PROFESSORAS LÉSBICAS: EM QUE RAIOS DE SILÊNCIO PODEMOS ENCONTRÁ-LAS
LESBIAN TEACHERS: IN WHAT RAYS OF SILENCE CAN WE FIND THEM?
PROFESORAS LESBIANAS: ¿EN QUÉ RAYOS DE SILENCIO PODEMOS ENCONTRARLAS?
Linguagens, Educação e Sociedade
Universidade Federal do Piauí, Brasil
ISSN: 1518-0743
ISSN-e: 2526-8449
Periodicidade: Trimestral
vol. 27, núm. 54, 2023
Recepção: 29 Agosto 2022
Aprovação: 09 Maio 2023
Resumo: Este estudo exploratório, de natureza quanti-qualitativa, é um produto de pesquisa pós-doutoral realizada no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia. Caracterizado como um estudo de correlatos, foca em experiências e narrativas de professoras lésbicas. Situado no campo dos estudos lesbofeministas, apreende professora lésbica como corpo político, pessoa estigmatizada pela sociedade heterossexual. Reconhecendo a invisibilidade lésbica como problema, uma face da lesbofobia, percebida como violência estrutural que ameaça, agride e mata mulheres em função do imbricamento do gênero, da sexualidade não heterossexual e da raça, entre outros marcadores da diferença, o estudo questiona em que raios de silêncio e obscuridade podemos encontrar as professoras lésbicas? Em busca de respostas, o objetivo é analisar como as experiências de professoras lésbicas são perspectivadas nos estudos disponíveis na base de dados Norte-Americana ERIC - Education Resources Information Center. A metodologia é inspirada no método Systematic Search Flow. O resultado é um mapa em aberto, aponta que a experiência de violência sofrida pelas lésbicas no ambiente de trabalho, e fora dele, é refletida como “homofobia”, fato que sugere não reconhecimento das especificidades da violência contra lésbicas, além de sugerir que não há existência segura para professoras lésbicas.
Palavras-chave: Professora lésbica, Invisibilidade lésbica, Lesbofobia, Injustiça epistêmica.
Abstract: This exploratory, quanti-qualitative research is a product of a postdoctoral study cnducted at the Graduate Program of the Faculty of Education of the Federal University of Bahia. Characterized as a study of correlates, it focuses on experiences and narratives of lesbian teachers. Situated in the field of lesbofeminist studies, it apprehends the lesbian teacher as a political body, a person stigmatized by heterosexual society. Recognizing lesbian invisibility as a problem, a face of lesbophobia, perceived as structural violence that threatens, attacks, and kills women due to the intersection of gender, non-heterosexual sexuality, and race, among other markers of difference, the study questions where we can find lesbian teachers in rays of silence and obscurity. In search of answers, the objective is to analyze how the experiences of lesbian teachers are represented in studies available in the North American database ERIC - Education Resources Information Center. The methodology is inspired by the Systematic Search Flow method. The result is an open map that points out that the experience of violence suffered by lesbians in the workplace, and beyond, is reflected as “homophobia,” a fact that suggests a lack of recognition of the specificities of violence against lesbians, and suggesting that there is no safe existence for lesbian teachers.
Keywords: Lesbian teacher, Lesbian invisibility, Lesbophobia, Epistemic Injustice.
Resumen: Esta investigación exploratoria, cuanti-cualitativa, es producto de un estudio postdoctoral realizado en el Programa de Posgrado de la Facultad de Educación de la Universidad Federal de Bahía. Caracterizado como un estudio de correlatos, se centra en las experiencias y narrativas de profesoras lesbianas. Situado en el campo de los estudios lesbofeministas, aprehende a la profesora lesbiana como cuerpo político, persona estigmatizada por la sociedad heterosexual. Reconociendo la invisibilidad lésbica como problema, una cara de la lesbofobia, percibida como violencia estructural que amenaza, agrede y mata a las mujeres debido a la intersección de género, sexualidad no heterosexual y raza, entre otros marcadores de la diferencia, el estudio cuestiona dónde podemos encontrar a las profesoras lesbianas en los rayos del silencio y la oscuridad. En busca de respuestas, el objetivo es analizar cómo se representan las experiencias de las profesoras lesbianas en los estudios disponibles en la base de datos norteamericana ERIC - Education Resources Information Center. La metodología se inspira en el método Systematic Search Flow. El resultado es un mapa abierto que señala que la experiencia de la violencia sufrida por las lesbianas en el lugar de trabajo, y fuera de él, se refleja como "homofobia", hecho que sugiere una falta de reconocimiento de las especificidades de la violencia contra las lesbianas, y sugiere que no hay una existencia segura para las profesoras lesbianas.
Palabras clave: Profesora lesbiana, Invisibilidad lésbica, Lesbofobia, Injusticia epistémica..
INTRODUÇÃO
Que rede de sentido acionamos quando pensamos em professora lésbica? Afinal, o que é lésbica? O que enquadra alguém nessa posição? O sexo entre mulheres é imprescindível para configurar alguém como lésbica? Por que nomear-se lésbica? O que leva alguém a assumir uma identidade marginalizada e ingressar em uma minoria perante a sociedade? Certas de que qualquer tentativa de resposta única para essas questões está fadada ao fracasso, assumimos o pensamento lésbico como uma ginga contra-hegemônica (SILVA, ARAÚJO, 2020), isto é, uma estratégia discursiva que expressa a não aceitação do mundo autorizado, um falso conflito. Assim percebido, o pensamento lésbico é base epistêmica iniciada nos anos 70 em contexto de revolução transnacional do capitalismo que se apoia em uma nova divisão internacional, sexual de classe e racial do trabalho (FALQUET, 2006).
Nos inserimos na ginga feminista desde o lesbofeminimo produzido por pesquisadoras e ativistas lésbicas como um movimento social internacional e diverso, produto da construção coletiva de práticas políticas, como pontua Curiel (2013). Em diálogo com essa autora, apreendemos o lesbofeminismo como teoria política que formula hipótese, sistemas de pensamento e metodologias para analisar diferentes sistemas de opressão que afetam principalmente mulheres e lésbicas, podendo explicar ainda outras relações socias, como gênero, raça e classe. Para além de uma teoria, uma metodologia e uma prática política, o lesbofeminismo também é uma ética filosófica que propõe acabar com as opressões de gênero, raça, classe e sexualidade, questionando a heterossexualidade obrigatória (CURIEL, 2013).
Na ginga, reconhecemos que lésbica é um ser que transcende a heteronorma, como revela o olhar poético de Ana Carla Lemos, apresentada por Silva (2017, p.99 )
TE VEJO
Ser que transcende as normatizações
Ser que luta pelos ideais de equidade de gênero, raça e classe.
É assim que te vejo
Articulada, movimentos livres, corpos que falam [...] corpos feministas [...]
Te vejo dentre as revolucionárias de plantão, poesia em versos cortantes e revolucionários feminismos.
Te vejo tecendo teias de sororidade. Te vejo tecer costuras políticas
Te vejo inovadora dentre os corpos lésbicos que transcendem e não aceitam normatizações;
Te vejo neste retrato preto e branco, desbotado, mas também colorido, em cinzas, além da fênix.
Te vejo no retrato histórico político, nossos nomes escritos nas tábuas revolucionárias.
Não sei se posso te/nos nomear como mulher, por todas as construções sociais mesquinhas que deram a este nome.
Mas, te vejo SER SER que transcende
SER no mais amplo sentido das palavras.
Nesse movimento, reconhecendo a experiência, conforme menciona Scott (1991), como ponto de partida da produção do conhecimento, concebemos professora lésbica com corpo político estigmatizado pela sociedade heterossexual, marcado como “anormal”, não humano, cuja vida pode ser ameaçada, silenciada, invisibilizada, ceifada. Como mostra Goffman (1998), os “normais” constroem uma ideologia para explicar a inferioridade das pessoas através de um estigma para que possam ter controle do perigo que elas representam, acreditando e fazendo crer que alguém com um estigma não é verdadeiramente humano. Dessa forma, a construção social de pessoas ou grupos estigmatizados é um processo sociocultural e histórico específico, cujas marcas utilizadas para estigmatizar têm variado ao longo de cada período histórico, e em cada grupo cultural.
