Dosier 1
Linguagem neutra e letramento inclusivo-incisivo
Neutral Language and Inclusive-Incisive Literacy
Lenguaje neutro y alfabetización inclusiva-incisiva
Descentrada
Universidad Nacional de La Plata, Argentina
ISSN: 2545-7284
Periodicidade: Semestral
vol. 8, núm. 1, e221, 2024
Recepção: 13 Dezembro 2022
Aprovação: 01 Agosto 2023
Publicado: 01 Março 2024
Resumen: El artículo presenta algunas primeras consideraciones respecto del uso del lenguaje neutro, no binario en Brasil. Para la constitución del corpus se realizó una encuesta en el mercado editorial, seguida de una investigación simple, de un análisis de ese uso en un género discursivo cotidiano y un análisis documental en una universidad pública. A partir de eso, se plantea la necesidad de desarrollar perspectivas de educación lingüístico-discursiva que permitan alcanzar formas de alfabetización inclusivas e incisivas. La investigación se basa en los aportes de Tosi (2020), Maingueneau (2018), Calle (2010), Negroni y Hall (2022), Cano, Carreira y Silva (2022), y se apoya en uma serie de conceptos que ayudan a delinear estrategias físico-estructurales y pedagógicas para la constitución de espacios sociales y discursivos con algunas propuestas para que todos los sujetos se sientan representados.
Palabras clave: Género, Lenguaje Neutro, Alfabetización Inclusiva-Incisiva, Educación Lingüística.
Resumo: O artigo apresenta reflexões sobre linguagem neutra, não-binária, no Brasil. Para a constituição do corpus foi feita sondagem no mercado editorial para simples averiguação, análise de seu uso em gênero do cotidiano e análise documental em universidade pública. A partir disso, apresenta a necessidade de perspectivas de educação linguístico-discursiva em prol de letramentos inclusivos e incisivos. Para isso, fundamenta-se em Tosi (2020); Butler (2011); Maingueneau (2018) e Street (2010), Negroni e Hall (2022), Cano, Carreira e Silva (2022). Estratégias físico-estruturais e pedagógicas para constituição de espaços sociais e espaços do dizer são algumas propostas para que os sujeitos sintam-se representados.
Palavras-chave: Gênero, Linguagem Neutra, Letramento Inclusivo-Incisivo, Educação Linguística.
Abstract: The article presents reflections on neutral and non-binary language in Brazil. For the constitution of the corpus, a survey was carried out in the editorial market for simple investigation, analysis of its use in everyday gender and documentary analysis in a public university. It presents the need for linguistic-discursive education perspectives in favor of inclusive and incisive literacies. This research is based on Tosi (2020); Butler (2011); Maingueneau (2018) and Street (2010), Negroni and Hall (2022), Cano, Carreira & Silva (2022). Physical-structural and pedagogical strategies for the constitution of social spaces and discourses spaces are some proposals for the subjects to feel represented.
Keywords: Gender, Neutral Language, Inclusive-Incisive Literacy, Linguistic Education.
1. Introdução
As situações sociais comunicativas em diferentes contextos e gêneros do discurso já demonstraram que a linguagem incl usiva é um fenômeno linguístico concreto na realidade social brasileira e mundial, como podemos observar em diálogo retirado de legendas e áudios traduzidos para o português extraídos da série da Netflix The Kominsky Method, na terceira temporada, na qual o ator Morgan Freeman faz uma participação especial como ele mesmo, em que o contexto é a filmagem da cena de um filme dentro do episódio, no qual ocorre o diálogo abaixo transcrito:
A cena de enunciação que se constrói por meio do diálogo na série tenta lidar com o uso da linguagem neutra de forma leve e humorística, mas acaba por demonstrar certa ironia e embates geracionais com relação ao uso adequado. Delimitando nosso olhar ao uso da linguagem não-binária ou neutra e às estratégias usadas para traduzi-las ao português, observamos que as escolhas lexicais feitas pelos tradutores, pautam-se nos usos sociais reivindicados por esse grupo social nos meios de comunicação, uma vez que praticamente não há material oficial de apoio a tradutores ou profissionais que trabalhem com língua oral ou escrita, assim, separamos os enunciados com as escolhas linguísticas que consideramos mais relevantes e que servirão como norte para nossas reflexões neste artigo.
Notamos que nos enunciados das cenas de enunciação advindos de excertos da série supracitada existe um esforço por parte de tradutores na busca de termos existentes no acervo linguístico do português brasileiro que sejam legitimados socialmente, ainda que por parte de um determinado grupo ou formação discursiva (doravante FD), termo cunhado de Foucault (2005), e uma preocupação em conseguir gerar o mesmo efeito de sentido que na cena original, fazendo uso de estratégias discursivas que não somente demarquem o uso da linguagem não-binária, mas também busquem a cooperação do coenunciador como em “Elu significa ele?”.
Percebemos que nesse quadro cênico, dentro do processo de enunciação, partindo do princípio de cooperação (segundo Austin (1990) e Grice (1989) o processo de interação ocorre com base na performance e cooperação dos interlocutores por implicaturas que ocorrem por meio de expressões linguísticas e pelo contexto de produção), percebemos que o tradutor apresenta itens lexicais que ainda não são de conhecimento geral da população, no entanto, busca nas práticas dos contextos sociais, provavelmente, das redes sociais, a possibilidade de escolha lexical para traduzir o diálogo, gerando diferenças no áudio e na legenda, mas que simulam a cooperação no ato de fala de forma a dar a impressão de que estas escolhas já são de conhecimento e uso geral da população brasileira exatamente como ocorre no diálogo original.
