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NEOLIBERALISMO E EDUCAÇÃO NA ATUAÇÃO DOS THINK TANKS
NEOLIBERALISM AND EDUCATION IN THE PERFORMANCE OF THINK TANKS
NEOLIBERALISMO Y EDUCACIÓN EN EL DESEMPEÑO DE LOS THINK TANKS
Linguagens, Educação e Sociedade
Universidade Federal do Piauí, Brasil
ISSN: 1518-0743
ISSN-e: 2526-8449
Periodicidade: Trimestral
vol. 27, núm. 53, 2023
Recepção: 02 Novembro 2022
Aprovação: 04 Janeiro 2023
Publicado: 24 Março 2023
Resumo: Este trabalho apresenta os resultados de um estudo teórico e revisão de literatura sobre a organização e disseminação de think tanks com atuação em âmbito internacional e sua atuação no direcionamento dos rumos da educação pública brasileira. Para tanto, definimos os seguintes objetivos de pesquisa: situar as políticas neoliberais no âmbito das medidas de ajustes da crise estrutural do capital; caracterizar o movimento de expansão de think tanks; e compreender a atuação dos think tanks no processo de propagação do pensamento neoliberal e seus impactos no campo educacional. Apesar de não haver um consenso estabelecido sobre a definição do que vêm a ser essas instituições, os think tanks têm sido apresentados como as instituições que mais exercem influência no cenário político global, seja em nível interno ou externo. Trata-se de estruturas bastante complexas, organizadas e abrangentes, chegando a ser reconhecidas como tanques de ideias. No que se refere aos pressupostos teórico-metodológicos utilizados para realização deste trabalho, é importante enfatizar que adotamos como base o Materialismo Histórico e Dialético, por entendermos que essa perspectiva nos fornece os fundamentos necessários para compreendermos a relação capital e trabalho, bem como suas reverberações no sistema educacional.
Palavras-chave: Think tanks, Educação, Crise estrutural do capital, Neoliberalismo.
Abstract: This work presents the results of a theoretical study and literature review on the organization and dissemination of think tanks operating internationally and their role in directing the direction of Brazilian public education. To this end, we defined the following research objectives: to situate neoliberal policies within the scope of adjustment measures for the structural crisis of capital; to characterize the expansion movement of think tanks; and understand the role of think tanks in the process of propagating neoliberal thinking and its impacts on the educational field. Although there is no established consensus on the definition of what these institutions are, think tanks have been presented as the institutions that most influence the global political scenario, whether internally or externally. These are quite complex, organized and comprehensive structures, coming to be recognized as tanks of ideas. With regard to the theoretical-methodological assumptions used to carry out this work, it is important to emphasize that we adopted Historical and Dialectical Materialism as a basis, as we understand that this perspective provides us with the necessary foundations to understand the relationship between capital and work, as well as its reverberations. in the educational system.
Keywords: Think tanks, Education, Structural crisis of capital, neoliberalism.
Resumen: Este trabajo presenta los resultados de un estudio teórico y una revisión de la literatura sobre la organización y difusión de los think tanks que operan internacionalmente y su papel en la dirección de la educación pública brasileña. Para ello, definimos los siguientes objetivos de investigación: situar las políticas neoliberales en el ámbito de las medidas de ajuste a la crisis estructural del capital; caracterizar el movimiento de expansión de los think tanks; y comprender el papel de los think tanks en el proceso de propagación del pensamiento neoliberal y sus impactos en el campo educativo. Si bien no existe un consenso establecido sobre la definición de lo que son estas instituciones, los think tanks se han presentado como las instituciones que más inciden en el escenario político mundial, ya sea interna o externamente. Estas son estructuras bastante complejas, organizadas y comprensivas, llegando a ser reconocidas como tanques de ideas. En cuanto a los presupuestos teórico-metodológicos utilizados para la realización de este trabajo, es importante destacar que adoptamos como base el Materialismo Histórico y Dialéctico, pues entendemos que esta perspectiva nos brinda los fundamentos necesarios para comprender la relación entre capital y trabajo, así como sus repercusiones en el sistema educativo.