Em nossa cultura, o “lésbico” se constrói como um estigma a partir da consideração da sexualidade lésbica como transgressora das normas da sexualidade dominante (heterossexualidade) e da maternidade obrigatória, que constroem a condição de gênero feminino (LORENZO, 2012).
Com essa mirada, o reconhecimento da existência lésbica implica na compreensão de que outras formas de sexualidade são possíveis. Implica, sobretudo na consciência de que existem outras formas de organizar a vida, outros sentimentos para além do amor heterossexual, e que a negação dessa existência é expressão de lesbofobia, uma violência estrutural com faces que se alastram afetando a sociedade, ameaçando, agredindo, matando mulheres em função do imbricamento do gênero, da sexualidade não heterossexual e da raça, o que caracteriza esta violência não como uma face específica da homofobia ou da violência contra a mulher, mas como violência interseccional, nó que articula gênero, sexualidade e raça, fenômeno social, cultural e político que exige uma soma de esforços da sociedade para a sua erradicação (SILVA, 2016).
Essa noção da lesbofobia se alinha ao pensamento de Lorenzo (2012), que a concebe como mecanismo político de opressão, dominação e subordinação, cujo núcleo é o sexismo, que articula o machismo, a misoginia e a homofobia. Isso significa que a lesbofobia implica em uma especificidade concreta, pois as lésbicas sofrem dupla discriminação, opressão, subordinação. Porém, considerando que raça é estruturante do gênero e da sexualidade, a lesbofobia vivenciada pelas lésbicas negras implica em tripla discriminação. Portanto, se aos invisíveis cabe o concedido, nada mais transgressor e transformador do que conquistar a visibilidade. Assim, a visibilidade de uma professora lésbica, branca ou negra, é ato de resistência, de enfrentamento à lesbofobia.
Reconhecendo a invisibilidade discursiva sobre professora lésbica, apontada nos estudos brasileiros como um problema, como sugerem os trabalhos de Neil Almeida (2009), Ariane Meireles (2012), Patrícia Maciel (2014), Tatiana Freitas (2018), Arthur Novo (2015), Jardinélio Silva (2019); Andresa Santos (2020); Gersier Santos; Zuleide Silva (2020), Daniela Auad; Camila Rosano (2021); Jaqueline Santos; Zuleide Silva (2021), questionamos, em que raios de silêncio e obscuridade podemos encontrá-la? Existe invisibilidade da professora lésbica nos estudos internacionais produzidos no campo da Educação? Em busca de respostas, o propósito deste estudo pós-doutoral, desenvolvido no programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia, é refletir sobre experiências de professoras lésbicas apresentadas nos estudos internacionais disponíveis na base de dados Norte Americana ERIC - Education Resources Information Center.
Vale ressaltar que estudos dessa natureza permitem a visualização do panorama da produção de pesquisas e seus resultados ao longo de um período, possibilitando estimar os impactos acadêmico, social e político na universidade e na sociedade. Desse modo, esse estudo é retrospectivo, ele historiciza o tema e nos conduz a uma arena de narrativas construídas em torno da temática. Assim, este estudo de correlatos se caracteriza como mapa em aberto das produções analisadas.
A INVISIBILIDADE DA PROFESSORA LÉSBICA COMO PROBLEMA: O QUE DIZEM OS ESTUDOS BRASILEIROS
No Brasil, conforme estatísticas do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2020), foram registrados 2,2 milhões de docentes na educação básica. No ensino superior, são 386.073 docentes. Desses, 37,5% possuem mestrado e 45,9%, doutorado. As professoras representam quase 70% do corpo docente no país. No entanto, como afirmam Daniela Auad e Camila Roseno (2021), embora as publicações acadêmicas em torno da presença majoritária de mulheres no magistério tenham se consolidado nos fins da década de 1980 e início dos anos de 1990, ainda são poucas as pesquisas acadêmicas que se destinam a investigar as trajetórias e saberes docentes das professoras lésbicas. Em estudo de correlatos realizado em 2020, do Banco de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com os descritores “Professora Lésbica” e “Professoras lésbicas”, foram encontrados apenas 7 trabalhos, a maioria deles produzidos por mulheres, em universidades públicas do eixo Sul e Sudeste (SANTOS; SILVA, 2020; SANTOS; SILVA, 2021). A Leitura dessa produção, assim como a experiência docente da autora, que se autodeclara lésbica branca feminista, é reveladora do quanto o sistema educacional brasileiro é gendrado, generificado, racializado e sexuado (CARDOSO; SILVA, 2011), (re)produtor e difusor de pensamentos e práticas sexistas, lesbofóbicas, racistas, fato que potencializa a invisibilidade e produz formas de violência vivenciadas pelas professoras lésbicas no meio escolar e acadêmico. Embora haja nos países latino-americanos a consciência de que o Estado deve ter compromisso de investimentos permanentes no ensino superior a fim de promover não só a difusão do conhecimento científico, mas também o exercício da cidadania e do respeito aos direitos humanos, assim como o desenvolvimento de políticas de inclusão (DINIZ, 2008), os estudos brasileiros revelam que no Brasil a existência de professoras lésbicas na educação básica e no ensino superior é apagada, ameaçada.
A invisibilidade de docentes não heterossexuais, como mostra o estudo de Almeida (2009) é naturalizada no ambiente de trabalho. 71.2% das professoras e professores participantes da pesquisa do autor, quando questionadas “se um/a professor/a homossexual que não apresentasse restrições em falar sobre sua vida pessoal deveria permitir que os/as alunos/as soubessem como ele/a vive a sua sexualidade”, responderam que não, que a homossexualidade docente está, e deve continuar, na esfera privada, que esta dimensão da vida não deve vazar para a esfera profissional, como se fosse possível deixar a sexualidade em casa, ou, no máximo, atrás dos portões da escola, como sugere uma das respostas obtidas por Almeida (2009, p. 149), que ressalta: “Ambiente de trabalho deve ser preservado. Caso ele queira se aventurar deve promover uma festa ou mesmo ir a um barzinho bem longe da escola e expor seu ponto de vista”.
Conforme Almeida (2009), de modo geral, os relatos do grupo de docentes entrevistados, apontam que a possibilidade de se pensar na homossexualidade como sendo uma relação entre duas pessoas estruturada sob vínculos de afetividade, respeito, dignidade e felicidade, parece uma condição descartada no espaço escolar. Na perspectiva desse autor, com quem concordamos, as marcas do gênero, da sexualidade e, acrescentamos, da raça, não são desvinculadas das(os) docentes transgressores. A condição docente não livra professores gays e professoras lésbicas de serem discriminados na escola. Suas presenças, por si, fazem gerar a discussão da diversidade na escola.
Como reflete Tatiana Freitas (2018), o silêncio das professoras lésbicas em seus ambientes de trabalho não é algo sem consequência do ponto de vista pedagógico, pois a invisibilidade lésbica informa que certos modos de existir são legítimos e outros não. Nessa perspectiva, a invisibilidade é em si mesma pedagógica, um fenômeno que contribui com sua própria reprodução, uma vez que a falta de referências implica na ausência de modelos, aumentando a insegurança para se assumir publicamente, o que acaba gerando um círculo vicioso, como sugere Raquel Osborne (2008), quando afirma que invisibilidade lésbica é construída, em maior ou menor grau, por todos os sujeitos sociais, na medida em que o reconhecimento da lesbianidade significa reconhecer que a mulher pode ser agente de próprio desejo, de sua própria sexualidade.
