Resumo: O presente trabalho tem como objetivo identificar como dispositivos da Netflix, baseados na coleta de dados e uso de algoritmos, estão influenciando a cultura de produção e consumo audiovisual. Por meio de uma revisão sistemática de literatura (RSL), esta pesquisa identificou como o campo acadêmico da Comunicação e áreas correlatas estudaram o fenômeno dos algoritmos e seus efeitos no período entre 2012 e 2022. A relevância desse estudo está em oferecer um resumo sobre o conhecimento produzido sobre o tema, servindo como ponto de partida a novas pesquisas. Os dados levantados puderam ser resumidos em três eixos de discussão: a engenharia do algoritmo, os impactos sobre a cultura e os efeitos mercadológicos. Em conclusão, a RSL demonstrou que as preocupações se intensificaram a partir da metade do período analisado, com destaque a críticas sobre vigilância de ações dos usuários e a criação de filtros que condicionam as escolhas dos indivíduos e as estéticas da produção – orientadas a um mercado global. Consequentemente, impõem-se limites à diversidade de produtos e a discussões identitárias, já que se privilegiam formatos de produção alinhados aos interesses globais da empresa americana.
Palavras-chave: Netflix,Sistema de Recomendação,Algoritmo,Cultura,Mercado Audiovisual.
Abstract: This paper aims to identify how Netflix devices, based on data collection and algorithmic analysis, is influencing the culture of audio-visual production and consumption. Using a systematic review of literature (SRL), this research identified how the academic field of Communication studies and its correlated areas have studied, from 2012 to 2022, the phenomenon of algorithms and their effects. This paper is relevant for offering a summary of the knowledge around this subject, serving as a starting point to future researches. The surveyed data are summarized in three discussion axes: the algorithm engineering, the impacts on culture and the effects over the market. In conclusion, the SRL showed an intensification of concerns as of the second half of the analysed period, with greater weight to denunciations about surveillance of user’s actions and the creation of filters that condition both people’s choices and productions aesthetics – now oriented to a global market. Consequently, limits are imposed to diversity of productions as well as identitarian discussions, since production formats aligned with the global interests of the American company are put forward.
Keywords: Netflix, Recommendation System, Algorithm, Culture, Audio-visual Market.
Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo identificar cómo los dispositivos de Netflix, basados en la recopilación de datos y el uso de algoritmos, están influyendo en la cultura de producción y consumo audiovisual. A través de una revisión sistemática de la literatura (RSL), esta investigación identificó cómo el campo académico de la Comunicación y áreas afines han estudiado el fenómeno de los algoritmos y sus efectos en el período entre 2012 e 2022. La relevancia de este estudio radica en ofrecer una síntesis del conocimiento producido sobre el tema, sirviendo como punto de partida para futuras investigaciones. Los datos recopilados podrían resumirse en tres ejes de discusión: ingeniería de algoritmos, impactos en la cultura y efectos de marketing. En conclusión, la RSL mostró una intensificación de las preocupaciones a partir de la segunda mitad del período analizado, con mayor peso a las denuncias sobre la vigilancia de las acciones de los usuarios y la creación de filtros que condicionan tanto las elecciones de las personas como la estética de las producciones, ahora orientadas a un mercado global. En consecuencia, se imponen límites a la diversidad de producciones, así como discusiones identitarias, ya que se privilegian formatos de producción alineados con los intereses globales de la empresa estadounidense.
Palabras clave: Netflix, Sistema de Recomendación, Algoritmo, Cultura, Mercado Audiovisual.
Varia
Os Sistemas de Recomendação da Netflix: Uma Revisão Sistemática da Literatura Sobre os Efeitos na Cultura e no Mercado Audiovisual
Netflix Recommendation Systems: A Systematic Review of the Literature About the Effects on Culture and Audio-visual Market
Los Sistemas de Recomendación de Netflix: Una Revisión Sistemática de la Literatura Sobre los Efectos en la Cultura y el Mercado Audiovisual
Recepção: 13 Junho 2023
Aprovação: 27 Novembro 2023
Publicado: 12 Dezembro 2023
Autor correspondente: d.gambaro@outlook.com
Em 2011, a Netflix começa uma importante transição em seu modelo de negócios, da locação de DVDs à prestação de um serviço de streaming de filmes e vídeos por assinatura que, em pouco tempo, se tornaria global (Carmody, 2012). É inquestionável que esse movimento – um tanto pioneiro, considerando o mercado à época – impactou profundamente as práticas da cultura audiovisual e, em consequência, ainda produz transformações contínuas nos públicos e nas formas de produção (Montardo & Valiati, 2021).
Por um lado, a empresa ajuda a enraizar hábitos que emergiram com a facilidade de aquisição e coleção de DVDs – filmes e seus “extras”, mas em especial as séries televisuais (Mittel, 2015). No caso da TV, seu modelo de disponibilização de vários episódios de uma série ao mesmo tempo tornou comum o que conhecemos como binge watching ou maratona (Jenner, 2017), por trás do qual reside um discurso de que seus produtos têm mais “qualidades”, mesmo que isso seja muito mais uma estratégia de marketing do que realidade (Castellano & Meimaridis, 2021). Por outro lado, parte desse discurso publicitário sobre qualidade é devedor do que se divulga sobre a operação informatizada da empresa, especialmente os seus algoritmos de recomendação. Dois executivos da Netflix chegaram a afirmar, no auge da eficácia desse discurso, que a Netflix estaria “inventando a TV via Internet” ao facilitar a escolha dos espectadores e, assim, aumentar seu poder dentro da plataforma (Gomez-Uribe & Hunt, 2016, p.13).
Ao tornar quotidiano novos hábitos de audiência – como as maratonas – e, ao mesmo tempo, fazer circular produções audiovisuais de diferentes nacionalidades, ofertadas por meio de mecanismos automatizados que, supostamente, atendem individualmente os desejos de cada assinante em qualquer região do planeta (Higson, 2021), a empresa revela sua importância como ator econômico de referência nos fluxos globais da cultura audiovisual. Considerando os mais de 10 anos desde o início das operações da Netflix como serviço de streaming audiovisual, existe uma ampla produção acadêmica dedicada a interpretar e estudar esse fenômeno. Como forma de sistematizar e resumir o conhecimento já construído em torno da Netflix e seus efeitos, este artigo traz os resultados de uma revisão sistemática de literatura (RSL).
