OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS BACHELARDIANOS: CONTRIBUIÇÕES PARA A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES
BACHELARDIAN EPISTEMOLOGICAL OBSTACLES: CONTRIBUTIONS TO THE CONTINUOUS EDUCATION OF TEACHERS
OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS BACHELARDIANS: CONTRIBUCIONES A LA FORMACIÓN CONTINUA DE DOCENTES
Linguagens, Educação e Sociedade
Universidade Federal do Piauí, Brasil
ISSN: 1518-0743
ISSN-e: 2526-8449
Periodicidade: Trimestral
vol. 27, núm. 54, 2023
Recepção: 25 Março 2023
Aprovação: 30 Maio 2023
Resumo: Este artigo tem como proposta promover discussões acerca dos obstáculos epistemológicos, refletindo sobre a formação dos professores que estão à disposição em um ensino técnico integrado, formado a partir de áreas técnicas. Importante frisar que a formação pedagógica de professores das áreas técnicas e tecnológicas ocorre de forma contínua, promovida pelo setor educacional das escolas. Perante essa realidade, desejamos ampliar as discussões sobre obstáculos epistemológicos bachelardianos no campo da formação de professores, com vistas para pressupostos do construtivismo aplicado desde a organização didática do professor. Neste sentido, nossa intenção foi buscar argumentos na tentativa de responder se os professores entendem a dificuldade de superação dos obstáculos epistemológicos bachelardianos, por parte dos alunos, como ponto de melhoria contínua da sua prática didático-pedagógica. Pautamo-nos em autores que trazem, em sua essência, os conceitos desenvolvidos por Gaston Bachelard, assim como a sua própria obra. Procuramos responder à questão deste manuscrito, mediante nossa perspectiva sobre a correlação Professor-Saber, quanto à necessidade de estudar os obstáculos, com vistas para o aperfeiçoamento de uma ação didático-pedagógica. Em nossa argumentação final, fica claro que a superação de obstáculos epistemológicos por parte dos alunos está atrelada à metodologia de trabalho do professor. Salientamos que o reconhecimento de obstáculos no processo de ensino e aprendizagem, permite ao professor criar ambiente escolar propício, em particular no Ensino Médio, para trabalhar o saber ensinado, com foco na eficiência de aprendizagem, seguindo pressupostos construtivistas tanto de Vygotsky quanto de Bachelard.
Palavras-chave: Construtivismo, Aprendizagem com significado, Conhecimento científico.
Abstract: This article aims to promote discussions about the epistemological obstacles, reflecting on the training of teachers that are available in an integrated technical education, particularly those with technical education background. However, issues related to epistemological obstacles are normally not addressed with emphasis in the technical area. Faced with this reality, we wish to expand the discussions on Bachelardian epistemological obstacles in the field of teacher training, with a view to assumptions of constructivism applied from the didactic organization of the teacher. In this sense, our intention was to seek to answer whether teachers understand the difficulty of overcoming Bachelardian epistemological obstacles on the part of students as a point of continuous improvement of their didactic-pedagogical practice. We are guided by authors who bring, in their essence, the concepts known by Gaston Bachelard, as well as his own work. We tried to answer the question of this manuscript, through our perspective on the Teacher-Knowledge dynamics, regarding the need to study the obstacles, with a view to the improvement of a didactic-pedagogical action. In our final argument, the overcoming of epistemological obstacles by the students is linked to the teacher's work methodology. We emphasize that the recognition of obstacles in the teaching and learning process allows the teacher to create an encouraged school environment, particularly in high school, to work on the knowledge taught, focusing on learning efficiency, following constructivist prescriptions from both Vygotsky and Bachelard.
Keywords: Constructivism, Learning with meaning, Scientific knowledge..
Resumen: Este estudio se propone promover debates sobre los obstáculos epistemológicos, reflejándose sobre la formación de docentes que están disponibles para la educación técnica integrada, con formación en áreas técnicas. Es importante resaltar que la formación pedagógica de los docentes en las áreas técnicas y tecnológicas se da de manera continua, promovida por el sector educativo de las escuelas. Frente a esta realidad, deseamos ampliar las discusiones sobre los obstáculos epistemológicos bachelardianos en el área de formación docente, con miras a presuposiciones del constructivismo aplicados desde la organización didáctica del docente. En este sentido, nuestra intención fue buscar argumentos en un intento de responder si los docentes entienden la dificultad, de sus alumnos, de superar los obstáculos epistemológicos bachelardianos, como un punto de continua mejora de su práctica didáctico-pedagógica. Nos basamos en autores que traen, en su esencia, los conceptos desarrollados por Gaston Bachelard, así como en su propia obra. Intentamos responder a la pregunta de este manuscrito, a través de nuestra perspectiva sobre la correlación Docente-Saber, en relación a la necesidad de estudiar los obstáculos, con miras a mejorar el proceso didáctico-pedagógica. En nuestro argumento final, queda claro que la superación de obstáculos epistemológicos por parte de los alumnos está ligada a la metodología de trabajo del docente. Destacamos que el reconocimiento de obstáculos en el proceso de enseñanza y aprendizaje permite al docente crear un ambiente escolar propicio, particularmente en la Enseñanza Media, para trabajar los conocimientos enseñados, con foco en la eficiencia del aprendizaje, siguiendo las premisas del constructivismo tanto de Vygotsky como de Bachelard.
Palabras clave: Constructivismo, Aprendizaje con significado, Conocimiento científico.