Tal escolha, porém, já denota, para o âmbito do ensino de línguas, que essa questão precisa ser considerada no ensino de línguas no Brasil e no mundo, seja nos cursos de formação de professores, seja na Educação Básica. Diante desse quadro, este artigo tem por objetivo principal apresentar uma primeira reflexão sobre essa problemática na realidade nacional, surge como uma iniciativa de pensar a questão de forma crítica, para servir de comparação, talvez, com outras realidades latinas. Para isso, partimos da transcrição desses excertos de diálogos de uma cena de série para análise das ocorrências linguísticas e estratégias discursivas utilizadas, como suporte para exemplos e ilustrações, em seguida, analisamos dados de sondagem e, por fim, foi feita análise de documentos de uma universidade pública. Para constituição do corpus, pautando-nos na ideia de educação linguístico-discursiva em prol de letramentos inclusivos e incisivos, analisamos questões educacionais e discursivas que surgem nesses objetos. Trata-se de pesquisa qualitativa. Como respaldo teórico, utilizamos Tosi (2020); Butler (2011); Maingueneau (2018) e Street (2010), Negroni e Hall (2022), Cano, Carreira & Silva (2022) entre outros.
Na primeira parte, apresentamos a questão associada a críticas de cunho estrutural no que tange à morfologia; na segunda, trazemos as questões sócio-político-culturais e, por fim, uma primeira reflexão a partir de sondagem e análises de documentos de uma universidade pública de Goiás em suas estratégias de inclusão e associamos tudo isso à questão central que é a presença, ou não, da linguagem inclusiva na prática educativa na sociedade brasileira por uma possibilidade de se pensar em letramento inclusivo/incisivo.
2. Linguagem neutra ou inclusiva: uma questão morfológica ou discursiva?
A linguagem é o que possibilita a convivência e organização social. É por meio dela que os sujeitos se reconhecem, se instituem, se identificam e se instauram em múltiplos dizeres que (re)significam suas individualidades e coletividade, é por meio dela também que os sujeitos inserem-se em grupos, sentem-se pertencentes e reinvindicam direitos e deveres sociais, inserindo-se, desse modo, em determinadas FD’s. Nessa perspectiva, o grupo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais, Pansexuais e Pessoas Não Binárias (Doravante LGBTQIAPN+), cujas união e representatividade são significativas na contemporaneidade, por lutarem pelo direito de existir, (sobre)viver e ser na diversidade, respeitando as individualidades. Afinal, a linguagem é também uma forma de poder sobre si e sobre o outro no estabelecimento de processos interativos que garantam a inteligibilidade.
Entre a linguagem corporal que está entre os fatores de reivindicação desse grupo, a consciência política de sua existência e a alteridade está a língua em uso, o discurso e a consciência, cada vez maior, de que a linguagem também empodera. E é, nesse aspecto, que alguns grupos das comunidades LGBTQIAPN+ do Brasil e do mundo lutam pelo direito de não responderem ao imposto pela “norma culta” e usar outras variantes para identificação de gênero que fuja ao binarismo (masculino e feminino).
Os sujeitos que se auto-identificam como fluidos e/ou não-binários, principalmente, expressam quase sempre a necessidade de que sua língua os represente, uma vez que em português não há pronome neutro e esses sujeitos não se sentem confortáveis de serem representados em sua língua da maneira que o outro (a sociedade) pensa que deve fazê-lo “classificando-o/a” de “ele” ou “ela”, “o” ou “a” etc. Esse grupo pleiteia o direito de usar, não somente seu nome social (no caso de transgêneres não-bináries), mas também o direito de serem chamados com a utilização de outras desinências (como em menines, amigues e outros) e outros pronomes como: elu, delu, todes etc.
Essa atitude discursiva funciona como performance de uma atitude social e política como movimento intrínseco dessa comunidade para as demais, trata-se de luta por visibilidade e representatividade e não somente uma questão estrutural como alguns puristas da língua querem ditar pautando-se na morfologia da Língua Portuguesa brasileira. Nessa realidade, a sociedade divide-se entre apoiadores que veem nesse movimento algo dinâmico, histórico e natural aos processos políticos e/ou históricos de evolução das línguas naturais e aqueles que sentem que a língua está sendo maculada, por haver “incoerência” morfológica na formação de tais palavras (isso levando em consideração a análise sincrônica e desprezando a diacrônica). De qualquer forma, o que percebemos é uma luta entre poderes e estratos sociais.
Notamos, desse modo, que as discussões ainda são muito incipientes e prematuras, os manuais didáticos de ensino de Português em sua maioria praticamente ignoram a questão e há poucos dicionários, ou seja, podemos imaginar o movimento de pesquisa em redes sociais que os tradutores dos excertos do início desse artigo tiveram de fazer para legitimar a variante escolhida em sua tradução, caso não façam parte da comunidade LGBTQIAPN+, uma vez que nem as editoras, que produzem materiais didáticos, nem a Academia Brasileira de Letras e nem mesmo linguistas entram em consenso e resta o questionamento ainda mais pontual: como a escola vai lidar com essas questões sem suporte pedagógico, técnico e editorial? Além disso, as políticas públicas de inclusão que muito avançaram no país, ainda não trataram a questão linguística como objeto de inclusão de forma mais contundente.
