Resumo: O presente relato refere-se à experiência de imersão jornalística de cobertura simulada de factos urgentes realizadas com três turmas de um curso de jornalismo nos anos de 2017, 2018 e 2019. Através da criação de um ambiente controlado que simulava uma redação de um grande portal de notícias, os estudantes foram convidados a realizar a cobertura em tempo de real de acontecimentos históricos, como os atentados de 11 de setembro de 2001. O exercício foi baseado na experiência do professor em redações e no treinamento “Covering Crisis and Catastrophes” oferecido pela agência Reuters. Para executar a simulação, os estudantes assistiram gravações das transmissões em direto da cobertura de emissoras de televisão a simular o momento dos acontecimentos e o professor atuou como “agência de notícias”, fornecendo informações básicas aos estudantes, que deveriam escrever notas e publicar em um website simulado através da plataforma WordPress. O exercício foi realizado pela primeira vez em dezembro de 2017 e repetido com outras turmas em junho de 2018 e em março de 2019, a pedido dos estudantes. As simulações colocaram os estudantes de jornalismo diante de uma série de desafios, tais como tomar decisões rapidamente, ser ágil na escrita e na publicação e ser preciso na apuração dos factos. Os resultados apontam, também, para estudantes extremamente envolvidos na atividade, aprendizados sobre gerenciamento de situações de crise em redações e sobre factos históricos e a avaliação positiva sobre o uso de simulações imersivas no ensino do jornalismo.
Palavras-chave: Comunicação,Jornalismo,Webjornalismo,Internet,Notícias Urgentes.
Abstract: The present report refers to the journalistic immersion experience of simulated coverage of urgent facts carried out with three classes of a journalism course in 2017, 2018 and 2019. By creating a controlled environment that simulated the newsroom of a major news portal, the students were invited to carry out real-time coverage of historical events, such as the attacks of September 11, 2001. The exercise was based on the teacher's experience in newsrooms and the “Covering Crisis and Catastrophes” training offered by Reuters. To carry out the simulation, the students watched recordings of live coverage from television stations simulating the moment of the events and the teacher acted as a “news agency”, providing basic information to the students, who had to write notes and publish them on a simulated website using the WordPress platform. The exercise was carried out for the first time in December 2017 and repeated with other classes in June 2018 and March 2019, at the students' request. The simulations presented the journalism students with a series of challenges, such as making decisions quickly, being agile in writing and publishing, and being accurate in establishing the facts. The results also point to students who were extremely involved in the activity, learning about crisis management in newsrooms and about historical facts, and to a positive evaluation of the use of immersive simulations in journalism teaching.
Keywords: Communication, Journalism, Web Journalism, Internet, Breaking News.
Resumen: El presente informe se refiere a la experiencia de inmersión periodística de cobertura simulada de hechos urgentes realizada con tres clases de un curso de periodismo en 2017, 2018 y 2019. Mediante la creación de un entorno controlado que simulaba la redacción de un gran portal de noticias, se invitó a los alumnos a realizar coberturas en tiempo real de hechos históricos, como los atentados del 11 de septiembre de 2001. El ejercicio se basó en la experiencia del profesor en las redacciones y en la formación sobre “Covering Crisis and Catastrophes” ofrecida por la agencia Reuters. Para llevar a cabo la simulación, los alumnos visionaron grabaciones de la cobertura en directo de las televisiones simulando el momento de los hechos y el profesor actuó como “agencia de noticias”, proporcionando información básica a los alumnos, que debían redactar notas y publicarlas en una web simulada utilizando la plataforma WordPress. El ejercicio se realizó por primera vez en diciembre de 2017 y se repitió con otras clases en junio de 2018 y marzo de 2019, a petición de los alumnos. Las simulaciones plantearon a los alumnos de periodismo una serie de retos, como tomar decisiones con rapidez, ser ágiles en la redacción y publicación, y ser precisos en el establecimiento de los hechos. Los resultados han mostrado también alumnos muy implicados en la actividad, que aprendieron sobre la gestión de crisis en las redacciones y hechos históricos, y una valoración positiva del uso de simulaciones inmersivas en la enseñanza del periodismo.
Palabras clave: Comunicación, Periodismo, Webperiodismo, Internet, Última Hora.
Secção Temática/Thematic Section/Sección Temática. Relatos de Experiência/ Experience Reports /Relatos de Experiencia
Cobertura de Breaking News: Experiência Simulada de Imersão Jornalística em Sala de Aula
Breaking News Coverage: Simulated Journalistic Immersion Experience in the Classroom
Cobertura de Noticias de Última Hora: Experiencia de Inmersión Periodística Simulada en Clase
Recepção: 07 Junho 2024
Aprovação: 20 Novembro 2024
Publicado: 02 Dezembro 2024
O presente artigo traz um relato de experiência pormenorizado da realização de exercícios simulados de cobertura de acontecimentos de grande impacto com estudantes de um curso de jornalismo. A atividade foi idealizada, concebida, aplicada e coordenada pelo autor enquanto professor e teve como objetivo geral proporcionar aos estudantes uma vivência aproximada do funcionamento de uma redação jornalística durante uma situação de crise. Como objetivos específicos, a atividade pretendia exercitar o impacto da forte emoção no trabalho dos futuros jornalistas, oferecer aos jovens estudantes a oportunidade de vivenciar de forma simulada um evento de grande impacto mundial, simular como as equipas de jornalistas atuam e misturam-se ignorando separações por editorias durante grandes coberturas, treinar a escrita, a edição, a publicação em website, a hierarquização de notícias e a tomada de decisões sob pressão e proporcionar feedback de jornalistas profissionais sobre o resultado da cobertura simulada. Na formação dos jornalistas, embora haja estágio profissional, em poucos casos os estudantes têm a chance de vivenciar o ambiente de uma redação em situações como a do exercício. O autor considera o seu percurso de vida pessoal e profissional relevante para sua formação profissional, em especial o facto de ter iniciado a trabalhar na área da comunicação aos 16 anos, antes de cursar a faculdade, tendo obtido parte do aprendizado inicial pela experiência. Antes disso, porém, há o despertar de um jovem do interior para o mundo das notícias, também relevante para perceber o contexto que ajuda a justificar a criação da atividade relatada aqui, razão pela qual opto por iniciar este texto com essa parte da história.