INTRODUÇÃO
No meio educacional, em particular no Ensino Médio Integrado pela rede dos Institutos Federais (IFs), devido à característica de contratação de servidores para o cargo de professor da Educação Básica, Técnica e Tecnológica (EBTT), muitos profissionais não possuem graduação em licenciatura. Isso estabelece uma situação interna, na qual a formação continuada dos professores, em particular das áreas técnicas e tecnológicas, precisa, de alguma forma, trabalhar assuntos de ordem pedagógica, dentre esses, os obstáculos epistemológicos. Segundo a perspectiva de Gaston Bachelard (1996), esses obstáculos são intrínsecos ao processo de ensino e aprendizagem. Isso porque, na visão deste autor, o conhecimento do real:
[...] é luz que sempre projeta algumas sombras. Nunca é imediato e pleno. As revelações do real são recorrentes. O real nunca é "o que se poderia achar" mas é sempre o que se deveria ter pensado. O pensamento empírico torna-se claro depois, quando o conjunto de argumentos fica estabelecido. Ao retomar um passado cheio de erros, encontra-se a verdade num autêntico arrependimento intelectual. No fundo, o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização (BACHELARD, 1996, p. 17, grifo nosso).
Ampliar discussões sobre obstáculos epistemológicos bachelardianos é importante para a formação continuada do professor, tanto na fase de graduação (licenciaturas) quanto na fase de aperfeiçoamento profissional, conforme programas institucionais. Essa importância é reforçada pela visão construtivista do conhecimento na fase escolar, na qual o papel do professor possui muito mais relevância pedagógica na relação Aluno-Saber. Reforçamos que, nesta visão, o papel do professor passa a ser de orientador (mentor) e o aluno ainda mais protagonista na construção do conhecimento com significado.
Para Paulo Freire (1997), as pessoas se formam nas relações sociais. Elas sempre podem: aprender, descobrir, fazer tanto coisas novas como coisas diferentes. Por isso podemos considerar que essas não são obras "acabadas", mas, ao contrário, são criaturas em projeto, em constante mudança. De acordo com Freire, é na inconclusão do ser
[...] que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornam educáveis na medida em que se reconhecem inacabados. Não foi a educação que fez homens e mulheres educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade (FREIRE, 1997, p. 64).
Podemos afirmar de outra forma: no construtivismo, temos um processo de conhecimento, conhecimento como produção social. Vygotsky (1988) afirma que isso significa que a informação é dada socialmente, é produzida socialmente, mas ainda tem uma dimensão individual, que é a decisão de um indivíduo que produz socialmente a informação. Neste sentido, Vygotsky pensa em professores como um ser necessário; uma vez que, para ele, o professor é figura essencial do saber por ser colocado como intermediário entre o aluno e o conhecimento disponível no ambiente.
Nesse contexto, o desafio na construção do conhecimento dos conceitos e teorias das ciências está na maneira de como é feita a passagem dos fenômenos naturais à interpretação, ao entendimento e à incorporação. De acordo com Machado (2017, p. 37), no âmbito educacional, a didática do professor precisa de alguma forma conduzir “o aluno por etapas entre a visualização do fenômeno até a resolução de problemas”. Conforme Morin (2003, p. 36), “o que ensina a aprender é o método”. Na perspectiva de ambos os autores, Morin e Machado, é possível compreender que a didática do professor se configura como uma metodologia para conduzir ou para orientar o processo de aprendizagem do saber ensinado.
No caso da Educação Básica, em particular no Ensino Médio, aulas demonstrativas, ou experimentais, com uso de material manipulável ou elementos virtuais, via software computacional, podem fazer parte de uma ação didática (metodologia) sofisticada e alinhada com pressuposto do construtivismo. Esses elementos didáticos, quando bem explorados, são fundamentais para favorecer a transição, por parte do aluno, entre o espectro concreto e o espectro abstrato do objeto científico estudado e vice-versa. O intuito dessa transição é tornar a substância do conhecimento, construída na mente do sujeito epistêmico, menos abstrata do ponto de vista metafórico, a fim de proporcionar um processo de aprendizagem mais completo e mais significativo.
Para Vygotsky (1998), o desenvolvimento cognitivo do aluno ocorre por meio das relações sociais, ou seja, em interação com outros indivíduos e com o meio ambiente. Neste sentido, esse autor afirma que o professor é importante na construção do conhecimento, pois representa o elo intermediário entre o aluno e o conhecimento encontrado no ambiente.
Certamente, um dos desafios do profissional da educação é mobilizar o aluno para a construção de conhecimento. Normalmente, os alunos, nesta fase escolar, demonstram muita resistência ao aprendizado do saber ensinado. De certa forma, essa resistência já foi alvo da psicanálise de Gaston Bachelard (1996, p. 259, grifo do autor), o qual entende que o “objeto científico sempre é sob certos aspectos um objeto novo, [por isso] compreende-se logo que as determinações primeiras sejam quase forçosamente indesejáveis”. Para Machado (2017, p. 39), essa resistência funciona como uma barreira ao aprendizado, pois “na maioria das vezes os conteúdos apresentados não fazem parte da realidade do aluno ou necessitam de um grande grau de abstração para seu entendimento”.