Isso não quer dizer que não haja interesse na temática nesses âmbitos, ao contrário, pesquisas sobre linguagem neutra e/ou inclusiva estão surgindo, haja vista o Simpósio “Língua, gramática, gênero e inclusão” promovido recentemente pela Associação Brasileira de Linguística (Abralin) e é possível notar certo interesse por parte de algumas editoras haja vista também O Manual para uso não sexista da linguagem feito pela Secretaria de Políticas para mulheres do Governo do Rio Grande do Sul, que já trata do binarismo e seus efeitos no papel da mulher na sociedade e já apresenta a possibilidade de um não binarismo, no entanto, ações como essas são ainda prematuras. Ao que observamos que não se trata de uma polêmica exclusiva do Brasil ou dos países falantes de português
la postura de la Real Academia Española (RAE) es contundente: desestima los usos del lenguaje inclusivo por agramaticales e innecesarios. Pero, como bien se sabe, las academias no pueden operar sobre la producción de los discursos, y las formas lingüísticas inclusivas se imponen y circulan. Aparecen principalmente en intercambios orales y en ciertos géneros escritos de las nuevas tecnologías, de índole informal, como en las redes sociales (Tosi 2018 y 2019). Pero ¿Qué sucede en los textos escritos que escapan a la mera decisión personal y deben adecuarse a políticas editoriales? ¿Qué postura toman los/las profesionales de la edición? Estos interrogantes, planteados por los/las estudiantes en las clases prácticas de Corrección de Estilo 2, donde me desempeño como docente, motivaron mi interés sobre el tema y me impulsaron a investigar aspectos relacionados con la labor del/la corrector/a en el ámbito editorial. Asimismo, el lenguaje inclusivo se vincula con algunos de los planteos y saberes presentes en la Educación Sexual Integral (ESI), que se torna imprescindible tratar en las aulas de los diferentes niveles educativos (Sardi y Tosi 2020), y puede constituirse como motivo de reflexión por parte de estudiantes y egresados/as de las carreras de Letras y Edición que se desempeñan tanto en la docencia como en los ámbitos editoriales. (Tosi, 2020, p.171)
Da mesma maneira, no Brasil a linguagem neutra no Curso de Letras é tratada por algumas e alguns linguistas e/ou disciplinas muito específicas e não há políticas editoriais. Ao contrário de alguns países latinos que já apresentam manuais de orientação em prol da linguagem não sexista e não binária, no Brasil, aparentemente, isso ainda está caminhando.
Contudo, como verificamos nos excertos que iniciaram este artigo, o uso dessa linguagem já ultrapassou os limites de um grupo ou redes sociais, mesmo com todas as resistências acadêmicas, seu uso em diferentes gêneros e meios de comunicação já é realidade há algum tempo, uma vez que para atingir a verossimilhança da fala cotidiana, gêneros como séries e filmes já há utilizam e é possível ouvir e/ou ler palavras como “todes” em espanhol ou “they” /“them” para o sujeito singular em inglês. Consideramos que o uso do inglês discursivamente é peculiar e vai ao encontro do que diz Benveniste (2001), quando apresenta a “não-pessoa” e a “pessoa ampliada”.
Esses dêiticos não somente identificam pessoas gramaticais, mas pessoas discursivas que querem romper com o binarismo gramatical e ao mesmo tempo se incluem em um grupo social marginalizado, assim, temos um “I” multiplicado em “them” e uma “não pessoa” em “they”. Ambos instituem A pessoa, aquela que demarca sua identidade em seu dizer.
Intuímos que, igualmente, acontecerá no Brasil, pois concordamos com. Negroni e Hall (2022), ao afirmarem que não se trata de negar, aprovar ou estimular o uso da linguagem neutra, mas se trata de entender as situações sócio-político-discursivas que geraram tais estratégias morfo-discursivas, conforme as autoras em sua análise sobre as formas com -e:
—y sin afán alguno de establecer juicios que autoricen o nieguen la pertinencia de los usos del lenguaje inclusivo—, proponemos un análisis de estos usos como respuestas dialógicas a marcos de discurso relativos a la norma (académica y social) y, consecuentemente, como plasmación de distintos posicionamientos enunciativos frente a ellos. (Negroni & Hall, 2022, p.400)
Esses usos respondem, dessa maneira, à realidade social que exige a inclusão cada vez mais frequente e necessária. Por essa razão, Theumer (2020 apud) Negroni & Hall (2022), assumem que essas escolhas lexicais de aparência neutra, mais que inclusivas ou neutras, são incisivas por introduzir rupturas com padrões convencionais de classificação dos sujeitos sejam gramaticais ou sociais.
Lidar com essas questões significa admitir que se refere a um problema social em que forças discursivas se confrontam e que seu uso e surgimento independe da autorização de instâncias institucionais, a ignorância do assunto em manuais e no ambiente educacional em seus diferentes níveis significa não somente rechaçar normas gramaticais, sobretudo, significa ignorar a existência de corpos e sujeitos sociais (Butler, 2011), cujas existências incomodam ao sistema social preconceituoso que nega a existência desses corpos, de sorte que, ainda que saibamos que o gênero gramatical não se relaciona diretamente à identidade de gênero, nesse caso, em particular, o sujeito da enunciação aparece como forma marcada de representatividade de um sujeito social. Assim, é nos processos interativos e nas questões de ordem social intimamente relacionadas que os sujeitos nos processos formativos em suas práticas discursivas relacionarão sua existência à presença lexical marcada em enunciados textuais e para que essas práticas se deem de forma ampla, considerando as individualidades e a autonomia dos sujeitos, é interessante que comecemos a pensar em políticas em prol de uma educação linguístico-discursiva para que o ensino propicie letramento inclusivo e incisivo nos espaços educativos institucionalizados.