Foi num período inferior a quinze dias, entre o final de agosto e a primeira quinzena de setembro de 2001, que este autor, então um pré-adolescente de origem rural que viveu sem energia elétrica na quinta dos avós até os 10 anos de idade e tinha o sonho de ser médico veterinário, decidiu que queria viver para dar notícias. O que aconteceu neste período? Dois eventos que captaram a atenção total: o primeiro, gerou comoção no país de origem do autor, e o segundo, no mundo inteiro. No dia 30 de agosto de 2001, um homem armado invadiu a casa do empresário dono de emissora de televisão e apresentador mais conhecido do Brasil, Senor Abravanel, que usa o nome artístico de Silvio Santos, e o fez refém. O homem era o mesmo que, nove dias antes, havia sequestrado a filha do apresentador, que já tinha sido libertada. Desde então, o sequestrador empreendia fuga da polícia, já havia ferido um agente e, por isso, julgava que seria assassinado pelos policiais se fosse capturado. Por isso, soube-se depois, foi à casa de Silvio Santos exigir, de arma em punho, ajuda para escapar com vida. O facto parou o Brasil já que o apresentador é extremamente popular. Havia décadas que apresentava o mesmo programa de televisão aos domingos em diferentes canais e é identificado com o povo brasileiro. Todas as emissoras passaram a transmitir, de forma ininterrupta, imagens aéreas da casa do empresário no bairro do Morumbi, em São Paulo. O sequestro terminou horas depois após a intervenção do governador do Estado, a liberação do apresentador e a prisão do sequestrador. Doze dias depois, na manhã do dia 11 de setembro de 2001, novamente todas as emissoras de televisão, desta vez do mundo inteiro, suspenderam suas programações para transmitir o que parecia uma cena de cinema: a nação mais poderosa do mundo, os Estados Unidos, estava sob ataque. O mundo e eu assistimos atónitos aviões cheios de pessoas serem jogados contra as torres do World Trade Center em Nova Iorque. Inicialmente, as televisões estavam transmitindo imagens do achavam ser um acidente. Mostravam uma das torres em chamas e os jornalistas reportavam que um avião havia se chocado contra o edifício, o que já era por si só impressionante. O mundo inteiro percebeu, ao mesmo tempo e ao vivo, que se tratava de um ataque terrorista contra os Estados Unidos quando o segundo avião se chocou contra a segunda torre. Mais tarde, na mesma manhã, assistimos às duas torres ruírem e o Pentágono, símbolo do poder militar estadunidense, ser alvo de outro avião de passageiros. A comoção foi tamanha que, no Brasil, à essa altura, talvez nem o próprio Silvio Santos lembrasse mais do próprio sequestro.
Foram esses dois factos urgentes, a mais perfeita definição do que os falantes de inglês chamam de “breaking news”, que despertaram no autor, então com 14 anos, o interesse pelo jornalismo. Desse dia em diante passei a fazer, de forma artesanal e escrito à mão, um jornal com notícias da minha família e, depois, com o meu primeiro computador, faria o jornal com notícias da comunidade rural onde vivia — a vila do Passo Novo, em Alegrete, Rio Grande do Sul, Brasil. A Folha do Passo Novo foi distribuída semanalmente por quase dois anos e resultou em chamadas de atenção do prefeito da cidade e ameaças de processos judiciais de políticos locais, mas também abriu as primeiras portas para o início da minha carreira na comunicação.
Em 2003, assinava meu primeiro contrato de trabalho como locutor e produtor executivo de uma emissora de rádio da cidade de Alegrete. Foi nesta emissora que anunciei no dia 1 de abril de 2005 (no Brasil, conhecido popularmente como o Dia da Mentira) que o papa João Paulo II havia morrido. A esposa do dono da emissora, muito católica, foi às lágrimas com a minha primeira breaking news. Eu havia interrompido a programação musical da tarde daquela sexta-feira com a vinheta de plantão poucas vezes usada. A saúde do papa estava se deteriorando há dias e eu tinha esperado a semana inteira para dar essa notícia, tanto que carregava comigo uma edição da revista Seleções que contava a vida do cardeal polonês Karol Józef Wojtyła. Com 16 anos, anunciei para toda a cidade a morte do papa, a pessoa mais famosa do mundo. O problema é que o papa só morreria no dia seguinte. Foi um erro honesto, pois a rede norte-americana CNN, que acompanhava a deterioração da saúde do papa há alguns dias, também cometeu o mesmo equívoco e foi dali que o jovem aprendiz de radialista tirou a informação dada com tanto pesar para os ouvintes. É muito comum que veículos de comunicação do interior se apoiem em informações apuradas pelos maiores em situações como essa. Momentos de notícias urgentes, como coberturas ao vivo de factos que estão em desenvolvimento, são propícios a erros. Com isso em mente, iniciei minha carreira como professor disposto a trabalhar para aperfeiçoar os futuros jornalistas também para atuarem nestes momentos.
Anos mais tarde, em 2017, após concluir o mestrado em Lisboa, retornei ao Brasil e fui convidado para ser professor do curso de jornalismo no qual havia me formado sete anos antes. Eu não tinha voltado à cidade de Bagé, de cerca de 120.000 habitantes, na metade sul do estado do Rio Grande do Sul, desde 2010, quando concluí o curso. Desde então, havia acumulado experiência profissional em empresas em Porto Alegre, Rio de Janeiro, Brasília, Lisboa e São Paulo. Trabalhei como redator, repórter de rádio e televisão, editor, assessor de imprensa, correspondente internacional. Tinha muita história para contar e dar aulas estava entre os meus objetivos. Avaliei que iniciar em um ambiente conhecido e em uma universidade pequena e do interior me permitiria realizar experiências de ensino com a orientação dos profissionais que foram meus professores. Cheguei à universidade com a pretensão de dar aulas da forma como eu gostaria de assistir se estudante fosse, sem demérito dos colegas professores que muito contribuíram para a minha formação. Mas eu sabia quais eram carências do curso, pois tive que aprender no dia a dia das redações a executar funções sob pressão, algo que não fez parte da minha formação básica. Além disso, sabia que o advento do telemóvel consistia em um adversário pela atenção dos estudantes. Pretendia, portanto, colocar a minha experiência, minha desenvoltura com as novas tecnologias da informação e da comunicação e a minha empolgação a serviço dos futuros jornalistas que estavam em formação. Além disso, tinha uma missão motivacional, segundo meus antigos professores: servir como exemplo aos jovens estudantes de que o facto de estudarem em uma universidade privada e comunitária do interior do estado não seria limitante para suas futuras carreiras como não foi no meu caso. Reagia com um balanço de cabeça em sinal de negação quando ouvia isso em público, mais por falsa modéstia do que por não acreditar no que diziam. Eu sabia que era um ponto fora da curva entre os egressos daquela universidade — não o único, mas um deles.