A RSL é uma metodologia muito comum em estudos das Ciências da Saúde e, mais recentemente, da área de Computação, dada a conhecer o “estado da arte” sobre um certo tema (Okoli, 2019). Trata-se de um levantamento delimitado e aprofundado de produções científicas, que segue um protocolo pré-especificado, objetivando descrever o conhecimento produzido a respeito de um determinado objeto a partir de convergências e divergências entre abordagens, pontos de vista e conclusões (Galvão & Ricarte, 2019; Okoli, 2019). A RSL deve servir, também, como sumário organizado a pesquisadores que queiram adentrar o mesmo tema e atualizar o conhecimento disponível. Dada a abrangência do fenômeno aqui abordado – a Netflix e seus impactos culturais – entendemos que tal metodologia pode ser servir a outras áreas, como a Comunicação e os estudos midiáticos.
Assim, o objetivo principal desta investigação é identificar como os estudos vinculados ao campo da Comunicação, estudos de mídia e recepção, e estudos da cultura midiática têm observado, analisado e sintetizado o fenômeno dos sistemas de recomendação em serviços de streaming de vídeo, exemplificados pela Netflix, bem como seus impactos nas práticas culturais relacionadas à produção e fruição de obras audiovisuais. Na próxima seção, apresentamos o protocolo utilizado para esta RSL. Na seção 3 trazemos os resultados obtidos durante a investigação para, na seção 4, discutirmos os principais temas, divididos em três eixos que, de modo complementar, descrevem o papel dos dispositivos da Netflix e seus impactos econômico-culturais.
Este levantamento faz parte de uma pesquisa mais ampla, cuja questão inicial proposta é: “Quais parâmetros e mecanismos são acionados pelos dispositivos da Netflix para consolidar a oferta de conteúdo e a experiência dos usuários?”. A partir dessa interrogação inicial obtivemos alguns desdobramentos, os quais nos levaram a questionamentos secundários, especialmente em torno da forma como a operação da Netflix afeta a cultura audiovisual. Nasce, assim, a pergunta desta RSL: “Como os sistemas de recomendação da Netflix impactam as práticas envolvidas nos processos culturais de produção e de fruição do audiovisual?”, a qual foi acompanhada de uma questão secundária: “Como isso impacta as práticas culturais envolvidas nesses processos?”.
Orientados por esse recorte, procedemos com um levantamento que priorizasse a produção científica disponível no Brasil – especialmente que pudesse conter produções brasileiras e/ou ibero-americanas. Por esse motivo, elegemos como base de dados de pesquisa o Portal de Periódicos da Capes. Foram buscadas publicações entre 2012 e o dia do levantamento que apresentavam a seguinte string de palavras-chave, primeiro em inglês e depois em português: Netflix AND Algoritmo OR Cultura [Midiática] OR Sistema de Recomendação. Foram selecionados apenas estudos das áreas de Comunicação, Estudos Midiáticos, Estudos Culturais e Ciências Sociais, publicados em inglês, português ou espanhol, em periódicos revisados por pares, considerando também a disponibilidade dos textos completos para leitura.
A pesquisa, realizada no dia 11 de abril de 2022, retornou 426 resultados. Excluindo-se aqueles que não correspondiam às áreas selecionadas (Comunicação, Estudos Midiáticos, Estudos Culturais e Ciências Sociais), restaram 207 artigos que atendiam aos critérios iniciais. Esses artigos foram, então, processados com o auxílio da ferramenta StArt, desenvolvida pelo LAPES/UFSCar.
Como buscamos avaliações qualitativas sobre o tema, aceitamos apenas artigos cuja metodologia de pesquisa envolvia análises qualitativas e quanti-qualitativas do funcionamento da plataforma, análises etnográficas ou geradas a partir da teoria fundamentada em dados (grounded theory), estudos de recepção, e pesquisas exploratórias/descritivas. Excluímos sumariamente estudos de caso restritos a um objeto singular, como uma série de TV, levantamentos meramente quantitativos, outras revisões sistemáticas de literatura e ensaios sem corpo empírico. Também analisamos a qualidade dos artigos a partir das temáticas e objetos: excluímos textos que não tratavam a Netflix como um dos principais objetos de investigação; que apresentavam apenas avaliações técnicas de usabilidade das plataformas; que avaliavam o funcionamento dos algoritmos ou apresentavam proposta de melhorias dos mecanismos a partir de uma abordagem exclusivamente das Ciências da Computação. Privilegiamos os textos que discutiam os impactos socioculturais e socioeconômicos dos sistemas de recomendação – que é o principal objetivo deste levantamento –, e aqueles que discutiam novas práticas de consumo relacionadas à Netflix, e como seus dispositivos (lógicas comerciais e sistemas de recomendação) impactam a abrangência dos catálogos da empresa.
Após essa fase de seleção, restaram 39 artigos que foram levados para extração de dados: 11 foram rejeitados nessa fase em função da qualidade (não apresentavam discussões fundamentadas relevantes para a nossa pesquisa), restando 28 que atenderam a todos os critérios estabelecidos e forneceram os dados sumarizados a seguir.
Ao analisar os 28 textos, encontramos três eixos a orientar as discussões conduzidas pelos autores: 1) Análises, comentários ou críticas sobre a engenharia dos algoritmos; 2) Descrições e críticas sobre a influência da Netflix em práticas culturais de produção e consumo audiovisual; 3) Debates sobre as práticas econômicas e mudanças condicionadas ao mercado audiovisual. Sob cada um desses eixos destacamos alguns temas – isto é, um conjunto de abordagens, discussões e conclusões recorrentes –, o que nos permite criar uma indexação dos artigos da RSL e, assim, facilitar consultas futuras.
