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Comunidade, Liberdade e Crise: O Passado, o Presente e Ideias Sobre o Futuro das Ciências da Comunicação em Portugal
Community, Freedom, and Crisis: The Past, the Present and Ideas About the Future of Communication Sciences in Portugal
Comunidad, Libertad y Crisis: Pasado, Presente e Ideas Sobre el Futuro de las Ciencias de la Comunicación en Portugal
Revista Comunicando, vol. 13, núm. 1, e024002, 2024
Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação

Entrevistas

Revista Comunicando
Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, Portugal
ISSN: 2184-0636
ISSN-e: 2182-4037
Periodicidade: Semestral
vol. 13, núm. 1, e024002, 2024

Recepção: 17 Outubro 2023

Aprovação: 03 Janeiro 2024

Publicado: 08 Janeiro 2024

Resumo: Como surgiram e evoluíram as ciências da comunicação no pós-25 de abril de 1974, em Portugal? Foi este o mote para uma conversa com Moisés de Lemos Martins, professor catedrático jubilado de ciências da comunicação da Universidade do Minho, fundador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, atual diretor da Faculdade de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informação da Universidade Lusófona, sócio fundador e honorário da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (Sopcom), que dirigiu entre 2005 e 2015, e atual presidente da Associação Ibero-americana de Investigadores de Comunicação (Assibercom).

Abstract: How did the communication sciences emerge and evolve in Portugal after the 25 April 1974 Revolution? This was the motto for a conversation with Moisés de Lemos Martins, emeritus full professor of communication sciences at the University of Minho, founder of the Communication and Society Research Centre, current director of the Faculty of Communication, Architecture, Arts and Information Technologies at Lusófona University, founding and honorary member of the Portuguese Association of Communication Sciences (Sopcom), which he headed between 2005 and 2015, and currently president of the Ibero-American Association of Communication Researchers (Assibercom).

Resumen: ¿Cómo han surgido y evolucionado las ciencias de la comunicación en Portugal tras la revolución del 25 de abril de 1974? Este fue el motivo de una entrevista con Moisés de Lemos Martins, catedrático jubilado de ciencias de la comunicación de la Universidade do Minho, fundador de un centro de investigación en este ámbito, el Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, actual director de la Faculdade de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informação de la Universidade Lusófona, miembro fundador y honorario de la asociación portuguesa de ciencias de la comunicación, que dirigió entre 2005 y 2015, y actual presidente de la Asociación Iberoamericana de Investigadores de la Comunicación (Assibercom).

Envolvido na criação de cursos de ciências da comunicação, na fundação de um centro de investigação na área, na dinamização do associativismo e da comunidade académica (nacional, lusófona e ibero-americana), na negociação para a afirmação das ciências da comunicação como uma área específica da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), entre outros momentos marcantes da história deste campo científico, o percurso de Moisés de Lemos Martins é, a todos os títulos, singular. Está, pois, numa posição particularmente favorável para nos levar numa viagem crítica pelo passado e presente das ciências da comunicação, refletindo, também, sobre o futuro do campo.

Neste relato na primeira pessoa, vislumbramos uma disciplina reconhecida tardiamente e, em Portugal, nascida já no pós-revolução, em tempos ditos de liberdade. Hoje, uma área em crise permanente, à imagem da academia ou da sociedade de modo geral, condicionada por razões do tempo em que se vive, tempo este que é de aceleração, de mobilização permanente, de ligação imediata à pele e à emoção, constantemente à custa do pensamento.

A relação das ciências da comunicação com a liberdade e com os estudos culturais, os primeiros passos da área em Portugal — desde a criação dos primeiros cursos até ao reconhecimento da sua especificidade junto da FCT —, a importância da comunidade, da cooperação académica e do combate são os temas aflorados nesta conversa, em que a cultura dos rankings, da competição e da qualidade, bem como a precariedade, não são esquecidas.

A formalização do campo das ciências da comunicação tem início na década de 1950. Contudo, em Portugal, o seu estabelecimento “no meio académico apenas acontece no final da década de 1970, com o primeiro curso de graduação em Comunicação Social” (Martins & Mourão, 2022, p. 3).

Exato. Em 1979 o primeiro curso, em 1980 o segundo. O primeiro curso de Licenciatura em Comunicação Social surgiu na Universidade Nova de Lisboa e foi replicado depois, na Universidade de Lisboa, à data Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade Técnica de Lisboa. Seguiram-se os cursos noutras universidades: na Universidade da Beira Interior, que teve a primeira turma em 1989/1990, e na Universidade do Minho, em 1991/1992.

Diz-nos em alguns textos (e.g., Martins & Oliveira, 2013) que a história da fundação das ciências da comunicação em Portugal não é alheia à história política do país. Ora, todas estas datas remetem para o pós-25 de abril de 1974. Poderiam existir as ciências da comunicação, enquanto domínio científico, no antigo regime de Salazar/Marcello Caetano?

Eu penso que não poderia existir este campo científico antes do 25 de abril e explico porquê. A sociologia era proibida em Portugal. Em 1958, houve eleições para a presidência da república e o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, escreveu uma carta a Salazar. Ainda a reli há pouco tempo. É uma carta em que o bispo do Porto se refere a Durkheim e em que remete, muitas vezes, para a sociologia. Assinala mesmo que “a política vai submeter-se à sociologia” e fala de necessidade de “unir a frente cristã (com um ou vários nomes) numa verdadeira sociologia cristã” (Gomes, 1958/1964, p. 53). Esta carta, que demarca “a Igreja autorizada da Igreja silenciada” (Domingues, 1988/2018, pp. 101–102), valeu a D. António Ferreira Gomes um longo exílio de 10 anos. O que é engraçadíssimo é ele falar a Salazar da sociologia, que é um pensamento crítico, e, como tal, era coisa que não poderia haver no antigo regime.