Logo após concluir o curso de jornalismo naquela universidade, trabalhei nas empresas (rádio e televisão) de dois grandes grupos de comunicação em Porto Alegre, capital do estado. Ao mesmo tempo, fazia aplicações para novos desafios, bolsas e cursos de formação, sobretudo oferecidos por agências de notícias internacionais, pois, desde 2001, tinha interesse genuíno na cobertura internacional. Entre 12 e 16 de abril de 2010, viajei a São Paulo após ser selecionado pela Thomson Reuters para o curso “Covering Crisis and Catastrophes” (cobrindo crises e catástrofes) oferecido a um grupo reduzido de 10 jornalistas de várias partes do Brasil. Foi o primeiro curso da maior agência de notícias do mundo para o qual fui selecionado — anos mais tarde, enquanto trabalhava na universidade, faria outro em Bogotá, na Colômbia, sobre cobertura de crise migratória. Entre as atividades realizadas por duas formadoras, jornalistas experientes da Reuters que trabalhavam no escritório de São Paulo, estava um simulado de uma cobertura de uma situação de emergência. A partir do conhecimento adquirido neste curso somando à minha experiência profissional dos anos seguintes na cobertura de eventos de grande repercussão, como a invasão do Complexo do Alemão[1], no Rio de Janeiro, em novembro de 2010 pela Agência EFE (onde trabalhei entre 2010 e 2012), e a morte do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em março de 2013 pelo Portal Terra[2] (onde trabalhei entre 2012 e 2013), elaborei um exercício simulado para aplicar aos estudantes com o objetivo de reproduzir as dificuldades que vivi nas redações nas quais trabalhava quando esses (e outros) eventos ocorreram.
Os procedimentos metodológicos aplicados no exercício foram baseados na história de vida e no percurso profissional do autor, bem como na literatura prévia sobre jornalismo na internet, técnicas de redação e reportagem, entre outras. Durante a execução do simulado, o proponente praticou a observação participante e, para descrição dos resultados, baseou-se na consulta posterior aos participantes, sejam estudantes ou profissionais convidados como observadores e avaliadores.
Os participantes foram três turmas do curso de Jornalismo da Universidade da Região da Campanha, de Bagé, no Rio Grande do Sul, no Brasil, das disciplinas de Redação Jornalística (tendo como base as seguintes referências: Folha de São Paulo, 2013; Noblat, 2008; Squarisi, 2011) e Técnica de Reportagem I e II (Canavilhas & Rodrigues, 2015; Floresta & Braslauskas, 2009; Lage, 2001; Pena, 2005) em diferentes semestres. A primeira atividade foi realizada em 29 de novembro de 2017 com a turma do segundo semestre da disciplina de Redação Jornalística e envolveu 15 estudantes divididos em três grupos de cinco. Os estudantes realizaram a cobertura simulada dos atentados de 11 de setembro de 2001 em tempo real. A segunda vez que a atividade foi feita foi em 14 de junho de 2018 com os estudantes do sétimo semestre na disciplina de Técnica de Reportagem II reunidos em um grupo único — a pedido dos estudantes — e a cobertura realizada foi do cinematográfico sequestro do empresário e apresentador Silvio Santos. A atividade foi repetida em 7 de março de 2019, pela terceira vez, novamente com a cobertura dos atentados de 11 de setembro de 2001, dessa fez feita por dois grupos de estudantes.
Em todos os exercícios, as orientações foram as mesmas e a duração foi similar — entre duas e três horas, sem intervalo. Cada grupo formado a partir de escolhas aleatórias ou afinidades entre os estudantes ficava responsável por um portal de notícias simulado criado anteriormente pelo professor com o uso da ferramenta WordPress (um content management system ou sistema de gerenciamento de conteúdo). Com isso, o objetivo era que os estudantes tivessem experiência com publicadores (content management systens), já que esta ferramenta é utilizada por websites jornalísticos mais modestos, como portal independente Sul21 (https://sul21.com.br/) de Porto Alegre ou o Plataforma Media (https://www.plataformamedia.com/) de Lisboa, ou é similar aos publicadores de grandes portais como o Portal Terra (https://www.terra.com,br), o G1 (https://g1.globo.com/) e o UOL (https://www.uol.com.br/), ou de websites de grandes jornais, como Valor Econômico (https://valor.globo.com/) e Zero Hora (https://gauchazh.clicrbs.com.br/; portais e sites noticiosos nos quais o professor tem experiência prévia).
A ideia de realizar o exercício simulando o trabalho em um portal de notícias estava em linha com as profundas transformações ocorridas no ambiente mediático, nos quais os jornais assistiram ao declínio de suas versões impressas em detrimento das versões digitais, fenómeno causado pelas mudanças tecnológicas que agitaram a indústria jornalística nas últimas décadas (Rusbridger, 2018). O exercício também estava inserido em um contexto de atualização dos métodos de ensino e das experiências simuladas aplicadas por este professor às diversas turmas do curso de jornalismo, o que incluiu, em outros momentos, uso de realidade virtual, debates sobre inteligência artificial, internet das coisas e jornalismo móvel. O objetivo ao trazer essas inovações para a sala de aula era discutir como esses avanços poderiam ser utilizados pelo mercado jornalístico para sobreviver à sequência de transformações que a evolução das tecnologias da informação e da comunicação traz e visualizar as possibilidades do jornalismo pensado, produzido, formatado e distribuído com auxílio dessas tecnologias (Barcelos, 2020; Paiva et al., 2016).
