade popular” é capaz de resistir aos golpes dos poderosos. Dito de outra maneira, fazendo da política um emblema dos impasses políticos da ditadura, os autores propõem “um voto de confiança no povo brasileiro”, como dizem no prefácio da peça, intitulado “O teatro, que bicho deve dar?”:

O bicho é também um voto de confiança no povo brasileiro porque procura suas forças nas nossas tradições, porque utiliza os versos, as imagens, o sarcasmo, a desilusão, a ingenuidade e a feroz vitalidade que a literatura popular, durante dezenas de anos, vem criando […].

O bicho é o impasse. Impasse em que nos metemos não devido à nossa irresponsabilidade e corruptibilidade. Ao contrário – o homem é capaz de viver esse impasse porque é altamente responsável e incorruptível. E, felizmente, também é capaz de, em determinado momento, sofrendo o insuportável, superar o impasse. (VIANNA FILHO; GULLAR, 1966, s.p.).21

No mesmo prefácio, os autores elencam as razões políticas, artísticas e ideológicas para a produção do “bicho”. As primeiras dizem respeito à necessidade de resistência pós-golpe. As razões artísticas e ideológicas localizam as fontes da peça na literatura popular (literatura de cordel) e em Brecht:

Pretendemos no Bicho – usando versos, música, interpretação constante dos diversos níveis de emoção, golpes de teatro, lirismo, comédia “mad”, melodrama – criar um corpo artístico e cultural onde repercuta a extraordinária riqueza da existência humana. […] Talvez o excesso de festa e de vitalidade seja uma maneira de responder à ausência de festa e vitalidade em que vive o país.

As razões que estamos alinhando: políticas, artísticas, ideológicas, somente se separam para exposição. Na realidade, vivem juntas. (VIANNA FILHO; GULLAR, 1966, s.p.).

A peça utiliza canções largamente. Os diálogos são escritos em versos de sete sílabas, o metro de eleição do cordel, ou, mais raramente, de cinco. O uso do verso dá inúmeras oportunidades a jogos verbais nos quais a fala de uma personagem pode se ligar à de outra pelo ritmo ou pela rima. A música interage com a cena, resume-a ou explica-a, funcionando, em alguns momentos, como comentário da ação, fechamento de uma sequência, apresentação dos personagens, além de atuar como elemento de ligação entre as cenas. Por sinal, no primeiro ato, logo de início, os atores entram, cumprimentam-se e cantam:




Patrice Pavis, noutro contexto, considera que a música, na encenação teatral, pode ser utilizada para preencher várias funções:

Criação, ilustração e caracterização de uma atmosfera introduzida por um tema musical, podendo se tornar um leitmotiv; durante esses intervalos o auditor faz um balanço, respira, imagina o que segue. A música é então um “remédio de conforto”.

[…]

Às vezes, a música é apenas um efeito sonoro cujo objetivo é tornar uma situação reconhecível.

Pode também ser uma pontuação da encenação, sobretudo durante as pausas da atuação, as mudanças de cenário. (PAVIS, 2005, p.133).

A música pode servir como sinal de intensificação, acirramento da ação, ao mesmo tempo em que indica e promove esse acirramento, como acontece no momento em que Roque e seu pai brigam, sem se reconhecerem filho e pai (“seu olhar de aço / já é quase o corte / por onde em teu corpo / vai entrar a morte” – VIANNA FILHO; GULLAR, 1966, p.73); ou na passagem em que Roque é espancado por camponeses temerosos de perderem os seus empregos. Nesta última, o personagem canta enquanto toma tabefes e bofetes; o ritmo das pancadas coincidirá comicamente com o das tônicas poético-musicais (“Tome, tome, tome, tome, paulada / Tome, tome, tome, tome, paulada / Está na roda, aguente, não pule nem nada / Não venha de banda jogar perna trançada” – VIANNA FILHO; GULLAR, 1966, p.109). Nos dois casos, de forma proposital, utiliza-se a música e a comicidade, ancoradas no cenário Nordeste, como meio de aproximação/ diversão com a plateia.

Denoy de Oliveira, ao se referir à rixa com os colegas do Cinema Novo, observou que os integrantes do Opinião procuravam

[…] o contato com o público. […] E nós achávamos que era importante não somente ficar na busca da qualidade isolada, mas também de uma eficácia política. […] Com o Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come estávamos atingindo uma qualidade e atingindo o público. Que era uma coisa que o Cinema Novo tinha muita dificuldade, embora alguns filmes pudessem ter tido sucesso. […] Tínhamos uma visão muito concreta de que nós não estávamos realizando um filme para apresentar lá no Nordeste ou na favela. Estávamos localizados num teatro em Copacabana, que tinha uma bilheteria e se aquela bilheteria não sustentasse o espetáculo, não se conseguiria desenvolver o trabalho, nem cultural, nem político, nem sobreviver. (OLIVEIRA apud RIDENTI, 2014, p.135).

Na avaliação de Dinacy Feitosa e Euclides Moreira Neto,

[...] a proposição da peça era mostrar que o povo brasileiro é obrigado a desenvolver uma capacidade enorme de sobrevivência, ser, inclusive, malabarista para driblar os entraves da vida.

O personagem principal é uma espécie de Malazarte, que se vê obrigado a desenvolver astúcias fora do comum na luta pela sobrevivência. […] é o próprio povo em sua caminhada diária sob pressão do capitalismo exagerado, sendo massacrado e por outro lado, produzindo para enriquecer uns à revelia da grande maioria da população.

É um despertar para a procura de uma linguagem teatral popular e que suscite ao povo questionamentos sobre a sua realidade. (FEITOSA; MOREIRA NETO, 1980, p.58-59).

Para Yan Michalski, numa crítica no Jornal do Brasil, em 1966, o “bicho” era uma “salada gostosíssima”:

Os ingredientes usados no preparo da salada são numerosíssimos: romance de aventuras, literatura de cordel, sátira de costumes, sátira política, farsa rasgada, commedia dell’arte, comédia à la Feydeau, comédia de nonsense, musical, comédia poética; […] e o tempero foi preparado de maneira tão adequada que o sabor de nenhum dos ingredientes destoa demais, nem se impõe abusivamente. Esse tempero consiste num ângulo de constante charme e humor sob o qual os acontecimentos são vistos […].