Para combater essas resistências, os professores, normalmente, recorrem a estratégias pedagógicas, pautadas por analogias, metáforas, imagens e modelos, a fim de facilitar a aprendizagem. Segundo Gomes e Oliveira (2007, p. 97), algumas ações didáticas “ainda que empregadas com a intenção de facilitar a compreensão de um determinado assunto, na realidade não auxiliam verdadeiramente [...]”. Algumas abordagens pedagógicas podem promover a substituição da construção de raciocínio por esquemas mentais de menor significado. Isso, na visão de Bachelard, pode configurar o que ele denominou obstáculos epistemológicos no meio educacional. De acordo com Lecourt (1980, p. 26) os obstáculos “preenchem a ruptura entre o conhecimento comum e o conhecimento científico e restabelece a continuidade ameaçada pelo progresso do conhecimento científico”. Esse entendimento segue pressuposto de Bachelard (1996), no qual os obstáculos epistemológicos não se tratam de
[...] obstáculos externos, como a complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a fragilidade dos sentidos e do espírito humano: é no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos (BACHELARD, 1996, p. 17).
Consoante Bachelard (1996, p. 17), no obstáculo epistemológico, o fenômeno de conhecer algo “dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização”. Para Dominguini e Silva (2010, p. 3), “o desenvolvimento da ciência se dá por um processo descontínuo, onde há a necessidade de se romper com um conhecimento anterior, destruí-lo para poder assim construir um novo”. Seguindo essa mesma lógica científica em sala de aula, na fase escolar de sua formação, um aluno é exposto ao saber ensinado, cuja aprendizagem se transforma em conhecimento estabelecido em sua consciência.
Os argumentos apresentados, nesta seção, demonstram nosso interesse no campo da formação de professores. Em nossa concepção, a visão bachelardiana sobre obstáculos epistemológicos pode ser mais discutida sob uma perspectiva construtivista, nos programas de formação continuada de professores, a partir da seguinte questão: Os professores entendem a dificuldade de superação dos obstáculos epistemológicos bachelardianos, por parte dos alunos, como ponto de melhoria contínua da sua prática didático-pedagógica.
A pesquisa bibliográfica, realizada para embasamento deste manuscrito, sustenta nosso ponto de vista, no qual a relação Professor-Saber-Aluno já está estabelecida desde o primeiro momento, a partir da organização didática do professor. É sobre o contexto de preparação das aulas, com vistas à superação de obstáculos, que pretendemos estabelecer nosso diálogo referenciado. Nosso intuito é contribuir com as discussões referentes à ação pedagógica, focadas na eficácia do aprendizado desde o momento de preparação das aulas.
SABER CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO
O que é o saber? Como o saber se constitui? Quais condicionantes apresentam maior influência no processo de ensino e aprendizagem? Essas podem ser algumas questões para iniciar uma discussão sobre a relação envolvida no processo educacional; particularmente, em uma sala de aula, entre o professor, o aluno e o saber. Nesse contexto, nossa pesquisa, a princípio foi direcionada ao tema “saber”, tendo como objetivo formular nosso conceito antes de adentrar nessa discussão.
Para Japiassu (1992, p.15, grifo nosso), o saber pode ser considerado como “um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos [...] organizados e susceptíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensino”. Viana (2003, p. 177, grifo nosso), afirma que o “saber distingue-se da informação, porque traz a marca da apropriação pelo sujeito e, portanto, aproxima-se da noção de conhecimento”. Na perspectiva de Mota, Prado e Pina (2008, p. 116, grifo nosso), o saber é algo complexo que não se resume em compreender a verdade das coisas como elas se apresentam, pois “há necessidade de se conquistar realmente a posse da “realidade” [...]” e isso “permite colocar o conhecimento em ação num determinado contexto, o que ocasiona a construção do saber”.
Conforme nossos grifos nas citações acima, o saber possui ampla relação com o conhecimento, o qual é passível de ser construído. Pretendemos direcionar nosso enfoque de acordo com pressupostos do construtivismo; sem, contudo, aprofundarmos nessa teoria.
Em seus estudos, Hessen (2000) demonstrou interesse pela forma como o conteúdo intelectual de um sujeito é criado. Nesse contexto, Hessen, em linhas gerais, compreendeu o conhecimento como uma representação mental de um objeto analisado (estudado). Tal representação é formada a partir da interação do sujeito com o objeto de seu interesse, pois essa ação permite ao sujeito explorar o objeto de inúmeras formas, conforme uma metodologia pautada em perguntas, em observações e/ou testes. Quanto às perguntas, podemos entender essa forma de exploração como inquietações. Nesse sentido, o contínuo estudo sobre um objeto mantém ativo o gradativo processo de gravação da representação abstrata desse objeto na consciência do sujeito. Na visão desse autor, o conhecimento:
[...] é uma determinação do sujeito pelo objeto é dizer que o sujeito comporta-se receptivamente com respeito ao objeto. Essa receptividade, contudo, não significa passividade. Pelo contrário, pode-se falar de uma atividade e de uma espontaneidade do sujeito no conhecimento. Certamente, a espontaneidade não está relacionada ao objeto, mas à imagem do objeto, na qual a consciência pode muito bem ter uma participação criadora. Receptividade com respeito ao objeto e espontaneidade com respeito à imagem do objeto no sujeito podem perfeitamente coexistir (HESSEN, 2000, p. 18).
Seguindo a linha de Hessen quanto ao entendimento da atividade do sujeito, como motor na construção de conhecimento sobre um dado objeto (assunto), podemos interpretar o cientista como sujeito formulador das constantes perguntas feitas para o Cosmos, natureza deste planeta e para o homem como espécie. As respostas já obtidas reformulam novas perguntas, cada vez mais sofisticadas, cujo resultado é o conhecimento aprofundado sobre um determinado assunto.