Acreditamos que para que o ensino consiga cumprir seu papel de forma ampla é preciso conjugar: (inter)ações políticas afirmativo-performativas e eventos de letramento (Street, 2010) que possibilitem que o sujeito em formação construa imagens de si (ethé) de forma a sentir-se inserido na sociedade. Chamamos de (inter)ações políticas afirmativo-performativas, aquelas que ocorrem não somente por meio de documentos institucionais, mas fundamentalmente por ações entre sujeitos, considerando a questão de identidade de gênero pela performance, a partir de Butler (2011, p.13)
[à]s vezes esquece-se de que “o” corpo se apresenta em gêneros. Porém talvez atualmente haja uma dificuldade maior, depois de uma geração de obras feministas que pretenderam, com diversos graus de êxito, fazer vir o corpo feminino à escritura, escrever o feminino de maneira próxima ou direta, às vezes sem ter sequer o indício de uma preposição ou um sinal de distância linguística entre a escritura e o escrito. Talvez seja apenas questão de aprender a interpretar aquelas versões problemáticas. Contudo, algumas de nós continuamos recorrendo à pilhagem do Logos por causa da utilidade de seus restos.
E, outras vezes, esquece-se que esses corpos são a essência do ensino cujo logos também foi pilhado e, para vivenciar o aprendizado, precisam sentir-se representados em materiais didáticos e espaços escolares em prol de um letramento inclusivo e incisivo, logo, uma educação discursiva.
3. Linguagem e letramento inclusivos e incisivos em prol de um ethos representativo
3.1. Letramento inclusivo e incisivo: conceitos e ações
A origem da palavra ‘letramento’ surgiu distinguindo-se do conceito de alfabetização, de acordo com Verdini (apud Soares, 2001). A necessidade da criação do termo é justificada pela explicação de que, para um sujeito letrado, ações simples do cotidiano como ler rótulos em supermercados, ocorrem de modo tão automático que não paramos para pensar nas inúmeras estratégias discursivas e cognitivas de leituras que estão, aí, envolvidas. Agora, se colocado em questão um sujeito não-alfabetizado ou semi-alfabetizado, esta simples tarefa pode se tornar um grande obstáculo, superado com a criação de estratégias discursivas que envolvem a leitura de mundo.
Compreendemos por letramento o resultado de ações dadas por aquele que aprende a ler e escrever, estendendo o entendimento da linguagem como uma ferramenta de comunicação sócio-cultural. Assim, todos os sujeitos sociais alfabetizados ou não criam estratégias cognitivas de leitura para diferentes âmbitos e gêneros do discurso. Nesse sentido, Lea & Street (2014) e Street (2010) falam de letramentos. Esses letramentos presentes na vida social deveriam ser também ampliados na escola seja pelas metodologias, seja nos espaços interativos ou seja nos espaços do dizer construídos em materiais didáticos, pois considerar o letramento é considerar a linguagem em perspectiva discursiva. A ausência de letramento pode privar o cidadão de uma vida política e social crítica e consciente, uma vez que ele pode ter acesso a informações manipuladas, causadas pela falta do entendimento acerca do que acontece na realidade social do mundo em que vive. “O domínio de outros usos e funções da escrita significa, efetivamente, o acesso a outros mundos, públicos e institucionais, como o da mídia, da burocracia, da tecnologia, e por meio deles, a possibilidade de acesso ao poder”. (Kleiman, 2008, p.35).
No trecho citado, é muito bem ilustrada a importância do processo de letramento para todo e qualquer indivíduo, independente da realidade na qual esteja inserido, visto que a linguagem é um produto social e cultural.
É de suma relevância, então, ressaltar que o conceito de letramento não se resume ou limita a apenas aprender símbolos e letras escritas, mas também à real função social que a linguagem possui na Humanidade que é o processo discursivo. Letramento é o que leva o ser humano a compreender, verdadeiramente, a aplicação da linguagem de forma ampla. Diante do exposto, há a necessidade de práticas de letramento em sala de aula, tendo início na Educação Básica. Até porque o objetivo da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), documento de diretrizes curriculares brasileiro, nesse período da vida escolar do aluno, é justamente a progressão das múltiplas aprendizagens, articulando o trabalho com as experiências anteriores e valorizando as situações lúdicas e interativas de aprendizagem. Educação linguística em perspectiva discursiva, nesse sentido, significa considerar o letramento como elemento necessário para as práticas discursivas dentro e fora das instituições de ensino em coadunação com esse documento. Afinal, não basta saber decodificar sons em letras. Para além disso, a língua escrita tem a função de inserir o sujeito social e culturalmente, como foi exemplificado.
Onde a linguagem neutra entraria nesse sentido? Essa perspectiva considera o ensino-aprendizagem de leitura e escrita, a partir de seu papel nas relações de poder, identidade, reflexividade e contestação (Street, 2010), logo, significa considerar a diversidade e as especificidades das diferentes FD’s, fato que nos leva a pensar em letramento inclusivo e incisivo. Como fazer isso? Primeiramente, por políticas linguísticas nacionais e locais, em segundo lugar, em materiais didáticos que potencializem boas reflexões sócio-culturais e a mediação/interação entre docentes e estudantes.