Palabras clave: Think tanks, Educación, Crisis estructural del capital, Neoliberalismo..
INTRODUÇÃO
Para compreendemos a gênese ontológica do nosso problema de pesquisa, que está relacionado à implementação de políticas educacionais de caráter empresarial e teor neoliberal, buscamos inicialmente realizar um estudo teórico sobre a crise estrutural do capital com base em Mészáros (2011). Isso nos permitiu entender o neoliberalismo como política de ajuste do capital em crise.
Elaboramos, ainda, uma criteriosa revisão de literatura acerca da organização e atuação dos think tanks a nível nacional e internacional, buscando elucidar suas relações com a atuação social de grandes corporações empresariais, sobretudo no âmbito da educação. Dentre os principais autores, destacamos as contribuições de Torres (2019), Mendes (2019) e Caetano e Mendes (2020).
Por fim, reforçamos a importância da apropriação teórico-metodológica para o desenvolvimento de todas as etapas da pesquisa. Desse modo, o estudo teórico seguiu durante todo o processo, e os procedimentos metodológicos foram norteados pelos postulados do Materialismo Histórico e Dialético, quais sejam: historicidade, movimento das categorias, contradição e relação entre singularidade, particularidade e universalidade.
Como forma de organização didática, dividimos nossa exposição em duas etapas. Na primeira, explicamos o que são os think tanks e mapeamos seu processo de expansão e organização; na segunda, apresentamos as reverberações decorrentes da atuação desses organismos na condução do sistema educacional brasileiro.
A ATUAÇÃO DOS THINK TANKS EM DEFESA DO CAPITAL EM CRISE
Os think tanks têm sido apresentados como as instituições que mais exercem influência no cenário político global, seja em nível interno ou externo, embora, segundo Costa (2017), o número de produções e publicações sobre a temática ainda seja muito tímida. Apesar de não haver um consenso estabelecido sobre a definição do que vêm a ser essas instituições, faremos uso do conceito cunhado por McGann (2005), pois ele e sua equipe são os responsáveis por elaborar anualmente um ranking com os think tanks mais influentes do mundo, de modo que acabam por indicar o que é e o que não é think tank.
Think tanks ou instituições de pesquisa, análise e envolvimento de políticas públicas são organizações que geram pesquisa orientada a políticas, análise e conselhos sobre questões domésticas e internacionais, em um esforço para permitir formuladores de políticas e o público a tomar decisões informadas sobre questões de política. Think tanks podem ser afiliados a partidos políticos, governos, grupos de interesse ou empresas privadas ou constituídos como organizações não governamentais independentes (ONGs) (McGANN apud PINHEIRO, 2019, p. 64).
Como podemos observar, trata-se de uma estrutura bastante complexa, organizada e abrangente, que vem se consolidando devido a uma longa trajetória iniciada ainda no século XX. De acordo com Pinheiro (2019), esse termo surgiu nos USA, no contexto da Segunda Guerra Mundial, como uma gíria militar, cuja tradução literal seria “tanques de pensamento”, termo utilizado a partir de então para nomear instituições que já existiam bem antes dessa terminologia ser elaborada.
Até os anos 1970, o número dessas instituições nos USA ampliou-se significativamente, passando das 12 existentes durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) para 400. O reconhecimento desses centros chegou a ser destaque no Brasil numa matéria da Folha de São Paulo, de 26/02/1968, intitulada “Tanques de ideias resolvem problemas”, em que era destacado o alto nível da tecnologia empregada nas atividades desses institutos (PINHEIRO, 2019). Segundo esse veículo de informação,
Governar uma nação como os Estados Unidos não é tarefa fácil. E dirigir uma indústria ou um negócio num mundo cada vez mais estonteante no ritmo das mudanças tecnológicas, exige um constante afluxo de novas ideias e novos métodos. (...) Para ajudar o homem moderno a medir-se com as civilizações que ele criou, surgiu nos Estados Unidos, formidável número e notável variedade de instituições independentes de pesquisa, comumente chamadas de ‘tanques de ideias’, dedicadas a criar ideias e disseminar informações (FOLHA DE SP, 26/02/1968, p.06, 2º Caderno apud PINHEIRO, 2019).