Com a comunicação era ainda mais difícil. Desde logo porque esta, até finais anos 50, nem sequer tinha uma existência autónoma como campo de saber; existia apenas como uma disciplina da sociologia: a sociologia da comunicação. Foi a partir do final dos anos 50, inícios dos anos 60, que a Escola de Birmingham, em Inglaterra, abriu aos média e ao quotidiano das pessoas os estudos da cultura, que até aí eram sobretudo estudos sobre a literatura. Era, de facto, elitista a visão que se tinha da cultura, porque estava associada a um país e à literatura que o identificava.Quem puxou a cultura para o povo, para os consumos das classes populares, para os seus estilos de vida, foram os estudos culturais. Os estudos sobre os públicos dos média, por exemplo, são um assunto de finais dos anos 50, começos dos anos 60. E a minha ideia é que foram os estudos culturais que estiveram na origem dos estudos sobre a comunicação como área específica do saber. Penso, de facto, que os estudos culturais fazem parte da nossa matriz de estudiosos da comunicação, porque foi a partir deles que se começou a autonomizar o campo das ciências da comunicação.

Portanto, mesmo as ciências sociais estariam limitadas antes do 25 de abril.

Entre nós existia a antropologia, mas esta disciplina não era, então, uma coisa recomendável. Existia no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, hoje ISCSP. Era uma antropologia colonial, ao serviço do império, e, portanto, não se tratava, propriamente, da antropologia como ciência social, mas sim de uma instrumentalização da antropologia. E quanto à sociologia, não era possível criar curso nenhum, antes de 1974. Sucedendo ao Gabinete de Estudos Corporativos (1949–1961), integrado no Centro Universitário de Lisboa da Mocidade Portuguesa, a criação do Gabinete de Investigações Sociais, sediado no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, da Universidade Técnica de Lisboa, em 1962, por Adérito Sedas Nunes, é que pode ser associada aos começos da sociologia em Portugal. Logo a seguir, em 1963, foi criada neste gabinete a revista Análise Social, de que Sedas Nunes se tornou vice-diretor, em 1972. Mas foi mais tarde, em 1981, que Sedas Nunes transformou o Gabinete de Investigações Sociais no atual Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Nestas circunstâncias, tem sentido dizer que Adérito Sedas Nunes teve um papel pioneiro na institucionalização da sociologia em Portugal.[2]

Havia um certo paroquialismo do regime, também na forma de encarar as ciências sociais.

Era um regime completamente paroquial. Querem coisa mais paroquial do que a empregada de Salazar, a dona Maria, criar galinhas e coelhos no jardim do palácio de São Bento? A ditadura era também isso. E nessa carta de D. António Ferreira Gomes a Salazar (Gomes, 1958/1964), de que vos falava no início desta entrevista, o bispo do Porto apresentava as suas objeções ao país do pé descalço e do farroupilha. E para essa razão convocava a sociologia. Ainda não tinha havido o concílio Vaticano II, que começa apenas em 1962, pelo que a discussão sobre matéria colonial não era, nessa altura, grande assunto na Igreja. Na carta a Salazar, o bispo dizia nada ter a objetar contra a política internacional, ultramarina. Mas tinha coisas a dizer sobre o país “do pé descalço, do maltrapilho, do farrapão” (Gomes, 1958/1964, p. 44) e dizia que quem entende destas coisas é a sociologia. Num regime ditatorial e de censura, o pensamento crítico não era possível, ou seja, a sociologia não era possível. E também não era possível haver ciências da comunicação.

Não era possível sobretudo uma comunicação crítica, que fosse mais do que um instrumento para medir efeitos, como na sociologia norte-americana dos anos 1940, 1950 (Rieffel, 2001/2003; Valkenburg et al., 2016). Não era possível uma comunicação que levasse em consideração os sentidos e as culturas que emergem do lado dos públicos, como falámos há pouco.

Isso. Mas o 25 de abril não é a única razão que justifica a data tardia da fundação da área em Portugal. As ciências da comunicação, pelo menos com reconhecimento académico, são uma disciplina tardia. O que impediu Portugal, logo a seguir a 1974, de criar um curso de comunicação foi o facto de esta área não ser reconhecida autonomamente, sendo antes uma extensão da sociologia — era a sociologia da comunicação, aliás, uma disciplina que durante muitos e muitos anos o professor Paquete de Oliveira lecionou no Iscte, Instituto Universitário de Lisboa, no curso de sociologia.

Quem veio introduzir as ciências da comunicação em Portugal foram as pessoas que haviam feito os seus estudos no estrangeiro, e não quem fez os seus estudos em Portugal. Foi o professor Adriano Duarte Rodrigues, que se licenciou em sociologia em Estrasburgo, mas que, em 1977, se doutorou em comunicação social na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, que fundou, em 1979, o curso de comunicação social da Universidade Nova de Lisboa. No ano seguinte, foi criado o mesmo curso no ISCSP, mas este instituto não tinha sequer doutores de comunicação. Os professores do ISCSP eram, sobretudo, professores de sociologia, antropologia, ciência política e geografia. Quem aqui se destacou, pelos seus trabalhos pioneiros sobre o jornalismo e pela sua ligação aos média, foi o professor José Júlio Gonçalves, que se doutorou em ciências políticas, na Faculdade de Ciências Políticas e Económicas da Universidade de Madrid, e foi subdiretor do jornal A Capital. Depois, fui eu, que tendo-me doutorado em sociologia na Universidade de Estrasburgo, em 1984, e lecionado sociologia na Universidade Católica, em Lisboa, e na Universidade da Beira Interior, fundei o curso de comunicação social nesta última universidade, em 1989. Com o professor Aníbal Alves, que se doutorou em comunicação social, em 1983, na Universidade de Lovaina-a-Nova, fui também responsável pelo curso de comunicação social na Universidade do Minho, em 1991/1992.