Depois de dois grandes sucessos, como Opinião e Liberdade, liberdade – sucessos respeitáveis e perfeitamente válidos em função do momento nacional, mas essencialmente circunstanciais e sem maior abertura de horizontes do ponto de vista teatral –, o Grupo Opinião realiza agora a sua primeira tentativa de teatro, digamos, artístico, e alcança, logo nessa primeira tentativa, uma surpreendente e agradabilíssima teatralidade. (MICHALSKI, 2004, p.59-62).

No entanto, apesar de a peça ser um sucesso de crítica e de público (WOLFF, 1966; D’AVERSA, 1966;23 PRADO, 1987),24 não deixa de receber um julgamento desfavorável de certos setores da esquerda. Houve, por exemplo, quem a visse como “um tratamento romântico da malandragem” e cumprindo uma tarefa limitada, mesmo que importante: “a de gratificar emocionalmente uma pequena burguesia democrática machucada pela decepção e sentimento de impotência” (MACIEL, 1966, p.295). Para Luiz Carlos Maciel, o “bicho” “carrega uma herança pesada”: os vínculos com a dramaturgia popularesca-nordestina e as experiências do CPC:

Infelizmente, no fundo, o “bicho” apenas substitui o romantismo revolucionário pelo amor ao picaresco, retrocedendo assim a um dos vícios de a Compadecida e congêneres. Esse amor é a correspondente afetiva do verde-amarelismo de nossos dramaturgos populares, em geral, e do rousseauanismo dos de esquerda, em particular. Roque, o personagem principal da peça, não é nem um herói problemático, nem um herói positivo, num sentido realista, para usar os termos de George Lukács. É apenas o herói positivo do romantismo revolucionário corrigido. [Roque] é um poço de virtude, conclui-se, porque nasceu e viveu no campo, longe da organização corruptora da sociedade humana, e porque é brasileiro e nordestino. […] Ao elogio da ingenuidade do interiorano brasileiro, junta-se sempre o elogio de sua safadeza.

[…] os autores e o Grupo Opinião declaram que o riso e a festa são suas armas contra o estado de coisas instalado no Brasil com o golpe de 1964. A ânsia indiscriminada pela alegria é sua resposta à frustração que tomou conta da esquerda brasileira nesses dois anos. (MACIEL, 1966, p.291-292).

Anos mais tarde, em 1978, Luiz Alberto de Souza afirma que

[...] de repente descobriram o povo. Rapidamente recusavam seu passado “alienado”, ouvindo e vendo outros grupos sociais com a voracidade de uma primeira paixão. Tudo lhes é novidade e lhes surge puro e sem equívocos. Desaparece a capacidade crítica, dando lugar a uma atitude de receber automaticamente o que (o povo) diz ou faz... [ou] valorizando o popular em si mesmo, como se, por artes mágicas, fosse possuidor da verdade, pela virtude implícita de suas carências. Na base está a descoberta, certeira, de que a história corre por outros caminhos. (SOUZA apud KÜHNER; ROCHA, 2001, p.94-95).

Para Ferreira Gullar, o Grupo Opinião conseguiu fazer “teatro político” de “alta qualidade”. No caso, então, de o “bicho”, a seu ver ele se “tornou uma obra-prima do teatro brasileiro”:

[…] essa peça ganhou todos os prêmios do teatro e até hoje é considerado um clássico do teatro brasileiro moderno. […] é uma coisa feita com qualidade porque tem que saber isso, você pode fazer arte política, tanto pode ser no teatro quanto no cinema […]. O que você tem que fazer primeiro, se você faz teatro, é antes de mais nada que o teatro seja bom, que a peça seja bom teatro, se você faz poesia, que a poesia seja boa poesia e depois ela é política ou não, mas o que tem que ter antes de mais nada é a qualidade, isso vale para tudo pro cinema se você faz uma chanchada é pregação política vazia que não tem qualidade artística e isto nós aprendemos, e a partir do […] Opinião, nós não fizemos mais o tipo de teatro meramente ideológico ou propagandístico, passamos a fazer teatro político, mas de qualidade. (GULLAR apud COUTINHO, 2011, p.225).

A despeito da discussão suscitada pelo espetáculo, ao cruzar Brecht e cordel, ou “distanciamento e protesto” (ISHMAEL-BISSETT, 1977), deparamo-nos com cenas em forma de reportagem, cenários móveis, música e o diálogo dos atores com o público. O texto ainda propõe três finais ao espectador. Os três são anunciados por Roque: “[…] escolha o que achar certo, o que lhe falar mais perto ou da alma ou do nariz. Mande às favas os demais” (VIANNA FILHO; GULLAR, 1966, p.178). O primeiro, “final feliz”, Roque casado com a filha do patrão; o segundo, “final jurídico”, a divisão das terras com os camponeses; e o terceiro, “final brasileiro”, a “restauração” da monarquia no Brasil (VIANNA FILHO; GULLAR, 1966, p.178-180).25

“Dr. Getúlio”

Em março de 1967, o grupo encena, também no Rio, a peça A saída? Onde fica a saída? (de Ferreira Gullar, Antônio Carlos Fontoura e Armando Costa), com a direção de João das Neves. O espetáculo visa “alertar a opinião pública da responsabilidade de todos e de cada um quanto a uma possível deflagração de uma guerra nuclear que porá fim à civilização” devido à desenfreada corrida armamentista e ao potencial atômico crescente dentro do tenso contexto da guerra fria. O título resume uma fala, recorrente em vários momentos da peça, em que um sobrevivente japonês descreve de forma impressionante os resultados da primeira bomba atômica lançada sobre Hiroshima – fala que será repetida por um soldado americano nas trincheiras, gritando que também ele quer “parar essa guerra!” (GULLAR; FONTOURA; COSTA, 1967, p.8 e 60). Fatos, ideias, argumentos e muitos dos personagens são reais, históricos, mostrando forças e interesses antagônicos em conflito, com um tipo de teatro documental e didático, ressaltado pela projeção de filmes, slides e documentos.26

Em junho de 1968, em meio às divergências pessoais, o Opinião, já sem Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes e Armando Costa, produziu Jornada de um imbecil até o entendimento, de Plínio Marcos, direção de João das Neves. De acordo com o diretor, naquele momento, não existia consenso na montagem de O último carro ou As 14 estações:

[…] não foi endossada, pois o grupo tinha a visão como um todo de que ela precisaria ser modificada, quer dizer, a segunda parte, onde a peça sai do enfoque naturalista da realidade e parte para o realismo fantástico, era rejeitada pelo grupo.27 […]

[…] fiquei querendo montar a peça, mas não tinha recursos nem possibilidades. E, além disso, porque a censura não permitiria. (NEVES, 1984, p.57).28

Em 10 de agosto de 1968 estreou em Porto Alegre, no Teatro Leopoldina, Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, de Dias Gomes e Ferreira Gullar, com direção de José Renato e música de Silas de Oliveira e Walter Rosa.29 A apresentação dos autores por ocasião da montagem define bem os postulados estéticos da peça (e, de certo modo, do grupo) à época:

Dr. Getúlio se insere na linha de pesquisa do novo teatro brasileiro que parte da premissa estética de que é preciso libertar o palco de todas as convenções anteriormente estabelecidas. E vai além, procurando estabelecer novas convenções. Estas, não arbitrárias, mas ditadas pela forma que se escolheu, inspiradas numa tradição popular. […] O enredo é uma forma narrativa livre, aberta, que pode prescindir até mesmo da lógica formal, muito embora a sua característica de desfile pressuponha uma ordenação. Mas essa ordenação pode ser quebrada, subvertida, sem prejuízo de uma unidade e uma coerência próprias. Uma cena não precisa, necessariamente, ser uma consequência lógica da anterior. Do mesmo modo inexiste qualquer compromisso com o realismo. O anacronismo e a inadequação passam a ser elementos universalizantes. O autor, o diretor e o ator têm absoluta liberdade para criar. (GOMES; GULLAR, 1968, s.p.).

A estratégia adotada pelo Opinião tinha por fundamento o envolvimento das camadas populares num processo de conscientização revolucionária, buscando “[…] numa catarse cívica o encontro entre atores e público, cúmplices de um ritual de protesto” (MOSTAÇO, 2016, p.77). Tanto na forma quanto no conteúdo, o grupo propunha o musical como formato mais apropriado para uma “plataforma político-cultural” pela construção de uma “frente ampla” de resistência democrática à ditadura (COSTA, 2017, p.120). Posição esta partilhada à época pela maioria da direção do Partido Comunista Brasileiro (PCB), contrária ao enfrentamento armado (RIDENTI, 2014, p.127).

O texto dramático tem duas histórias que se desenvolvem paralelamente. No plano da representação do que acontece, Simpatia, Tucão, Marlene, passistas e músicos da escola de samba ensaiam o enredo sobre a trajetória de Getúlio Vargas, destacando os momentos finais de sua vida. No plano da representação do acontecido, as cenas da vida de Getúlio, ensaiadas na quadra da escola, materializam-se diante da plateia. Trata-se, portanto, de encenação dentro da encenação, teatro dentro do teatro, numa linguagem marcadamente metalinguística. Por sinal, o ator que representava Getúlio Vargas também atuava como Simpatia. O mesmo recurso era utilizado com outros personagens, como Alzira Vargas/Marlene; Autor/Moleque Tião; Gregório Fortunato/Bola Sete; Bejo Vargas/Quibe; e Oswaldo Aranha/Gasolina.

Ao final da peça, as duas tramas se entrelaçam, e a morte de Getúlio, personagem do enredo, será também a de Simpatia, presidente da escola que lutava pela manutenção da posição conquistada pelo voto, com o bicheiro Tucão, ex-presidente, que não aceitava a derrota na eleição que fez de Simpatia o novo líder. Marlene, ex-amante de Tucão e namorada de Simpatia, encarna outro motivo do ódio entre os dois homens.

Na primeira rubrica da peça, encontra-se a seguinte indicação: “A ação transcorre, toda ela, na quadra da escola de samba. É um grande pátio, onde não há móveis, utensílios de qualquer natureza. Apenas um praticável onde fica a bateria” (GOMES; GULLAR, 1968, p.5). Na maior parte das vezes, a bateria introduz o samba-enredo, recorrente- mente executado ao longo da peça, permanecendo em silêncio nos momentos em que o ensaio conta parte da trajetória de Getúlio Vargas. Ela ainda toca nos momentos finais, tendo uma função decisiva para promover uma atmosfera sonora de suspense sobre o desfecho da vida de Getúlio e de Simpatia, vítimas de um golpe. Evidencia-se, assim, o paralelo com o golpe de 1964 (GULLAR, 2006b, p.144-145).

Na diferenciação entre factual e ficcional, muda-se a estrutura dos diálogos. Em prosa estão os diálogos dos personagens baseados na vida real – Getúlio, seu irmão Benjamim, Alzira Vargas e Carlos Lacerda. Em verso, as falas dos autores, que assumem as funções de narradores, e as conversas de Simpatia e Tucão. Dessa forma, produziu-se um efeito paradoxal: as cenas do enredo, ou seja, da dramatização de momentos da vida de Getúlio Vargas, ganham aspectos realistas, enquanto aquelas que correspondem à vida das personagens da escola conquistam um tom lúdico, que os versos e as músicas lhes atribuem.

Para Dias Gomes, Ferreira Gullar e os integrantes do Opinião, a peça misturou arte popular, experimentalismo estético e engajamento político ao incorporar o humor e a musicalidade das escolas de samba com o objetivo de promover a conscientização social e a luta popular contra as injustiças sociais. Ferreira Gullar, em parceria com Vianinha, escreveu para o Grupo Opinião a farsa musical em verso, baseada na literatura de cordel, Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Com Dias Gomes, Gullar mesclou prosa e verso no drama musical Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, cujo título remete ao samba-exaltação do enredo da escola de samba da peça. Essa peça, assim como outras de Dias Gomes, incorpora traços do teatro épico brechtiano dentro de uma estrutura predominantemente dramática: o tempo – a duração de um ensaio; o lugar – a quadra; e a ação – a disputa entre o atual e o ex-presidente da escola pelo poder e pela mulher que, sintomaticamente, trocou o segundo pelo primeiro. Entretanto, o aprofundamento psicológico, outra característica fundamental do drama, é negligenciado em favor da mistificação de Getúlio Vargas e da importância da tomada de consciência e da luta popular (COSTA, 2017).