Os temas elencados foram, em alguns textos, o foco central da discussão, em outros foram debatidos secundariamente, ou ainda foram abordados mais superficialmente apenas para dar suporte a debates. Para efeitos práticos de classificação, não consideramos menções simples – como indicações bibliográficas – que não expandiam os temas significativamente. Cabe anotar, ainda, que a maior parte dos autores perpassa diferentes temas para atingir seus objetivos de pesquisa, o que explica alguns artigos terem sido sinalizados em mais de uma lista.
1) Os dados que alimentam o funcionamento dos diversos algoritmos da Netflix são coletados e produzidos a partir de registros (rastros digitais) de interações que os usuários têm com o sistema.
· Foco de três artigos (Alzamora, Salgado & Miranda, 2017; Gilmore, 2020; Iglesias Albores, 2022)
· Debatido em cinco artigos (Lawrence, 2015; Fernández-Manzano, Neira & Clares-Gavilán, 2016; Gaw, 2022; Pajkovic, 2022; Sued, 2022)
· Mencionado em seis artigos (Buonanno, 2018; Braghini & Montaño La Cruz, 2019; Cornelio-Marí, 2020; Floegel, 2021; Heredia-Ruiz, Quirós-Ramírez, & Quiceno-Castañeda, 2021; Van Esler, 2021). Buonanno (2018), Floegel (2021) e Van Esler (2021) associam a captura de dados à vigilância digital (surveillance).
Cabe, ainda, destacar dois subtemas que desdobram as análises de funcionamento dos dispositivos da Netflix:
a) Os mecanismos da Netflix são máquinas “auto generativas”, isto é, capazes de gerar parte dos dados com que trabalham.
· Debatido por Gaw (2022)
· Mencionado em outros três artigos (Fernández-Manzano et al., 2016; Braghini & Montaño La Cruz, 2019; Heredia-Ruiz et al., 2021).
b) Os mecanismos da Netflix realizam “filtragens colaborativas” a partir do cruzamento de dados de vários usuários.
· Discutido em dois artigos (Hallinan & Striphas, 2016; Pajkovic, 2022)
· Mencionado em dois artigos (Alzamora et al., 2017; Gilmore, 2020)
2) Os sistemas algorítmicos da Netflix criam uma ultrassegmentação do conteúdo ao reclassificar obras dentro de “altgêneros” próprios.
· Foco em Lawrence (2015)
· Mencionado em cinco artigos (Lobato, 2018; Braghini & Montaño La Cruz, 2019; Van Esler, 2021; Gaw, 2022; Pajkovic, 2022)
3) A filtragem de conteúdo e a apresentação das interfaces, tal qual mecanismos de aprimoramento de usabilidade, foram desenvolvidos em função de uma lógica econômica de controle e oferta de conteúdo.
· Foco de dois artigos (Fernández-Manzano et al., 2016; Braghini & Montaño La Cruz, 2019)
· Debatido em quatro artigos (González, 2020; Heredia-Ruiz et al., 2021; Iglesias Albores, 2022; Pajkovic, 2022)
· Mencionado em três artigos (Vonderau, 2015; Floeguel, 2021; Van Esler, 2021).
4) A Netflix cria “perfis de gosto” para melhorar a recomendação de conteúdo, o que tende a restringir o acesso dos usuários a produções fora do seu “filtro-bolha”.
· Debatido em seis artigos (Lawrence, 2015; Buonanno, 2018; Braghini & Montaño La Cruz, 2019; Gilmore, 2020; Floeguel, 2021; Pajkovic, 2022)
· Mencionado em três artigos (Alzamora et al., 2017; Lobato, 2018; Gaw, 2022)
1) O modelo operacional (disponibilidade de episódios, mecanismos de recomendação) influencia hábitos de consumo, como a prática de maratonas midiáticas (binge watching).
· Foco de dois artigos (Samuel, 2017; Valiati, 2020)
· Mencionado em sete artigos (Lawrence, 2015; Braghini & Montaño La Cruz, 2019; Bousso & Salles, 2020; Almarza & García-Béjar, 2021; Floegel, 2021; Heredia-Ruiz et al., 2021; Van Esler, 2021)
2) As preferências dos usuários são condicionadas pela atuação dos sistemas de recomendação e da interface. Este tema é tratado de forma mais geral pelos seguintes autores:
· Foco de Van Esler (2021)
· Debatido em seis artigos (Lawrence, 2015; Gilmore, 2020; Gaw, 2022; Iglesias Albores, 2022; Pajkovic, 2022; Sued, 2022)
Outros autores oferecem uma crítica mais direcionada a alguns aspectos, de modo que destacamos seus trabalhos a partir de dois subtemas:
a) As recomendações afetam a percepção estética do espectador, ao influenciar padrões de consumo que o moldam dentro de um “perfil global”
· Foco de Pajkovic (2022)
· Mencionado em seis artigos (Vonderau, 2015; Cornelio-Marí, 2020; Meimaridis, Mazur & Rios, 2020; Heredia-Ruiz et al., 2021; Iordache, Raats & Afilipoaie, 2022; Sued, 2022)
b) A cultura algorítmica da Netflix tende a reforçar padrões normativos da sociedade, especialmente em questões políticas de gênero e raça.
· Foco de Floegel (2021)
· Debatido em dois artigos (Hallinan & Striphas, 2016; Gaw, 2022).
3) O poder algorítmico determina a cultura e afeta a construção de gosto e identidade.
c) Foco de três artigos (Hallinan & Striphas, 2016; Gaw, 2022; Pajkovic, 2022)
· Debatido em quatro artigos (Lawrence, 2015; Floegel, 2021; Iglesias Albores, 2022; Sued, 2022)
Sob esta rubrica cultural, cabe destacar que Lawrence (2015), Floegel (2021) e Van Esler (2021) apontam que a natureza capitalista da Netflix e o desequilíbrio de forças entre usuários e empresa são fatores a condicionar gostos culturais.