Os grupos foram dispostos na sala de aula de forma a simular o ambiente de uma redação, formando ilhas de estações de trabalho individuais com computador e acesso à internet e identificadas por um pequeno cartaz com a logomarca dos seus respetivos portais experimentais (Noblat, 2008). Todos assistiam à mesma televisão, na qual era reproduzida uma gravação retirada do YouTube[3] que mostrava em tempo real como foram noticiados os acontecimentos. A televisão era uma das fontes de informações que os participantes estavam autorizados a utilizar, exercitando o processo de rádio-escuta[4].
Ao chegar para a aula, nenhum dos estudantes sabia qual facto seria utilizado no simulado. O objetivo foi manter o suspense, aumentar o interesse e o engajamento dos estudantes, o que de facto aconteceu. O ambiente na sala de aula era caótico mesmo antes do início do acontecimento noticioso, com os estudantes agitados e falantes, o que também se assemelha ao ambiente de muitas redações. A primeira tarefa, por orientação do professor, foi para que os grupos dividissem funções em editorias como quisessem (foram escolhidas editorias como fotografia, desporto, entretenimento, saúde, etc.), pois o acontecimento a ser reportado poderia ser de qualquer assunto. A ideia era demonstrar que, em momentos de notícias extremamente relevantes e urgentes como a que eles estavam prestes a cobrir de maneira simulada, a divisão das redações em editorias se dissolve e todos trabalham na cobertura do assunto em questão, às vezes trazendo contribuições de suas áreas. Por exemplo, o editor de desporto pode atentar para o envolvimento de atletas no ocorrido, se for o caso; o estudante responsável pela editora de entretenimento teria mais facilidade caso o facto a ser noticiado envolvesse alguma celebridade; o editor de fotografia ficaria atento às imagens mais impactantes para a capa do website (Erbolato, 2006).
O objetivo dos estudantes era publicar, à medida que os factos eram reportados pelas televisões e pela agência de notícia simulada, as notícias nos portais de notícias fictícios chamados B1, B2 e B3 e identificados pelas cores vermelha, azul e verde respetivamente (figuras 1, 2 e 3 mostram os grupos do primeiro exercício em 2017).
Os sites foram reaproveitados para os exercícios posteriores e, por esta razão, as primeiras publicações de 2017 foram excluídas, restando ainda o que os estudantes produziram nas edições de 2018 e 2019, como pode ser visto nas figuras 7, 8 e 9.
No dia da primeira edição da cobertura simulada, cerca de 30 minutos se passaram desde o início da aula até que o primeiro alerta fosse enviado pela agência de notícias (papel desempenhado pelo professor) via email para os endereços de cada um dos portais (portaldenoticiasb1@gmail.com, portaldenoticiasb2@gmail.com e portaldenoticiasb3@gmail.com), aos quais os estudantes tinham acesso em computadores portáteis fornecidos pela universidade (a instituição disponibilizava Chromebooks individuais). No primeiro exercício do dia 29 de novembro de 2017, por exemplo, foram enviados 14 alertas com conteúdo preparado pelo professor anteriormente e que poderia ser utilizado pelos estudantes na construção das notas:
1. Às 21h11: “URGENTE: Avião se choca contra uma das Torres Gêmeas, em Nova York” dizia o assunto do alerta acompanhado pelo seguinte texto: “um avião se chocou contra uma das torres do World Trade Center, em Nova York, agora há pouco. Uma grande coluna de fumaça pode ser vista no topo do prédio”.
2. Às 21h19: “URGENTE: Segundo avião se choca contra a outra torre do WTC”, dizia o assunto do segundo alerta, no qual se lia em seu conteúdo: “um segundo avião acaba de atingir a segunda torre do World Trade Center, em Nova York. As duas torres ardem em chamas. O Governo ainda não confirma, mas provavelmente se trata de um atentado terrorista”.
Com 10 minutos de exercício, os estudantes já assistiam na televisão as imagens do ocorrido e iniciavam a produção dos textos (figuras 4 e 5) com base nas informações disponibilizadas na transmissão e via email — conforme as regras combinadas antes do início da simulação, só poderiam ser utilizadas informações que foram enviadas por email (simulação do procedimento padrão de envio de notícias a partir de uma agência de notícias para as empresas que assinam os seus serviços), reprodução de informações da transmissão televisiva (processo conhecido como rádio-escuta) e fotos do acontecido disponibilizadas aos poucos pelo professor no Google Drive vinculado ao email (simulação do funcionamento de uma agência de notícias de fotos).
Na sequência, até às 22h56 daquele dia, foram enviadas mais 12 notas que simulavam os tradicionais flashs (alerta ou piscas, expressões do jargão jornalístico brasileiro para se referir aos primeiros informes de um acontecimento de última hora enviado pelas agências ou por empresas de comunicação), um processo que é feito quando algo importante acontece via um sistema específico de entrada de conteúdo das redações e que costuma aparecer em vermelho piscante para chamar a atenção dos profissionais. No caso do exercício, o alerta consistia em um email com um pequeno extrato de texto retirado de notícias da época e que foi organizado cronologicamente pelo professor para simular o desenvolvimento dos acontecimentos. Foram enviados os seguintes emails:
3. Às 21h50 com o assunto “FLASH: Bush” o texto dizia que “América permanece ‘unida’ e ‘determinada’ face ao terrorismo. Numa segunda comunicação ao país, George W. Bush, afirma: ‘O nosso país é forte e todos estamos mobilizados para combater estes atos’, que não afetarão ‘a base da nossa nação nem a nossa determinação’".
4. Às 21h50 com o assunto “FLASH: Pentágono” e o texto: “Oitenta corpos foram resgatados dos escombros do Pentágono, segundo fontes governamentais. Estas acrescentam não haver esperanças de encontrar sobreviventes. O fogo no edifício, desencadeado pela queda do avião, obrigou à evacuação dos trabalhadores”.
5. Às 22h02 com o assunto “FLASH: Repercussão mundial” e o texto: “Os Estados de todo o mundo condenaram os atentados terroristas. Mesmo nações consideradas inimigas dos EUA, como a Líbia, Irão e Cuba, reprovaram os ataques. Apenas o Iraque levantou uma voz dissonante”.