Freitas (2018) ressalta que as participantes da sua pesquisa, rasurando com a política da invisibilidade, buscavam de diferentes formas construir visibilidade lésbica nas escolas, procurando assim edificar um ambiente mais seguro para elas mesmas, bem como desenvolver e fortalecer um modelo positivo para as alunas e alunos, apesar do medo das consequências da revelação de sua orientação sexual na escola, das considerações sobre as implicações de assumir-se para a equipe e para os alunos e alunas, e do papel da gestão da escola no posicionamento das professoras frente a esta questão. Para essas professoras, apesar da lesbofobia ser uma realidade na escola, é importante produzir visibilidade pedagógica, contribuir para uma visão de mundo mais otimista, edificante e segura para adolescentes heterodissidentes, e “[...] além disso, com uma perspectiva mais democrática e respeitosa em relação à diversidade para os/as estudantes em geral” (FREITAS, 2018, p. 120).
De acordo com Freitas, uma das professoras relata que ao confrontar um aluno do ensino médio que se recusou a fazer um trabalho com um colega gay, disse que então ele, o estudante, não poderia assistir suas aulas, já que ela mesma era lésbica. “Ela conta que não disse isso expulsando o aluno, mas apontando sua contradição, e o garoto, então, pediu desculpas e disse que estava brincando” (FREITAS, 2018, p. 128). Mas, essa história chegou ao conhecimento da direção, que chamou a atenção da professora, dizendo que o corpo docente da escola não deveria falar sobre suas vidas pessoais, pois suas vidas não interessam às outras pessoas na escola, especialmente para o corpo discente. Essa situação evidencia a lesbofobia cordial da direção da escola na medida em que ela sugere aceitação da lesbianidade não anunciada, invisível. Ou seja, a condição para aceitação da professora lésbica, nesse caso, é a invisibilidade lésbica, o silenciamento da sua orientação sexual.
A invisibilidade como condição para a aceitação da lesbianidade e da homossexualidade docente também é apresentada na dissertação de Jardinelio Reis da Silva (2019), que investiga as experiências de vida de 3 (três) professoras lésbicas e 3 (três) professores gays assumidas(os) na Rede Municipal e Estadual de escolas da cidade de Castanhal-PA, com o objetivo de perceber como é para esses corpos estar em um ambiente heteronormativo; analisar como a homofobia interfere nas relações desses/as docentes com colegas, familiares e alunos, observando como isso influencia nas suas práticas educacionais. Reconhecendo que o ambiente escolar é atravessado por práticas homofóbicas, Silva (2019) acredita que o fato de professoras lésbicas e professores gays não se enquadrarem na norma da heterossexualidade faz com que estes e estas adaptem suas aulas para tocar em assuntos de gênero e sexualidade e assim criem estratégias de combate às discriminações. Partindo desse entendimento, o autor reflete sobre a convivência de docentes lésbicas e gays com as pessoas que frequentam o seu espaço de trabalho. De acordo com Silva (2019), uma professora lésbica masculinizada, participante da sua pesquisa, relatou que em diálogo com a comunidade escolar sobre sua orientação sexual, a comunidade deixou claro que não se incomoda com a sua lesbianidade, mas que isso não precisa ser explicitado. Isso significa, como bem pontua Silva (2019, p.123), que há uma condição para aceitação da referida professora: “O silenciamento de sua sexualidade. Ela precisa passar despercebida expressando feminilidade e camuflando sua sexualidade para obter aceitação”. Assim, a professora lésbica para ter aceitação precisa estar no armário, manter sua lesbianidade em segredo.
Arthur Leonardo Costa Novo (2015), discutindo regimes de visibilidade de professoras lésbicas e professores gays, aponta que a sociabilidade de pessoas não heterossexuais, organizada em uma dinâmica dual de segredo e revelação, mentiras e verdades, visibilidades e invisibilidades, vem instrumentalizando o conhecimento popular e acadêmico sobre as vidas de gays e lésbicas desde a segunda metade do século XX, quando “a metáfora do armário que centraliza a tensão dual nas relações sociais destas pessoas, tornou-se parte do imaginário coletivo sobre a homossexualidade” (NOVO, 2015, p.127). Faz parte desse imaginário a compreensão de que o armário é uma prisão, produz um estado de opressão vivenciado por pessoas não-heterossexuais até que elas consigam condições para se libertar, “sair do armário”.
Mas, como destaca Novo (2015), esta concepção libertária, que orienta os discursos da militância LGBT no ocidente é questionada por Eve Sedgwick (2007), que desconstrói a ideia de armário como uma “condição” ou um “estado” que se pode deixar, mostrando que este representa a existência de uma epistemologia de conhecimento sobre a homossexualidade que garante a manutenção da ordem heterossexual. Nessa perspectiva, o armário, faz das vivências não-heterossexuais reféns de uma condição de “segredo” que é impossível solucionar, pois exige manutenção constante tanto para permanecer nele, quanto para deixá-lo, visto que a pressuposição da heterossexualidade exige que a pessoa “se assuma” a cada novo contexto (SEDGWICK, 2007).
Novo (2015) reconhece que o armário representa um regime que determina como, quando e qual homossexualidade é enunciada, bem como quem está em posição de fazê-lo, se constituindo assim como matriz para entendimento das relações sociais de gays e lésbicas na contemporaneidade. Assim, o armário se articula ao campo de possibilidades dos sujeitos, de modo a organizar a ação nas diferentes esferas da vida social pelas quais estes e estas transitam, entre elas, a escola. Com essa compreensão de armário, Novo (2015) reflete diferentes dimensões do armário na escola, nas vivências dos professores gays e das professoras lésbicas participantes da sua pesquisa. Porém, a complexidade do campo não permite a Novo afirmar que professoras lésbicas e professores gays vivem oprimidas e oprimidos, invisíveis dentro das escolas, sugerindo que há resistência. Da mesma forma, não permite afirmar que estão perfeitamente livres de qualquer repercussão discriminatória diante da suspeita ou da própria revelação de sua orientação sexual. Mas, o fato do seu grupo de interlocutoras e interlocutores ter sido composto principalmente por docentes gays revela, de acordo com o autor, que as professoras lésbicas estavam mais invisíveis e/ou inacessíveis nas redes de sociabilidade e nos espaços onde ele desenvolveu seu trabalho de campo, nos quais a suspeita da lesbianidade emerge com menos frequência ou é menos importante. Na sua avaliação, com a qual concordamos, por ser mais facilmente ignorada, o potencial da lesbianidade de desestabilizar a “ficção” de que todas e todos na escola vivem de acordo com as prescrições heteronormativas, só se apresenta quando a professora se autodeclara lésbica e/ou se propõe a discutir com suas turmas temas considerados subversivos, como o direito das mulheres ao prazer, entre outros.
Como mostra o estudo de Ariane Meireles (2012), declarar-se lésbica no ambiente escolar, ou fora dele, é um risco que muitas professoras optam por não correr, temendo as consequências da visibilidade. Refletindo sobre sua experiência no campo, essa autora ressalta que conversou informalmente com 9 (nove) professoras lésbicas e bissexuais, da educação básica, sobre sua pesquisa de mestrado com foco na experiência docente de lésbicas e mulheres bissexuais, na expectativa de convidá-las para participar do estudo. Mas, somente quatro aceitaram o convite. As cinco professoras que recusaram, identificadas pela autora como “grupo de recusa”, não eram assumidas na escola, no que diz respeito à sua orientação sexual. Uma delas justificou a recusa afirmando que já tem problemas demais na sua vida, associando visibilidade lésbica à problema de diferentes dimensões.