A primeira obra publicada no Brasil sobre o tema refere-se à tradução do livro do jornalista Paul Dickson, intitulado “Centrais de ideias: think tanks”, em 1975, que em suas palavras dizia respeito a “fábricas que não poluem o ar com fumaça, nem sujam as águas com resíduos industriais” (DICKSON apud PINHEIRO, 2019, p. 41). As próximas produções, segundo Pinheiro (2019), são três trabalhos de Maria Rita Loureiro Durand, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e datam de 1997. Depois disso, apenas em 2003 tem início uma produção brasileira sobre o tema, cujo marco é a tese de doutorado de Denise Gros, uma das mais importantes referências brasileiras sobre essa questão. Segundo essa pesquisadora, as primeiras produções estavam circunscritas às áreas de ciências sociais e história. Somente em 2006 surgem as primeiras produções na área de relações internacionais, e em 2008 a primeira publicação na área da educação.
Importa saber que existem think tanks nos formatos mais variados, desde os mais conservadores, vinculados a instituições religiosas, até os ditos progressistas, comprometidos com as causas do meio ambiente e outras questões de cunho social. Em geral, autointitulam-se sem fins lucrativos, entretanto, conservam como elemento comum o fato de estarem comprometidos com o pensamento liberal, estando posicionados mais à direita ou mais à esquerda na arena política.
Para compreendermos como vem se dando a atuação dos think tanks no Brasil, é preciso entender o processo de estruturação de grandes empresas em forma de institutos e fundações amplamente comprometidas com o Capital. Conforme Teixeira (2011), entre os autores que estudam essa temática, é mais comum haver certo consenso sobre o papel desempenhado pelos think tanks do que sobre uma definição precisa do que de fato representam. Nesse sentido, é importante frisar que dentre suas funções estão o fato de agirem
(...) filtrando informações, identificando questões políticas e apontando soluções com mais rapidez do que os burocratas normalmente conseguem; atuarem como mediadores entre governo, formadores de opinião e mundo acadêmico; ser uma voz independente nos debates; elaborar e avaliar programas e políticas públicas; interpretar os acontecimentos para os veículos de comunicação; mastigar complexas questões internacionais e econômicas para o público leigo (TEIXEIRA, 2011, p. 136).
São instituições engajadas na produção de conteúdos elaborados por meio de pesquisas e com ampla divulgação, visando influenciar as instâncias de decisão no âmbito das políticas de Estado. Nesse sentido, realizam uma militância ideológica, com uma produção teórica voltada para questões de amplo interesse social, além de exercerem influência sobre grandes veículos de comunicação. Em sua maioria, estão dedicadas às bandeiras do neoliberalismo, ou seja, à defesa da privatização dos serviços públicos, da meritocracia, da flexibilização das leis trabalhistas, da lógica do mercado em todas as instâncias da vida social.
Gros (2004) explica a expansão do pensamento neoliberal no Brasil atrelada à ação do Instituto Liberal, que se trata de uma rede, com sede em várias capitais do Brasil. É um dos mais influentes think tanks brasileiros, implantado em 1983 e denominado desde 2004 de Instituto Liberdade. Suas ações abrangem, por um lado, a atuação político-ideológica voltada para as elites, “especialmente aqueles segmentos considerados formadores de opinião – universitários, jornalísticos, políticos, militares, jurídicos e intelectuais em geral” (GROS, 2004, p. 145), e, por outro, a dedicação em formular políticas públicas de caráter neoliberal.
Como produto dessas ações, tem-se a tradução e publicação de diversos livros de pensadores neoliberais, desde os clássicos, como Hayek e Ludwig Von Mises, até autores mais modernos, representantes da Escola de Chicago e de Virgínia, bem como de autores brasileiros fiéis aos preceitos do neoliberalismo (GROS, 2004).