Nesse contexto, podemos entender que a ciência promove a expansão intelectual da mente humana, a partir do conhecimento construído (adquirido) sobre algo. De acordo com Japiassu (1992, p. 15-16), a ciência deve ser considerada como o “conjunto das aquisições intelectuais, de um lado, das matemáticas, do outro das disciplinas de investigação do dado natural e empírico, fazendo ou não uso da matemática [...]”. Na visão de Bachelard (1996), as aquisições intelectuais do ser humano são motivadas por inquietações de abrangência científica. Essas podem ser de cunho externo referente ao universo e ao mundo no qual está inserido, ou interno quando consideramos corpo e mente. Bachelard chamou de espírito científico, aquilo que aqui denominamos inquietações intelectuais humanas.
Em primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na vida científica, os problemas não se formulam de modo espontâneo. É justamente esse sentido do problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o espírito científico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é gratuito. Tudo é construído (BACHELARD, 1996, p. 18).
Partindo do princípio de que o saber científico emana do conhecimento adquirido por intermédio de hipóteses científicas, das quais muitas possuem comprovação no campo teórico, experimental ou em ambos, questões filosóficas sobre esse tipo de saber sempre estiveram no debate intelectual. Para Bachelard (1974, p. 27), “as regiões do saber científico são determinadas por reflexão”.
Entendendo que as reflexões sobre a sociabilidade do saber científico decorrem em sua maioria de questões filosóficas, a epistemologia, em seu sentido mais amplo, procura organizar o desenvolvimento intelectual. Essa organização se faz necessária para promover debates em muitas frentes, por exemplo: forma de disseminação do saber científico; quais tecnologias serão criadas a partir do desenvolvimento científico; e os valores por trás dos objetivos e a condução dos estudos em andamentos e novas pesquisas.
Seguindo a disseminação do saber científico como linha do pensamento filosófico, Melzer (2012, p. 25) afirma que o saber sábio “pode ser entendido como sinônimo de saber acadêmico, saber de referência, saber erudito e saber científico”. Na visão deste autor, esse tipo de saber é “fechado, restrito, altamente especializado e dotado de uma simbologia própria”. Para Pinho Alves (2000, p. 176), o saber sábio pode ser compreendido como o produto de um “processo de construção do homem acerca dos fatos da natureza. É o produto do trabalho do cientista ou intelectual relativo a uma forma de entendimento sobre a realidade”. Na concepção de Brousseau (1999, p. 36), o saber científico (sábio) é constituído em esfera superior de produção dos saberes, onde “o matemático ou o cientista tem de lidar com inúmeras questões para constituir e formular o saber sábio”. A tarefa de transformar o conhecimento científico em saber acadêmico (saber a ensinar) e/ou escolarizado (saber ensinado) é algo complexo. Brousseau também afirma que antes de comunicar aquilo que pensa ter descoberto, “um investigador tem de começar por [...] distinguir o labirinto das reflexões, aquelas que são suscetíveis de se transformar num saber novo e interessante para os outros” (ibidem, p. 36).
Pinho Alves (2000, p. 177) explica que o saber sábio depois de amplamente discutido e aceito por uma comunidade científica; ou seja, comunidade intelectual específica, passa a “fazer parte do acervo da humanidade [e] também deve ser transmitido para domínio dos futuros profissionais da área”. Esse autor prossegue, explicando:
Para que isto ocorra, o saber sábio é objeto de um processo transformador que o transfigura em um novo saber, processo denominado de transposição didática. Esta tarefa é competência de um novo grupo que compõe outra esfera, mais ampla que aquela dos intelectuais, e que sob regras próprias passa a gerar um novo saber – o saber a ensinar. O saber a ensinar é um produto organizado e hierarquizado em grau de dificuldade, resultante de um processo de total descontextualização e degradação do saber sábio (PINHO ALVES, 2000, p. 177).
A respeito desse trabalho de transformação do conhecimento científico, Chevallard (1998) desenvolveu o conceito da Transposição Didática (TD). Na visão desse autor, a transposição de um conhecimento científico para um nível educacional exige grande reflexão sobre questões didáticas e epistemológicas da relação entre os saberes (saber sábio, saber ensinar, saber ensinado). Seguindo essa visão, consideramos a TD como outra condicionante sine qua non da relação Professor-Aluno, em que a ação didática do professor deve estar livre de obstáculos epistemológicos. Deste modo, a relação Aluno-Saber será favorecida no processo de construção de conhecimento.
Como sabemos, na Educação de Nível Superior, a TD do saber sábio resulta em conteúdo de saber a ensinar, os quais são apresentados em livros (livros texto) de forma organizada conforme entendimento e experiência dos autores sobre o conhecimento científico, objeto da TD. Nesse contexto, os conteúdos apresentam aspecto cumulativo de ordem sequencial. Já para a Educação Básica, a TD do saber a ensinar, normalmente, é desencadeada a partir do conteúdo de conhecimento contido em um livro texto.
Conforme Pinho Alves (2000, p. 177), no ambiente escolar, “o saber a ensinar torna-se objeto de trabalho do professor quando ele, tomando como base o livro texto, prepara sua aula”. Ainda, segundo esse autor, é neste momento que se evidencia “um terceiro nicho epistemológico, que através de uma nova transposição didática sobre o saber a ensinar, transforma-o em saber ensinado” (ibidem, p. 177). De acordo com Polidoro e Stigar (2010, p. 6), “para chegar à escola o saber científico sofre transformações que o simplificam a fim de convertê-lo em objeto de estudo escolar”.