4) A estratégia da Netflix envolve mesclar práticas culturais emuladas dos fluxos televisivos tradicionais com novas estratégias de streaming.
· Foco de Heredia-Ruiz et al. (2021)
· Mencionado em três artigos (Valiati, 2020; Lobato, 2018; Samuel, 2017)
1) A escolha de obras para compor o catálogo, bem como práticas de roteiro e de produção em obras originais Netflix, são submetidas a lógicas algorítmicas de análise de dados gerados pela audiência.
· Foco de dois artigos (Bousso & Salles, 2020; Heredia-Ruiz et al., 2021)
· Debatido em sete artigos (Vonderau, 2015; Fernández-Manzano et al., 2016; Hallinan & Striphas, 2016; Napoli, 2016; Alzamora et al., 2017; Cornelio-Marí, 2020; Iordache et al., 2022)
· Mencionado em três artigos (Braghini & Montaño La Cruz, 2019; Floegel, 2021; Pajkovic, 2022)
Cornelio-Marí (2020) também destaca que os processos de coleta e análise de dados são utilizados para influenciar a produção que ocorre fora dos Estados Unidos.
2) Diversidade na composição do catálogo, com destaque para a crescente presença de produções locais e de outros países, mesmo com predomínio de filmes e séries da América do Norte.
a) Artigos que apresentam uma visão mais positiva que negativa sobre a internacionalização do catálogo da Netflix.
· Foco de dois artigos (Hidalgo-Marí, Segarra-Saavedra & Palomares-Sánchez, 2021; Iordache et al., 2022)
· Debatido em Meimaridis et al. (2020)
b) Artigos que indicam progresso na diversidade, mas reforçam a necessidade de maior equilíbrio.
· Foco de Lozano (2022)
· Debatido em Penner e Straubhaar (2020)
c) Artigos que criticam a limitação da oferta de produtos diversificados, bem como a promoção que privilegia obras marcadas como “Original Netflix”
· Foco de dois artigos (Lobato, 2018; Sued, 2022)
· Debatido em Heredia-Ruiz et al., 2021
3) A Netflix modifica os fluxos transnacionais do audiovisual, enfraquecendo o poder e as indústrias locais ao impor uma lógica de produção de promoção própria.
· Debatido em dois artigos (Lobato, 2018; Iordache et al., 2022)
· Mencionado em três artigos (Buonanno, 2018; Meimaridis et al., 2020; Penner & Straubhaar, 2020)
Alguns autores adentram esse tema de modo mais específico:
a) A necessidade de uma “visão global” se sobrepõe a práticas locais, em certo sentido padronizando o conteúdo contratado a um modelo estadunidense-global.
· Foco de Penner e Straubhaar (2020)
· Debatido em Lozano (2022)
· Mencionado em dois artigos (Iordache et al., 2022; Sued, 2022)
b) Os processos de produção e códigos locais são incorporados pelas produções encomendadas pela Netflix para legitimar sua presença naquele mercado.
· Foco de dois artigos (Cornelio-Marí, 2020; Meimaridis et al., 2020)
· Debatido por Sued (2022)
Nesta seção discutimos os três eixos destacados pela RSL e seus principais temas. Buscamos, a partir do cruzamento de pontos de vista das autoras e dos autores acima elencados, articular o conhecimento cientificamente construído sobre a Netflix. Lançamos mão, quando necessário, de bibliografia complementar para apoiar inferências e conclusões que traçamos sobre o papel dos mecanismos algorítmicos de recomendação da Netflix na redefinição da cultura e do mercado audiovisuais.
Primeiramente observamos como as pesquisas descobertas em nosso levantamento abordam a engenharia dos algoritmos da Netflix[1]. Entendemos que essa característica é fundamental para descrever, em seguida, sua relação com os impactos culturais e econômicos. Afinal, a Netflix é reconhecida pelas recomendações “personalizadas” de filmes e programas para seus usuários – tanto pelos aspectos positivos quanto pelos negativos. Conforme resumem Braguini e Montaño La Cruz (2019, p.177), “há na Netflix uma construção de sentido muito particular e positiva em relação ao algoritmo. O algoritmo, uma ethicidade-chave da plataforma, é construído quase como um porta-voz, representante”.
É preciso, de início, fazer uma ponderação: os muitos sistemas algorítmicos combinados que personalizam a experiência de cada usuário foram descritos pela própria Netflix, tanto em seu blog de tecnologia (https://netflixtechblog.com/), como em artigo produzido por Carlos Gomez-Uribe e Neil Hunt[2] – obras que servem de referência a vários[3] textos selecionados em nosso levantamento. Os principais são: ranking personalizado de vídeos, que usa o histórico de visualização e preferências dos usuários para organizar a ordem de apresentação de todos os títulos disponíveis no catálogo, agrupando-os em gêneros personalizados aos usuários; Top N, seleção algorítmica baseada também em histórico de visualizações e preferências, mas que seleciona apenas os títulos com mais chances de serem assistidos; trends, que indica as tendências de visualização globais, territoriais e vinculadas aos perfis de gosto em que os espectadores são arrolados automaticamente; vídeos semelhantes, que usa metadados das produções para recomendar programas semelhantes aos já assistidos; classificação pelos usuários, que mede as preferências dos indivíduos ao dar uma nota ao programa; organizador de tela, que analisa os comportamentos de um grupo de pessoas com diferentes interfaces para privilegiar a exibição do que terá mais chances de ser escolhido (Testes A/B, que veremos mais adiante); e gerador de evidências, que são as informações variáveis que a interface mostra para cada usuário e que podem ajudar a escolher a obra, como porcentagem de afinidade, trailer, descrição, participação de atores ou direção etc. (Gomez-Uribe & Hunt, 2016).