Já o primeiro curso de pós-graduação em comunicação é de 1983, na Universidade Nova de Lisboa. Nesse mesmo ano foi criado, também na Universidade Nova de Lisboa, o primeiro centro de investigação, o Centro de Estudos de Comunicação e Linguagem. A revista Comunicação e Linguagens aparece dois anos depois, em 1985. As ciências da comunicação como área específica da FCT são ainda mais tardias. Pode dizer-se que esta área é institucionalizada pela FCT em 2003, quando os centros de investigação em comunicação puderam ser avaliados pela primeira vez como tal. E foi tarefa minha, então como vice-presidente da Sopcom, negociar, entre 2001 e 2002, com o presidente da FCT, o professor Rui Magalhães, a criação da área. Fui ajudado nesta tarefa pela professora Graça Simões, professora do Departamento de Comunicação na Universidade Nova de Lisboa, que era na altura vice-presidente da FCT. Foi-me então garantido pelo presidente da FCT que, se houvesse pelo menos três centros a candidatar-se à avaliação, as unidades de ciências da comunicação seriam avaliadas por um painel específico de investigadores da área, no momento em que seriam avaliados os centros de todos os outros campos científicos. E foi então que se apresentaram à avaliação, em 2003, oito centros, embora dois deles não tenham chegado a ser avaliados, por terem desistido a meio do processo. Entretanto, no ano seguinte, as ciências da comunicação já puderam apresentar-se ao concurso aberto pela FCT para projetos de todas as áreas científicas.

Assim, ao chegarmos ao fim do século XX, apenas havia, de facto, o centro de investigação da Universidade Nova de Lisboa, que era, todavia, avaliado na filosofia. O Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS), da Universidade do Minho, foi fundado em 2001 e o Labcom — Comunicação e Artes, da Universidade da Beira Interior, é de 2002. Estes dois últimos centros de investigação e outros foram criados uma vez garantida a primeira avaliação da FCT em comunicação, dado que era necessário um número mínimo de centros de investigação na área para que esta avaliação tivesse lugar, como vos explicava há pouco. Em conclusão, pode dizer-se que as ciências da comunicação ainda eram um campo muito pouco estruturado em Portugal, no final do século passado. Mas depois da criação do terceiro e quarto cursos de comunicação social, entramos, de imediato, na era do “milagre da multiplicação dos cursos de comunicação social”, segundo a expressão certeira de Mário Mesquita (1994, p. 82).[3]

Ainda no final do século passado, em 1998, surgia também a Sopcom. Sendo esta uma associação que pretende ser representativa junto do poder político (Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, n.d.), tem conseguido responder a este fim?

A questão que se colocou para que a comunidade académica de ciências da comunicação se pusesse a caminho e criasse a Sopcom foi a do desconhecimento em que se encontravam os professores e investigadores, que em finais do século XX estavam espalhados pelos cursos que começavam a cobrir o país, mas que não se conheciam entre si. Havia a necessidade de conhecer a diversidade dos interesses científicos que se afirmavam na comunidade académica de comunicação e, em consequência, havia que dinamizar a cooperação académica, criando equipas de investigação, à escala regional, nacional e internacional. Praticamente em simultâneo com a criação da Sopcom, foi criada a Federação Lusófona de Ciências da Comunicação (Lusocom), pensando nos países de língua portuguesa, assim como passaram a realizar-se congressos ibéricos, para desenvolver as relações entre a comunidade portuguesa e a espanhola. E, passada uma década, já a comunidade portuguesa de ciências da comunicação se afirmava em toda a parte do mundo: em 2010, realizou-se o congresso mundial da International Association for Media anda Communication Research (IAMCR), na Universidade do Minho; em 2014, o congresso da European Communication Research and Education Association (ECREA), no Centro de Congressos de Lisboa; e ainda em 2014, o Congresso da Confederação Ibero-americana de Associações Científicas e Académicas de Comunicação, na Universidade do Minho. Houve, por outro lado, associações internacionais, a ECREA, a Lusocom e a Confibercom, que foram presididas por portugueses. E é verdade que a Sopcom teve um papel determinante como interlocutora da área junto dos poderes públicos, tendo em vista o seu reconhecimento científico.

Hoje, as circunstâncias da Sopcom não são, é claro, as da institucionalização da área, felizmente um assunto ultrapassado há duas décadas. Nem sequer as da afirmação da comunidade académica de ciências da comunicação, junto das comunidades nacional e internacional. Mas é vasto o território pelo qual a Sopcom pode e deve bater-se, ao lado, aliás, de outras associações científicas nacionais, especialmente as de ciências sociais e humanas. Refiro-me, por exemplo, ao combate pela afirmação do português como língua de ciência; ao combate pelo pensamento crítico, hoje em regressão na academia; ao combate pelas metodologias qualitativas e compreensivas, hoje desqualificadas pelas metodologias quantitativas, explicativas e “objetivas”; ao combate pela publicação em livro, e também pela publicação de acesso aberto, em vez da exclusiva importância académica dada ao artigo em revista e de preferência em revista com fator de impacto. Enfim, um sem número de combates, a que podemos ainda acrescentar a luta por uma agenda científica nacional, aberta à análise e ao debate dos nossos interesses específicos, de modo a contrariar a concentração exclusiva do trabalho de investigação nas agendas científicas hegemónicas (Martins & Pires, 2023).