De forma explícita o saber sábio das ciências (Física, Química, Biologia, Matemática) está inserido na Educação Básica em meio ao currículo disciplinar. Nesta organização, o conteúdo de conhecimento se apresenta de forma sintetizada com ordenação quanto ao ano de formação, em especial no Ensino Médio. Zabala (1998, p. 30), afirma que o conteúdo foi utilizado como um termo para “expressar aquilo que se deve aprender, mas em relação quase exclusiva aos conhecimentos de matérias ou disciplinas clássicas [...], para aludir [...] conhecimento dos nomes, princípios, enunciados e teoremas”. Na visão desse autor, a formação integral de um indivíduo da sociedade precisa romper a fronteira disciplinar do saber ensinado, a fim de expandir sua importância para além do caráter cognitivo.
Neste sentido, conduzimos à reflexão os obstáculos epistemológicos, os quais poderão estar presentes na ação didática do professor. Salientamos que, na relação Professor-Saber-Aluno, a ação pedagógica precisa ser adequada diante do ensino e aprendizagem, com vistas à construção de conhecimento com significado. Para tanto, a próxima seção tratará da perspectiva de Bachelard referente às questões acerca dos obstáculos, cujo profissional da educação necessita estar atento.
OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS DE BACHELARD
Concordamos que o processo de ensino e aprendizagem é decorrente da interação entre professor, alunos e destes com outros indivíduos (on e off line) e com o meio, os quais compartilham o saber em modo de construção do conhecimento em cada encontro. Neste ponto, Pauletti, Rosa e Fenner (2014, p. 8), sob uma perspectiva construtivista, compreendem essa interação com base no pressuposto que “não há somente um sujeito que aprende e outro que ensina, ao contrário, o processo de construção de conhecimento ocorre entre [...] (professores e alunos) como protagonistas de suas aprendizagens”. Para tanto, desenvolvendo sua teoria, Vygotsky mostra que a construção das estruturas referente às funções mentais superiores, como memória voluntária, atenção seletiva e pensamento lógico, podem ter maior eficácia mediante interação social com o meio. Neste sentido, recomenda-se:
[...] que a escola atue na estimulação da zona de desenvolvimento proximal, pondo em movimento processos de desenvolvimento interno que seriam desencadeados pela interação da criança com outras pessoas de seu meio. Uma vez internalizados, esses atos se incorporariam ao processo de desenvolvimento da criança. Seguindo essa linha de raciocínio, o aspecto mais relevante da aprendizagem escolar parece ser o fato de criar zonas de desenvolvimento proximal (JÓFOLI, 2002, p. 193-194).
Isso tange a compreensão que aprender qualquer conteúdo escolar pressupõe, acima de tudo, atribuir sentido e construir significados relacionados à vida do sujeito (aluno). Com base nessa concepção, podemos definir que a construção do conhecimento, em sala de aula, nunca é efetuada a partir de um marco zero. Em outras palavras, em sala de aula, os conhecimentos prévios dos alunos e dos professores sempre estarão presentes na relação com o saber. As concepções alternativas dos alunos sobre os conteúdos científicos escolares, bem como a concepção construída social e individualmente pelo professor refletem sobre o desenvolvimento do conhecimento por parte do sujeito.
De acordo com Pauletti, Rosa e Fenner (2014, p. 8), o “sujeito constrói e reconstrói significados a partir de sua bagagem, de seus conhecimentos já estabelecidos”. Nesse contexto de significado, Bachelard (1996) apoia seu ponto de vista quanto à conduta dos professores na relação de ensino e aprendizagem das ciências. Para esse autor, o epistemólogo
[...] deve, pois, captar os conceitos científicos em sínteses psicológicas efetivas, isto é, em sínteses psicológicas progressivas, estabelecendo, a respeito de cada noção, uma escala de conceitos, mostrando como um conceito deu origem a outro, como está relacionado a outro. Terá, então, alguma probabilidade de avaliar a eficácia epistemológica. O pensamento científico vai logo aparecer como dificuldade vencida, como obstáculo superado (BACHELARD, 1996, p. 22-23).
Dentro desse ponto de vista, Bachelard (1996) também faz uma crítica quanto à forma de trabalhar na abrangência do meramente ensinar, afirmando que os profissionais da educação
[...] imaginam que o espírito começa como uma aula, que é sempre possível reconstruir uma cultura falha pela repetição da lição, que se pode fazer entender uma demonstração repetindo-a ponto por ponto. Não levam em conta que o adolescente entra na aula de física com conhecimentos empíricos já constituídos: não se trata, portanto, de adquirir uma cultura experimental, mas sim de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já sedimentados pela vida cotidiana (BACHELARD, 1996, p. 23).
Salientamos que o construtivismo concebe os sujeitos como seres dotados de significativa capacidade intelectual. Esse conceito sustentou o projeto de Bachelard frente à compreensão da relação do ser humano com seu saber. Consoante Japiassu (1992, p. 72), o estudo filosófico de Bachelard permitiu a elaboração do termo obstáculo epistemológico, o qual “designa os efeitos sobre a prática científica das relações que o cientista mantém com ela”. De acordo com Bachelard (1996, p. 17), quando se procuram as condições psicológicas do progresso da ciência “logo se chega à convicção de que é em termos de obstáculos que o problema do conhecimento científico deve ser colocado”.