Sem dúvida prevaleceram a complacência e a recusa em abordar de frente um assunto como o mito Getúlio Vargas, ainda mais se considerarmos que o golpe de 1964 foi associado ao golpe militar de 1945, no qual ele havia sido deposto, e que a autodenominada “Revolução de 1964” assumiu um claro e manifesto sentido político antigetulista e antipopulista. Nessa perspectiva, falar de Getúlio era fazer descer goela abaixo dos militares e civis golpistas um tema indigesto, algo que adquiria, mesmo que por vias oblíquas, um caráter desafiador. Seja como for, o mito não foi enfrentado segundo as exigências do teatro épico. No samba-enredo de Silas de Oliveira e Ferreira Gullar, evidenciam-se elogios rasgados ao então presidente, à “Revolução de 1930”, “às leis trabalhistas e à Previdência Social” – supostamente criadas pelo “estadista”, ou a “Getúlio [que] já coberto de calúnias e de glória / meteu uma bala no coração: saiu da vida para entrar na história / e daquela carta derradeira o povo fez sua bandeira, na luta pela emancipação” (GOMES; GULLAR, 1968, p.10-11).

Iná Camargo Costa acentua que Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, “cujo título já aponta para a adesão, em si mesma problemática, à perspectiva do samba-exaltação”, foi recebida com grande euforia pela crítica,

[…] que acreditou ter visto na peça a materialização de um importante processo de pesquisa experimental, chegando alguns, como Maria Helena Kühner, a divisar nela um caminho para o teatro político ou, como Anatol Rosenfeld, a classificá-la como “uma das mais brilhantes peças políticas da atualidade”. (COSTA, 2017, p.122).

Para Antônio Callado, autor do prefácio da publicação da peça em 1968, “[…] a encarnação de Getúlio em Simpatia e o esforço de Simpatia para representar Getúlio dão uma dignidade inesperada à morte de Simpatia e uma espécie de religiosidade popular à morte de Getúlio”. Assim, “as duas paixões-e-morte, urdidas na mesma trama carnavalesca e sangrenta, resultam na tapeçaria fabulosa da realidade brasileira” (CALLADO apud GOMES; GULLAR 1968, s.p.).30

Para o diretor, ator, jornalista e ensaísta Fernando Peixoto – num texto publicado em 1968 no Correio da Manhã –, Dr. Getúlio resumia

[…] toda a tragédia histórica do país. E o Brasil de hoje é, sobretudo, o resultado de sua ditadura, de suas contradições aparentemente incompreensíveis, sua habilidade política nem sempre coerente, seu governo oscilando entre o trabalhismo e o fascismo, entre a aceitação do capital estrangeiro e as paralelas campanhas pela liberdade econômica do país. […] Acredito na possibilidade de comunicação da peça para uma plateia popular, mas para Copacabana Dr. Getúlio […] certamente não passa de um divertimento esquerdizante e engraçadinho. Culpa, é evidente, da plateia, não do texto, que leva adiante uma pesquisa formal séria e de excelentes resultados. […] A importância e os acertos conseguidos na pesquisa de uma estrutura teatral popular conferem um valor especial na dramaturgia brasileira, a esta primeira aproximação com a figura de Getúlio Vargas, realizada por dois intelectuais que mais se empenham numa renovação efetiva do teatro nacional. (PEIXOTO, 2002, p.215-217).31

Em certa medida, a encenação e a montagem diferenciada sobrepunham qualquer tipo de discussão mais aprofundada sobre o significado dos governos Vargas para a sociedade brasileira. Ao contrário, o nacionalismo, o denominado “novo desenvolvimentismo” e a criação das leis sociais assustavam os golpistas de 64, mas também alimentavam os sonhos de boa parte do imaginário de esquerda.32

Na passagem da década de 1950 para a seguinte, o teatro épico brechtiano de certa forma tornou-se padrão de uma parcela da dramaturgia militante. Todavia, Dias Gomes não produziu uma efetiva ruptura com os formatos dramáticos, como a que ocorreu em grupos teatrais formalmente mais radicais, como o Teatro de Arena e, posteriormente, o Centro Popular de Cultura/CPC e o Opinião. Ele buscou um lugar entre as formas épicas e as dramáticas. Nesse “entrelugar”, suas peças combinam características de uma e de outra estética teatral, formando um híbrido entre o tradicional e o moderno, do ponto de vista das vanguardas artísticas da época. Elas resultam da combinação de vários estilos dramatúrgicos que, coexistindo, permitem várias formas de identificação e de interpretação.

Essa hibridação de matrizes estético-culturais distintas (dramáticas e épicas) fazia parte da perspectiva lukacsiana adotada nos anos 1960 pelo Comitê Cultural do PCB, do qual Dias Gomes participava. Nos movimentos artísticos simpáticos ao comunismo, era evidente a hibridação como estratégia de estabelecimento de uma comunicação popular mais direta e intensa. Tornou-se necessário que os artistas engajados se apropriassem de aspectos da cultura popular (imaginários, valores, crenças, formas simbólicas e materiais, personagens típicos e folclóricos) para poderem de algum modo promover a identificação, a conscientização e, pretensamente, a reação política das camadas populares ao capitalismo e às suas formas perversas de dominação.

Para Dias Gomes,

[…] mesmo os autores mais importantes da época [anos 1940 e 1950], o Oduvaldo Vianna pai, o Gastão Tojeiro, por exemplo, que eram uma espécie de continuadores de Martins Pena, […] que buscavam os tipos que eram tidos como brasileiros, […] na verdade [eram] superficiais. Estes tipos não eram aprofundados e a realidade que se apresentava era uma realidade romântica, com uma abordagem pitoresca, procurando-se o lado pitoresco. Não se mergulhava dentro do homem, dentro da realidade. Isso só começou a existir na dramaturgia […] a partir dos anos cinquenta em diante. Até então havia aquele negócio do homem do campo brasileiro, do caipira, valorizado, dando lições ao homem da cidade, aquelas coisas que caracterizam um certo tipo de teatro dos anos trinta, vinte, por aí. Mas isso não ia ao fundo das coisas, não se buscava a verdade do homem brasileiro dentro da sua realidade, dentro da sociedade em que vive, seus conflitos, sua forma de ser e de pensar, com os seus desejos e pretensões. Não se perguntava sobre os problemas deste homem, sobre quem o esmaga. Essas perguntas não eram feitas de modo algum. Abordava-se apenas o pitoresco da coisa. (GOMES, 1981, p.38).