Não se trata apenas de modelar o pensamento e manipular a opinião pública, é mais do que isso. Conforme Pinheiro (2019, p. 60), o próprio papel dos think tanks sofreu modificação na virada do século XXI, de modo que “os investimentos agressivos em publicidade fizeram com que, além de ideias, tentem cooptar emoções através de mensagens que cativem o público a defender com eles suas causas”.
Esse caráter de trabalho dito sem fins lucrativos, bem como a suposta disposição para buscar soluções para problemas globais, como os relacionados ao meio ambiente, saúde e educação, por exemplo, dentre outros aspectos, acabam por legitimar sua atuação social e respaldar seu trânsito na grande mídia. Além disso, são organizações rigorosamente paramentadas com suporte tecnológico, pessoal qualificado, grande volume de recursos financeiros e fortes parcerias. Esses elementos contribuem diretamente para o processo de disseminação de ideias que lhes conferem as condições necessárias para pressionar tanto o poder judiciário quanto o legislativo (CAETANO; MENDES, 2020).
O fato de muitos fazerem questão de explicitar que não estão vinculados a partidos políticos e reclamarem para si uma posição de suposta neutralidade, confere a essas organizações uma liberdade e a possibilidade de atuar no interior dos governos, sendo eles mais de esquerda ou de direita. Para além das eleições, continuam a apresentar e disseminar suas propostas com o fim de garantir a conservação da lógica e dos interesses do grande capital, ao tempo em que fazem o discurso da democracia e da defesa dos interesses da sociedade (CAETANO; MENDES, 2020).
A atuação dos think tanks é ampla e ordenada e abarca os cinco continentes. Conforme Caetano e Mendes (2020), a Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos da América, tem feito relatórios anuais acerca da atuação dessas instituições, com o objetivo de identificar quais as mais influentes no mundo. Os dados apontam que existem think tanks em efetiva atividade em 80 países, com crescimento sistemático nos últimos anos. Como afirmamos anteriormente, não se trata de algo novo. Dentre os mais influentes nos Estados Unidos, com atuação em diversos países, temos o Instituto Brookings, em funcionamento desde 1916, e a Rand Corporation, criada em 1948.
Outra importante instituição dessa natureza, fundadas nos USA, é a Atlas Network, que em 2013 teve uma receita de 11.459 milhões de dólares, tendo sido destinados 6 milhões para investimento em outros países, dos quais 596 mil dólares foram aplicados na América do Sul. Podemos destacar, ainda, a Studenty for Liberty, cuja atuação está voltada essencialmente para os jovens, com influência em diversos países (AMARAL, 2019).
O relatório da Universidade da Pensilvânia, datado de 2018, aponta a existência de 8.248 instituições desse tipo espalhadas nos cinco continentes, distribuídas da seguinte forma:
Região | Quantidade |
América do Norte | 2.058 |
América do Sul e Central | 1.023 |
África Subsaariana | 612 |
Europa | 2.219 |
Leste e norte da África | 507 |
Ásia | 1.829 |
TOTAL ................................ | 8.248 |
O mesmo relatório indica que na América Latina o país que tem o maior número de think tanks é a Argentina, com um total de 227, seguida do Brasil, com 103, e do México, com 86, todos eles com intensa atuação e mobilização de grandes quantias de dinheiro (CAETANO; MENDES, 2020). Um dos mais antigos think tanks do Brasil, considerado o mais importante da América Latina, é a Fundação Getúlio Vargas (FGV), instalada em 1940, embora tenha utilizado essa expressão para se autodenominar apenas em 2008. É uma instituição de expressiva atividade formativa na área da administração e com forte influência tanto nas instâncias governamentais quanto na grande mídia.
Em 2006, foi lançado oficialmente no Fórum da Liberdade o principal think tank da direita no Brasil, o Instituto Millenium. Seus mantenedores são a Gerdau, a Editora Abril, a Pottencial Seguradora, uma das empresas de Salim Mattar, a Localiza, a Suzano, o Bank of American Merrill Lynch e o grupo Évora (AMARAL, 2019).