E, apesar do cenário de competição, bem como da diversidade temática, ainda há algo que una, hoje, os investigadores de comunicação?

Esta pergunta não é dissociável de uma outra mais vasta que podemos formular, interrogando-nos sobre o que é que une as pessoas de um modo geral. E também podemos formular a mesma questão, interrogando-nos sobre um aspeto mais específico: afinal, o que é que une as pessoas de comunicação dentro de um centro de investigação? Apenas a circunstância de nos conhecermos uns aos outros e de nos interessarmos uns pelos outros é que permite fazer comunidade, qualquer que ela seja. Mas além da interação que estabelecemos uns com os outros, e que é necessária para darmos um sentido de comunidade ao que fazemos, temos de falar também dos sinais do tempo que vivemos. E estes são sinais próprios de um tempo marcado por determinados fatores que atingem também a academia.

Está a acontecer a degradação, neste tempo, de tudo o que diga respeito a um sentido de comunidade, um sentido em que seja manifesta a preocupação pela inclusão dos mais frágeis, dos mais precários e dos mais abandonados. Uma sociedade devia sentir que as suas instituições funcionam com este sentido de comunidade. Mas começa a pairar uma névoa pesada sobre as nossas instituições. Dá a impressão de que elas são servidas por gente sem sentido de comunidade.

Ora, os média ­— bem sei, todavia, que a comunicação não se restringe aos média, mas comecei por dizer que foram os estudos sobre os média que tornaram a comunicação numa coisa relevante na academia ­­­­­— têm uma importância fundamental nas sociedades democráticas. Os média exercem uma função de vigilância sobre os poderes que se estabelecem na sociedade e de instrução dos cidadãos para as melhores decisões a tomar. Mas hoje as instituições democráticas funcionam com demasiadas insuficiências. E, por outro lado, também os média deixam muito a desejar. Podemos dizer que a comunicação se tornou espetáculo, por toda a parte existe uma comunicação de alerta, uma comunicação que desperte a atenção e encha o olho. Todos os média trabalham neste sentido, na procura de alguma coisa que nos prenda a atenção. E, por essa razão, a comunicação tem de ser sempre alguma coisa que bata na nossa pele. Portanto, as instituições estão numa fase má, as instituições que servem a comunidade e nos fazem cidadãos estão numa fase má. O que quer dizer que os próprios cidadãos só podem andar um tanto desnorteados. Mas a verdade é que somos nós quem faz as instituições que temos.

Apesar disto continua a ser necessário aspirar à comunidade?

Tinham-me perguntado: o que é que nos une? E eu diria que tem de ser sempre a mesma coisa, a comunidade. E o que é que faz comunidade? Só fazemos comunidade com a comunicação e a comunicação ocorre, acima de tudo, numa relação face a face com um outro.

Nós só fazemos comunidade com a comunicação, ou seja, na inter-relação entre pessoas. Não falo especificamente dos média, mas da comunicação, que é, antes de mais nada, uma relação e uma interação que se estabelecem entre pessoas. Vejamos os congressos científicos: se não conhecermos as pessoas, se não fizermos comunidade académica, os congressos científicos apenas concorrem para fazer currículo, para o cálculo que fazemos sobre a nossa carreira científica. Se não conhecemos o rosto nem a alma do outro, não o conhecemos verdadeiramente. E, todavia, os média nasceram para isso, para velar pelo interesse coletivo, para promover a cidadania, ou seja, para fazer comunidade, de modo a que não haja uns trastes à nossa frente, a tratar da coisa comum sem que saibamos bem como. Ou seja, a boa solução no convívio humano é sempre fazer comunidade, na diversidade, é certo, apresentando as coisas de acordo com o nosso próprio ângulo de visão. A pressa, a velocidade, a mobilização para diante são sintoma de uma doença da nossa época. Bem podemos imaginar que já corremos tudo aquilo que havia que correr. O que é facto é que continuamos a correr e o fazemos sempre cada vez mais. Hoje, não existe atividade humana que não seja uma corrida numa competição. E a competição é como se estivéssemos num mercado, a correr sempre para um ranking ou uma estatística qualquer.

Volto à vossa questão. O que é que nos une? Todos devemos estar instruídos por esta razão: nós servimos a comunicação, nós servimos a comunidade. Os média, que são uma expressão específica da comunicação, também servem a comunidade. Dizia-se no passado que as máquinas são neutras, que nós é que fazemos coisas com elas, que apenas nós é que lhes damos sentido. Com os algoritmos percebeu-se que as máquinas é que nos estão a fazer. Mas, a verdade é que não é de hoje que as máquinas não são neutras. São linguagens e quem teve semiótica (que é uma disciplina que interroga a produção da significação) sabe disto: a linguagem é feita por humanos. Mas, depois, a própria linguagem também nos faz a nós. Pierre Bourdieu (1980b) dizia algo assim: eu falo para ser ouvido, para que me vejam, para ser distinguido, eu falo para ser obedecido, sendo que obedecer remete para o latim ob-audire — ouvir uma palavra e fazer-se discípulo dela. Não é pela palavra, pela linguagem, que fazemos comunidade? Sim, porque apenas pela palavra podemos prometer, ou seja, apenas pela palavra podemos garantir ao outro a eternidade, como muito bem o escreve Jorge Luís Borges, no poema “The unending gift” (numa tradução literal, dom imperdível).