No Brasil, já existem organizações e coletivos lutando por direitos da comunidade LGBTQIAPN+, muitas leis já surgiram como a lei contra homofobia, por exemplo. Além disso, muitas instituições, tem criados normativas que garantam o ingresso e a permanência desses grupos na universidade. Quanto aos materiais didáticos para o ensino de línguas, ao buscarmos entender o estado da Arte da questão, buscamos averiguar na realidade editorial se o assunto já vem sendo tratado. Para isso, fizemos uma sondagem com uma informante (autora consagrada de livro didático para o ensino de língua espanhola), a qual se prontificou a averiguar entre seus pares escritores e editores e cujo depoimento transcrevemos abaixo:
[O que consegui apurar com pessoas no meio editorial de livros didáticos de espanhol é que o assunto não está sequer entrando em discussão (séria) (1). Ou seja, fala-se a respeito especialmente entre autores (poucos), mas as editoras e mesmo boa parte dos autores (2) e muito não levam adiante a discussão menos a possibilidade efetiva de incorporar a linguagem não binária em livros didáticos (3)]
[Ao que parece, além de não haver consenso (4) a respeito de se deve ser incluída ou não (por questões pedagógicas, mas talvez até mesmo – principalmente? – porque muitas escolas (5) e muuuuuuitos pais (6) não aceitam e isso impacta as vendas (7)), as editoras preferem deixar o assunto à margem]
[Também me disseram que, por causa disso, um caminho pode ser incluir “orientações” e “sugestões” no manual do professor]
[Também aproveitei esse meio tempo para conversar com alguns amigos e com alguns ex alunos (professores) do grupo LGBTQIA+ e nem entre eles há um consenso (8) há os que usam e defendem a linguagem não binária e outros (muitos) que a abominam e rejeitam totalmente]
[Então, se entre o grupo, digamos, mais interessado no assunto o tema é controverso (tudo bem que não realizei uma pesquisa nem mesmo uma enquete representativa, apenas uma pequena consulta informal a um grupo reduzido), creio que antes de incluir o assunto nos livros didáticos seria necessário promover um amplo debate com a participação expressiva de pessoas LGBTQIA+ (9)] (Transcrição in Verbi)
Pelo depoimento da informante, comprovamos que a discussão no cenário editorial brasileiro ainda está iniciando, no entanto, essa breve sondagem feita a nosso pedido pela informante e seu depoimento revelam a relação entre poderes e indentidades em (2), (5) e (6) e o entre-choque entre um discurso progressista x um discurso tradicionalista em prol de favorecimento do mercado editorial e de escolas e pais conservadores em (2), (5), (6) e (7), ou seja, em prol do capital (8), o que comprova e assevera o que observam Negroni & Hall (2022) e Tosi (2020). Podemos afirmar que a linguagem não-binária mobiliza poderes, identidades e estruturas linguísticas e mobiliza crenças e valores dos sujeitos “detentores do poder editorial na área de ensino de línguas” e da sociedade em geral, mas, não pode ser ignorada, no entanto, é o papel do professor-mediador fundamental para um processo de letramento inclusivo como o argumento reforça em (9). E o que seria esse letramento inclusivo e incisivo?
É, pois, relevante afirmar a necessidade da prática do letramento inclusivo. Afinal, a escrita, acoplada à comunicação que é estabelecida por meio dela, na sociedade atual, ocupa lugar de destaque. Assim, Soares (2003) faz um alerta para o futuro a que estamos caminhando: um mundo cada vez mais tecnológico, no qual todas as coisas transformam-se rapidamente. Dessa maneira, também já não basta saber ler e escrever, sendo assim necessária, além da alfabetização, essencial no mundo globalizado, a leitura e escrita que façam sentido: que é o próprio letramento (Street, 2010). Diante disso, a escola tem papel fundamental no que diz respeito ao desenvolvimento das competências e do uso significativo das práticas de letramento, também, ou principalmente, em contexto inclusivo:
A leitura e a escrita são práticas sociais da linguagem e, por meio delas, são estabelecidas as relações que garantem a inserção dos sujeitos nas práticas de letramento da sociedade e na Cultura Escrita. Os sujeitos, portanto, estão circundados por diferentes gêneros e atividades que envolvem os processos de letramento nas práticas cotidianas ou institucionais. (Cano, Carreira & Silva, 2022, p.79)
Em uma sociedade que prevê, de acordo com a Constituição, direitos igualitários a todos os cidadãos para que possam estar presentes em todos os âmbitos da realidade social (profissional, acadêmico, cultural, etc.), onde estaria inserida a comunidade LGBTQIAPN+ nessa Cultura da Escrita? O que chamamos de letramento inclusivo-incisivo (Soares, 2003; Street, 2010) começa com a criação e implementação de estratégias que atendam a diferentes núcleos e grupos sociais, a fim de possibilitar a sua permanência plena no sistema educacional, garantindo assistência para que esses indivíduos tenham acesso à educação de qualidade, respeitando suas diferenças e singularidades e isso inclui a linguagem não binária para a construção de um percurso de respeito as identidades, pois todo surgimento de algo novo que inclua linguagem gera polêmica e estranhamento, haja vista o surgimento do “internetês” na escrita em redes sociais.
Ignorar essa dinâmica ou tentar impor normas gramaticais, porém, não impede sua expansão e divulgação e, no caso específico da linguagem neutra, ainda temos o forte discurso político de representatividade e resistência que subjaz em seu uso e que influencia nos efeitos de sentido.
As instituições têm a responsabilidade legal de serem inclusivas e incisivas quanto à prática social para o exercício da cidadania. Assim, atividades inclusivas que conversem, dependendo do ambiente educacional, com uma grande diversidade de culturas, crenças e costumes são necessárias para que as instituições cumpram o seu papel quanto a transformar cidadãos e valorizar o potencial de aprendizado de cada um.