Em 2010 surge o movimento estudantil denominado Estudantes Pela Liberdade (EPL), uma versão brasileira do Students for Liberty, que criou o MBL em Minas Gerais. A rede de think tanks liberais e liberalistas (como preferem ser denominados) no Brasil conta ainda com o Instituto Ordem Livre, que realiza seminários para a juventude, e o Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista, do Rio de Janeiro. Todos eles ligados à estadunidense Atlas Network (AMARAL, 2019).
Para compreendermos o processo de instalação dos think tanks no Brasil, trazemos a importante contribuição de Torres (2019), que ao analisar a mudança na atuação empresarial a partir dos anos 2000, constatou que o foco foi deslocado da filantropia para a Responsabilidade Social Empresarial. Com isso, começamos a testemunhar o protagonismo das empresas no que se refere à questão social.
O autor examina a atuação de grandes corporações empresariais organizadas em forma de associações e institutos, cuja finalidade é intervir no âmbito social por meio de investimentos em áreas estratégicas, como meio ambiente, saúde, assistência social e educação.
Os primeiros traços das empresas que realizam esse tipo de investimento são, geralmente, constituir-se como empresa corporativa de grande porte, presente nos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, com forte atuação no campo cultural, tendo por finalidade influenciar diretamente no arrefecimento da luta de classes. A esse respeito, afirma:
[...] Trata-se da condensação das funções de direção e dominação de classe. As corporações orgânicas do capital, portanto, têm importante papel na organização dos conhecimentos necessários para o empreendimento da RSE por parte do empresariado, ao agregar diferentes corporações capitalistas que atuam em diferentes atividades, procuram superar o terreno dos interesses (corporativos) ao organizarem o terreno da cultura (universal burguesa) (TORRES, 2012, p. 36).
Torres (2019) entende como corporação orgânica do capital a instituição que congrega diferentes corporações e unidades empresariais, de variados tamanhos e segmentos de atuação, podendo ser institutos independentes, fundações, ONG’s e consultorias. Essas corporações desenvolvem o papel de assessoria, pesquisa e aparelhamento desse grupo de associados por meio da Responsabilidade Social Empresarial (RSE), no sentido de construir uma unidade de intervenção social ao assumirem uma espécie de papel diretivo, independente da competitividade travada no mercado de vendas.
Essas corporações ocupam um lugar privilegiado no campo econômico, visto que, ao agregarem diferentes instituições capitalistas de diversas áreas, organizam uma consciência social do empresariado no sentido de buscar hegemonia burguesa. Assumem também um lugar privilegiado ao exercerem importante função na organização dos conhecimentos necessários para o empreendimento da Responsabilidade Social Empresarial (RSE), visando orientar a gestão social das empresas e sua cultura organizacional. Além disso, o autor destaca ainda que essas corporações procuram organizar as políticas governamentais de acordo com suas diretrizes de dominação e expansão. Alcançam uma grande inserção no âmbito social, pois disseminam a ideia de que desenvolvem ações voluntárias, comprometidas com os valores éticos e o bem da sociedade para além do aspecto econômico.
O autor concentrou sua análise em duas grandes associações que ele denomina de corporações orgânica do capital com forte atuação no Brasil, que são o Grupo de Institutos e Fundações Empresariais – GIFE e a Comunitas. A GIFE foi a primeira associação na América do Sul a juntar empresas, institutos e fundações que atuam com investimento social privado, fundada em 1995 período em que tem início a ênfase na Responsabilidade Social Empresarial - RSE e a expansão do dito terceiro setor. Inicialmente a fundação contava apenas com 25 organizações parceiras e em 2011 já possuía 133 colaboradores, com significativo investimento na área social, sobretudo, direcionado para a juventude. Trata-se de um investimento social que busca se afastar da perspectiva filantrópica que durante muito tempo permeou o meio empresarial. Compõem a GIFE grandes empresas com atuação nos mais diversos ramos, dentre ela: Fundação Bradesco, Banco do Brasil, Boticário, Nestlé e Carrefour.