Mas também temos de saber o que é o nosso tempo, qual é a sua natureza. Com a mobilização para os rankings é a própria condição académica que se está a degradar, porque os rankings põem-nos em competição uns com os outros, e nunca em cooperação. Em muitos dos meus textos desenvolvo esta ideia[4]: seja em termos culturais, artísticos, económicos, políticos, sociais, seja também em termos científicos, hoje em dia, estamos sempre em competição. O mercado é a metáfora a que praticamente todas as atividades da vida humana se sujeitam. O mercado começa por ser uma realidade económico-financeira. Mas transformou-se na metáfora a que se submete toda a nossa existência.

Ora, nós, nas ciências da comunicação, também vivemos esta crise existencial. Os rankings e a cultura da qualidade tomaram conta da universidade e impuseram-se à investigação. A cultura da competição e da qualidade é uma cultura sem pensamento, sem história e sem memória (Martins, 2019). Eu tenho estudado o imaginário contemporâneo, que classifico como melancólico (Martins, 2011a, 2011b). Trata-se de um regime de imaginário que decorre da translação de uma civilização da palavra para uma civilização da imagem (de produção tecnológica). E eu tenho centrado a minha análise em três figuras específicas, que também são estudadas pelo meu colega Albertino Gonçalves: o trágico, o barroco e o grotesco, figuras que exprimem as “formas de uma vida que não conhece sossego” (Martins, 2011b, p. 19). O trágico estava já no subtítulo de um dos livros do Michel Maffesoli (2000), em que falava do regresso do trágico nas sociedades pós-modernas. Eu não utilizo muito a figura da “pós-modernidade”. Refiro-me mais ao nosso tempo, ao contemporâneo, à nossa modernidade. Mas em todo o caso, o nosso imaginário, que é um regime de imagens, é também um regime de sonhos. Em L’Eau et les Rêves: Essai Sur l’Imagination de la Matière (numa tradução livre, A Água e os Sonhos: Ensaio Sobre a Imaginação da Matéria), Gaston Bachelard (1942, p. 105) dizia que as coisas sonhadas são mais importantes em nós que as coisas calculadas.

Mas o nosso regime de sonhos, que é melancólico, concretiza a deslocação de uma civilização da palavra para a uma civilização da imagem, ou como escreveu Perniola (1991/1993), uma deslocação da ideologia para a sensologia, com a sensibilidade e as emoções a levarem a melhor sobre as ideias e a bios a misturar-se com a techne, podendo hoje falar-se, por exemplo, no sex-appeal do inorgânico (Perniola, 1990/1994). Ou seja, podemos falar hoje de um regime associado à atual civilização técnica, tendo a técnica, por sua vez, uma particular ligação à emoção. A técnica não nos fala à razão, fala-nos antes à pele. E falando-nos à pele, é tribal, e não comunitária. Faz-nos sentir a todos da mesma maneira; mas sentindo todos nós da mesma maneira, acabamos por pensar e por fazer todos a mesma coisa. Nestas circunstâncias, que são tribais, as coisas não podem estar a correr bem para o sonho de comunidade, pelo que é manifesto na sociedade um mal-estar permanente.

Continuemos a falar desta crise que afeta as ciências da comunicação. Tem apontado três problemas que assolam o campo: precariedade, rankings e avaliações científicas (Martins, 2020, 2022, 2023). Perante estas condicionantes, são as ciências da comunicação hoje um espaço de liberdade?

Muitas das pessoas que se afirmam em regime democrático conviveriam bem com um ditador, com um sistema repressivo, por quererem ser simpáticas e por não quererem contrariar o curso da vida. Entra-se numa espécie de jogo. E desse modo é mais difícil fazer oposição. Eu fico muito incomodado por não haver um combate público às atuais políticas científicas. Como é que não há? Como é que os académicos não debatem as políticas científicas em Portugal?

Dos cerca de 2.500 investigadores precários dentro das universidades, resultantes dos “concursos de estímulo” ao emprego científico, pouco ouvimos falar.[5] Foi da responsabilidade do ministro da ciência, tecnologia e ensino superior dos XXI e XXII governos constitucionais (2015–2022), Manuel Heitor, tanto o Concurso de Estímulo ao Emprego Científico Individual, como o Concurso de Estímulo ao Emprego Científico Institucional, associados ambos a contratos com a duração limitada de seis anos. Mas, sem a garantia de futuro, continua-se a perpetuar a precarização dos investigadores. Têm sido feitas, de facto, apostas muito equivocadas a respeito do emprego científico.

Em julho de 2023, manifestaram-se alguns dos investigadores com contratos no âmbito destes concursos, porque se estava a tratar desse assunto na Assembleia da República. Mais de uma centena de docentes e investigadores fizeram-se ouvir durante a audição da ministra da ciência, tecnologia e ensino superior, Elvira Fortunato, sobre a precariedade no ensino superior. Mas há muito tempo que estes investigadores sabem que vão para o desemprego. E, todavia, mal se manifestam; mesmo quando o fazem, é de uma forma tíbia. Estamos num tempo assim. Tendo embora muitas razões para manifestarmos publicamente a nossa revolta, de um modo geral ficamos calados.

Mas as ciências sociais têm uma tradição de resistência, até. Olhemos um pouco para trás e para as ciências sociais e humanas no geral. Por exemplo, poderá dizer-se que foi nas ciências sociais e humanas que o paradigma dominante[6] teve uma mais tardia penetração (Gradim & Morais, 2016). Ainda há aqui alguma reação das ciências sociais e humanas em geral e da comunicação em particular.