Destaca-se que a utilização da música nos espetáculos era um dos modos mais eficazes de aproximação com o público. Os primeiros indícios de música e ação dramática nas peças de Dias aparecem no Pagador de promessas com a roda de capoeira, depois o tema do Bumba meu boi na Revolução dos beatos e o samba do Bola Sete na Invasão. Já as canções de O berço do herói são claramente reveladoras da influência brechtiana: não visam falar apenas ao sentimentalismo fácil ou provocar a exaltação emocional, mas estão organicamente integradas à ação e ao pensamento, fazendo avançar a trama ou comentando-a criticamente. Assim, Brecht contribuía com sua teorização e o exemplo de sua dramaturgia para derrubar os preconceitos em relação ao musical, inclusive do próprio Dias. De fato, a música não precisava “diluir e abafar a força das ideias” (GOMES, 1992, v.4, p.9).

À mesma posição havia chegado, por volta dessa época, a grande maioria dos autores, encenadores e grupos ou companhias que constituíam a vertente mais atuante e progressista do teatro brasileiro. Dramaturgos como Gianfrancesco Guarnieri, Plínio Marcos, Vianinha, Ferreira Gullar, Paulo Pontes, João das Neves, entre tantos outros, engajaram-se na tentativa de criar um tipo de teatro musical que fosse ao mesmo tempo popular e autenticamente brasileiro (PARANHOS, 2012).33

Dr. Getúlio, se por um lado não desconstrói o mito, como citado anteriormente, por outro, abre uma janela pouco explorada pela literatura teatral: o enredo de escola de samba como estrutura básica do gênero dramático-musical, ou seja, um modo próprio de organizar e desenvolver a narrativa dramática, libertando-a da rigidez do encadeamento causal das cenas e atendo-se, brechtianamente, aos momentos capitais mais expressivos da ação dramática. Neste caso, o texto teatral destina-se explicitamente a comentar a realidade político-social. O centro do debate é o golpe militar de 1964 (João Goulart x Getúlio Vargas). Recurso intencional, explorado habilmente pelos autores, faz com que os personagens da escola de samba, sendo ficcionais, falem sempre em versos rimados, enquanto os personagens históricos usam a prosa coloquial.

Depois da montagem de Antígona, em 1969, de Sófocles, numa tradução de Ferreira Gullar, o Opinião, afogado em dívidas, dissolve-se. João das Neves, o único que não aceita tal decisão, decide continuar sozinho e parte em busca de novos parceiros. O teatro inclusive será alugado, em alguns momentos, para jovens iniciantes, e o próprio diretor passa a comandar espetáculos fora do eixo Rio-São Paulo. Nos anos seguintes, seguem-se as montagens de A ponte sobre o pântano, em 1971, de Aldomar Conrado, direção de João das Neves; e, de autoria e direção do mesmo, Se eu tivesse meu mundo, em 1973, O último carro, em 1976, Mural mulher, em 1979, e Café da manhã, em 1980. Além das peças, vários shows de música foram apresentados, como: Telecoteco Opus 1, A fina flor do samba (rodas de samba, às segundas-feiras), Caminhando, com Geraldo Vandré, Bacobufo no caterefofo, com o MPB4, Cinara e Cibele, Milton Nascimento e o Som Imaginário, e Pindoramacumba.34 Entretanto, em 1980, o teatro seria vendido, apesar dos protestos e manifestos, com centenas de assinaturas. Os jornais chegaram a registrar a importância de um Grupo “que foi um encontro de cabeças pensantes, uma ideologia, um movimento de vanguarda e de resistência”. Na ocasião, João das Neves declarou: “O Opinião é coisa que não se vende” (KÜHNER; ROCHA, 2001, p.104).35

Examinar esses musicais equivale a revisitar, de certa forma, o momento vivido no Brasil, que essas peças denunciam e subvertem, enquanto nos possibilitam uma aproximação com estilos narrativos diferenciados de representação do poder institucionalizado. Nessa esteira, entendo que o discurso musical atinge o espectador não só pela sonoridade, mas igualmente pela sua capacidade de sugerir imagens e de inventar espaços e lugares ao criar figurações cênico-dramáticas. Debruçar sobre temáticas que envolvam a ditadura militar é vasculhar um campo de representações que contém expressões de perseverança surgidas nesse período. Mergulhada nesse contexto, uma parcela significativa de artistas se posicionou imediatamente contra o golpe e iniciou um “levante cultural” no combate às medidas do governo, no qual o teatro e a música tiveram um papel determinante. Esse padrão de perseverança mediado pela cultura contém uma historicidade digna de atenção, sobretudo no que diz respeito às artes cênicas. O Grupo Opinião, por meio das peças teatrais, fundia diferentes expressões, versos, metáforas, alegorias e outros elementos que, em conjunto, compõem um cenário significativo de articulações de um modo de pensar e agir, uma visão do mundo. Esse resultado reitera a noção de que as formas e produções culturais se criam e se recriam na trama das relações sociais, da produção e reprodução de toda a sociedade e de suas partes constitutivas. Mariângela Alves de Lima, num texto escrito no final dos 1970, afirma que a constituição de um grupo de teatro

[…] significa reunir fiapos de informação dispersos, criar um espaço expressivo para sedimentar a amargura, levantar a dúvida e ensaiar a resistência. Independentemente do espetáculo que venha a produzir, a formação de um grupo é uma ação cultural e uma ação social. (LIMA, 2005, p.238).