Para funcionar dessa maneira e gerar 80% de todo o tráfego (Gomez-Uribe & Hunt, 2016), o processo de recomendação envolve várias etapas de coleta de dados, análise, classificação e a previsão da oferta do produto na plataforma. A base de operação da Netflix é formada pelo conjunto dos dados inseridos pelos assinantes, somados aos dados produzidos ou “minerados” pelos próprios algoritmos (a partir dos rastros digitais do uso), em cruzamento com informações sobre os títulos disponíveis no catálogo (Fernández-Manzano et al., 2016; Lawrence, 2015; Braghini & Montaño La Cruz, 2019). Os recursos algorítmicos utilizados pela Netflix podem identificar, por exemplo, dados demográficos e de localização (Lobato, 2018) sem serem fornecidos pelos usuários. Como assinala González (2020), existe certa necessidade da entrada de dados por humanos, como no caso dos metadados dos filmes. Entretanto, dada a preferência pelos dados gerados internamente em detrimento daqueles inseridos pelos usuários, os sistemas da Netflix não atuam como uma máquina procedural, e sim uma máquina auto-generativa (Gaw, 2022).
Os dados obtidos a partir das obras permitem a criação dos altgêneros que são usados para classificar as obras do catálogo, conforme assinalam Lawrence (2015) e Braghini e Montaño La Cruz (2019). Esse termo é usado descrever os códigos classificatórios que, em vez de gêneros canônicos, como drama ou comédia, usam um vocabulário próprio da Netflix (“filmes de detetives dos anos 1970”, “drama políticos gays e lésbicos”), gerados a partir de um vasto conjunto de metadados provenientes das obras: “tema, natureza, elenco e outras características de cada audiovisual” (Braghini & Montaño La Cruz, 2019, p.169).
Já os dados gerados pelos usuários derivam da observação de todo o comportamento dos espectadores: quais obras assistiu, por quanto tempo, quais finalizou mais rápido, quais classificou positivamente etc. (Samuel, 2017; Gilmore, 2020). Dessa forma, a Netflix sabe quando e onde os usuários utilizam seus serviços, o que procuram e como avaliam, realizando até mesmo o rastreamento de comportamento de navegação pela plataforma por meio de barras de rolagem (Gomez-Uribe & Hunt, 2016; Alzamora et al., 2017; Gaw, 2022; Iglesias Albores, 2022).
Outro modo de obter dados é a “filtragem colaborativa”, isto é, a recomendação gerada a partir dos comportamentos e preferências de um conjunto de usuários, cuja eficácia é medida com “testes A/B” (Gilmore, 2020; Alzamora et al., 2017). Tais testes, usados para aprimoramento da plataforma, consistem em apresentar resultados distintos a perfis de usuários semelhantes (organização das listas, ordem das linhas de títulos, capas e descrições dos filmes) de modo a medir qual gera maior conexão e engajamento das pessoas (Alzamora et al., 2017). Há algoritmos que atuam para diferenciar a oferta conforme a interface tecnológica de acesso – o usuário possivelmente verá recomendações distintas em sua SmartTV, no tablet e no smartphone (González, 2020). Com essas ferramentas, a empresa consegue mensurar o tempo do usuário na escolha do produto e melhorar a experiência para, objetivamente, evitar que se entediem e reter suas assinaturas (Fernández-Manzano et al., 2016).
Assim, conforme resume Gaw (2022, p.714, tradução nossa), “tudo é recomendação na Netflix, das sugestões individuais de títulos, distribuição das obras em linhas, à interface personalizada”. Um problema intrínseco a essas lógicas algorítmicas, assinalado por boa parte dos autores consultados, é a recursividade do sistema – as escolhas passadas alimentam as recomendações atuais, que, por sua vez, geram dados para recomendações futuras. Se, por um lado, o sistema se torna mais eficaz em prever sugestões conforme o uso (Iglesias Albores, 2022), por outro facilita a criação de “filtros bolhas” (Alzamora et al., 2017), pois mesmo caracterizado como uma recomendação pessoal ou individual, os sistemas trabalham a partir de “comunidades globais” (Braghini & Montaño La Cruz, 2019). Ou seja, as recomendações são correspondentes a “perfis de gosto” traçados pelos próprios algoritmos (Gaw, 2022), majoritariamente baseados em “afinidades” identificadas pela análise profunda do comportamento dos usuários (Gilmore, 2020), e representam apenas uma pequena parte de toda a oferta disponível (Lobato, 2018).
Os algoritmos que montam as interfaces, como a organização do catálogo na tela de busca, realizam uma "amplificação algorítmica" de alguns títulos, isto é, nessa etapa têm preferência os títulos marcados como “Original Netflix”, os acessíveis em catálogos mundializados, e depois os mais assistidos na região (Sued, 2022; Van Esler, 2021). Como veremos ao comentar as influências sobre o mercado, esse manancial de dados coletados e analisados serve para otimização do catálogo (Fernández-Manzano et al., 2016) – interferindo, por exemplo, no licenciamento e na contratação de produções, o que pode resultar em menor quantidade de obras disponíveis. Para superar a impressão de menor oferta – o que geraria uma percepção de menor qualidade do serviço pelo usuário – a interface promove uma ilusão de abundância por meio de alguns recursos como: rolagem infinita da tela, mudanças constantes na ordem da apresentação dos catálogos, apresentação do mesmo título com informações distintas (por exemplo, os cartazes que aparecem nas linhas de recomendação), reprodução automática de episódios de uma série, oferta de outros títulos durante os créditos finais de uma obra (Van Esler, 2021; Pajkovic, 2022).
São inegáveis as influências da Netflix sobre a cultura audiovisual – da produção ao consumo. Valiati (2020) coloca a Netflix em um contexto em que o acesso quotidiano aos serviços de streaming introduziu novas práticas, como maratonas midiáticas, e uma nova percepção dos objetos técnicos, de modo que a Netflix pode ser considerada uma atividade ritual, que movimenta afetos e engajamento. Ela resume os efeitos da empresa a partir da naturalização de “autonomia no sequenciamento temporal, a insaciabilidade, a influência do sistema de recomendação, o trânsito entre múltiplas telas e a interação síncrona ou assíncrona durante o consumo" (Valiati, 2020, p.202). A Netflix divide, molda e governa hábitos e experiências relacionadas ao consumo de narrativas televisivas. Isso coexiste e contradiz crenças e expectativas de um mundo abundante e irrestrito que oferece liberdade de escolha (Buonanno, 2018).