6. Às 22h02 com o assunto “FLASH: Relato de testemunha 1” e o conteúdo: “Diácono e superintendente da Escola Dominical da Assembleia de Deus Betel, Stanley Praimnath, de Elmont, Long Island, Nova York. ‘Enquanto estava ali em pé ouvindo as mensagens gravadas da secretária eletrônica, olhei para o outro prédio, a Torre 1 do World Trade Center, e vi fogo caindo do topo do prédio’, afirmou Stanley. Ao ver ‘bolas de fogo’ caindo, sua primeira reação foi ligar para seu chefe que trabalhava naquele outro prédio. Quando o telefone não atendia, resolveu chamar a outra funcionária, Delise, que estava no escritório, e descer. Delise e Stanley pegaram o elevador e desceram até o 78º andar. Alguns outros executivos da empresa entraram também. ‘Assim que chegamos ao térreo, o guarda de segurança parou-nos e perguntou: ‘Para onde vão?’’. Stanley explicou que tinha visto fogo na torre 1. De acordo com Stanley, o guarda disse: ‘Oh, isso foi só um acidente. A Torre 2 é segura. Voltem para seus escritórios’”.
7. Às 22h03 com o assunto “FLASH: Relato de testemunha 2” e o conteúdo: “Alisha Salam, filha de uma Testemunha de Jeová, explicou: ‘Eu estava no trem indo para o trabalho e vi fumaça saindo do World Trade Center. Quando cheguei perto do local do desastre, havia vidro por toda parte e podia sentir a onda de calor. As pessoas corriam para todos os lados, enquanto a polícia tentava evacuar a área. Parecia uma zona de guerra’. ‘Corri para me abrigar num prédio próximo. Daí ouvi a explosão quando o segundo avião atingiu a torre sul. Era uma cena indescritível, com fumaça escura em toda parte. Disseram-nos para sair da zona de perigo. Fui conduzida a uma balsa para atravessar o rio East, até Brooklyn. Quando cheguei ao outro lado e olhei para cima, vi um grande letreiro que dizia ‘WATCHTOWER’. A sede da religião de minha mãe! Fui imediatamente para o prédio de escritórios, onde sabia que seria bem recebida. Ali pude me lavar e telefonar para meus pais’”.
8. Às 22h03 com o assunto “FLASH: Relato de testemunha 3” e o conteúdo: “Wendell Kent era porteiro no Hotel Marriott, que ficava entre as duas torres. Ele conta: ‘Eu estava trabalhando na portaria no momento da primeira explosão. Vi destroços caindo por todo lado. Quando olhei para a rua, vi um homem em chamas caído no chão. Arranquei o casaco e a camisa e corri para tentar apagar as chamas. Um transeunte parou para ajudar. Toda a roupa do homem queimou, com exceção das meias e dos sapatos. Aí vieram os bombeiros e o levaram para que pudesse receber assistência médica. Logo depois disso, Bryant Gumbel, da rede de TV CBS, telefonou em busca do depoimento de uma testemunha ocular. Minha família lá nas ilhas Virgens viu a reportagem na TV e assim soube que eu estava vivo’”.
9. Às 22h03 com o assunto “FLASH: Passageiros tentaram socorro pelo celular” com o texto: “Ligações de telefones celulares de pessoas que estavam nos aviões sequestrados podem ajudar os Estados Unidos a encontrarem pistas sobre os atentados contra o World Trade Center (WTC) e o Pentágono. Relatos de passageiros que usaram seus telefones celulares dão conta que os seqüestradores teriam esfaqueado comissários de bordo antes de assumirem o controle das aeronaves. Uma das 266 vítimas que estavam nos vôos era Barbara Olson, colaboradora da rede de televisão CNN e esposa de Theodore Olson, alto funcionário do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. Pedidos de socorro Ela ligou para o marido instantes antes de o vôo 77 da American Airlines chocar-se contra o Pentágono. Olson disse que ela contou que os seqüestradores usaram facas para dominar a tripulação. Antes de a linha cair, as últimas palavras que o marido ouviu de Barbara foram: ‘Você não vai acreditar, estamos sendo seqüestrados’. ‘Ela me ligou enquanto o avião estava sendo seqüestrado. Eu queria que não fosse verdade, mas era’, lamentou Olson. Mark Binghan, 31 anos, que estava no vôo 93 que caiu na Pensilvânia, ligou para a mâe minutos antes do impacto. Segundo Alice Hoglan, mãe de Binghan, o filho disse durante a ligação que o avião havia sido tomado, e os seqüestradores tinham uma bomba. ‘Ele disse que me amava. Quando perguntei quem eram os seqüestradores, ele repetiu que me amava. Acho que ele queria dizer que não sabia quem eram os seqüestradores’, ela disse. O negociante Thomas Burnett, da Califórnia, ligou para a mulher, segundo o reverendo Frank Colacicco, um amigo da família. ‘Burnett disse ‘Eu sei que vamos todos morrer’. E então ele disse à mulher que a amava e a ligação foi interrompida’, ele acrescentou. Peter Hanson, um executivo que viajava no avião da United Airlines que se chocou contra uma das torres do World Trade Center ligou duas vezes para seu pai, em Connecticut. Da primeira vez ele disse que as aeromoças tinham sido esfaqueadas, na segunda ele contou que o avião estava caindo. Conversas na cabine De acordo com pessoas ligadas à American Airlines um dos tripulantes do segundo avião a atingir o World Trade Center conseguiu ligar para um número de emergência. Essa pessoa teria relatado que os demais tripulantes haviam sido esfaqueados, os seqüestradores haviam dominado a cabine de comando e que o avião estava caindo sobre Nova York. De acordo com o jornal Christian Science Monitor, os controladores de tráfego aéreo puderam ouvir conversas em inglês entre os pilotos e os seqüestradores na cabine do vôo 11 da American Airlines, o primeiro avião a bater no WTC. ‘Um dos pilotos abriu o microfone para que pudéssemos ouvir toda a conversa na cabine’, teria dito um controlador de vôo. Ele dizia algo como: ‘Não faça nenhuma besteira, você não vai se ferir’".