A abordagem filosófica de Bachelard sobre obstáculos epistemológicos têm forte correlação com setores de elevada intelectualidade, nos quais o saber sábio é desenvolvido. Por conta da necessidade da disseminação desse saber em outras camadas da sociedade, essa mesma linha filosófica também pode ser discutida na Educação, quanto aos problemas de representação do objeto (saber a ensinar, saber ensinado) pelo sujeito epistêmico (aluno). Não existe ação pedagógica sem o uso de recursos didáticos.
Para compreensão da ‘correta utilização dos recursos didáticos’, conforme a perspectiva bachelardiana dos obstáculos epistemológicos, torna-se necessário estudar a obra de Gaston Bachelard (1884-1962) intitulada “La Formarion de Pesprit scientifique: contribution à une psychanalyse de Ia connaissance”, cuja publicação original data de 1938, na França, sendo a 1ª edição com tradução para a língua portuguesa publicada no Brasil, em 1996. Nessa obra, Bachelard teve a intenção de caracterizar as dificuldades que o ser humano encontra em assimilar as abstrações acerca de um novo conhecimento. Não por acaso a palavra obstáculo foi utilizada. Este autor, deliberadamente, usou o sentido concreto dessa palavra (obstáculo), a fim de demonstrar que a formação do pensamento abstrato está correlacionada com a superação de dificuldades; nesse caso, de ordem epistemológica. Nesse contexto, as categorias de obstáculos epistemológicos bachelardianos foram assim classificadas e apresentadas, conforme o quadro 1:
Quadro 1 - Síntese dos obstáculos epistemológicos bachelardianos.
Categorias | Síntese explicativa |
A experiência primeira | O imediato empirismo do sujeito epistêmico pode criar forte barreira para a obtenção do saber. |
O conhecimento geral | A ausência de explicação dos fenômenos observados nas ciências, em particular, da natureza (Física, Química, Biologia), faz com que haja uma generalização do conhecimento. |
Obstáculo verbal | O excesso de imagens não favorece o raciocínio para transformar um conhecimento abstrato em conhecimento concreto na consciência humana. |
O conhecimento unitário e pragmático | Tudo o que descreve um conceito, uma teoria ou um princípio científico, de forma geral, também pode descrever as especificidades. |
Obstáculo substancialista | A explicação superficial sobre um conceito científico pode atrapalhar o avanço do pensamento científico. Isso porque o sujeito pode aceitar esse tipo de explicação como definitiva. |
Psicanálise do realista | O espírito pré-científico busca concretizar o abstrato mediante analogias, na tentativa de facilitar a compreensão dos fenômenos científicos observados. |
O obstáculo animista | A preferência por fenômenos biológicos, como forma de explicação de outros fenômenos da Física ou da Química, pode resultar em problemas de aprendizagem, ou seja, pode promover a compreensão errada do conceito por parte do estudante. |
O mito da digestão | O espírito pré-científico apresenta maior sentimento de posse, referente à ideia de segurança, na obtenção de conhecimento por analogia dos fenômenos científicos observados. |
Libido e conhecimento objetivo | É a expressão de uma vontade do espírito pré-científico, com ideia de germe ou de semente, de ter razão fora de qualquer prova explícita, de escapar à discussão, referindo-se a um fato em que o sujeito pensa não estar interpretando, mas ao qual está dando um valor declarativo primordial. |
Obstáculo do conhecimento quantitativo | A ânsia de se buscar uma precisão ao medir ou a executar operações matemáticas, perde-se na essência do que se está sendo estudado e isso tira do estudante a possibilidade de se construir um senso crítico de análise do que deve ser considerado e/ou descartado. |
Objetividade científica e psicanálise | A preocupação com a objetividade dos estudos científicos e seus produtos tanto no campo do saber quanto do tecnológico, não chega até o ponto de se medirem as variações psicológicas na interpretação de um determinado conceito ou teoria. |
Fonte: Interpretação dos autores conforme Bachelard (1996).
Sabemos que, em alguns casos, para chamar e/ou reter a atenção dos alunos, os recursos didáticos podem ultrapassar o limite entre favorecer e facilitar a aprendizagem. Em nossa concepção, favorecer a aprendizagem significa colocar o aluno em evidência no processo de aprendizagem, cujos recursos didáticos somados às orientações dos professores possibilitam a construção de conhecimento, considerando os erros como algo natural do processo. A reflexão sobre o erro é o fator com maior poder de transformação da concepção do aluno frente ao conteúdo escolar, devido à correção do significado por parte do aluno. Podemos dizer que é no momento de correção que, efetivamente, ocorre um aprendizado, devido à possibilidade de reflexão e de novo raciocínio, além da superação de algum obstáculo epistemológico bachelardiano. Já facilitar a aprendizagem, pode conotar uma pedagogia desviada do campo conceitual da construção do conhecimento. Nesse caso, uma abordagem do processo de ensino, voltada para a redução da dificuldade das atividades direcionadas aos alunos, com a clara intenção de minimizar erros, não permite ao aluno maior raciocínio sobre conteúdo assimilado.
De acordo com Costa (2012, p. 11), os mesmos obstáculos epistemológicos da ciência “tornam-se obstáculos pedagógicos, sendo erros que precisam ser retificados para se chegar à verdade (ou melhor, verdades, que são históricas, múltiplas, provisórias)”. Salientamos que, no processo de aprendizagem, o erro é um elemento presente com forte apelo significativo para o aluno.