A outra corporação orgânica do capital analisada por Torres (2019) é a Comunitas, fundada em 2000, cujo foco é a realização de parcerias para o desenvolvimento social. É uma das organizações da RedeSol, sediada no centro Ruth Cardoso que tem como um dos principais pilares a alfabetização Solidária, no qual estimula a parceria em rede de empresas, ONGs, fundações, entre outras organizações do suposto terceiro setor. Possui parceria com diferentes grupos empresariais que atuam em diversos ramos, no qual estão bancos e corporações de investimentos financeiros e de seguros, ramo de engenharia, construção civil e mercado imobiliário (TORRES, 2019).
O autor aponta outras organizações que atuam no campo da Responsabilidade Social Empresarial (RSE), dentre elas o ETHOS, que foi um dos mais influentes no campo da RSE, e conta com mais de 1.429 empresas associadas, que em 1999 se uniu a GIFI para não concorrerem entre si e passaram a diferenciar o Investimento social privado (ISP) da Responsabilidade Social Empresarial (RSE). O primeiro compõe os repasses de recursos privados para fins públicos, nos quais aplicam em programas sociais, culturais e ambientais, enquanto o segundo se refere a uma ampliação do primeiro, com maior abrangência da ação empresarial, de modo que, coube a ETHOS o fortalecimento e disseminação da RSE e a GIFE a atuação no campo da ISP. Torres (2019) cita, ainda, a Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (ABONG), a Fundação Abrinq, o Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), o Instituo Brasileiro de Governança Coorporativa (IBGC), a Alshoka (Organização internacional de apoio ao empreendedorismo social) e o Instituto Brasileiro de Consultores de Organização (IBCO).
Como podemos observar, toda essa organização em torno da Responsabilidade Social Empresarial (RSE), segundo Torres (2019), tem um grande peso e garante que as empresas envolvidas com essa prática se destaquem e sejam reconhecidas por uma atuação responsável. Isso se apresenta como vantagens que se expressam de diversas formas, de modo que essas organizações acabam dispondo de certo poder social para impor determinada visão de mundo, valores e concepções alinhados aos interesses do capital, cujo principal objetivo é a construção do consenso, pois, além de intervir no mercado por meio de consultores e especialistas em gestão estratégia, influenciam as ações governamentais e a grande mídia. Mas de quais ações estamos nos referindo exatamente? Como agem essas organizações? Segundo Torres (2019, p. 77),
Elaboram diretrizes e indicadores de RSE a serem adotadas pelas empresas; realizam balanços sociais das informações oferecidas pelas corporações parceiras; elaboram pesquisas no meio empresarial; organizam encontros, formações e palestras sobre o tema junto ao seus colaboradores institucionais; captam recursos para o investimento social corporativo; certificam e oferecem selos às ‘empresas cidadãs’ que se adequam às suas normas e aos indicadores da RSE por elas pautados; são responsáveis pelo alinhamento ideológico do grande empresariado que investe socialmente; congregam a elite de gestores das maiores empresas de grande porte e corporações brasileiras e transnacionais; organizam estratégias e discursos norteadores do empresariado, como a adesão a novos temas ‘inovadores’; realizam balanços conjunturais para captação de recursos e articulação em redes de parcerias; atraem a participação da empresa para uma unidade na agenda social do grande empresariado.
A citação é longa, porém, necessária para termos ideia de como agem concretamente essas organizações que buscam retorno vantajoso tanto no que se refere ao investimento financeiro, quanto em reputação. Elas pretendem construir consenso frente às formas de lidar com a questão social, ao tempo em que a despe de qualquer discussão política e camufla a luta de classes. Essa forma de analisar a questão social abarcou, nas últimas décadas, não apenas os grupos conservadores e liberais, mas a própria esquerda progressista que passou a fazer o discurso do capital humano, do empreendedorismo, da meritocracia, em detrimento da organização social necessária para o correto posicionamento frente à luta de classes.