10. Às 22h19 com o assunto “FLASH: 4 brasileiros estão entre os mortos, 9 estão desaparecidos” e a informação no corpo do email: “Nos próximos dias o Consulado do Brasil em Nova York poderá publicar um anúncio no jornal The New York Times com os nomes de brasileiros ainda não localizados depois dos atentados. O número oficial de brasileiros mortos no atentado ao World Trade Center é de quatro. Mais de 3.000 pessoas morreram quando dois aviões seqüestrados se chocaram contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Manhattan. A assessoria de imprensa do consulado afirma que o fato de que nove pessoas ainda não atenderam à convocação do órgão não significa necessariamente que elas tenham morrido no atentado. ‘Podem ter até mesmo ter deixado os Estados Unidos’, disse Flávio Leme, do corpo consular. ‘Muita gente nos procurou depois dos atentados, tentando localizar familiares, amigos e conhecidos. Algumas pessoas traziam dados completos e outras mencionavam gente que não viam há anos’, completou Leme. Para facilitar o trabalho, o consulado resolveu fazer uma lista das pessoas procuradas. O consulado não deseja revelar ainda quem apareceu e quem não deu noticia, pois ainda espera a apresentação de mais alguns brasileiros”.
11. Às 22h19 com o assunto “FLASH: Relato de testemunha 4” e o conteúdo: “Donald Silver, um homem de 1,95 metro, funcionário do World Financial Center, estava no 31° andar do prédio olhando para as Torres Gêmeas e o Hotel Marriott. Ele disse: ‘Fiquei atordoado e horrorizado com o que eu vi. Tinha gente caindo e pulando das janelas da torre norte. Entrei em pânico e saí o mais rápido que pude do prédio onde estava’”.
12. Às 22h19 com o assunto “FLASH: Relato de testemunha 5” e o conteúdo: “Ruth Kolalek e sua irmã Joni estavam com a mãe, Janice, num hotel perto das Torres Gêmeas. Ruth, uma enfermeira formada, conta: ‘Eu estava no chuveiro. Minha mãe e minha irmã de repente gritaram para que saísse do banho. Estávamos no 16° andar, e elas viram destroços caindo na frente da janela. Minha mãe viu o corpo de um homem voar por cima de um telhado vizinho, como se ele tivesse sido arremessado de algum lugar. Eu me vesti rápido e começamos a descer as escadas. Havia muita gritaria. Quando saímos à rua, ouvimos explosões e vimos focos de incêndio. Mandaram que fôssemos depressa para o Battery Park, no lado sul, onde fica a balsa de Staten Island. No caminho, perdemos contato com mamãe, que tem asma crônica. Como ela sobreviveria em meio a tanta fumaça, cinzas e pó? Passamos meia hora procurando por ela, mas não a encontramos. Porém, de início não ficamos muito preocupadas porque ela é uma mulher muito capaz e dona de si. Por fim nos mandaram ir até a ponte de Brooklyn e atravessá-la a pé. Imagine nosso alívio quando chegamos ao outro lado da ponte e vimos o enorme letreiro que dizia ‘WATCHTOWER’! Sabíamos que estávamos a salvo. Fomos bem-acolhidas e recebemos acomodações. Deram-nos também roupa para trocar, pois não carregávamos nada. Mas onde estava nossa mãe? Passamos a noite inteira ligando para os hospitais à sua procura, mas nada. Por volta das 11h30 do dia seguinte, recebemos um recado. Mamãe estava lá embaixo na portaria! O que havia acontecido com ela?’”.
13. Às 22h45 com o assunto “FLASH: Suspeitos” e a informação: “As autoridades já identificaram todos os suspeitos da autoria material do ataque terrorista aos EUA. Em cada avião seguiam entre três a cinco sequestradores, egípcios e sauditas, segundo a ABC News. Dois deles estavam na ‘watch list’ dos Serviços de Emigração e Naturalização”.
14. Às 22h56 com o assunto “FLASH: Bin Laden” e o texto: “Suspeita-se do envolvimento do terrorista Osama bin Laden, considerado o inimigo público número um dos Estados Unidos. Semanas antes, bin Laden tinha avisado os EUA que estava a preparar, juntamente com os seus seguidores, um ataque sem precedentes aos interesses dos Estados Unidos”.
O exercício terminou por volta de 23h30 daquela noite, sob protestos de alguns estudantes que, tomados pela adrenalina, queriam continuar na universidade mesmo após o horário de fechamento (o horário oficial de aulas era entre 19h e 23h) para finalizar o website — um facto surpreendente e inédito, devo dizer, na minha ainda curta carreira como professor.
O mesmo procedimento de envio de alertas/flashs/piscas e de fotos foi feito em 7 de março de 2019 também com o 11 de setembro reaproveitando o conteúdo utilizado na primeira edição. Neste caso, como a turma era menor, foram apenas dois grupos, B1 e B2. No ano anterior, em 14 de junho de 2018, o processo foi feito com os estudantes do sétimo semestre na disciplina de Técnica de Reportagem II — a pedido dos estudantes — para realizar a cobertura do cinematográfico sequestro do empresário e apresentador Silvio Santos através do portal fictício B3, em grupo único. Esses são os conteúdos preservados, visto que, para evitar cópia, o conteúdo produzido na primeira edição do exercício foi excluído.
As regras foram mantidas, permitindo apenas o uso de informações disponibilizadas pelo professor ou captadas via rádio-escuta da transmissão do evento pelas televisões (Figura 6). Em todas as atividades, os participantes tiveram total liberdade editorial para decidir como utilizariam as informações.
O professor atuou apenas como observador, sem interferir nas decisões editoriais, e auxiliou em questões técnicas, como o uso do publicador, para não prejudicar o desenvolvimento da atividade dentro do tempo, já que, se os estudantes estivessem em uma redação, teriam conhecimento prévio sobre como utilizar os sistemas de publicação. Foi interessante observar como os grupos tomaram decisões editoriais diferentes ao cobrir os mesmos factos, como explicado de seguida.