O estudo de Maciel (2018) também identifica a escola como espaço produtor de violência contra professoras lésbicas na medida em que mantém um caráter essencialista nas suas concepções pedagógicas em relação ao gênero e à sexualidade, impondo, reafirmando e incentivando a reprodução de um conceito universal de mulher. Porém, a autora ressalta que, a partir das falas das suas entrevistadas, ela viu as professoras lésbicas não somente como mulheres vitimadas em função do seu gênero e da sua sexualidade, mas como mulheres completamente reconstruídas dentro de um feminismo positivo. Maciel reconhece que a experiência de professoras lésbicas na educação básica, ao tempo que aponta a escola como espaço (re)produtor de violência contra docentes não heterossexuais, revela a docência como campo de possibilidades.
Não resta dúvida sobre a importância da lesbianidade na desconstrução das verdades e dos discursos criados em torno das mulheres e da feminilidade, inclusive nas escolas. É importante lembrar que as professoras lésbicas problematizam o gênero nas escolas a partir dos conhecimentos que elas têm acerca das suas experiências de gênero, das suas experiências como seres engendrados. Isso denota que elas usam os seus corpos para problematizar os estereótipos, os preconceitos e a lesbofobia nas escolas (MACIEL, 2018, p.145).
Dessa forma, reflete Maciel, as experiências de gênero e sexualidade das professoras entrevistadas constituem um percurso pelo qual elas transformam a si e ao mundo. É também por essas experiências que elas tentam instaurar mudanças na cultura e na sociedade, abrindo novos espaços e novos modos de pensar na esfera do pessoal e profissional.
O estudo de Andresa Santos (2020), que analisa a construção da identidade docente a partir das narrativas de professoras lésbicas das Instituições de Ensino Superior do Amapá, aponta que todas as participantes da pesquisa, em algum momento de suas trajetórias, sofreram tensões quanto às relações de poder e a regulação do sexo e gênero. Mostrou ainda que é diário o enfrentamento na busca de legitimação e visibilidade lésbica.
Em conjunto, a produção científica brasileira aqui refletida revela que a invisibilidade lésbica, para além de uma expressão da lesbofobia, é uma violência da ordem do conhecimento, injustiça epistêmica que fragmenta a ciência hierarquizando os saberes a partir de preconceitos identitários, estigmas.
Conforme Miranda Fricker (2007, apud COITINHO, 2020), a injustiça epistêmica ocorre quando aspectos discriminatórios arbitrários influenciam no domínio do conhecimento.
Em outras palavras, quando o preconceito identitário influencia as nossas práticas epistêmicas, como originando um déficit de credibilidade no testemunho de um agente ou dificultando a compreensão da realidade social em ausência de certos conceitos centrais (FRICKER, 2007, p. 01-08). Para ela, [Fricker] há duas formas de injustiça epistêmica; a saber, a injustiça testemunhal e a injustiça hermenêutica (COITINHO, 2020, Online).
Como explica Coitinho, a injustiça testemunhal ocorre quando o preconceito a uma certa identidade causa no ouvinte um nível deflacionado de credibilidade ao que foi afirmado pelo falante, e a injustiça hermenêutica, quando uma lacuna nas fontes interpretativas coletivas coloca alguém em uma situação de desvantagem arbitrária no contexto das experiências sociais. Nessa perspectiva, a invisibilidade lésbica como injustiça epistêmica reflete o não reconhecimento das professoras lésbicas como sujeitas produtoras de conhecimento, fato que prejudica as lésbicas em sua capacidade de conhecer, e prejudica a produção e a difusão do pensamento lésbico como um bem público, conhecimento produtor de insumos informacionais que potencializam o exercício da cidadania (SILVA, ARAÚJO, 2021, p.11).
O dano da injustiça epistêmica é a “objetificação” e o silenciamento das professoras lésbicas na sociedade. Como ressalta Tânia Kuhnen (2013), a injustiça epistêmica produz uma lacuna hermenêutica, que não permite ao indivíduo ou ao grupo tornar sua experiência inteligível diante de outros.
Por serem mal-entendidos, esses grupos são deixados de lado na estruturação epistemológica, o que impossibilita o próprio autoentendimento. Essa injustiça resulta em desvantagem cognitiva e marginalização hermenêutica de grupos, que terminam por participar de forma desigual das práticas pelas quais significados sociais e entendimentos coletivos são constituídos (KUHNEN, 2013, p. 8).
Diante desse quadro de invisibilidade e violência registrado/revelado nos estudos brasileiros, voltamo-nos para os estudos internacionais no campo da educação em busca de respostas para a questão que orienta este estudo: em que raios de silêncio e obscuridades se encontram as professoras lésbicas?
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A metodologia deste estudo é inspirada pelo Systematic Search Flow, método desenvolvido por Helio Aisenberg Ferenhof e Roberto Fabiano Fernandes (2015; 2016), que compreende as seguintes fases: 1) Definição do protocolo da pesquisa; 2) Análise dos dados; 3) Síntese; 4) Escrita. Essas fases são decompostas nos seguintes procedimentos: Estratégia de busca, consulta à base de dados; organização e padronização da bibliografia, composição do portfólio, consolidação dos dados, produção de relatórios, difusão do conhecimento. Com essa referência, definimos o protocolo da pesquisa conforme Quadro 1.
Quadro 1- Protocolo da pesquisa
Fase 1 – Definição do protocolo da pesquisa | ||||
Estratégia de busca | A estratégia de busca foi: a) definir a questão da pesquisa - Como as experiências de professoras lésbicas são refletidas na literatura internacional?; b) usar os descritores “Lesbian Teacher”, “Lesbian Professor”. | |||
Consulta a base de dados | A base escolhida foi a ERIC. Não foi limitado o período do ano das publicações ou tipo de documento. A busca por tópico, incluído título, resumo, palavras-chave localizou 78 registros com o descritor “Lésbian teacher”. Os mesmos registros foram recuperados com o descritor “Lesbian Professor”. A buca por tópico inclui o título, resumo, palavras-chave. | |||
Organização da bibliografia | Foi usada planilha do Microsoft Excel. | |||
Padronização da bibliografia selecionada | Primeiramente foram excluídos os registros repetidos (78), depois os não disponíveis na íntegra e de forma gratuita. Após leitura do título do resumo e das palavras-chaves e da Introdução do trabalho foram excluídos os registros sem aderência ao tema da pesquisa. | |||
Composição do portfólio | Após a leitura na integra dos registros restantes, a fim de garantir que atendam ao objetivo da pesquisa, o portfólio foi constituído por 10 trabalhos. | |||
Fase 2 -Análise dos dados | ||||
Consolidação dos dados | Organização de pastas - unidades de análise – a partir da ocorrência dos descritores “Lésbian teacher” e “Lesbian Professor”. A primeira foi denominada “Matriz de síntese”, constituída por todos os textos lidos na íntegra. As demais foram criadas para facilitar a análise por tópicos considerados relevantes para o estudo: quantitativo de publicações por ano; palavras-chaves; países das publicações. | |||
Fase 3 – Síntese | ||||
Consiste na elaboração de relatórios | Produção orientada pelo referencial teórico e pela experiência, sensibilidade, e intuição. | |||
Fase 4 – Escrita | ||||
Produção e difusão do conhecimento | Produção de podcast, resumo expandido e produção desse artigo. |
Fonte: Elaboração própria. Inspirada em Ferenhof e Fernandes (2016)
APRESENTAÇÃO E LEITURA DOS DADOS
Indicadores bibliométricos apontados no Quadro 2 – Portfólio do Estudo, revelam prevalência de autoria individual de mulheres, dado também observado na produção publicada no Banco de Teses e Dissertações da Capes (SANTOS; SILVA, 2020; SANTOS; SILVA, 2021), fato que sugere maior sensibilidade epistêmica das mulheres para discutir questões relacionadas à experiência de professoras e professores que transitam pelas fronteiras da sexualidade e do gênero.