Isso revela uma tática do grande capital em busca de consenso neste contexto de aprofundamento da crise, pois, ao mesmo tempo que pressiona o Estado para tomar as medidas que lhes são favoráveis, age no sentido de convencer a sociedade, sobretudo, as classes trabalhadoras de que as medidas tomadas são as únicas possíveis. A esse respeito Mészáros (2011, 2015) tem uma importante contribuição. De acordo com o filósofo húngaro, o capital é uma força totalizadora que rebate sobre todos os indivíduos e o Estado é sua estrutura de comando político, de modo que as ações estatais, em geral, visam atender aos interesses do grande capital por meio de duas medidas, o consenso e a repressão. Esta última apenas quando a primeira não for suficiente. Portanto, nos momentos de agudização da crise, que implica em perdas de direitos conquistados pelos trabalhadores, jamais de lucros por parte da burguesia, consequentemente a tendência é de acirramento da luta de classes. Nesse momento, muitas são as táticas desenvolvidas a partir dessa parceria entre capital e Estado buscando convencer a classe trabalhadora de que os caminhos impostos pelo grande capital são os que devem ser seguidos.
Segundo Torres (2019, p. 77), estamos diante de um processo de construção ideológica que não se dá de forma totalmente harmônica, cuja finalidade é “unir em uma só direção empresários, gestores públicos, instituições do ‘terceiro setor’, instituições de ensino, governo, comunidade e ‘colaboradores’ (dentre eles trabalhadores) aos mecanismos ideológicos do capital”.
Para entendermos a dimensão do que estamos tratando é necessário registrarmos que esta crise que agora nos apresenta de forma assustadora, com considerável agravamento a partir de 2020 com a pandemia da covid-19 provocada pelo novo Coronavírus, é uma crise de proporção mundial, iniciada nos anos 1970, que vem se agravando ao longo das últimas décadas, período em que teve grande avanço no número de think tanks com atuação em âmbito global. Essa crise impulsionou uma série de medidas tanto no campo da produção, com uma reestruturação no âmbito do trabalho, como no campo da política, no sentido de garantir essa reestruturação produtiva e a própria existência do capital.
Trata-se das já citadas políticas neoliberais que ganharam força na Inglaterra e nos Estados Unidos nos anos de 1970 e 1980, pondo fim ao Estado de bem-estar social. No Brasil as políticas neoliberais tiveram forte penetração nos anos 1990, no governo Fernando Collor de Melo, foram levadas a diante pelo governo Fernando Henrique Cardoso e mantidas pelos governos do PT.
Freitas (2018), ao explicar essa reforma de cunho empresarial, descreve os processos em que se deu sua constituição, principalmente, nos Estados Unidos da América, e posteriormente no Brasil. Diz respeito a um movimento que, segundo o autor, tem origem prática política, e remonta o nascimento de uma “nova direita” a partir da união entre militantes liberais, autointitulados libertaristas e os conservadores, uma espécie de ultraliberalismo econômico combinado com um neoconservadorismo cristão e autoritarismo social. E acrescenta:
Na América Latina, o esgotamento da primeira onda neoliberal nos anos 1990, seguido da ascensão de governos progressistas ocorrida em seguida, criou a ilusão de que o neoliberalismo havia passado. Produziu também um efeito complementar: chamou nossa atenção para o lado das reformas econômicas e seus impactos, retirando a nossa atenção do lado obscuro do neoliberalismo – sua ligação política com os conservadores, seu significado ideológico e os métodos pelos quais se propaga e resiste (FREITAS, 2018, p. 14).
Essa relação dos liberais com os conservadores apenas põe em evidência o que afirma Mészáros (2011) sobre a relação entre liberalismo e democracia, para quem a última é apenas desejável, jamais uma condição. A parceria entre liberais e conservadores é possível, desde que o fim último seja a instauração do livre mercado levado às últimas consequências.
Segundo Freitas (2018), o fato de o liberalismo econômico não ter sido considerado como movimento de oposição global à perspectiva progressistas, sem qualquer comprometimento com a democracia, pegou de surpresa a “social-democracia” que se sustenta no liberalismo democrático. Os liberais que passam a ganhar espaço desde então, defendem o liberalismo restrito somente ao controle do governo sobre a economia, de modo que a democracia pode ser dispensável ao neoliberalismo.