No que concerne à linguagem neutra, cultura e valores dos grupos LGBTQIQPN+, sua presença em ações pedagógicas tem um valor político de representatividade e resistência, significa fazer com que os sujeitos pensem e respeitem a diversidade demarcada na própria língua e significa fazer com que esses sujeitos também em formação na escola sintam-se fazendo parte legítima da sociedade e consigam construir imagens de si, ethos, que façam sentido para si e para o próximo e também significa propiciar a todos os estudantes a possibilidade de um olhar menos preconceituoso e mais inclusivo sobre ethé (Maingueneau, 2018) de enunciadores desse grupo.Sabemos que subjetividade, identidade e ethos são categorias diferentes, contudo, são aspectos que fazem parte da formação dos sujeitos, portanto, do processo de letramento.
Segundo Maingueneau (2008), o ethos está tanto na dimensão verbal quanto no conjunto de determinações físicas e psíquicas relacionadas ao “fiador” pelas representações coletivas estereotípicas, logo, falar de linguagem incisiva significa perpassar essas representações dentro e fora das instituições educacionais.
Pensando nisso, fica evidente, que os sujeitos cuja educação linguística perpasse as diferentes manifestações linguísticas sociais, se tornam mais críticos em relação à realidade (Cano, Carreira & Silva, 2022).
Assim, mesmo que materiais didáticos e espaços escolares neguem a pertinência de uma linguagem neutra, conforme sondagem, demonstramos no início desse artigo com os excertos de um diálogo extraído de uma série de sucesso da Netflix, esse uso já está consolidado e precisa ser estudado e considerado, porque ao observarmos as escolhas feitas pelos tradutores pensemos: Como essas estratégias podem ser analisadas ou utilizadas em aula de língua de forma discursiva?
Embora o diálogo pautado na linguagem neutra como tema e em uso tenha tido nessa cena a intenção de causar humor e criticar a sociedade republicana conservadora americana e haja uma mistura entre gêneros gramaticais, identidade de gênero e orientação sexual proposital.
Há muitas camadas a serem exploradas em forma de questionamentos pelo professor: de que forma essa cena contribui para a destruição ou construção de imagens positivas ou negativas de pessoas não-binárias ou do grupo LGBTQAPN+? Quais são os grupos sociais que fazem uso dessa linguagem e onde? Por que o pronome marcado em inglês é “they” e como a tradução resolve trazendo como alternativa “elu”? Vamos pesquisar a origem da linguagem não binária? Como seria uma forma menos humorística e irônica de reorganizar a situação, mantendo a temática da conversa?
Percebemos, assim, que uma aula se tornaria, talvez uma pedagogia de projetos ou sequência de atividades que poderiam colaborar não somente com o uso e seu entendimento, mas também, talvez, minimizasse o preconceito contra essa parcela da população, assim, há meandros que estão em lugares do dizer (Carreira, 2020), para além dos materiais didáticos e estão centrados na forma como docentes podem lidar com a temática em suas aulas, ou na forma como se reprimem ou são reprimidos no trato da questão.
3.2. Linguagem inclusiva para além dos materiais didáticos
Para tratar das questões que compõem a ideia de letramento inclusivo/incisivo, unindo os pressupostos de Soares (2003), Street (2010), Maingueneau (2018) e Cano, Carreira & Silva (2022) no meio educacional, portanto, é preciso analisar diferentes instâncias que fazem parte deste processo.
O letramento inclusivo se personifica de diferentes formas em relação aos diferentes tipos de grupos sociais para os quais ele é direcionado, podemos dividir as estratégias que deveriam ser aplicadas no meio educacional “fisicamente” e nas estratégias que podem ser aplicadas no meio pedagógico, no que se refere ao sistema de aplicação do ensino em si, que busca adaptar estes sistemas de ensino para abarcar as necessidades desses grupos, temos: estratégias físico-estruturais e estratégias pedagógicas.
Sendo assim, notamos que na abordagem de questões acerca do letramento inclusivo para ser incisivo precisa contemplar os espaços do dizer e os espaços sociais. As primeiras estratégias que nos vem em mente são as estratégias aplicadas no campo físico do ambiente educacional (escolas, centros acadêmicos, universidades, etc.), pois um ambiente comprometido com a inclusão, permite que suas paredes sejam lidas desse modo, apresentando marcas de linguagem inclusiva nas sinalizações, mensagens e espaços comuns.
As estratégias de letramento inclusivo vão, para além da adaptação dos espaços de ensino, pois, para que a perspectiva de ensino se consolide em processos interativos, a adaptação dos métodos de ensino que são aplicados nestes ambientes é importante também.
Levando em conta que o ensino, de modo geral, está cada vez mais engessado (em todas as suas instancias), o que dificulta o acesso de grupos sociais específicos ao aprendizado de qualidade, e sua permanência nas instituições educacionais é quase natural notar a permanência de discursos tradicionalistas e retrógrados. Portanto, para além de somente aplicar essas estratégias na infraestrutura educacional, é preciso repensar o modo que ensinamos, o modo que construímos e compartilhamos o conhecimento. Sendo assim, para pensarmos num meio de ensino mais plural, primeiro, é necessário tocar no que se refere ao modelo de ensino vigente, para que possamos através de nossas observações, mudar nossas concepções de ensino e aplicar o letramento inclusivo dentro dessas práticas. Além disso, temos que levar em conta que o ensino, para ser plural, deveria enxergar a realidade como ela é, e os métodos de aprendizado precisam refletir essa realidade, conforme Morin (2006, p.6):
Será preciso, enfim, ver se há um modo de pensar, ou um método capaz de responder ao desafio da complexidade. Não se trata de retomar a ambição do pensamento simples que é a de controlar e dominar o real. Trata-se de exercer um pensamento capaz de lidar com o real, de com ele dialogar e negociar.