Quadro 2: Portfólio do estudo
COOPER, Kathleen. Challenging Dominance in the Education Sector: Why Is It Important and How Can I Do It? Waikato Journal of Education, v. 22, n. 3, p. 87–97. Nova Zelandia, 2007. Disponível em: https://eric.ed.gov/?id=EJ1233269FERFOLJA, Tania; Stavrou, Efty. Workplace Experiences of Australian Lesbian and Gay Teachers: Findings from a National Survey. Canadian Journal of Educational Administration and Policy, Issue #173, November 9, Canadá, 2015. CUMMINGS, Martha Clark. "Someday This Pain Will Be Useful to You": Self-Disclosure and Lesbian and Gay Identity in the ESL Writing Classroom. Journal of Basic Writing, v. 28, n. 1, New York,2009. Disponível em: https://files.eric.ed.gov/fulltext/EJ851083.pdfJACKSON, Janna Marie. Reclaiming Queerness: Self, Identity, and the Research Process. Journal of Research Practice ,v. 3, Issue 1, Article M5, Canada, 2007. Disponível em: https://files.eric.ed.gov/fulltext/EJ800342.pdfJUUL, Thomas Patrick. Joining Gay and Lesbian Teacher Organizations: a Study of Members and Non-Members. New York, 1996, 16p. Paper presented at the Annual Meeting of the American Educational Research Association. Disponível em: https://eric.ed.gov/?id=ED397022JUUL, Thomas Patrick. Tenure, Civil Rights Laws, Inclusive Contracts, and Fear: legal Protection and the Lives of Self-Identified Lesbian, Gay Male, and Bisexual Public School Teachers. New York, 1994, 54p. Paper prepared for the Annual Meeting of the Northeastern Educational Research Association. Disponível em: https://eric.ed.gov/?id=ED377565KISSEN, Rita M. Voices from the Glass Closet: lesbian and Gay Teachers Talk about Their Lives. Atlanta, Estados Unidos, 1993, 25p. Paper presented at the Annual Meeting of the American Educational Research Association. Disponível em: https://eric.ed.gov/?id=ED363556LUGG, Catherine A. No Trespassing: U.S. Public Schools and the Border of Institutional Homophobia. Orlando, EUA,1997. 22p. Paper presented at the Annual Convention of the University Council for Educational Administration. Disponível em: https://eric.ed.gov/?id=ED429252MELILLO, Sandra M. Heteronormativity and Teaching: a Phenomenological Study of Lesbian Teachers. Chicago, EUA, 2003. 22p. Paper presented at the Annual Meeting of the American Educational Research Association. Disponível em: https://eric.ed.gov/?id=ED479173SNELBECKER, Karen Amy. Speaking Out: A Survey of Lesbian, Gay, and Bisexual Teachers of ESOL in the U.S. 164p.; Master's Thesis, School for International Training. Disponível em: https://eric.ed.gov/?id=ED375680. https://eric.ed.gov/?id=ED397022 |
Fonte: Dados primários. Todos os textos foram acessados em 01/05/2023
O número de publicações por década aponta estabilidade na produção nas décadas de 1990 e 2000, conforme Tabela 1, e a posição geopolítica da produção, conforme Tabela 2, aponta prevalência da produção norte-americana.
Tabela 1: Publicações por década
Década | Quantitativo |
1990 | 5 |
2000 | 5 |
Total | 10 |
Fonte: Dados primários
Tabela 2: Publicação por país
País | Frequência |
Estados Unidos | 7 |
Canadá | 1 |
Nova Zelândia | 1 |
Austrália | 1 |
Fonte: Dados primários
Tendo como referência os estudos de Santos e Silva (2020) e Souza e Silva (2021), que localizaram 1 (um) trabalho nos anos 90 e 6 (seis) nos anos 2000, a posição geopolítica e a estabilidade anual da produção internacional sugerem o Brasil como país emergente na produção e difusão de estudos sobre docência heterodissidente, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste. A tipologia dos trabalhos que constituem o portfólio da pesquisa, Quadro 1, compreende 1 (uma) dissertação (SNELBECKER, 1994), 4 (quatro) artigos publicados em periódicos (FERFOLJA; EFTY, 2015; CUMMINGS, 2009; COOPER, 2007; JACKSON, 2007) e 5 (cinco) trabalhos apresentados em encontros (MELILLO, 2003; LUGG, 1997; JUUL, 1994; 1995; KISSEN, 1993). A prevalência de trabalhos apresentados em eventos reflete a importância dos encontros acadêmicos e ativistas como importantes canais de difusão de conhecimento sobre a temática.
A EXPERIÊNCIA LÉSBICA REFLETIDA NOS ESTUDO
Assumindo os limites da nossa tradução da produção analisada, situamos a mesma no campo dos estudos gays, lésbicos e queer emergentes na academia norte-americana pós anos 60, com o estabelecimento de disciplinas, programas, centros, realização de congressos e outros encontros. Importante considerar que a emergência desse campo reflete e é refletida nos movimentos feministas, movimento Homófilo (The Homophile Movement) e Movimento de Liberação Gay (The Gay Liberation Movement) norte-americanos, que foram os propulsores de grande parte dos atuais movimentos feministas e LGBTQIA+ mundiais, com os quais este estudo se alinha politicamente na produção de políticas de visibilidade lésbica no campo da educação.
Na busca de resposta para as questões que norteiam este estudo, identificamos a homofobia na escola norte-americana como temática central dos estudos publicados na década de 90. De forma geral, as professoras lésbicas se encontram subsumidas nas categorias “homossexual”, “professor homossexual”, ou “professor queer”, vítimas de homofobia no ambiente de trabalho, e fora dele. A Discriminação, preconceito, silenciamento e outras violências vivenciadas por professoras lésbicas, gays e bissexuais norte-americanos atravessam as produções publicadas nos anos 2000, que em conjunto refletem a homofobia e a heteronormatividade.
Dentre os 5 estudos publicados nos anos 2000, vale destacar, quatro deles, de Sandra Melillo (2003), Janna Jackson (2007), Katheen Cooper (2007) e Marta Cummings (2009), focam exclusivamente a experiência de professoras lésbicas. Porém, nenhum dos estudos analisados identifica a experiência de violência sofrida pelas professoras lésbicas como lesbofobia, dado que não surpreende, considerando a pretensão de universalidade do termo homofobia.
De acordo com Borrilo (2010), o termo homofobia foi utilizado nos Estados Unidos pela primeira vez, em 1971, como uma manifestação arbitrária que consiste em designar o outro (homossexual) como contrário, inferior ou anormal. Na língua francesa o termo emerge com o mesmo sentido da década de 90. Desde então, a noção de Homofobia como discriminação contra os homossexuais, intolerância à homossexualidade tem sido amplamente difundida. Nessa perspectiva, como ressalta o autor, a homofobia é inconcebível sem que seja levada em conta a ordem sexual a partir da qual são organizadas as relações entre os sexos e a sexualidade.
O termo “Lesbofobia”, que emerge nos anos 90 tencionando o conceito de homofobia, não foi encontrado no conjunto dos trabalhos. A prevalência da noção de homofobia para refletir as experiências de violência sofrida pelas professoras lésbicas também é verificada na científica brasileira sobre professora lésbica, disponível no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, onde o termo “Homofobia” é citado 365 vezes, e o termo lesbofobia 25 (SANTOS; SILVA, 2021). No momento dessa escrita, uma busca pelo termo homofobia no mesmo Catálogo obteve 523 registros, e pelo termo lesbofobia o resultado apontou 27 registros. No Google, obtivemos aproximadamente 319.000 resultados em 0,52 segundos na busca com o termo lesbofobia, e 9.929.000 resultados em 0,55 segundos para o termo homofobia. Vale ressaltar que no Brasil, conforme Silva (2016), a noção de lesbofobia foi disseminada no início da década de 90 pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), através dos Boletins do Grupo publicados no período de 1993 a 1999, onde a palavra é usada sete vezes como uma “violência anti-lésbica”. O primeiro Boletim a divulgar uma lista de lésbicas assassinadas no Brasil usa a palavra lesbofobia três vezes com este sentido. A primeira vez que o vocábulo aparece é destacado entre aspas, possivelmente para chamar a atenção para o novo termo. Hoje, mais de 30 anos depois, o termo continua invisibilizado nas comunicações científicas e nas redes sociais.