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Notas

* Este trabalho recebeu apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).
2 A direção musical do show foi de Dori Caymmi, com a participação dos músicos Roberto Nascimento no violão, Hekel Tavares na flauta e João Jorge Vargas na bateria (COSTA et al., 1965, s.p.).
3 De acordo com João das Neves, o nome Grupo Opinião passou a ser utilizado a partir da encenação de Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, em 1966 (NEVES, 1987, p.58).
4 As estatísticas, elementos peculiares do Show Opinião, eram citadas no decorrer do espetáculo entre canções e falas. Fazia-se um corte para transmitir as informações sobre a sociedade brasileira, como, por exemplo, a porcentagem de êxodo rural no início da década de 1960. Essa colagem é uma característica do teatro de teor político que cruza cenas fictícias e realidade (WILLETT, 1967).
5 Expressão utilizada por Eric Hobsbawm ao se referir às cantigas de trabalho, músicas satíricas e lamentos de amor (HOBSBAWM, 1991, p.52).
6 No programa do espetáculo (“As intenções do Opinião”), pode-se ler: “A música popular é tanto mais expressiva quanto mais tem uma opinião, quando se alia ao povo na captação de novos sentimentos e valores necessários para a evolução social; quando mantêm vivas as tradições de unidade e integração nacionais” (COSTA et al., 1965, p.7).
7 Trecho de abertura do show: “A luz dos refletores se acende, entra João do Vale. […] João do Vale ao público: Peba é um tatu. A gente caça ele para comer. Com pimenta fica mais gostoso. Eu vou cantar […]. ‘Seu Malaquias preparou / Cinco pebas na pimenta / Só o povo de Campinas / Seu Malaquias convidou mais de quarenta / Entre todos os convidados / Pra comer peba foi também Maria Benta Benta / Benta foi logo dizendo / Se arder, não quero, não / Seu Malaquias então lhe disse: pode comer sem susto / Pimentão não arde, não / […] / Ai, ai / Ai, seu Malaquias / […] / Você disse que não ardia / Ai, ai / Tá ardendo pra danar / […]’” (VALE; BATISTA, Zé. “Peba na pimenta” apud COSTA et al., 1965, p.15-16).
8 Vale conferir o documentário Memórias do Grupo Opinião, de 2019, de Paulo Thiago.
9 Sobre a noção de povo para os integrantes do CPC, ver “Caminhos de uma arte popular” (MOSTAÇO, 2016, especialmente p.59-60).
10 Em Revolução na América do Sul – encenada em 1960, em São Paulo, no Teatro de Arena –, Boal, ao tratar da exploração do trabalhador, optou por um espetáculo musicado entrecruzado por histórias em formato de esquetes (BOAL, 1960). Para o diretor, “em Opinião, os fatos não estão expostos caoticamente, embora muitas vezes conflituem. Há uma ideia central organizadora da obra, embora nem sempre explícita. A mesma ideia informa as canções de Zé e João, de Pete Seeger e do anônimo espanhol ‘al pueblo y a las flores no los mata el fuzil’. Porque não os mata, Opinião tenta dizer: a simples existência de opinião é prova de perenidade de flores e povo” (BOAL apud MOSTAÇO, 2016, p.97).
11 Sobre o show, ver um pequeno trecho no filme O desafio, de 1965, de Paulo César Saraceni, e a gravação das músicas no disco de agosto de 1965. “Este é, sem dúvida, um lançamento esperado pelo público brasileiro: o Show Opinião em disco. Aqui estão, na voz de Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale, os momentos emocionantes do espetáculo, gravados em cena, e aquelas músicas que são hoje sucessos populares no Brasil: ‘Opinião’, ‘Carcará’, ‘Noticiário do Brasil’, ‘Tiradentes’, e tantas outras. […] Rompendo com os métodos usuais, o espetáculo foi feito de modo a revelar o substrato humano, social, político, que se encontra sob as composições musicais de João do Vale e Zé Kéti e na opção de Nara ao se tornar a intérprete da música popular socialmente engajada. […] Trata-se, aqui, de uma condensação do espetáculo feita de modo a preservar-lhes as qualidades e a autenticidade originais. Este lançamento permitirá, aos que viram o espetáculo, reviver aqueles momentos emocionantes; e aos que não viram, a oportunidade de conhecê-lo” (Texto do encarte do LP Show Opinião reproduzido no CD, de 1994, com título homônimo).
12 Segundo Iná Camargo Costa (1996, p.21), “a novidade era que Black-tie introduzia uma importante mudança de foco em nossa dramaturgia: pela primeira vez o proletariado como classe assume a condição de protagonista de um espetáculo”. A busca do nacional, do popular, do homem do povo, está presente também nos filmes do diretor Nelson Pereira dos Santos em Rio 40 graus, de 1954-1955, e Rio, Zona Norte, de 1957 (RIDENTI, 2014, p.83).
13 Para Hélio Fernandes, numa matéria, em 1965, no jornal Tribuna da Imprensa, “‘Opinião’ é um espetáculo para ver uma, cinco, dez vezes, sem cansar. É recomendável para os que gostam do chamado ‘teatro digestivo’; para os que querem apenas se distrair com um bom musical; para os que vão aos teatros sem compromissos, e também para os que gostam de sair dos espetáculos com ‘alguma coisa para pensar’” (FERNANDES, 1965, p.23). O Opinião, “de acordo com João das Neves […], atraiu basicamente estudantes e pessoas do mundo artístico, apesar de seu público variar de estudantes a classe média alta. Entretanto, o número de espectadores que viram o espetáculo dá uma ideia mais ampla de sua recepção. Ross Butler conta que em algumas semanas mais de 25 mil pessoas o tinham visto no Rio, e que, em São Paulo e Porto Alegre (onde foi encenado mais tarde), mais de cem mil pessoas o assistiram. O espetáculo teve também um efeito multiplicado: Opinião se tornou emblemático de protesto e solidariedade para muitos outros que não viram o show, mas, tendo ouvido falar dele, compraram o disco” (DAMASCENO, 1994, p.169).
14 A canção “Opinião” “tornava-se uma senha de reconhecimento da tribo ideológica. Por metonímia, por simbolização” (MOSTAÇO, 2016, p.101).