Percebemos a necessidade de levar em conta a realidade social que é, em sua essência, plural e diversa, para que possamos perceber os diferentes corpos que estão no ambiente escolar. O espaço físico colabora nessa construção dos efeitos de sentido, pois os sujeitos se identificam a partir do seu ambiente sociocultural (Cano, Carreira & Silva, p. 80, 2022) para enxergar as individualidades, suas vivências e, principalmente, mobilizar o ensino e o aprendizado para acolher suas diferenças a fim de evitar a evasão e a falta de recursos para que essas pessoas desfrutem de seu direito a educação, pensar um ensino que leve em conta as práticas de letramento inclusivo é pensar num sistema que se atente a complexidade social. Ademais, a falta desse olhar multidimensional para a realidade social leva-nos a ferir o processo de aprendizado democrático, elitizando o ensino e mantendo, direta ou indiretamente, o discurso elitista em que a educação é destinada apenas a uma parte do construto social. Precisamos implementar estratégias efetivas para alcançar a pluralidade do ensino, e desenvolvê-lo para receber e manter os corpos que o integram, porque
[i]nfelizmente, pela visão mutiladora e unidimensional, paga-se bem caro nos fenômenos humanos: a mutilação corta na carne, verte o sangue, expande o sofrimento. A incapacidade de conceber a complexidade da realidade antropossocial, em sua microdimensão (o ser individual) e em sua macrodimensão (o conjunto da humanidade planetária), conduz a infinitas tragédias e nos conduz à tragédia suprema. (Morin, 2006, p.13)
Logo, para que esse movimento de adesão às estratégias de letramento inclusivo se efetive de forma incisiva, precisamos tratar de vários aspectos que constroem o ensino, e um dos mais importantes é justamente o principal mediador do aprendizado: o professor.
O desenvolvimento didático do professor influencia diretamente o aprendizado em sala de aula de modo geral, e isso acaba se agravando ou tomando novos graus de negatividade quando se refere a essas práticas de didática engessadas para com os diferentes grupos sociais que estão no sistema educacional.Um professor que não está preparado para atender a diferentes tipos de aluno, provavelmente, deixará a desejar e contribuirá para o não acesso ao conhecimento deste aluno.
O professor-mediador que pretende inserir os estudantes no universo de leitura, mais que um professor, é um interagente e fazer esse papel não significa tratar a leitura como disciplina, mas também não significa não considerá-la amplamente como elemento de exploração e trabalho, o grande desafio é encontrar o meio-termo e conseguir criar um “lugar de pertencimento” (Cano, Carreira & Silva, 2022, p.80)
É possível notar que o desenvolvimento didático do professor influencia diretamente o aprendizado em sala de aula de modo geral, e isso acaba se agravando ou tomando novos graus de negatividade quando se refere à essas práticas de didática engessadas para com os diferentes grupos sociais que estão no sistema educacional (indígenas, pessoas com deficiência – PCDs, membros da comunidade LDBTQIAPN+ e neurodivergentes). E ainda o docente que também está em letramento didático-pedagógico constante. No que diz respeito a essas práticas de ensino engessadas, é necessário observar que tipos de profissionais são esses, e o que esse tipo de ensino traz de negativo para o processo de aprendizagem dos alunos, uma vez que
[h]á diversos tipos de professores. Os mais tradicionais contentam-se em transmitir a matéria que está no livro didático, por meio de aula expositiva. É o estilo professor- transmissor de conteúdo. Suas aulas são sempre iguais, o método de ensino é quase o mesmo para todas as matérias, independentemente da idade e das características individuais e sociais dos alunos. [...] O professor transmissor de conteúdo não favorece uma aprendizagem sólida porque o conteúdo que ele passa não se transforma em meio de atividade subjetiva do aluno. (Libâneo, 2011, p.2)
Consequentemente, este tipo de ensino retrógrado se reflete em todas as instâncias desde o Fundamental até o Ensino Superior, onde essas práticas, além de denunciarem a falta de preparação dos docentes, também apontam características de certa elitização do conhecimento no nível acadêmico. Muitas vezes, há uma postura narcisística por parte dos docentes, que não levam em consideração as individualidades, o que se personifica num ensino apático e sem humanidade, deixando explícita a falta de empatia por parte desses profissionais.
O que se vê nas Instituições de Ensino Superior é um ensino meramente expositivo, empírico, repetitivo, memorístico. Os alunos desses professores não aprendem solidamente, ou seja, não sabem lidar de forma independente com os conhecimentos, não “interiorizam” os conceitos, o modo de pensar, raciocinar e atuar, próprios da matéria que está sendo ensinada e, assim, os conceitos não se transformam em instrumentos mentais para atuar com a realidade. (Libâneo, 2011, p.2)
Dito isso, para que a educação linguístico-discursiva seja alcançada, sob a ótica dos letramentos, também é necessário enxergar o papel da afetividade nas práticas pedagógicas, o que se coloca como um desafio significativo se levarmos em consideração os aspectos pelos quais os métodos educativos foram fundados e a forma como os manuais são pensados (Tosi, 2020). Normalmente, dentro de nossa perspectiva ultrapassada, relacionamos as atividades de ensino apenas com os desenvolvimentos de habilidades intelectuais dos alunos, não levando em conta que no ambiente escolar também se constroem subjetividades, nuances que vão além da razão e alcançam a instância afetiva. Segundo Leite (2012, p.357),
[é] inegável a influência secular da concepção dualista nas práticas das instituições educacionais: herdamos uma concepção segundo a qual o trabalho educacional envolve e deve ser dirigido, essencialmente, para o desenvolvimento dos aspectos cognitivos, centrados na razão, sendo que a afetividade não deve estar envolvida nesse processo. Neste sentido, os currículos e programas desenvolvidos, nos diferentes momentos da nossa política educacional, centraram-se no desenvolvimento da dimensão racional-cognitiva, através do trabalho pedagógico em sala de aula, em detrimento da dimensão afetiva.