Com as lentes de Rich (2019), essa invisibilidade é apreendida como epistemicídio, apagamento do conhecimento produzido pelas lésbicas através da negligência, ou não reconhecimento da existência lésbica, uma estratégia de manutenção da heterossexualidade compulsória, pensada por Rich como uma instituição política que retira o poder das mulheres. Nessa mirada, a heterossexualidade obrigatória, que exige e causa a invisibilidade das professoras lésbicas no local de trabalho, no campo científico e fora dele, está ligada às formas de produção capitalistas que fomentam a segregação por sexo na esfera do trabalho, impondo às mulheres posição social menos valorada da divisão do trabalho.
Complexificando a noção de heterossexualidade apresentada por Rich (2019), Wittig (2022) reconhece a heterossexualidade como um regime político que tem como objetivo analisar as formas como a heterossexualidade funciona, como uma norma social e política que mantém o controle em relação às identidades sexuais não-heterossexuais. Essa perspectiva sugere que a heterossexualidade é mais que uma orientação sexual individual, é uma construção social que é usada para manter as estruturas de poder em relação ao gênero e à sexualidade. Nessa perspectiva, a ausência do reconhecimento da lesbofobia nos trabalhos analisados reflete a hegemonia do paradigma da heterossexualidade na produção do conhecimento.
Questionar esse paradigma e romper com a invisibilidade lésbica tem sido um desafio para ativistas e pesquisadoras lésbicas brasileiras que reconhecem que nomear é ato político de fazer existir, uma forma inicial de apreensão de existências ou fenômenos escondidos, como afirmam as autoras Sinara Gumieri; Bruna Costa e Débora Dinis (2015). Nomear é fazer conhecer lançando luzes sobre um problema sociocultural disfarçado na indiferença. Com essa perspectiva, apreendemos e produzimos a nomeação da lesbianidade como ato político que tensiona o paradigma da heterossexualidade, expressando assim o reconhecimento de outros modos de viver a sexualidade fora da heteronorma.
A VIOLÊNCIA NOSSA DE CADA DIA REFLETIDA NA PRODUÇÃO INTERNACIONAL!
Alinhado à concepção de homofobia como uma doença, ódio ou aversão à homossexualidade, o estudo de Rita Kessen (1993) analisa os efeitos da homofobia na vida de professoras lésbicas e professores gays norte-americanos. De natureza narrativa, o estudo convida docentes homossexuais para refletir sobre a vida fora da norma da heterossexualidade, sobre o tornar-se professor gay e professora lésbica. Convida ainda para a reflexão sobre a vida na escola e as estratégias de sobrevivência no trabalho.
As narrativas refletidas pela autora articulam duas temáticas. A primeira envolve a autodefinição das pessoas entrevistadas como professora lésbica e professor gay e a interseção dessas identidades. A segunda foca o efeito prejudicial da homofobia em suas vidas diárias dentro e fora da sala de aula. O resultado da pesquisa aponta que, embora a autorrevelação (visibilidade) seja perigosa e assustadora, os custos de se esconder (invisibilidade) são maiores do que os custos da visibilidade. A maioria das entrevistadas tornou-se professora e professor antes de tornar-se lésbica ou gay. O dilema apontado nesse trabalho é como conciliar a nova identidade sexual com uma situação profissional que sempre pareceu perfeitamente segura e deixou de ser em função da homofobia quando a docência passou a ser atravessada pela homossexualidade.
Kessen (1993), que se anuncia educadora heterossexual, mãe de filha lésbica e ativista, conclui o estudo apontando a homofobia como uma doença que destrói a vida de milhares de estudantes e professores(as) americanos(as). Para ela, a ideia de que os próprios professores gays e professoras lésbicas devem assumir a responsabilidade por acabar com a homofobia é ultrajante.
Com a mesma perspectiva, o estudo de Juul (1994) afirma que a homofobia afasta professoras e professores qualificadas(os) e altamente talentosas(os) da profissão docente, e Karen Snelbecker (1994) ressalta que a homofobia no ambiente de trabalho tem um efeito profundo sobre o quão desconfortáveis as(os) docentes se sentem em ser quem são, do jeito que são, e o quanto se sentem inseguras(os) para falar de si.
O estudo de Juul (1996) tem o propósito de analisar sobre o papel que as organizações para professores homossexuais desempenham na vida de professores lésbicas, gays e bissexuais, bem como fornecer a essas organizações informações sobre como fortalecer seus membros. Reconhecendo que organizações dessa natureza têm um papel importante no enfrentamento e superação da homofobia no ambiente de trabalho, o autor considera que a participação de professores homossexuais nessas organizações torna seus membros mais propensos a se envolver em organizações de direitos civis homossexuais e menos propensos a negar a homossexualidade no ambiente de trabalho, consequentemente, sentem menos estresse no trabalho relacionado à sua sexualidade. Os resultados do estudo de Juul (1996) sugerem que a participação em tais organizações ajudou a prevenir e eliminar o esgotamento dos professores e professoras participantes da pesquisa no ambiente de trabalho.
Reconhecendo a importância da auto-organização de professores homossexuais, Catherine Lugg (1997) apresenta uma abordagem histórica da homossexualidade e da homofobia em escolas públicas dos Estados Unidos desde a década de 1970, quando o emergente movimento pelos direitos de gays e lésbicas, junto com a ascensão da nova direita religiosa, serviram para polarizar as políticas de educação pública. Nessa década, afirma a autora, muitos americanos sentiram-se profundamente incomodados com a autodeclaração da homossexualidade. Para os conservadores religiosos, esses anúncios (políticas de visibilidade) eram um indicativo de que a sociedade americana havia se afastado da moralidade tradicional.
Para Lugg (1997), atravessando a crença religiosa de que a homossexualidade é intrinsecamente pecaminosa, estava a crença que gays e lésbicas recrutavam crianças nas escolas “para o estilo de vida” homossexual. A autora afirma que embora as acusações de recrutamento fossem comprovadamente falsas, elas exerceram enorme influência na definição de políticas e procedimentos das escolas públicas dos Estados Unidos. Na perspectiva da autora, embora na sociedade americana tenham emergido vários grupos, coletivos, redes, movimentos que articulam politicamente os “anormais”, professores gays e professoras lésbicas continuavam profundamente enclausurados. Ainda de acordo com Lugg (1996), durante a década de 1980, a emergente epidemia de AIDS aumentou a consciência pública e a percepção crescente de que as escolas públicas seriam convocadas para o combate à epidemia. Nesse período, conforme Cummings (2009), assumir a homossexualidade na sala de aula e em outros lugares tornou-se uma questão de vida ou morte. O clima da época era de visibilidade, de orgulho de ser homossexual.
Todos devem sair do armário, não importa o quão difícil, não importa o quão doloroso. Todos nós devemos contar aos nossos pais. Todos devemos contar às nossas famílias. Todos devemos contar aos nossos amigos. Todos devemos contar aos nossos colegas de trabalho. [...] (CUMMINGS, 2009, p.73).
Refletindo sobre experiências de professoras lésbicas e professores gays, Lugg (1996) e Cummings (2009) consideram que apesar do slogan da época, “Silêncio = Morte”, professoras lésbicas e professores gays visíveis foram colocados em uma posição desconfortável. O clima permaneceu hostil para professoras lésbicas e gays que revelavam sua orientação sexual em uma classe de ensino fundamental, e o desemprego era o caminho mais provável. Nos anos 2000, apesar das conquistas dos movimentos LGBTQIA+ nos Estados Unidos, a realidade hostil vivenciada por professoras lésbicas e professores gays nos anos 90 não mudou.