15 O show, porém, não foi unanimidade de crítica. Por exemplo, nas páginas da Revista Civilização Brasileira, o jornalista e crítico de teatro Paulo Francis observava que “qualquer protesto é útil […], pois, desde 1º de abril, o país parece imerso em catatonia, precisando de ser sacudido. Mas Opinião, quando chega ao público, pelos intérpretes e a música, nada contém de indutivo à ação política. Basta-se a si próprio, é muito agradável […]. Mas daí a considerá-lo como um evento político vai uma certa distância, pois, nesse terreno, o espetáculo nunca sai do Kindergarten sentimental da esquerda brasileira” (FRANCIS, 1965, p.215-216). Para José Ramos Tinhorão, no texto “Um equívoco de ‘Opinião’”, de 1966, o show pode ser entendido como uma das “criações de um grupo de classe média para consumo das próprias ilusões” (TINHORÃO, 1997, p.86).
16 “O show teve uma enorme repercussão; era feito com habilidade, uma coisa engraçada, cheia de música, Narinha Leão, lindinha, conquistando as pessoas, o João do Vale, que era um compositor do Nordeste e Zé Kéti, um compositor do morro. Ninguém com compromisso político, com marca política nenhuma, mas o conteúdo do show, no meio das brincadeiras, era contra a ditadura mesmo. No fundo, reafirmar o plano da reforma agrária, a luta de classes, contra a exploração. O povo, a intelectualidade toda e o pessoal de classe média se identificou, viu que aquilo era expressão contrária à ditadura e o teatro era lotado com meses de antecedência. Quando a ditadura se deu conta, não pôde fazer nada, porque não podia fechar um espetáculo que era o sucesso do teatro na época” (GULLAR apud RIDENTI, 2014, p.107). Edélcio Mostaço assinala que a encenação exercitava “uma comunicação entre iniciados: palco e plateia irmanados na mesma fé” (MOSTAÇO, 2016, p.97-98). Por outro lado, Marcos Napolitano pontua que esse mesmo “circuito fechado” representava “a ampliação e a massificação do público, bases fundamentais para entender a entrada dos produtores culturais de esquerda na indústria cultural” (NAPOLITANO, 2001, p.75).
17 O texto teatral Liberdade, liberdade foi publicado em 1965 pela editora Civilização Brasileira.
18 Por conta disso, o Grupo Opinião lança o show musical Samba pede passagem, para o qual convoca a fina flor da música popular brasileira da época (Araci de Almeida, Baden Powell, Ismael Silva e MPB 4), com uma produção cara, de elenco gigante, que quase leva o grupo à falência (DORIA, 1975, p.174-177; KÜHNER; ROCHA, 2001, p.91-92).
19 O elenco era integrado por Agildo Ribeiro, Oduvaldo Vianna Filho, A. Fregolente, Rafael de Carvalho, Helena Ignez, Virgínia Valli, Sérgio Mamberti, Thelma Reston, Ângelo Antônio, Othoniel Serra, Emmanuel Cavalcanti, Osvaldo Loureiro, Denoy de Oliveira, Hugo Carvana, Antônio Pitanga, Francisco Milani, Manuel Pêra e Odete Lara. A direção musical estava sob a batuta de Geni Marcondes e Gaya, com músicas de Geni Marcondes e Denoy de Oliveira (VIANNA FILHO; GULLAR, 1966, s.p).
20 Auto da Compadecida, peça teatral em forma de auto, em três atos, foi escrita por Ariano Suassuna em 1955. Da literatura de cordel, Suassuna tomou emprestado o personagem João Grilo, figura folclórica presente tanto no Brasil quanto em Portugal. A peça foi encenada pela primeira vez em 11 de setembro de 1956, no Teatro de Santa Isabel, pelo Teatro Adolescente do Recife, sob direção de Clênio Wanderley, figurino de Victor Moreira, cenários de Aloísio Magalhães e, no papel de João Grilo, Agildo Ribeiro.
21 Segundo Gullar, o “bicho” “foi escrito deliberadamente para passar na censura. […] nós fizemos […] uma peça rimada e metrificada e realmente muito elaborada e a censura no dia do espetáculo feito para eles, aplaudiu […], nem percebeu o que que a peça tava dizendo, era tão engraçada e tão bonita, tão bem feita que eles terminaram se entusiasmando com a peça. Isso é que era a maneira que nós aprendemos com a luta de como você tinha que vencer a censura, não era ficar peitando a censura e fazendo um espetáculo de provocação, você tinha que fazer uma coisa sutil e de alta qualidade” (GULLAR apud COUTINHO, 2011, p.229).
22 “Canção do bicho”, de Geni Marcondes, Denoy de Oliveira e Ferreira Gullar, foi gravada por Nara Leão no LP Manhã de liberdade (Philips, 1966). Nesse disco consta também o poema musicado “Dois e dois: quatro”, de Ferreira Gullar e Denoy de Oliveira.
23 Para Alberto D’Aversa, no Diário de São Paulo, em 1966, “Roque e Brás das Flores cantam, dançam, brigam […]. A peça tem a virtude de ser em versos. Há anos que estamos falando sobre a necessidade de usar novamente o verso no teatro para um tipo determinado de repertório. As vantagens podem ser controladas neste surpreendente ‘... bicho que pega e come’: uma imediata libertação de todas as preocupações naturalistas, uma liberdade de invenção cênica que pode chegar até a improvisação, que é o limite altíssimo de toda arte representativa […]. Enfim, e felizmente, um espetáculo obrigatório” (D’AVERSA, 1966, p.19).
24 Segundo Décio de Almeida Prado, no Estado de S. Paulo, em 1966, o momento político não era animador, “porém inspirou a Ferreira Gullar e Oduvaldo Viana Filho uma das mais deslavadas e engraçadas farsas do moderno teatro brasileiro” (PRADO, 1987, p.143).
25 Fernando Marques enfatiza que “a colagem feita em Opinião obedece não apenas ao caráter de frente oposicionista que o show pretendeu ter, mas também à sugestão lukacsiana do ‘particular típico’, no caso encarnado em atores-cantores chamados a simbolizar a classe média, os proletários, os camponeses. A irresponsabilidade dos heróis pícaros, no Bicho, atende às maravilhas às referências que se quiseram fazer à desorientação das forças políticas (sobretudo as de classe média) frente ao impasse imposto pelo golpe. […] O poder que os musicais têm de somar elementos diversos, e mesmo díspares, corresponderá à sua capacidade de aglutinação cultural, conforme referências de toda sorte – poéticas, sonoras, plásticas, éticas. Neles, o épico e o catártico, o espírito crítico e o lúdico se encontram” (MARQUES, 2014, p.334-335).