3.3. Implementação de estratégias de letramento inclusivo em uma Universidade Pública – ações políticas
A Constituição Federal/88 (arts. 205, 206 e 208) assegura o direito de todos à educação (art. 205), tendo como princípio do ensino a igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola (art. 206, I) e garantindo acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um (art. 208, V). Com base nos estudos feitos sobre as práticas de letramento inclusivo no ambiente educacional, dados a respeito da implementação dessas práticas dentro de uma Universidade Pública e diretrizes como os Marcos Legais de Acessibilidade podem esboçar um panorama prático de como essas estratégias são implementadas nesse ambiente. Neste sentido, uma das grandes estratégias aplicadas para fazer valer estas formas de letramento na universidade foi justamente a criação do Núcleo de Acessibilidade, criado em 2008 o órgão visa, principalmente:
[O fomento à educação superior inclusiva aos estudantes com deficiência física, visual, auditiva e intelectual, altas habilidades e super dotação por meio da eliminação/minimização de barreiras atitudinais, arquitetônicas, pedagógicas, informacionais e comunicacionais. Tem como foco o respeito às diferenças, buscando a formação e a sensibilização da comunidade acadêmica, bem como a aquisição de recursos e tecnologias assistivas para o acesso a todos os espaços, ambientes, ações e processos educativos desenvolvidos na instituição] (Brasil-Núcleo de Acessibilidade, 2008, s/n)
Dentro dos objetivos postos por este órgão, estão: a conscientização da comunidade universitária do direito das pessoas com deficiência, bem como do processo de inclusão e permanência dessa comunidade dentro do ambiente universitário; a oferta de apoio por meio de elaboração de soluções que eliminem as barreiras atitudinais, arquitetônicas, pedagógicas e de comunicação, buscando seu ingresso, acesso e permanência, e fornecendo artifícios para a boa aprendizagem no meio universitário; orientação as coordenações e docentes dos cursos oferecidos pela universidade, a fim de atender as especificidades dos estudantes com necessidades educacionais especiais; implantar políticas de acessibilidade junto a todas as gestões da universidade para institucionalizar as ações já existentes e criar ações futuras nos vários níveis da instituição. Para alcançar tais objetivos, o Núcleo de Acessibilidade conta com uma equipe pedagógica multidisciplinar que acompanha estudantes com necessidades de educação especial, mediando essas ações junto às coordenações e direções dos cursos ofertados pela universidade. Além disso, é oferecido direcionamento e orientação pedagógica a qualquer membro da comunidade acadêmica que queira se informar e capacitar acerca do ensino a esses grupos sociais específicos. No que se refere a políticas de Letramento Inclusivo para os alunos LGBTQ+, como mencionado ao longo do trabalho, a inclusão dessa comunidade é um tópico imprescindível dentro do processo de letramento. Por isso, a didática utilizada por professores e as próprias instituições educacionais abraçarem a causa são acontecimentos que devem, necessariamente, ser uma realidade.
É fato que toda minoria sofre, pela sociedade, um processo de exclusão e preconceito, mesmo que velado, diariamente, e os integrantes do grupo LGBTQIAPN+ são prova viva disso. Então, como essa universidade está cumprindo seu papel de ser a base do ensino para todos, lida com isso? Oferece serviços à comunidade universitária LGBTQIAPN+ durante todo o ano. Entre eles, estão: utilização de nome social (via solicitação no SEI), ouvidoria UFG (órgão responsável pelo recebimento de denúncias referentes a discriminação) e assistência estudantil (auxiliando jovens que, devido à sexualidade, têm uma realidade econômica prejudicada em razão do abandono familiar ou dificuldade em conseguir empregos formais). Entretanto, percebemos a não inclusão da linguagem não binária em documentos, sinalizações, cartazes ou espaços físicos, porém, é o conjunto dessas ações que vai permitir processos de interação e atos performativos que garantirão a existência desses sujeitos nos espaços sociais e sua representação simbólica nos espaços do dizer.
4. Considerações Finais
Cruzando as reflexões anteriores, constatamos que o uso da linguagem neutra ou não binária ainda é desconsiderado no mercado editorial brasileiro quase em sua totalidade na produção de materiais didáticos, conforme demonstra Tosi (2020) em seus estudos, no entanto, constatamos que essa linguagem já faz parte de vários gêneros do discurso com os quais estudantes convivem como nos excertos extraídos de uma série.
A resistência na aceitação da linguagem neutra não a apaga na sociedade e percebemos que estão em jogo forças antagônicas de poder e identidade (tradicional x progressista). Essas atitudes envolvem ainda uma visão elitizada de educação e poder.
Essas primeiras inquietações nos levaram a analisar documentos de uma universidade pública inclusiva nos quais verificamos que ainda não há uma preocupação com uso da linguagem em sinalizações e espaços em geral. Importante salientar que essa pesquisa ainda está em desenvolvimento e esses são os dados preliminares reflexivos apresentados nos limites de um artigo.
Por conta disso, propomos uma perspectiva de educação linguístico-discursiva em prol de letramentos inclusivos e incisivos para que os sujeitos LGBTQIAPN+, além de se sentirem representados, consigam instaurar efeitos de sentido e “imagens de si”, ethé de representação desse grupo, estratégia que somente é possível com a inserção no universo da Cultura da escrita de forma incisiva. Para isso, é importante oportunizar espaços do dizer e espaços sociais que evidenciem estratégias físico-estruturais e pedagógicas.
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