Pouca e eu vejo isso, por exemplo, em Espanha. Os espanhóis nem sequer fazem o simples combate que nós fazemos. Para eles é claro: o inglês é a língua de ciência. Quando lhes falo destas questões, da importância de afirmar o português e o espanhol como línguas de pensamento e de conhecimento, de um modo geral, acham isso uma coisa retrógrada. Ainda podemos contar com alguma ajuda da parte dos galegos, mas também na Galiza já encontramos quem tenha na ciência um interesse exclusivo pela língua inglesa e uma grande abertura a práticas de pagamento para publicar.[7]

Quando nos submetemos a uma língua hegemónica, não estamos apenas a subalternizar a nossa língua. Com isso, estamos a subalternizar a ciência que fazemos e também a nossa cultura. Não nos podemos esquecer que as políticas de ciência e de língua exprimem uma luta pela ordenação simbólica do mundo (Bourdieu, 1977, 1979, 1980a, 1982). As políticas de ciência e da língua não são neutras e têm as suas consequências. O paradigma dominante apaga a diferença, a diversidade, e, pela sua centralidade anglo-saxónica, perpetua a nossa subalternidade linguística, cultural, artística, política e científica.

E diria que esta forma de fazer ciência condiciona o modo como as ciências da comunicação em Portugal evoluíram, até de um ponto de vista temático?

Não há dúvida nenhuma de que o inglês se impõe cada vez mais. Se as políticas científicas faziam supor que o único caminho para a internacionalização era o inglês; se faziam supor, há 10 anos, que só se fazia ciência com métodos quantitativos, “ciência objetiva”, agora só é ciência o que se alinha com as agendas estabelecidas por quem a financia. Desde 2020 que as agendas científicas fazem parte do paradigma hegemónico, primeiro com o programa de financiamento da União Europeia, intitulado Horizonte 2020, e agora com os objetivos específicos do chamado “desenvolvimento sustentável e inclusivo”. Parece não ter valor nenhum uma candidatura que não corresponda a estas agendas, que condicionam por inteiro os temas de investigação. E ninguém debate na universidade esta situação lamentável. As agendas científicas e os rankings são, agora, a única política que temos.

Para mim, é hoje evidente que quem quiser fazer uma carreira académica tem de se sujeitar a esta pobre condição, de dobrar a cerviz à tirania das agendas científicas, assim como à tirania da publicação em revistas de grande fator de impacto. Em consciência, não posso dizer aos doutorandos que não façam isso. Seria o caminho para o seu suicídio académico. Contudo, a ideia que eu tenho é que este caminho corresponde apenas à degradação da condição académica e do pensamento crítico. Compreendo que a precariedade da situação profissional em que se encontram os jovens investigadores obrigue à preparação constante de candidaturas conformes ao paradigma instalado, que é aquilo que é entendido como “qualidade”. O livro, por exemplo, sempre teve um lugar de excelência nas ciências sociais e humanas, mas os investigadores mais novos têm hoje é que publicar bons artigos em boas revistas, de preferência em revistas com grande fator de impacto, deixando para mais tarde a possibilidade da publicação de livros.

O nosso tempo tem, como referi, muitas maleitas. E a academia exprime boa parte delas. Trata-se de maleitas que condicionam não apenas as ciências da comunicação, mas as ciências sociais e humanas no seu todo. Porque a língua hegemónica, as metodologias exclusivamente objetivas, a publicação com predominância em revistas, e ainda por cima em revistas com grande fator de impacto, os rankings, as agendas científicas, exprimem, em síntese, a deslocação de uma civilização da palavra para uma civilização dos números, assim como uma retração do pensamento crítico.

Veja-se o que se passa, hoje, com os concursos académicos. Deixou de haver concursos académicos que não obriguem ao preenchimento de um documento Excel, para uma avaliação quantitativa. Mas isso não passa de uma treta pegada, porque é um mero simulacro de objetividade. Eu quando estou no júri de um concurso académico, leio a documentação e faço o meu juízo sobre cada um dos candidatos. Mas quando vou preencher a folha Excel, com a avaliação numérica, quantitativa, já sei que candidato vai ficar em sexto, quinto, quarto, terceiro, segundo e primeiro, pelo que os números têm de corresponder, enfim, têm que se dobrar ao juízo académico, ou seja, ao juízo qualitativo que eu já fiz sobre cada um dos candidatos.

No fundo os números são usados para criar o “efeito de rigor”, para citar uma expressão de Albertino Gonçalves (2007, p. 202).

É precisamente para isso, para criar um efeito de rigor, que são usados os números. Mas a verdade é que eu conheço a minha área académica, conheço os professores e investigadores que nela trabalham, sei o que fazem, acompanho-os, por vezes, há dezenas de anos, confirmo e aprofundo as ideias que tenho sobre os candidatos a um concurso, a ponto de sobre eles poder formular um parecer, lendo a vasta documentação que apresentam, sempre que se apresentam a um concurso. Mas tenho, agora, que preencher um documento Excel de avaliação numérica, quantitativa, em qualquer concurso, seja para professor auxiliar, associado ou catedrático, e seja em que universidade ou instituto politécnico for. Um assunto como este deveria de ser discutido na academia. E, sobretudo, as ciências sociais e humanas deveriam proceder a esse debate alargado. Mas também as ciências sociais e humanas baixam os braços, numa situação em que o que está em causa é a desvalorização, e mesmo a falência, do pensamento crítico.

Fala-se de uma desvalorização do pensamento crítico que afeta as ciências da comunicação, mas também a ciência em geral.

Hoje, na ciência não é só a questão do impacto que é um problema. A linguagem académica está rendida à comunicação estratégica e ao marketing, que vieram substituir, é um facto, o pensamento na universidade. E, todavia, a universidade nasceu entre os séculos XI e XIII como a “casa do pensamento”, pelo que não pode viver sem ele. Foram a comunicação estratégica e o marketing que vieram ocupar o lugar do pensamento na universidade, promovendo, por exemplo, a “qualidade” e a “excelência” dos seus professores. E quem são os grandes professores da universidade, de acordo com o discurso da comunicação estratégica e do marketing? Hoje, os grandes professores são aqueles 2% que a Universidade de Stanford identifica como “os mais influentes”. Até é curiosa esta expressão, porque nós já tínhamos os influencers, que enxameiam as redes sociais e se pavoneiam nos ecrãs. Agora, passamos a ter nas universidades os professores “mais influentes”, afinal de contas, os mais citados, aqueles que integram a lista dos 2% da Universidade de Stanford.