26 Ainda em 1967, o Opinião montou Meia volta, vou ver, de Oduvaldo Vianna Filho, direção de Armando Costa, e o O inspetor geral, de Gogol, direção de Benedito Corsi.
27 O foco de análise do texto está centrado nas relações de poder estabelecidas confusamente num emaranhado de seres ignorados pelos “cidadãos contribuintes”, fazendo emergir uma fauna de alcaguetes, prostitutas, homossexuais, cafetões e cafetinas, operários, donas de casas, policiais corruptos: seres jogados em cena sem nenhuma cortina de fumaça. Na peça, avultam como temas a solidão e a decadência humana, o círculo vicioso da tortura mútua e a absoluta falta de sentido nas vidas degradadas, a sexualidade e os padrões de comportamento dominantes, o beco sem saída da miséria e a violência, a superexploração do trabalho humano e a morte prematura como horizonte permanente. Sobressaem, portanto, sujeitos sociais distintos, marcados pela tragédia individual e coletiva (PARANHOS, 2019).
28 O último carro só encontrou lugar e tempo propício para sua encenação em 1976. Por conta desse trabalho, João das Neves foi premiado com o Molière de melhor direção e recebeu o prêmio Brasília de melhor autor naquele ano e o prêmio Mambembe de melhor diretor em 1977 (MARQUES, 2016).
29 O elenco era integrado por Nelson Xavier, Emiliano Queiroz, Haroldo de Oliveira, Aizita Nascimento, Tereza Rachel, Joaquim Soares, Adalberto Silva, Antônio Lucio, Enrique Amoedo, Ney Costa, Wladimir José, Ubirajara, Manoel Bonfim, o mestre-sala Robertinho e o abre-alas Ely (GOMES, 1972, v.2, p.755).
30 Paulo Francis se perguntava: “existirá coisa mais ‘popular’ do que Vargas numa Escola de Samba?”. Para o então crítico de teatro, “a concepção dos autores é também um avanço sobre a maioria dos textos de teatro popular” (FRANCIS apud GOMES; GULLAR, 1968, orelha do livro Dr. Getúlio, sua vida e sua glória).
31 O crítico Nelson Werneck Sodré, em artigo na Revista Civilização Brasileira, em 1968, afirmava que “o impasse da peça […] consiste precisamente […] em não ter podido completar aquilo que surgia dela, intrinsecamente, como uma necessidade, integrando-se nas multidões, nas praças, nos anfiteatros abertos, com amplos palcos e sistemas acústicos correspondentes, valorizando ao máximo, nela, o que as massas acolhem com mais facilidade, inclusive a dança e a música” (SODRÉ, 1968, p.203).
32 Em 1983, ano do centenário do nascimento de Vargas – quando a ditadura vivia seus estertores, mas subsistia, por mais cambaleante que estivesse –, Dr. Getúlio voltou à cena numa versão intitulada Vargas, estreando em 3 de outubro no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro. Basicamente é o mesmo tema, a mesma proposta formal com algumas alterações na coreografia, cenários, figurinos e, principalmente, na concepção cênica de Flávio Rangel e na música de Edu Lobo e Chico Buarque. O samba-enredo da dupla famosa reedita, mais uma vez, velhos argumentos: “Foi o chefe mais amado da nação / Desde o sucesso da revolução / Liderando os liberais / Foi o pai dos mais humildes brasileiros / Lutando contra grupos financeiros / E altos interesses internacionais / Deu início a um tempo de transformações / Guiado pelo anseio de justiça / E de liberdade social / E depois de compelido a se afastar / Voltou pelos braços do povo / Em campanha triunfal / Abram alas que Gegê vai passar / Olha a evolução da história / Abram alas pra Gegê desfilar / Na memória popular / Foi o chefe mais amado da nação / A nós ele entregou seu coração / Que não largaremos mais / Não, pois nossos corações hão de ser nossos / A terra, o nosso sangue, os nossos poços / O petróleo é nosso, os nossos carnavais / Sim, puniu os traidores com o perdão / E encheu de brios todo o nosso povo / Povo que a ninguém será servil / E partindo nos deixou uma lição / A Pátria, afinal, ficar livre / Ou morrer pelo Brasil / Abram alas que Gegê vai passar / Olha a evolução da história / Abram alas pra Gegê desfilar / Na memória popular” (LOBO; BUARQUE apud GOMES, 1992, v.4, p.42-43).
33 Para Marcelo Ridenti, “em que pesem as diferenças entre as propostas do CPC, do Opinião, do Teatro de Arena, dos lukacsianos-gramscianos, dos comunistas adeptos do Cinema Novo, todas giravam em torno da busca artística das raízes na cultura brasileira, no povo, o que permite caracterizar essas propostas, genericamente, como nacional-populares, típicas do romantismo da época […]. […] esse romantismo estava contraditório, mas indissoluvelmente ligado à ideia iluminista de progresso” (RIDENTI, 2014, p.110-111, grifos do autor).
34 Segundo João das Neves, “o grupo sempre fora muito ligado a movimentos populares, a movimentos de música popular, e trouxemos o samba das favelas para os teatros. Durante muitos anos – mais de 15 – apresentamos um espetáculo que teve diversos nomes: A fina flor do samba, Cartola n. 2, Boa noitada de samba. O nosso contato com o pessoal da música, do samba, era muito grande – e devo dizer que, de todos os grandes músicos hoje conhecidos no Brasil, pelo menos 70% passaram pelo Opinião, passaram pelas nossas mãos, foram dirigidos por mim” (NEVES, 1987, p.21). “As ‘noitadas’ programadas pelo Opinião, para além das atividades de manutenção do espaço, abriu um debate sobre a posição social do compositor no mercado de trabalho que quase sempre fica no anonimato em relação ao cantor” (SEM AUTORIA apud MARQUES, 2016, p.205).
35 Para o poeta Ferreira Gullar: “O teatro me fascinava, mas eu não tinha o conhecimento de dramaturgia. Quando entrei para o CPC, me envolvi com teatro; depois ajudei a criar o Opinião, onde faria a minha primeira peça. Aliás, o trabalho no Opinião foi um verdadeiro aprendizado: eu acompanhava os ensaios, discutia as cenas e aí consegui realmente dominar a técnica da dramaturgia, o instrumento da linguagem teatral mesmo. […] tenho outras peças, algumas que nem dei por terminadas” (GULLAR, 1998, p.50-51).


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