Em nosso ponto de vista, para que a aprendizagem ocorra de maneira efetiva, o professor por sua competência precisa mostrar ao aluno razões para evoluir com o erro observado. Ainda, conforme Costa (2012, p. 11, grifo da autora), o aluno “tem dificuldade de abstrair, de pensar cientificamente. Daí o conceito de racionalidade ensinada: o professor tem que conduzir o aluno para a atividade racional, controlando”. Conforme Bachelard (1996),
[...] os obstáculos que se opõem ao conhecimento objetivo, ao conhecimento tranqüilo (sic). Infelizmente os educadores não colaboram para essa tranqüilidade (sic)! Não conduzem os alunos para o conhecimento do objeto. Emitem mais juízos do que ensinam! (BACHELARD, 1996, p. 258).
Na concepção de Bachelard, o erro do aluno durante o processo de aprendizagem precisa ser recebido como algo natural pelo professor, ou seja, o erro faz parte do processo de aprendizagem. O erro, nessa concepção, não se traduz em fracasso. O erro em si precisa ser compreendido como um impedimento momentâneo frente ao domínio de um conhecimento. Desse modo, segundo Kikuchi e Trevisan (2010, p. 2), “o professor não deve recriminar um aluno que comete um erro [...], mas mostrar caminhos que levem à compreensão do erro”. Isso pode ser entendido como um obstáculo a ser superado, já que a avaliação por notas e o incentivo à competição (“aluno laureado”), fazem com que o obstáculo seja maior. Por isso, a importância de se estudar as categorias de obstáculos epistemológicos bachelardianos, para identificar possíveis problemas quanto à superação de obstáculos individuais ou sistemáticos.
Para tanto, o erro do aluno pode ser a consequência de um obstáculo epistemológico não superado, o qual precisa ser retificado pelo professor para se chegar a uma conclusão aceita como correta, principalmente, pelo aluno. Por sua expertise de avaliação de análise, o professor ao notar um erro de forma sistêmica, recorrente em diversas turmas, tem condição de rever sua ação didática pedagógica referente ao processo de ensino. No caso de um problema de aprendizado desta ordem, a reflexão sobre a interferência de aprendizagem por obstáculo epistemológico precisa ser mais técnica e minuciosa, a fim de promover a superação por parte do aluno. Salientamos que obstáculos epistemológicos podem interferir no processo de ensino e aprendizagem de forma individual ou combinada, quando duas ou mais categorias de obstáculos estão presentes na ação didática do professor.
Nesse contexto e em linhas gerais, Brousseau (2001) entende o obstáculo epistemológico como um conjunto de dificuldades, associadas a conhecimentos, devidamente, adaptados, mas para um caso específico ou em situações especiais. Quando surge uma nova situação e com ela a necessidade de interrupções e de novas adaptações, esse conhecimento torna-se uma barreira, pois o indivíduo resiste às coisas novas para proteger o conhecimento já estabelecido. Brousseau também afirma que, para que a aprendizagem ocorra, os profissionais da educação começam por ensinar o conhecimento, passam por processos de reorganizações didáticas e possíveis erros de suas práticas e contradições para destruir o conhecimento prévio.
Quanto ao favorecimento do processo de aprendizagem, os professores precisam estar cientes de que não há obstáculos epistemológicos no caminho de seu ensino. Segundo Bachelard (1996), os recursos didáticos, utilizados em sala de aula (livros didáticos, analogias, metáforas, TDIC) requerem atenção quanto ao seu uso correto, para que não se tornem um obstáculo ao aprendizado, dificultando o desenvolvimento do ensino ou mesmo o seu fracasso.
Compreendemos que do ponto de vista da concepção construtivista, aprender qualquer conteúdo escolar pressupõe, acima de tudo, atribuir sentido a ele mediante a construção de significados relacionados a múltiplos contextos da vida do sujeito. Diante disso, a ação didática com interesse no favorecimento da aprendizagem, mediante observância dos obstáculos epistemológicos e protagonismo do aluno, permitirá uma melhor transição entre o espectro concreto e o abstrato e vice-versa do conteúdo escolar objeto de estudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo do entendimento de que o processo de aprendizagem pode ser favorecido mediante a superação de obstáculos, o professor precisa considerar essa questão epistemológica na sua organização didática. Também é necessário que haja o exercício da práxis docente, ou seja, instaurar processos que levem a uma prática crítico-reflexiva, abrangendo a vida cotidiana da escola e os saberes derivados de suas experiências docentes. Diante disso, é mister dizer que os condicionantes didáticos (texto auxiliar, exercício, atividade experimental) podem contribuir para o entendimento dos conceitos científicos, a partir de modelos concretos e de raciocínio. Compactuamos com a ideia de que o aluno possa refletir, individualmente, sobre o conteúdo escolar estudado, a fim de observar a conexão entre os conteúdos, bem como transferir o que foi aprendido de um contexto para outro.
A organização didática, que prevê a utilização de materiais concretos em atividades práticas, promoverá maior interação aluno (sujeito epistêmico) com o saber ensinado (conteúdo escolar). A condução de aulas na perspectiva de curricularização da pesquisa, com a possibilidade de experimentação, tem a capacidade de estimular o aluno para construção de conhecimento via estímulo do canal cognitivo. Essa construção está, diretamente, ligada à necessidade de raciocínio. De certa forma, isso exerce influência sobre o indivíduo e tende à automotivação contínua, uma vez que a superação de obstáculos epistemológicos aumenta a percepção de aprendizagem.