Depois, temos a qualidade e a excelência dos cursos da universidade — os cursos mais competitivos, os de melhor cotação nos rankings, os mais empreendedores, os que mais trabalham para a estatística, os que participam num web summit qualquer. É esta a nossa “qualidade”, de acordo com o discurso atual. Portanto, como disse, o marketing e a comunicação estratégica roubaram o lugar do pensamento na universidade.

Seria interessante pegar nas newsletters das universidades e ver de que ideias são feitas. Na leitura que eu faço, a “qualidade” de uma universidade resume-se àquilo que resulta de rankings, ou então que a prepara para rankings. E, é verdade, a “qualidade” de uma universidade também é aquilo em que ela já é uma empresa, ou então que a prepara para ser uma empresa. A universidade que importa é a universidade que tem uma lógica empresarial, enfim é a universidade que segue a lógica da competição. Claro, tudo isto é a consequência do tempo que vivemos, sendo o nosso tempo uma era tecnológica, de aceleração e mobilização para uma competição qualquer. Mas sendo esta a condição da nossa época, ainda por cima com a técnica a emparelhar com a emoção, o que faz com que a nossa sociedade tenha comportamentos tribais, não podemos viver senão em crise permanente.

Podemos, então, falar de uma crise permanente da universidade e das ciências da comunicação, numa retração geral do pensamento.

O que eu digo sobre a universidade é o que verificamos na sociedade em geral. É a sociedade em que vivemos, marcada pela tecnologia e, sobretudo, pelas tecnologias da informação, que tem essas coisas todas, que são a aceleração, a mobilização e, depois, a ligação à pele, à emoção, que faz com que todos os aspetos da nossa atual experiência coletiva estejam diminuídos, ou degradados. Por isso, não é uma crise das ciências da comunicação em particular. Se olharmos para a universidade, verificamos que na “casa do conhecimento” já não existe pensamento nenhum. Mas, na realidade, a conquista democrática nunca é uma coisa feita. O desafio com que a democracia nos confronta foi e será sempre o de entendermos que as instituições democráticas não passam de realidades frágeis e que, portanto, estão sempre sujeitas a degradar-se. Não é verdade, de facto, que andemos sempre para diante. Anda-se para a frente, para os lados e também para trás. Todavia, mesmo quando acontece chegarmos ao caos, há que recomeçar de novo. É verdade, eu não acho nada que a comunicação esteja numa crise por razões que sejam apenas dela própria. Antes de mais, a comunicação reflete o nosso tempo, que despreza o pensamento, dispensa a cidadania e que nos dá muito maus exemplos.

Para terminarmos num tom um pouco mais otimista, como podemos começar a contrariar as consequências deste tempo? Como podem as ciências da comunicação fazer esse combate de que tanto fala?

Como já disse, o nosso tempo é o tempo das novas tecnologias da informação. Com elas Portugal desembocou neste mundo, largamente globalizado e centrado na exploração de novos suportes e de novas formas de comunicação. Refiro-me à generalização dos telemóveis, cujos modelos mais avançados tecnologicamente permitem o registo fotográfico, o registo fílmico, a ligação online wireless e a escrita em Word, que se vulgarizou como as velhas máquinas de escrever. Refiro-me, igualmente, ao computador, às consolas de jogos eletrónicos, ao DVD, ao multimédia, ao iPhone e ao iPad, aos podcasts, ao online e ao ciberespaço.

É indubitável que a presença maciça do computador na cultura significa novas possibilidades de interação eletrónica e wireless, que têm relançado e intensificado as práticas de convivialidade e de oralidade, que se realizam no consumo, na apresentação do corpo e na música, e, também, naquilo que alguns chamam de novas tribos urbanas e suburbanas e, enfim, na afirmação de símbolos e de modelos juvenis. Ou seja, as tecnologias, em geral, e as novas tecnologias da informação, em particular, subvertem o quadro de conjunto em que se desenrolam as rotinas de ação da vida contemporânea. Porque essas tecnologias permitem a expansão da experiência humana, com conteúdos digitais. E o que eu penso, de facto, é que os sites, portais, blogues, videojogos, aplicações, repositórios digitais, museus virtuais, e ainda a instalação de realidades virtuais em ambientes imersivos, podem servir a comunicação, ou seja, podem constituir novas oportunidades para a realização do sonho de comunidade, inscrito em todo o ato de comunicação. A travessia humana deve ter a alimentá-la, sempre, um sentido de humanidade, o que quer dizer um sonho de comunidade. E as novas tecnologias da informação oferecem-nos estes novos territórios, paisagens, atmosferas, ambientes e conhecimentos para a travessia, que é uma viagem que compreende mesmo uma nova arte de contar histórias, uma arte que expande a experiência do humano, por exemplo, através da máquina fotográfica, da programação informática e do design gráfico.

E embora seja verdade que com as tecnologias da informação tenham crescido, exponencialmente, as nossas práticas de simulação e de simulacro, e que o humano possa sentir-se em perigo e mesmo mostrar-se desassossegado e sem norte, é também um facto que, com os novos territórios, as novas paisagens, os novos ambientes eletrónicos, e os novos conhecimentos, cresceu igualmente a nossa capacidade de produzir seres artificiais e virtuais, e que à expansão da nossa experiência e conhecimento corresponde, do mesmo modo, uma expansão da narrativa, uma expansão do nosso modo de nos narrarmos, de falarmos de nós. Assim acontece, ainda, com os repositórios digitais de conhecimento, que abrem, hoje, amplos territórios para a comunicação da ciência.

