Secção Temática/Thematic Section/Sección Temática. Nota Introdutória/Introductory Note/Nota de introducción
Publicado: 26 Dezembro 2024
Nas últimas décadas, o campo do jornalismo tem atravessado transformações significativas, impulsionadas pelos avanços tecnológicos, pelas mudanças nos paradigmas sociais e culturais e pela evolução das condições socioeconómicas. Estas dinâmicas suscitam novos dilemas às iniciativas editoriais e aos profissionais do setor, questionando a sustentabilidade do papel e das funções desempenhadas pelo jornalismo nas sociedades democráticas (Pickard, 2019).
Na intersecção entre identidades e valores profissionais tradicionais, verifica-se uma reconfiguração dos quadros comunicacionais, económicos e tecnológicos em que os jornalistas têm de navegar. Esta paisagem contemporânea impacta particularmente os jovens jornalistas e os aspirantes a profissionais, os quais enfrentam um mercado de trabalho caracterizado pela volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade. Consequentemente, vêem-se confrontados com a necessidade de conciliar as suas motivações e aspirações com um sentimento generalizado de pessimismo relativamente ao futuro do jornalismo (Miranda & Camponez, 2021; Nölleke et al., 2022).
Por outro lado, diretores editoriais e jornalistas experientes tendem a percecionar estes recém-chegados como agentes de mudança e de inovação nas redações e no ambiente mediático em geral (Broersma & Singer, 2021). Esta visão alinha-se com um contexto de renovação do ecossistema jornalístico, sugerindo novos caminhos para a produção de notícias, formatos inovadores de jornalismo e modelos de negócio alternativos (Subtil et al., 2024; Witschge & Harbers, 2018).
Embora esta paisagem em transformação possua o potencial para expandir ou redefinir as fronteiras profissionais do jornalismo, também levanta questões críticas relativamente às vias tradicionais de acesso a este campo de atividade. Concomitantemente, o novo paradigma introduz desafios ao ensino do jornalismo, suscitando debates e preocupações constantes no seio do domínio académico.
Neste contexto de acelerada transformação do campo jornalístico, uma colaboração entre os grupos de trabalho de Jornalismo e Sociedade e de Jovens Investigadores da Associação Portuguesa de Ciência da Comunicação (Sopcom) produziu um encontro na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a 27 de maio de 2024, intitulado “Verdes Anos do Jornalismo”. O título deste evento, que inspira esta secção temática da Revista Comunicando[1], remete precisamente para a relação entre o amplo conjunto de mudanças atravessadas na atualidade pelos media e para o processo de integração dos que pretendem ingressar no universo jornalístico.
O nome desta secção temática remete para a obra cinematográfica produzida por António Cunha Telles e realizada por Paulo Rocha, em 1963, a qual traça um retrato de uma sociedade marcada por uma tensão entre o desejo de emancipação — protagonizada por Ilda, a empregada doméstica que vê na nova vida na cidade um conjunto de ensejos a empreender num futuro promissor — e uma reação conservadora — representada por Júlio, o jovem sapateiro que, confrontado com um ambiente novo e estranho, procura estabilidade e conforto no casamento tradicional.
De forma análoga, é possível identificar esta tensão no jornalismo contemporâneo: por um lado, a possibilidade de exercer uma vocação e concretizar projetos e objetivos delineados durante o processo de formação académica; por outro, o confronto destes desejos e expectativas com condições de emprego precárias (e cuja cor dos recibos é igualmente verde), rotinas de trabalho intensivas e modelos de negócio em crise.
Os artigos publicados nesta secção refletem esta dicotomia. A partir de uma análise documental das estruturas curriculares da Licenciatura em Jornalismo na Universidade de Coimbra, ao longo de três décadas, Catarina Magalhães mapeia, no seu artigo “Uma Reflexão Sobre as Três Décadas de Ensino de Jornalismo na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra”, as principais áreas de conhecimento que caracterizam o curso. E salienta o carácter interdisciplinar dos campos do saber que marcam a formação universitária do jornalismo naquela universidade, transcendendo o estrito campo do jornalismo para abranger a mais vasta área da comunicação.
Ainda no espaço universitário, Marcelo Crispim da Fontoura, no artigo “O Ensino do Jornalismo no Brasil Frente à Inteligência Artificial: Um Panorama dos Desafios e Possibilidades a Partir das Competências Curriculares”, faz uma análise exploratória aos desafios colocados pela inteligência artificial ao ensino do jornalismo e recomenda a revisão das diretrizes curriculares, de forma a responder ao impacto holístico que a tecnologia terá na prática jornalística, na desinformação e no modelo de negócio dos media atuais.
Já Lucas Rohan Machado, em “Cobertura de Breaking News: Experiência Simulada de Imersão Jornalística em Sala de Aula”, apresenta uma experiência pedagógica de cobertura simulada dos atentados de 11 de setembro de 2001. A mobilização desta técnica de ensino permitiu, entre outros aspetos, constatar o envolvimento ativo dos estudantes na atividade.
Na esfera pós-académica, no artigo “As Condições de Trabalho das Ativistas Feministas dos Mídia do Sul Global ao Norte Global”, Mariana Fagundes-Ausani investiga as condições de emprego e trabalho no jornalismo digital. A partir de um estudo comparativo entre jornalistas feministas brasileiras e francesas, a autora analisa percursos socioprofissionais marcados tanto pela precariedade e quanto pela possibilidade de desenvolvimento de práticas ativistas.