A superação de obstáculos pode ser entendida como um divisor, frente ao reconhecimento do indivíduo como sujeito epistêmico na relação Aluno-Saber. Nesse contexto, o aluno passa a desenvolver mecanismos para construção sólida da sua metodologia de aprendizagem. Como recompensa do esforço individual, o aluno consegue observar indícios, frente ao sofisticado pressuposto do construtivismo, correlacionado ao aprender a aprender.
Reforçamos que uma abordagem dinâmica, situada dentro de metodologias ativas, elaborada com a proposta de favorecer a superação de obstáculos epistemológicos bachelardianos, no sentido de colocar o aluno na construção de seu conhecimento, pode ocorrer de inúmeras formas, tais como: pesquisa orientada; elaboração de síntese de texto complementar; formulação de perguntas sobre o conteúdo estudado; resolução de problemas relacionados ao cotidiano; apresentação de estudo em seminário interno da disciplina entre outras práticas pedagógicas, que contribuem para o protagonismo do aluno orientado pelo professor. O aprimoramento dessas atividades permitirá ao profissional da educação a observação de alguns fatores positivos frente à relação Aluno-Saber, a saber: aumento da participação dos alunos na realização das atividades; maior envolvimento do aluno com o conteúdo do saber ensinado; redução do aspecto abstrato de conceito e teorias; formação de analogias; aumento da concentração e memorização; superação de alguns dos obstáculos epistemológicos bachelardianos, em particular, a experiência primeira; demonstração de domínio de conteúdos aprendidos; dentre outros fatores que conotam sucesso no processo de aprendizagem.
Em nossa concepção, a construção de significado referente ao saber ensinado contribui para a autonomia do processo mental do aluno (sujeito epistêmico), frente à criação de um modelo representativo do objeto de estudo, a partir do uso de outros objetos concretos já estabelecidos em sua consciência. Como consequência, a memorização mais forte permite rápido acesso às informações já adquiridas em forma de conhecimento, para analisar fatores e dados de uma situação-problema, a fim de apresentar uma solução.
Salientamos que essa condição tende à expansão do conhecimento, devido à redução do aspecto abstrato do conteúdo ou substância do saber. Com isso, mais e mais associações podem ser feitas, à medida que se fortalece a relação do sujeito com o objeto. Ou seja, quanto mais o aluno é estimulado, orientado, conduzido para estudar um conteúdo curricular sobre múltiplos contextos, mais chance esse aluno tem de superar os obstáculos epistemológicos bachelardianos os quais podem estar presentes, em maior ou em menor grau, de forma individual ou combinada, no processo de aprendizagem.
Pautado na construção de conhecimento via entendimento de erro cometido, tanto o professor quanto o aluno estarão em consonância com o pressuposto construtivista, no qual o conhecimento abstrato é transformado em conhecimento concreto pensado. O professor, ao refletir sobre sua prática educativa, pode observar erros em sua organização didática, cuja reflexão sobre o processo de ensino pode identificar obstáculos epistemológicos a serem superados por ele. Essa superação segue no sentido de aprimoramento do seu trabalho enquanto mentor. Embasados em Freire (1997) e Vygotsky (1988), podemos conceber algumas práticas educacionais como necessidades humanas, no sentido de sensibilização, sendo pertinente: a relação dialógica entre professor e aluno; a importância do conhecimento prévio trazido pelo aluno; a crítica à educação bancária (tradicional); e o respeito à diversidade cultural. Já o aluno, ao refletir sobre os erros cometidos no processo de transformar o saber ensinado em saber aprendido, consegue estabelecer, mentalmente, forte sinapse referente ao significado do conteúdo escolar em variados contextos a sua volta.
A complexidade de uma prática educativa de ensinar é agravada em virtude da diversidade de alunos em uma mesma classe, isso por conta da existência de muitas formas de aprendizagem. Por isso, tanto a abordagem quanto o uso de recursos didáticos devem ser pensados na forma de estratégias pedagógicas. A qualidade do material didático, destinado para atividades práticas de pesquisa ou consulta, além de experimentação, é o fator de destaque na proposta de ensinar com foco no aluno, quanto à característica moderna da relação Aluno-Saber do “aprender a aprender”. Salientamos que o material didático mais interessante para atender essa característica, será aquele construído pelo próprio professor, ou grupo de professores, fazendo parte do projeto pedagógico dentro da perspectiva construtivista do conhecimento referente ao saber ensinado.
Diante do exposto neste manuscrito, compartilhamos a ideia de que a formação de professores, em alguma medida e, em particular, nos casos nos quais os professores não cursaram graduação ou pós-graduação no campo da Educação, precisa discutir com mais frequência e profundidade os pressupostos de Gaston Bachelard sobre os obstáculos epistemológicos. Em nossa concepção, alguns dos obstáculos epistemológicos bachelardianos (experiência primeira, substancialista, animista, realista) podem influenciar no processo de ensino e aprendizagem e são, facilmente, observados em ambos os processos.
Por fim, deixamos uma citação de Bachelard, para continuar nossa reflexão enquanto profissionais da Educação, frente ao constante desafio de motivar seus alunos para a construção do conhecimento e à superação de obstáculos epistemológicos. De acordo com Bachelard (1996, p. 12, grifo nosso), proporcionar momentos para construção do conhecimento é, “sobretudo manter — um interesse vital pela pesquisa desinteressada [...] [e esse] é o primeiro dever do educador, em qualquer estágio de formação [...]”.
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