Os valores da heteronormatividade, pensada como “[...] enquadramento de todas as relações – mesmo as supostamente inaceitáveis entre pessoas do mesmo sexo – em um binarismo de gênero que organiza suas práticas, atos e desejos a partir do modelo do casal heterossexual reprodutivo” (PINO, 2007, p.160), são largamente difundidos, fazendo com que a heterossexualidade pareça coerente e seja privilegiada. Nesse processo, como afirmam Mellino (2003) e Cooper (2007), a heteronormatividade impacta a percepção de uma professora lésbica sobre seu estilo de ensino, afetando tanto o seu jeito próprio de ensinar, quanto a escolha do conteúdo ensinado. Consequentemente, a heteronormatividade estrutura o currículo ensinado.
Conforme Mellino (2003), na maioria das escolas americanas uma lésbica não faz parte de uma minoria. Ela nem merece ser mencionada em uma discussão sobre diversidade, porque ela não é percebida como “normal”. Essa autora reflete que para uma professora lésbica obter sucesso pessoal e profissional ela passa por um processo constituído por quatro etapas (autorreconhecimento da orientação sexual; nomear-se lésbica; assumir-se lésbica para outras lésbicas e assumir-se lésbicas para outras pessoas).
Analisando esse processo na vida das suas entrevistadas, Mellino (2003) afirma que a aceitação pessoal de ser lésbica, compartilhada com o reconhecimento, ao invés de conformidade ou desafio da hegemonia cultural, pode permitir que a professora lésbica aprimore seu currículo para caracterizar todas as pessoas e criar um clima de sala de aula que promova a compreensão e até mesmo gerar mudança social entre colegas, pais e alunos, em processo contínuo, uma pessoa de cada vez.
Nas escolas da Nova Zelândia, conforme Cooper (2007), que foca as experiências de quatro professoras lésbicas localizadas na área urbana do país, independente dos riscos envolvidos, desafiar a heteronormatividade era uma prioridade para as professoras participantes da pesquisa. Não sem medo ou desconforto, afirma a autora, as professoras pesquisadas desafiavam e perturbavam o domínio da heteronormatividade de diferentes formas, dentre elas referindo-se às estruturas familiares para iniciar conversas referentes à diversidade sexual, e sobre a aceitação de Famílias Arco-Íris, que não se encaixam no modelo heterossexual.
Assim, interrompendo os discursos reguladores da sexualidade em seus espaços de trabalho, produzindo outros discursos, evidenciando outras existências fora da heterossexualidade, as professoras ajudavam os outros a ver e a respeitar as diferenças, a ver e compreender as diferenças como elas são, sem transformá-las em desigualdades Cooper (2007) considera que, se mais professoras lésbicas e professores gays estivessem dispostos a desafiar a dominação heteronormativa, haveria menos riscos de precisarem se defender no ambiente de trabalho.
Nessa perspectiva, uma abordagem coletiva de professoras lésbicas e professores gays para desafiar a heteronormatividade na escola beneficiaria tanto os colegas, potencializando o engajamento político dos mesmos, quanto as crianças, considerando que para estas em ambientes de Educação Infantil, ver as diferentes maneiras pelas quais as pessoas formam identidades é uma das formas pelas quais as mesmas podem ser alertadas sobre novas maneiras de expressar suas próprias identidades.
Anunciando-se lésbica, desafiando assim a heteronormatividade, Jackson (2007), explora alguns dos desafios e benefícios de fazer uma dissertação com participantes de uma população lésbica, sobre professora lésbica, um tema que é considerado polêmico. Narrando sua experiência de pesquisa, a autora reflete as violências por ela sofrida por ser lésbica e como essas violências afetaram sua escolha pela temática. Apesar das dificuldades apresentadas no processo, a autora conclui que se não estudarmos a nós mesmos, nossas histórias serão contadas apenas por outros, ou pior, nunca serão contadas. Nessa perspectiva, a auto narrativa de uma autora lésbica, por si, é um enfrentamento à heteronormatividade.
A narrativa autobiográfica de Marta Cummings (2009) reflete sua experiência como professora lésbica em uma faculdade comunitária urbana. Diante do dilema de trazer seu “eu autêntico para o ensino”, revelando-se lésbica e refletindo sobre isso com estudantes em sala de aula, a autora narra que quanto mais considerava a possibilidade de assumir sua lesbianidade para os alunos, mais hesitante ela se sentia. Sua decisão foi então não revelar sua orientação sexual para sua turma, mas trabalhar em sala de aula um romance, cujo protagonista era gay e parecia questionar sua orientação sexual. A expectativa de Cummings (2009) era que os(as) estudantes reconhecessem o dilema do protagonista como uma questão importante no romance e, possivelmente, em suas próprias vidas. Também era sua expectativa, a partir desse reconhecimento, revelar sua identidade sexual para a turma. Mas isso não aconteceu. A autora avalia que a leitura e o debate sobre o livro tiveram um impacto nas atitudes sociossexuais dos(as) estudantes, pois essa atividade em sala de aula possibilitou aos alunos e alunas entenderem que a homofobia afeta a todos, e oportunizou a ela aprender que estar pedagogicamente preparada para lidar com questões de orientação sexual e homofobia, por meio da criação de aulas que envolvam criticamente os(as) estudantes, pode fazer com que a experiência de ensinar seja mais leve. O que estava em questão para a autora não era manter ou não a sua sexualidade em segredo, mas refletir até que ponto seus próprios insights e dilemas sobre negociações da identidade sexual estão influenciando a turma, ajudando cada estudante a resolver seus próprios dilemas.
Reconhecendo que a literatura, australiana e internacional, continua apontando o heterossexismo institucional e a homofobia prevalecente nas instituições de ensino que servem para minar e marginalizar subjetividades e comportamentos não heterossexuais, o estudo de Ferfolja e Stavrou (2015) relata uma pesquisa que examinou as experiências de professoras lésbicas e gays que se autodeclaram heterodissidentes, trabalhando em vários tipos de escolas e sistemas escolares em toda a Austrália. O estudo explora as experiências dessas professoras e professores sobre sua sexualidade em relação aos fatores associados à capacitação ou desativação de uma cultura e clima queer-positivos no local de trabalho. Os resultados da pesquisa sugerem que embora os discursos socioculturais mais amplos tenham cada vez mais aceitado e até celebrado a diversidade sexual na Austrália, resultando em uma mudança concomitante que melhorou alguns contextos de emprego para professores gays e professoras lésbicas, muitos locais de trabalhos escolares continuam a produzir desafios para as pessoas LGBTQ.
Os desafios referidos por Ferfolja e Stavrou (2015), que passam pelo enfrentamento e superação da violência interseccional, de gênero e sexualidade, estão refletidos em todos os trabalhos analisados neste estudo, fato que sugere que não há local de trabalho seguro para professoras lésbicas visíveis, nos Estados Unidos, no Canadá, na Nova Zelândia, na Austrália, no Brasil. Da mesma forma, sugerem que para as professoras lésbicas invisíveis não há existência segura.
Viver como uma professora lésbica é, portanto, um desafio, ato de resistência. Porém, apesar da invisibilidade e de outras expressões da lesbofobia não nomeada, mas vivida a cada dia, fato que torna precária a existência lésbica nos espaços de educação, os estudos apontam rastros de resistência, sugerindo que professoras lésbicas promovem movimentos que rasuram as normas e potencializam a produção e a sustentação de novas percepções curriculistas de modo a fomentar escrituras curriculares que questionam e se opõem a hierarquias epistemológicas dominantes.
Dessa forma, reconhecemos que as professoras lésbicas refletidas nos estudos como autoras ou colaboradoras – pesquisadoras ou sujeitas das pesquisas - estão promovendo a visibilidade lésbica no ambiente de trabalho, lesbianizando a educação e a produção de conhecimento.