Em conclusão, as ciências da comunicação devem olhar para as novas tecnologias da informação como novas oportunidades para uma interação humana animada com um sonho de comunidade, o sonho de uma utopia do pensamento, em permanente tensão com os abalos do mundo e escrutinada publicamente, uma utopia que se decide num espaço radicalmente aberto pela ideia de liberdade, tendo a justiça como seu efeito.

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Notas

[1] Recorde-se o caminho que Raymond Williams (1981/1982, 1983) mapeou em redor de culture, na língua inglesa: dos três amplos significados encontrados ­— primeiro, a tendência de algo, depois, a adoção desta imagem tendencial para se falar de estilos de vida, pela sociologia e antropologia, e, por fim, enquanto sinónimo de atividades intelectuais e artísticas —, o derradeiro, apesar de mais recente, assumiu um lugar proeminente.
[2] Neste contexto, é útil ler o artigo de José Luís Cardoso (2013), “O Gabinete de Estudos Corporativos (1949-1961) e a Génese de uma Biblioteca Moderna de Ciências Sociais”.
[3] Em 2004, numa intervenção que fiz no V Congresso Português de Sociologia, na sessão plenária intitulada “Sociedade Portuguesa: 30 Anos de Transformações Sociais”, assinalei o seguinte: “atualmente existem vinte e sete cursos superiores na área das Ciências da Comunicação, em vinte e uma instituições do ensino superior universitário e politécnico” (Martins, 2008, p. 154).
[4] A viragem para o mercado e os diferentes aspetos das políticas de língua e de ciência são assunto de diversas obras de Moisés de Lemos Martins, como por exemplo, “Em Defesa da Universidade e em Defesa da Ciência” (Martins, 2020), Pensar Portugal A Modernidade de um País Antigo (Martins, 2021) e Política da Ciência e da Língua, Publicação Científica e Rankings Académicos (Martins & Pires, 2023).
[5] Ler, todavia, Miguel Viegas (2023) no artigo de opinião publicado em AbrilAbril intitulado “A precariedade dos investigadores em Portugal: da excelência à dependência”.
[6] A ciência, de modo geral, vive hoje dominada por um modelo que prioriza (1) o inglês; (2) a publicação sob a forma de artigos em revistas científicas; (3) com o formato introdução, métodos, resultados e discussão; e (4) em revistas científicas com fator de impacto (Serra, 2017).
[7] Deve, todavia, ser salientado o lançamento do Manifesto Sobre A Língua Portuguesa Como Língua de Ciência, ocorrido no Folio – Festival Internacional Literário de Óbidos, a 15 de outubro de 2023 (Lusa, 2023). Deve, por outro lado, ser assinalado que a Academia Brasileira de Letras deu um apoio consensual a este manifesto (Academia Portuguesa de Letras, 2023).
Declaração de conflito de interesses: Uma das autoras da presente entrevista é da editora desta edição da Revista Comunicando. A autora não atuou como editora deste manuscrito. Ressalva-se que o procedimento editorial foi seguido de forma rigorosa, com revisão por pares duplamente cega dependente do parecer favorável de dois revisores externos e sem qualquer intervenção da mesma.
Contribuição dos autores: Moisés de Lemos Martins realizou a concetualização e a redação – revisão e edição. Marisa Mourão realizou a concetualização e a redação do rascunho original. Pedro Moura realizou a concetualização e a redação do rascunho original.

Autor notes

Moisés de Lemos Martins é professor catedrático jubilado do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade do Minho. Dirige atualmente a Faculdade de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informação (FCAATI) da Universidade Lusófona, no Porto. Foi diretor do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, do Museu Virtual da Lusofonia, da revista Comunicação e Sociedade, e também de mais duas revistas, da Revista Lusófona de Estudos Culturais e da Vista. Doutorou-se pela Universidade de Estrasburgo em ciências sociais (na especialidade de sociologia), em 1984. Tem publicado no âmbito da sociologia da cultura, semiótica social, sociologia da comunicação, semiótica visual, comunicação intercultural, estudos lusófonos, e política científica. Dirigiu durante 10 anos o Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho (de 1996 a 2000, e de 2004 a 2010). Presidiu à Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, de 2005 a 2015; à Federação das Associações Lusófonas de Ciências da Comunicação, de 2011 a 2015; à Confederação Ibero-Americana das Associações Científicas e Académicas de Comunicação, de 2012 a 2015. É atualmente presidente da Associação Ibero-americana de Investigadores de Comunicação.
Marisa Mourão é doutoranda em ciências da comunicação, na Universidade do Minho (Portugal), e investigadora no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, onde exerceu também funções de gestão de ciência e tecnologia entre 2018 e 2022. Os seus principais interesses de investigação incidem sobre os média e a cidadania, particularmente educação para os média/literacia mediática e crianças e média. A estas áreas soma-se o interesse pela comunicação de ciência e política científica. É membro do think thank Communitas, tendo estado diretamente envolvida na sua conceção e desenvolvimento. É também membro do MILObs — Observatório sobre Média, Informação e Literacia do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade.
Pedro Moura é doutorando em ciências da comunicação, na Universidade do Minho, e investigador no Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. Tem como principais áreas de investigação os estudos de receção, o fandom, as narrativas transmediáticas e a educação e literacia para os média. É, também, colaborador do MILObs — Observatório sobre Média, Informação e Literacia do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade.


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