Num estudo de caso realizado no artigo “O Terror Publicizado: Uma Discussão Sobre Como o Jornalismo Pode (e Deve) se Livrar da Prática da Espetacularização do Horror”, Adriana Santana explora o papel do jornalismo na prevenção de crimes. A análise de 96 notícias sobre um atentado numa creche no Brasil publicadas nas 24 horas subsequentes ao atentado revela traços de sobre-exposição tanto dos perpetradores como das vítimas.
Ainda, no artigo “O Jornalismo Cidadão e Independente na Guerra da Síria: Interseções Entre Ativismo e Profissionalismo”, Gisela Cardoso Teixeira parte de 18 entrevistas a jornalistas cidadãos sírios para investigar os processos de construção das suas agendas temáticas e as abordagens adotadas na cobertura de questões relacionadas com a guerra. Conclui a autora que as experiências e convicções pessoais destes repórteres imprimem subjetividade às suas narrativas noticiosas, evidenciando divergências relativamente a convenções e práticas discursivas associadas ao jornalismo tradicional.
Por último, Pedro Eduardo Ribeiro parte de um estudo empírico da página Instagram da revista digital NiT para propor uma análise crítica do jornalismo de “estilo de vida”. No artigo “Estilo de Vida no Instagram: Um Olhar Crítico Multimodal Sobre o ‘Jornalismo’”, discute as ténues fronteiras entre o entretenimento e a dependência publicitária, como fatores estruturais.
Esta secção temática da Revista Comunicando reflete a complexidade do jornalismo contemporâneo, caracterizado por desafios e oportunidades que reconfiguram as suas práticas e valores. As análises aqui apresentadas procuram não apenas mapear estas mudanças, mas também abrir caminhos para abordagens críticas e inovadoras na investigação e na prática jornalística.
Agradecimentos
O trabalho realizado por José Matos é financiado por fundos nacionais através da FCT-Fundação para a Ciência e Tecnologia no âmbito do Projeto refª: UIBD/05021/2020.
Notas Biográficas
Alexandra Figueira é diretora do Mestrado em Comunicação, Marketing e Media Digitais e subdiretora da Licenciatura em Ciências da Comunicação na Universidade Lusófona – Centro Universitário do Porto e, desde 2018, é docente nas áreas de jornalismo, comunicação estratégica e metodologias de investigação em ciências sociais. Foi durante 27 anos jornalista em media de âmbito nacional e internacional. É investigadora no Centro de Investigação em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias e doutorada em ciências da comunicação pela Universidade do Minho, com uma tese sobre a comunicação organizacional aplicada à economia social. É também pós-graduada em economia para jornalistas, pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto, e em criação e gestão de marca, pelo IPAM Porto. O seu trabalho jornalístico e académico foi premiado por três vezes.
João Miranda é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigador no Centro de Estudos Interdisciplinares – CEIS20, onde tem desenvolvido trabalho académico que abrange diferentes dimensões do jornalismo e dos media. A sua produção científica inclui artigos e capítulos de livros dedicados a explorar as questões socioprofissionais do jornalismo, incluindo a regulação, a ética, a transparência e a responsabilização dos media. Nos últimos anos, tem participado em projetos de investigação que se debruçam sobre temas como a literacia mediática e a confiança do público nos media, bem como sobre os desafios crescentes da violência online direcionada a jornalistas.
José Nuno Matos é especialista em sociologia do trabalho e dos media. Licenciado e mestre em ciência política (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa), doutorou-se em sociologia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em 2013. Entre 2014 e 2022, desenvolveu atividade enquanto investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Atualmente, é investigador auxiliar do Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa. É igualmente cocoordenador do Grupo de Trabalho de Jornalismo e Sociedade da Associação Portuguesa de Ciências Comunicação. As suas principais áreas de interesse são as relações de emprego e de trabalho nas indústrias culturais e criativas, a economia política dos media e a história social do jornalismo em Portugal.
Referências
Broersma, M., & Singer, J. B. (2021). Caught between innovation and tradition: Young journalists as normative change agents in the journalistic field. Journalism Practice, 15(6), 821–838. https://doi.org/10.1080/17512786.2020.1824125
Miranda, J., & Camponez, C. (2021). Estudantes de comunicação social em Portugal: Expectativas e perspetivas sobre jornalismo. Sopcom.
Nölleke, D., Maares, P., & Hanusch, F. (2022). Illusio and disillusionment: Expectations met or disappointed among young journalists. Journalism, 23(2), 320–336. https://doi.org/10.1177/1464884920956820
Pickard, V. (2019). Democracy without journalism? Confronting the misinformation society. Oxford University Press.
Subtil, F. M. D. B. G., Matos, J., & Baptista, C. (Eds.). (2024). Outro jornalismo é possível: Media alternativos em Portugal. Outro Modo.
Witschge, T., & Harbers, F. (2018). The entrepreneurial journalist. In S. Eldridge II & B. Franklin (Eds.), The Routledge handbook of developments in digital journalism studies (pp. 64–76). Routledge
Notas