Para Gaw (2022), os algoritmos de recomendação da Netflix funcionam a partir de quatro lógicas: a dataficação, que é a objetivação dos gostos e ações individuais como simples dados de consumo; reconfiguração, que significa a capacidade de recriar, a partir dos dados gerados, novas formas de classificar os gostos, os indivíduos e os objetos; interpelação, a classificação dos usuários em perfis de gosto e das obras em altgêneros de consumo que simulam uma personalização; e reprodução, a capacidade dos algoritmos gerarem experiências e formas culturais a partir dos processos computacionais, afetando como os objetos são percebidos e consumidos. Em resumo, Gaw (2022) alerta para a possibilidade de que os sistemas automatizados interfiram na construção de gosto e na identidade dos indivíduos a partir da fragmentação tanto das comunidades quanto dos conteúdos ofertados: algo potencializado, como mostra Valiati (2020) pela naturalização da empresa no quotidiano.
Apesar de gosto e identidade serem temas relacionados, é preciso especificar as minúcias apontadas pelos autores consultados. Sobre a questão do gosto, Pajkovic (2022) lembra que a Netflix modela as estruturas culturais por meio das recomendações, de modo que a interface – ao apresentar montagens, enquadramentos e efeitos discretos para produzir sentidos (Braghini & Montaño La Cruz, 2019) – faz parecer que a oferta é adequada mesmo quando não corresponde ao gosto do indivíduo (Pajkovic, 2022). A oferta é limitada pelos dados disponíveis ao sistema, e tal limitação, associada ao modo como o conteúdo é disponibilizado, interfere nos julgamentos estéticos sobre as obras. Nesse sentido, Vonderau (2015) afirma que as empresas de streaming acabam redefinindo os limites culturais que indicam uma música ou vídeo como bom. Para Lawrence (2015) os altgêneros contribuem nesse cenário: o vocabulário empregado pela empresa, além de ter alto poder persuasivo e, portanto, direcionar as escolhas, orienta as expectativas estéticas dos usuários, definindo a priori o que será experimentado enquanto se assiste uma série ou filme.
A antecipação e predição de escolhas tende a planificá-las, de modo que não sabemos mais ao certo o que de fato escolhemos, pois, cada vez mais, escolhemos dentro de um cardápio pré-selecionado, que varia de pessoa para pessoa, tornadas, cada uma delas, dados estatísticos. (Alzamora et al., 2017, p.56)
O resultado da interferência dos sistemas da Netflix nos julgamentos estéticos é exemplificado nas análises de Cornelio-Marí (2020) e Sued (2022): a partir das informações captadas, os algoritmos impulsionam a procura por filmes e séries locais (no caso, o México), mas as produções privilegiadas na oferta, produzidas pela Netflix, hibridizam fórmulas clássicas da região com outras, aderentes ao modelo global da empresa – e estas tendem a ser o padrão mais assistido.
Ao atuar dessa forma sobre o gosto, a Netflix reproduz, com mais eficácia, práticas enraizadas dos sistemas midiáticos (Floeguel, 2020). Ao fazer circular conteúdo estadunidense junto a uma estratégia local planejada em cada um dos países em que atua, busca atender diferentes nichos e "se tornar uma mediadora audiovisual realmente mundial em todos os grandes mercados regionais" (Meimaridis et al., 2020, p.26). Por um lado, emergem críticas sobre uma forma de imperialismo cultural que interfere nas cadeias de produções locais a partir de parâmetros globais (como veremos na próxima seção). Por outro, há o “apagamento” de certas regiões em suas estratégias, como no caso das nações africanas (Lobato, 2018), mesmo que o “cosmopolitismo” da Netflix esteja fomentando o consumo de audiovisual produzido em muitos países (Iordache et al., 2022).
Em resumo, podemos traçar um balanço a partir do modo como os textos da nossa RSL abordaram o fluxo global de obras na Netlflix: o maior acesso a conteúdos estrangeiros instrui novos gostos, cosmopolitas, mas isso ocorre a partir de uma planificação e padronização das obras, bem como sob métricas definidas pela produção estadunidense – maioria nos diferentes catálogos da empresa pelo mundo.
O enviesamento na construção do gosto, em virtude do necessário agrupamento dos usuários em comunidades globais, afeta, segundo Gaw (2022), a capacidade de representação política (social, racial etc.). Subjaz nos sistemas da Netflix uma tendência em ocultar o que não está próximo ao mainstreamou relacionado ao perfil atribuído algoritmicamente ao indivíduo – perfis que atuam em substituição a categorias sociais reconhecidas. Guiados pela interface determinada automaticamente, os indivíduos são expostos de forma apenas limitada a materiais que podem desafiar a visão de mundo ou fornecer informações precisas sobre diferentes culturas (Van Esler, 2021).
Tal percepção acompanhou a evolução da empresa: em meados dos anos 2010, Hallinan e Striphas (2016) afirmavam a impossibilidade de compreender como essas “novas identidades algorítmicas” ultrapassam (talvez anulam) questões de raça, classe, gênero, sexualidade etc. Para Floegel (2020) a cultura promocional da empresa (em sua plataforma e em mídias sociais) reforça padrões normativos da sociedade, ajudando a perpetuar desigualdades sociais. A Netflix produz, então, uma cultura algorítmica baseada na classificação das pessoas e produtos, normalizando essa forma de distinção (Hallinan & Striphas, 2016; Floegel, 2020) e, em consequência, modelando as estruturas culturais.