Lesbianizar a ciência é ato político de questionamento do saber instituído, é ato/criação de um pensar/produzir conhecimento desde o lugar da outra de si mesma, isto é, do lugar da lésbica, alguém que escapou do segundo sexo, uma pessoa de um terceiro tipo. Essa perspectiva tenciona o paradigma da igualdade, nega o sistema binário que fomenta a produção do conhecimento e amplia as possibilidades de ser do humano, pois se há pessoa de um terceiro tipo, haverá de ter tantos outros. Assim sendo, para lesbianizar a ciência faz-se necessário o reconhecimento de que as lésbicas não pertencem todas ao segundo sexo, de que não são todas mulheres (SILVA; ARAÚJO, 2013, p. 255-256).
Como afirma Silva (2016), lesbianizar é gerar pensamento e movimento para nomear, entender e explicar a heterossexualidade como um regime político que estrutura a sociedade e elege a heterossexualidade como única expressão possível da sexualidade humana; é nomear e valorizar a existência lésbica reconhecendo outras expressões da sexualidade humana; é desnaturalizar e desnormatizar a sexualidade. Lesbianizar é transgredir a ordem heterossexual, é reconhecer que as lésbicas e outros corpos heterodissidentes estão à margem do sistema econômico, político e social da heterossexualidade. Lesbianizar é gerar pensamento e movimento que reconhecem e promovam a autonomia das lésbicas; é reconhecer e valorar a diversidade que embeleza a vida.
Silva (2016) também considera que para lesbianizar é preciso racializar, reiterar a raça como eixo que constitui conforme o gênero, a sexualidade, a vida. É preciso radicalizar o pensamento e a ação na construção de um projeto de sociedade pautado pelos direitos humanos e justiça social. Lesbianizar e racializar é, sobretudo, atitude política. Na mesma perspectiva, Santos (2021, p. 46) ressalta que é preciso potencializar outras lentes, que sejam capazes de enxergar para além das categorias homogeneizante e interseccionar com um olhar complexo para outros eixos opressores que atravessam a vida.
[...] para pensar de forma transversal e desestabilizar sistemas de poder hegemônicos, como também minar as estruturas sociais desiguais é necessário recorrer a mecanismos e categorias políticas que rompam com as normas vigentes, pois essa postura nos exige um compromisso ético para que não tornemos o uso da interseccionalidade de forma esvaziada e distante das justiças sociais, que são de fato as origens e o caminho possível para que essa teoria possa agir em torno das reais e necessárias transformações.
A interseccionalidade é um princípio fundamental nas investigações feministas (SILVA, 2017), pois permite a compreensão, a construção das identidades por meio dos discursos, códigos e representações que estabelecem hierarquias e atribui significados aos corpos.
Apesar da importância do olhar interseccional para a pesquisa, sobretudo nas pesquisas que tratam da condição das mulheres negras, lésbicas e outros grupos marginalizados, onde se faz necessário explorar os diferentes significados e práticas acumuladas na vida dessas pessoas, os trabalhos analisados não acessam essa chave interpretativa. Esse fato não surpreende, considerando que a interseccionalidade como categoria política, teórica e metodológica foi produzida por mulheres negras e amplamente difundida nos Estados Unidos, e no Brasil, a partir dos anos 2000. Porém, considerando que a noção de interseccionalidade foi produzida por lésbicas e mulheres nos anos 70, esse fato também sugere injustiça epistêmica, supressão, apagamento de conhecimentos, saberes e formas de conhecimento dos grupos estigmatizados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lesbianizando e racializando a ciência desde a ginga feminista, este estudo apresenta um panorama dos estudos sobre professoras lésbicas, disponíveis na Base ERIC, cumprindo o seu propósito de refletir experiências de professoras lésbicas tratadas nas produções internacionais. Trazendo o pensamento lésbico para o centro da análise, cumpre ainda seu desafio político de tensionar o paradigma da heterossexualidade, como nos impele Adriane Rich (2019) , Monique Wittig (2022), Ochy Curiel (2013).; Jules Falquet (2006); Angela Lorenzo (2012), Daniela Auad e Camila Roseno (2021); Gersier Santos (2021), dentre outras autoras lésbicas com quem dialogamos nessa produção, tendo como base de análise as comunicações científicas brasileiras sobre professoras lésbicas, disponíveis na Banco de Teses e Dissertações da CAPES, a subjetividade lésbica e o referencial teórico apresentado.
O quantitativo de textos localizados na Base ERIC, levando em conta que esta é a maior e a mais importante base de dados no campo da educação, é revelador do complô do silêncio – injustiça epistêmica – em torno da existência lésbica no campo da educação e da lesbofobia vivenciada pelas professoras lésbicas no ambiente de trabalho.
A análise apresentada aponta que professoras lésbicas estão nas escolas, nas universidades, em outros espaços de educação. E, onde quer que estejam, estão vivenciando diferentes expressões da lesbofobia. Mas, não são vítimas passivas. De diferentes formas e intensidade, estão lesbianizando o local de trabalho e a vida, produzindo políticas de informação que colocam em questão a heterossexualidade obrigatória, evidenciando assim a existência de outros modos de existir e viver a sexualidade.
Desde a experiência, concreta e subjetiva, o estudo revela diferentes modos de ser professora lésbica e sugere que professoras lésbicas fazem da experiência de vida como lésbicas um aprendizado, um conhecimento para a vida, sobretudo para o enfrentamento e superação da lesbofobia vivenciada a cada dia. Concordando com Maciel (2014), o estudo reconhece ainda que uma das bases da relação pedagógica estabelecidas pelas professoras lésbicas é constituída na singularidade da experiência lésbica. Isso significa, como bem pontua Maciel (2014, p. 130), que “A vida lésbica”, é, para professoras lésbicas, um campo de saber. Um campo do qual retiram algumas verdades e regras de conduta para consigo e para com os outros.
Dessa forma, professoras lésbicas reconfiguram modos de pensar a educação, e a vida. Mas, é preciso considerar que os efeitos da negação da existência lésbica no local de trabalho têm longo alcance. Podem afetar a identidade, os relacionamentos, a saúde emocional e física, além de comprometer o desempenho profissional.
Assim, consideramos que é urgente políticas educacionais de enfrentamento à lesbofobia, e a todas as formas de violência nas escolas e nas universidades. É preciso, sobretudo, políticas de informação (visibilidade) que promovam o respeito e valorização da diferença como estratégia de enfrentamento à injustiça epistêmica.
A prevalência de estudos disponíveis na Base Eric e no Banco de Teses e Dissertações da Capes, que focam a experiência de professoras lésbicas na educação básica, nos impele a seguir questionando em que raios de silêncio, solidão e obscuridade se encontram as professoras lésbicas em exercício no ensino superior? Como essas profissionais constroem suas subjetividades e negociam sua sexualidade em relação aos contextos sociais em que estão inseridas? A experiência da lesbianidade produz conhecimentos éticos sobre si, saberes próprios e/ou particulares, que atravessam a prática pedagógica no ensino superior?
Com essas e outras inquietações, finalizamos essa etapa do estágio pós-doutoral espalhando sementes (BERENGUER, 206, p. 3), fragmentos do pensamento lésbico.
Espalhando Sementes
Juntas, somos duas e, enquanto eles nos atiram pedras ou palavras duras,
Semeamos nosso amor e colhemos ternura.
Assim, quem sabe um dia juntem-se a nós mais duas mulheres, que semeiam,
mais dez mulheres, que plantam,
mais cem mulheres, que colhem.
Então, em breve esta semente vire cidade,
esta cidade, vire estado,
este estado, vire país,
este país, vire continente.
Uma corrente pelo mundo, de mulheres que amam mulheres,
jogando sementes,
colheitas inteiras de amor se espalhando pelos canteiros do mundo
REFERÊNCIAS
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