Os estudantes do grupo B1 (Figura 7) do exercício de 7 de março de 2019 deram a primeira notícia com o título “URGENTE!” e escreveram “fumaça surpreende moradores de Nova York na manhã do dia 11 de setembro”. Na segunda nota publicada, já com uma foto da nuvem de fumaça, escreveram: “testemunhas no local alegam ter visto avião colidindo em uma das torres do World Trade Center. Até agora não há confirmação de quantas pessoas estavam no local atingido pelo avião”. Nota-se que o grupo seguiu a orientação de noticiar apenas factos confirmados. Na terceira nota, o grupo noticiou “Ataque terrorista” e detalhou: “um segundo avião colidiu na outra torre gêmea, dez minutos após o primeiro. Governo suspeita ser ataque terrorista”. Na sequência, destacaram o pronunciamento do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, que “confirmou, agora nesta manhã, que dois aviões foram sequestrados, um deles em Boston. Depois do segundo ataque, foi confirmado um ataque terrorista”. Por fim, noticiaram a queda das duas Torres Gêmeas e destacaram como o facto chocou o mundo:
na manhã desta terça-feira, um episódio em Nova York causou terror no mundo inteiro. Dois aviões colidiram nas torres gêmeas, o World Trade Center. De acordo com o presidente dos EUA, este foi um ataque terrorista. O FBI confirmou que a Al Qaeda está por trás dos ataques.
O grupo B2 (Figura 8) da mesma data optou por não publicar os primeiros informes sobre a presença de fumaça no World Trade Center, deixando para publicar a informação mais completa após o choque do segundo avião. “No início da manhã o World Trade Center sofre colisão por dois aviões comerciais”, escreveram no título, detalhando:
as 8:48 (sic[5]) da manhã Nova Iorque entra em choque. Uma das torres gêmeas é atingida por avião de ataque terrorista. Dez minutos após há um segundo ataque. Ainda sem informações sobre feridos. Com muita fumaça saindo das torres, há risco de desmoronamento.
Na sequência, publicaram o relato de uma brasileira: “Brasileira presencia caos nos EUA”. O relato foi retirado da cobertura da televisão: “'eu estava dentro do restaurante onde trabalho, ouvimos uma explosão e quando vimos estava tudo no chão'. Bruna relata que houveram (sic) muitos feridos procurando refúgio nos arredores do acontecimento”. Depois, destacaram a fala do presidente dos EUA: “'nosso País é forte', afirma Bush após ataque de Nova Iorque”. E, por fim, noticiaram o desabamento das duas torres com o título “Torres Gêmeas desmoronam” e escreveram na nota:
durante duas horas de constante fumaça torre sul é a primeira a cair, após trinta minutos a segunda torre acompanha a queda. O colapso que envolve a cidade cresce com a falta de esperança nos sobreviventes (sic). Bombeiros e voluntários começam as buscas.
Em outra edição do exercício, em 14 de junho de 2018, o grupo único responsável pelo portal simulado B3 (Figura 9) cobriu o sequestro do empresário e apresentador Silvio Santos. O tamanho reduzido da turma, com apenas oito estudantes, dos quais apenas seis participaram ativamente da atividade, motivou a opção por um grupo único. A primeira nota publicada por eles trazia como título “Silvio Santos é mantido refém em sua residência pelo mesmo sequestrador de sua filha” e usava uma foto que reproduzia o ecrã de uma transmissão televisiva. Na sequência, noticiaram que a família do apresentador tinha sido liberada: “Sequestrador libera família de Silvio Santos”. Depois, publicaram a nota “Criminoso que sequestrou a família Abravanel faz suas primeiras exigências”. A cobertura factual foi complementada com uma nota de recupera sobre o sequestro da filha do apresentador pelo mesmo bandido: “Relembre o caso do sequestro de Patrícia Abravanel”. O grupo encerrou a cobertura com o título “O fim de oito horas de angústia” e uma foto do apresentador acenando para a imprensa ao lado do governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, chamado ao local para ajudar nas negociações. Observa-se, ainda, que o grupo optou por assinar todas as notas com os nomes dos seis participantes, provavelmente para registar que dois estudantes, embora tenham publicado seus perfis no expediente do website simulado, não se engajaram na atividade — que não era obrigatória.
Durante a elaboração da proposta de treinamento consideramos a possibilidade de recusas e dificuldades de engajamento de estudantes na atividade. Porém, o retorno foi totalmente positivo nas duas primeiras ocasiões, com a participação de todos os estudantes. O fenómeno da não-participação foi registado apenas nesse último exercício e não estava diretamente relacionado com o exercício em si — envolvia dificuldades de relacionamento prévias entre os estudantes e a opção por grupo único provocou as recursas. Nas outras duas ocasiões em que o exercício foi proposto, todos participaram ativamente mesmo tendo sido oferecida a possibilidade de que atuassem apenas como observadores se não se sentissem confortáveis. Essa permissão foi possibilitada porque entendemos que trabalhar sob pressão pode causar situações de estresse e esse não era o objetivo da atividade.
Imediatamente após o final do exercício, os estudantes que cobriram o 11 de setembro assistiram um documentário feito pelo setor de memoria da TV Globo com depoimentos de jornalistas que trabalharam na cobertura, como os apresentadores do principal telejornal do país, o Jornal Nacional, William Bonner e Fátima Bernardes. Em todas as edições do exercício, ao final, discutimos as dificuldades encontradas na cobertura e foi feita uma avaliação conjunta do simulado.
Além da avaliação imediata pelo professor da disciplina, também buscamos avaliações externas em todas as edições do exercício. Os outros professores do curso e jornalistas que atuam no mercado participaram do processo de avaliação do resultado do simulado. Essas pessoas entraram nos portais experimentais e enviaram suas avaliações por áudio de WhatsApp, que foi reproduzido em sala de aula para os estudantes imediatamente após o final da atividade ou na aula seguinte. Para elaborar este relato de experiência em junho de 2024, entrei em contato com antigos estudantes, colegas professores e jornalistas que participaram como avaliadoras externas.