A prerrogativa de funcionamento dessa estrutura subjaz na aceitação tácita, por parte dos usuários, em trabalhar como cobaias que treinam os algoritmos, deixando-se vigiar em suas escolhas para gerar valor de mercado (Floegel, 2020) em troca de uma pseudo-personalização que trata afinidades como afetos (Gilmore, 2020). O funcionamento combinado da interface com os sistemas de recomendação reduz a pressão da escolha dentro de um catálogo aparentemente infinito; assim, auxilia o espectador em práticas que simulam – ainda que de modo bastante distinto – a audiência impulsiva, em fluxo, da TV convencional, como o binge watching (Samuel, 2017). Tudo isso se naturaliza no quotidiano das pessoas em valores como relaxamento, lazer e socialização (Valiati, 2020; Almarza & García-Béjar, 2021).
Em geral, os autores consultados relacionam o crescimento da base de assinantes da plataforma e a análise de dados coletados dos usos e audiência com a potencialidade da empresa em atuar e interferir nos modelos de produção em diferentes locais (Cornelio-Marí, 2020; Bousso & Salles, 2020). Para Vonderau (2015), a Netflix é um entre outros exemplos de agregadores, isto é, um intermediário que faz o contato entre produtores e consumidores e que monetiza o acesso ao conteúdo. Esse modelo de negócios tenta valorizar a "cauda longa" (ver Anderson, 2006), com ofertas a segmentos de público específicos – algoritmicamente montados, como vimos, para manter o uso contínuo do serviço. Ainda seguindo Vonderau, esse formato reorganiza a distribuição de mídia e transforma sua infraestrutura em algo necessário para manutenção de organizações e práticas culturais. É nesse sentido que a empresa precisa investir em um catálogo amplo, que tenha tanto hits quanto obras voltadas a segmentos de público – entretanto, a oferta é determinada por algoritmos que definem a relevância do conteúdo e sua disponibilidade.
Diante desse cenário, as críticas feitas pelos pesquisadores a essa possível influência variam. Há, por um lado, certa positividade em relação à diversidade de produtos ofertados, uma espécie de ruptura com o modelo mainstream – que ditava a distribuição global de conteúdo a partir dos Estados Unidos – em favor de produções de outras nacionalidades (Lozano, 2022; Meimaridis et al., 2020; Iordache et al., 2022). Por outro lado, há críticas contundentes sobre a padronização de formas, roteiros e linguagem, isto é, a criação de um novo padrão homogeneizador das produções (Sued, 2022), já que os dados analisados acabam servindo como “testagens" para conhecer o público e, assim, alimentar as equipes criativas para atender o consumidor (Bousso & Salles, 2020).
Dividimos as abordagens mercadológicas a partir de quatro pontos centrais: (1) processos de produção e códigos territoriais são incorporados pelas produções próprias; (2) maior diversidade de produções nos catálogos de cada país; (3) a necessidade de uma “visão global” se sobrepõe a práticas locais, em certo sentido padronizando o conteúdo; (4) a análise de dados de audiência interfere na formatação do catálogo e, assim, nos processos de produção identificados nos pontos 1 e 3.
Sobre o primeiro ponto, de acordo com Meimaridis et al. (2020) em estudo sobre os fluxos televisuais nos casos mexicano, brasileiro e sul-coreano, as estratégias de enraizamento local são múltiplas e variam: inclusão de produções nacionais no catálogo global, parcerias com grandes produtoras baseadas nesses territórios, produção de programas com códigos locais consagrados, porém adaptados a um padrão global de gosto. O caso mexicano é um exemplo: primeiro, a empresa incorporou ao catálogo grandes melodramas e telenovelas, em parceria com o principal canal de TV local, para, em seguida, passar a atuar diretamente na produção (Cornelio-Marí, 2020). Outro caso exemplar é a Coreia do Sul – se, num primeiro momento, prevaleceu a oferta de conteúdo estrangeiro incomum na TV coreana, o crescimento da Netflix nesse mercado só ocorreu após investimentos alinhados à Hallyu (Onda Coreana): um projeto político-industrial de cultura que visa exportar conteúdo a outros territórios (Meimaridis et al., 2020). A Netflix, nesse caso, passou a se apresentar como uma exportadora desse conteúdo. Em análises europeias as constatações são similares: com a consolidação de serviços de streaming concorrentes e o encarecimento do licenciamento de produções, a partir de 2018 a Netflix passou a investir mais em produções próprias dos países desse continente (Hidalgo-Marí et al., 2021).
Uma das razões para a Netflix ofertar catálogos diferentes conforme cada país em que atua é o licenciamento de produções (nem sempre uma série ou filme é disponibilizado, pelo produtor, para exibição em um território). A estratégia de criar um território audiovisual efetivamente global (Penner & Straubhaar, 2020, p.128) passa pelo investimento em produções de diferentes países, mas ainda há grande concentração de origem anglófona, indicativo de “posições desiguais de poder e iniciativa de política, econômica e cultural” das nações de origem (p.143). Heredia-Ruiz et al. (2021) também apoiam essa crítica: a empresa reedita um “imperialismo cultural”, mesmo que tenha apresentado diversidade de produções em seu catálogo, gerada a partir de conteúdos de diferentes países ou voltadas a atender nichos. Pesa, nesse sentido, que os catálogos sejam algoritmicamente otimizados para entregar as preferências do público, minimizando a circulação dessa produção diversa (Fernández-Manzano et al, 2016; Heredia-Ruiz et al, 2021; Lobato, 2018).
Já Hidalgo-Marí et al. (2021), mesmo constatando uma predominância de títulos em inglês, espanhol e coreano no catálogo, entendem que a Netflix alimenta um mercado transnacional com produções de diferentes línguas, fazendo com que produtos regionais sejam notáveis internacionalmente – inclusive nos Estados Unidos (Lozano, 2022), local onde historicamente produções estrangeiras encontravam pouco espaço.
Se, por um lado, a empresa atenta-se a gostos nacionais para definir investimentos em produção e catálogo, por outro privilegia um perfil global de espectador moldado por algoritmos (Lobato, 2018; Sued, 2022; Napoli, 2016). Uma vez que as análises dos dados da audiência e das produções são tratadas de modo complementar, elas afetam as características das produções contratadas pela Netflix. Até mesmo o modo como o conteúdo é consumido – o que é ditado pelo contexto tecnológico que estamos analisando – influencia no processo criativo (Bousso & Salles, 2020). Isso quer dizer que a análise algorítmica indica o que pode fazer sucesso e os produtores, ao tentarem atender a essas indicações, passam a produzir de acordo com esse modelo (Vonderau, 2015; Hallinan & Striphas, 2016; Gaw, 2022; Fernández-Manzano et al., 2016;).