O simulado proporcionou aos estudantes um pouco da sensação do que é estar em uma redação em um momento como esse, segundo a jornalista Paula Bianchi[6], atual editora e repórter do portal Repórter Brasil, em São Paulo, que foi uma das que avaliou o trabalho dos estudantes. Em conversa para este relato de experiência, Paula ressaltou que o exercício “colocou os estudantes em contato com o mundo real do jornalismo durante a atividade e, também, no contato com profissionais que estão no mercado, que avaliaram o trabalho deles”. A jornalista também aponta que a atividade realizada em sala de aula “conseguiu exercitar uma capacidade muito importante para um jornalista, que é a capacidade de hierarquizar as notícias em uma homepage, saber o que é mais importante”, competência que ganha especial relevância em um mundo onde o algoritmo cada vez mais decide essa hierarquia pelos jornalistas.
O exercício fez com que os alunos realmente estivessem em uma imersão jornalística na qual eles puderam de facto participar de uma grande cobertura, avalia a jornalista Aline Custódio[7], premiada repórter do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, que também participou como avaliadora à distância. Em conversa para este relato, Aline disse que o desafio chamou a sua atenção: “não me recordo na minha época de estudante e, inclusive quando fui professora, de ver um exercício tão completo como esse”. Ela comenta que ficou “muito impressionada com a qualidade, tanto do material exposto pelos estudantes quanto da própria proposta em si”. “Depois disso não lembro de outro professor desenvolvendo um exercício como esse que envolve conhecimento e prática, que é algo muito importante para o jornalismo. Gostaria de ver outros professores fazendo uma proposta parecida”, afirma.
Foi uma atividade para realmente vivenciar o processo de cobertura de notícias de última hora, na avaliação da jornalista Cristiane Pereira[8], assessora de imprensa na Prefeitura de Bagé e professora do curso de Jornalismo da Universidade da Região da Campanha, outra das avaliadoras convidadas. Ela lembra que “a experiência de cobertura foi muito relevante para os alunos”.
Os antigos estudantes também foram convidados a compartilhar suas avaliações através de um questionário anónimo com dez questões fechadas e um espaço para comentários. Um deles deixou o seguinte comentário:
sem dúvida uma das melhores e mais bem elaboradas imersões jornalísticas em prol do aprendizado que já tive conhecimento. Tudo por meio de uma simulação instigante, simples e instintiva. Foi como sentir realmente o ambiente e palpitação do acontecimento, mesmo muitos de nós, na data do verdadeiro ocorrido, não termos passado por tal. Foi uma amostra extremamente real do que pode se encontrar em um evento mundial dentro de uma sala de redação.
No questionário, apresentamos 10 afirmações e pedimos aos estudantes para responderem de acordo com seu nível de concordância de um a 10, sendo um discordância total e 10 concordância total. Doze estudantes, de todas as turmas, responderam. Todos concordam totalmente com as afirmações “exercitei minha redação durante o exercício”, “exercitei meu faro jornalístico durante o exercício”, “me senti numa redação durante o exercício”, “recebi o retorno/feedback adequado”, “vivenciei o funcionamento de uma redação durante situações de crise”, “compreendi e concordo com o objetivo do exercício” e “quero mais exercícios similares em sala de aula”. Já sobre as afirmações “o exercício foi importante para minha formação profissional” e “aprendi coisas que não sabia sobre a prática de uma redação”, metade deles escolheu concordância total (10) e outra metade o valor imediatamente abaixo (nove). Por fim, sobre a afirmação “passei a gostar mais do jornalismo depois do exercício”, 11 responderam concordância total (10) e apenas um estudante respondeu que concorda parcialmente (oito).
Mesmo passados cinco anos após a realização da última edição do treinamento, as pessoas envolvidas lembravam da experiência e se prontificaram a colaborar para ampliar o presente relato quando entrei em contato. O facto de uma atividade realizada em sala de aula permanecer viva na memória das pessoas envolvidas é um sintoma de que a ação marcou estudantes, professores e profissionais envolvidos. O exercício atingiu os objetivos geral e específicos ao proporcionar com sucesso aos jovens estudantes de jornalismo um simulacro de uma situação de crise em uma redação jornalística. A atividade proporcionou aos participantes a experiência de produzir sob pressão e o treinamento para lidar com situações de forte impacto emocional, simulou como as equipas trabalham unidas em redações durante situações como as simuladas, ofereceu uma vivência sobre factos históricos e permitiu aos estudantes receber o feedback de profissionais ativas no mercado de trabalho.
Em termos de seu contributo para a formação de jornalistas, pontuamos que a ideia foi desenvolvida para ser aplicada aos estudantes do segundo semestre da disciplina de Redação Jornalística com o objetivo de exercitar a redação em momentos de pressão, mas outras turmas do curso de Jornalismo solicitaram ao professor responsável que assina este relato que a atividade fosse também feita com eles. Isso deixa evidente que os estudantes que participaram da primeira edição reconheceram valor na atividade e contaram aos demais colegas de semestres diferentes. Passei a desenvolver, durante os anos de 2018 e 2019, quando lecionei diversas matérias no curso de Jornalismo, outras atividades simuladas nas disciplinas de Radiojornalismo, Fotojornalismo e Jornalismo Móvel e de Convergência. Verificam-se, portanto, indícios de que atividades imersivas e simuladas são bem recebidas pelos estudantes de jornalismo e valorizadas por profissionais da área. Assim, acreditamos deixar como contribuição ao ensino do jornalismo a observação de que exercícios como este podem ser adaptados e reproduzidos em outras instituições de ensino com bons resultados e alto nível de aceitação por parte dos estudantes.
Lucas Rohan Machado é graduado em Comunicação Social com habilitação em jornalismo (2009) pela Universidade da Região da Campanha no Brasil, com bolsa do governo brasileiro. Concluiu o mestrado em Novos Media e Práticas Web pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em 2017, com bolsa Erasmus-Fellow Mundus, e atualmente é doutorando em Ciências da Comunicação afiliado ao Instituto de Comunicação da Nova, com bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. É jornalista e radialista com mais de 20 anos de experiência profissional, incluindo reportagem e edição de rádio, televisão e internet, e assessoria de comunicação, de imprensa e de redes sociais. Foi também professor de jornalismo na Universidade de Região de Campanha, onde orientou quatro trabalhos de conclusão de curso em 2017 e 2018 e participou em diversos júris. Publicou, no Brasil, o livro Novas Mídias, Novos Políticos (Porto de Ideias), sobre o uso do Twitter por políticos de quatro países.