Desse modo, gêneros narrativos privilegiados em certas regiões – como no já citado caso dos melodramas no México, ou na ênfase em produções menos comuns em certo local, como ficção científica, fantasia e terror na Europa (Iordache et al., 2022) – são acompanhados de produções com temas mais globais, como corrupção e desvios políticos (Meimaridis et al., 2020; Alzamora et al., 2017). Além disso, demandas como duração e quantidade de episódios (Heredia-Ruiz et al., 2021), e orçamento e escolha do elenco (Alzamora et al., 2017) afetam a criação e produção dos conteúdos, já que os criadores precisam articular diferentes elementos para tentar alcançar a contratação ou renovação.
Ao impor regras de produção, argumenta Lozano (2022), a Netflix pode afetar negativamente os produtores independentes que não atendam a esses requisitos. Além disso, o privilégio a uma abordagem global pode fazer com que séries produzidas localmente reflitam estereótipos externos, como a ligação do narcotráfico com o México (Sued, 2022). O problema é ainda mais profundo, de acordo com Napoli (2016), que identificava já na metade dos anos 2010 um encolhimento da diversidade do catálogo disponibilizado pela empresa. Para esse autor, a Netflix suprimia seu potencial como provedora de farto conteúdo a diversos nichos, para se tornar apenas mais uma concorrente no setor televisivo, aumentando o vazio que não é atendido por nenhum tipo de conteúdo (Napoli, 2016).
Por fim, ao se posicionar como relevante agente de distribuição de conteúdo, a empresa se legitima para impor fórmulas e baratear contratações, desvalorizando financeiramente o mesmo conteúdo que, supostamente, deveriam proteger (Vonderau, 2015). Um efeito pragmático dessa intervenção em nome do lucro é a contratação de série com poucos episódios e com poucas temporadas, invertendo as práticas comuns ao mercado midiático anterior, dominado pelos canais de TV convencionais e a cabo (Hidalgo-Marí et al., 2021).
Por meio de uma revisão sistemática de literatura, esta pesquisa procurou resumir como o campo acadêmico tem analisado e discutido as influências da Netflix sobre a cultura de produção e consumo audiovisual. No período de 10 anos compreendidos em nosso levantamento, pesquisadores se atentaram a diferentes efeitos decorrentes, sobretudo, do uso de mecanismos de recomendação ativados por sistemas de algoritmos. A preocupação se torna mais evidente na metade desse período – o texto mais antigo encontrado é de Vonderau (2015). É preciso anotar que as descobertas, apontamentos e preocupações dos investigadores permanecem atuais, pois apenas agora observamos os efeitos da dominância da Netflix no estabelecimento dos mercados de streaming de filmes e séries de TV – atualmente, o debate tem se deslocado para o corte de gastos e o aprofundamento de lógicas de produção dominantes (Higson, 2021; Pajkovic, 2022).
A pergunta principal desta RSL, “como os sistemas de recomendação da Netflix impactam as práticas envolvidas nos processos culturais de produção e de fruição do audiovisual?”, foi respondida em três eixos de discussões presentes nos levantamentos. No primeiro eixo – Análises, comentários ou críticas sobre a engenharia dos algoritmos – prevalece a crítica a respeito da vigilância de ações dos usuários e a criação de “filtros” invisibilizados pela interface amigável da Netflix.
O segundo eixo de discussões – Descrições e críticas sobre a influência da Netflix em práticas culturais de produção e consumo audiovisual – destacou como uma empresa com o poder da Netflix pode orientar as escolhas individuais e os modos de consumo – o que teria, como consequência indesejável, um possível apagamento de discussões e lutas identitárias profundas. Como, mais recentemente, a Netflix tem aprofundado o modo como orienta suas produções próprias em função de geração de receita (Oliveira, 2022), esse é um efeito que precisa ser continuamente observado. Os artigos da RSL também apontam que a ação dos sistemas algorítmicos na condução da oferta não ocorre sem a complacência dos espectadores, condicionados que estão pelas facilidades da recomendação que, em última instância, mantêm o usuário preso à plataforma.
Isso impacta profundamente o mercado de criação audiovisual, representado pelo terceiro eixo de discussões - Debates sobre as práticas econômicas e mudanças condicionadas ao mercado audiovisual. Sob o verniz de uma diversificação global da produção jaz a manutenção de um modo de produção originado nas indústrias culturais dominantes, como os Estados Unidos. Alguns pesquisadores destacaram como esse também é um efeito dos algoritmos, que privilegiam um tipo de filme ou programa em detrimento de outros, alimentando um círculo vicioso de oferta e procura por produtos mais alinhados aos interesses comerciais da empresa.
Uma das limitações deste levantamento é que ele capta as mudanças culturais em nível macro, com consequências materiais econômicas, mas falha em captar os efeitos micro, isto é, nas vivências individuais. Por exemplo, a prática de binge watching, fora algumas menções esparças, é pouco abordada nos textos do levantamento. Isso indica que os efeitos dos sistemas de recomendação no consumo compulsivo de séries de TV ainda são pouco considerados. Tal relação é abordada por Ramires (2019) em sua dissertação, e há artigos científicos que adentram o tema sem, todavia, enfatizar a engenharia dos algoritmos (Jenner, 2017; Horeck et al, 2018). Assim, parece ser fundamental que trabalhos futuros procurem demarcar o papel e a influência da Netflix na experiência audiovisual individual, por meio de estudos de recepção aprofundados.
Esta pesquisa foi financiada pelo Instituto Ânima Sociesc de Inovação, Pesquisa e Cultura, edital 34/2021, e pelo programa de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade Anhembi Morumbi.
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