Essa parceria entre liberais e conservadores formou o que vem sendo denominada de “nova direita” e criou as condições para a implementação de um conjunto de reformas que minam a luta dos trabalhadores e impõem uma séria de medidas que precarizam ainda mais a força de trabalho, ao mesmo tempo que garantem o processo de acumulação do capital. Para os neoliberais, as garantias deveriam ser incluídas nas constituições nacionais para garantir a irrevogabilidade das medidas, mesmo que isso indique um rompimento com a democracia liberal, pois o mais importante é a “liberdade pessoal e social” que precisa ser defendida a qualquer custo, contra a ideia de uma economia planificada, que seria o oposto do livre mercado (FREITAS, 2018).
Segundo Freitas (2018), essa ação do liberalismo econômico tem um caráter previdente no sentido de antecipar os riscos futuros, por isso esse constante ataque à social-democracia, ao “esquerdismo” e ao comunismo mesmo que este último não esteja na ordem do dia. A questão, portanto, é que não se trata apenas de uma atuação no campo econômico, como pretendem aparentar os empresários, mas sobretudo, de uma intervenção de cunho ideológico, com vistas a garantir a manutenção da propriedade e o processo de acumulação.
Mészáros (2012, 2015) explica que nos momentos em que o capital consegue se reproduzir de forma mais confortável e garantir o acúmulo do lucro em proporções desejáveis, é permitido ao trabalhador viver em situação de menor desconforto, o que não significa ter conforto. Ao menor sinal de crise e de risco à margem de lucros, direitos sociais são suspensos e o nível de exploração elevado ao extremo, a democracia pode se tornar indesejada e tanto os instrumentos de coerção, quanto as táticas de convencimento se fazem necessários.
Essa atuação ideológica de convencimento das classes trabalhadoras age no sentido de produzir e reproduzir o individualismo burguês. É esse individualismo que respalda a ideia de que é necessária a competição, de modo que o próprio indivíduo das classes exploradas agora faz parte do mercado e somente terá sucesso por seus próprios méritos, competindo com seus pares. O livre mercado apresenta-se aos trabalhadores como a única possibilidade de exercer uma aparente liberdade, por meio de um suposto empreendedorismo, uma vez que direitos lhe foram retirados e bem públicos como saúde, educação, previdência, segurança etc. tornaram-se mercadorias, deixando-os mais vulneráveis, obrigados a aceitar as imposições do mercado.
Alguns defensores do liberalismo econômico abdicam da democracia para garantir o que entendem por “liberdade” por meio de golpes militares e/ou jurídico-parlamentares-institucionais. A violência estatal é levada ao extremo para frear quaisquer atitudes individuais e, principalmente, coletivas que ponham em risco os privilégios burgueses. Ao mesmo tempo em que o Estado é visto como algo que atrapalha a liberdade individual de competir ao oferecer bens e serviços que possam contribuir para o coletivo, é um dos principais aliados e salvador do grande capital (FREITAS, 2018). Desse modo, na perspectiva neoliberal, o Estado deve ser mínimo para o social e máximo para o capital. O mais grave é que, neste contexto de agudização da crise, não há espaço para qualquer perspectiva que coloque o processo de humanização como centralidade, pois, não existe limite e não importam os meios quando se trata de defender o livre mercado.
Com as políticas neoliberais expandiu-se uma lógica, que avança também para o senso comum, que é a defesa da necessidade de redução do Estado e da ampliação das estratégias de exploração do trabalhador, o ataque aos serviços públicos e o enaltecimento da privatização da vida em todos os seus seguimentos. O individualismo burguês é elevado à sua máxima potência e o discurso da meritocracia dá a tônica das relações. Entretanto, não podemos entender como processo espontâneo, desprovido de intencionalidades. Estamos diante de um movimento articulado de organização e disseminação dessa lógica que se deu por meio de ações institucionalizadas, com uma considerável aceleração a partir dos anos 2000, porém, com origem em tempos bem remotos.
Para compreendermos esse movimento de articulação dos think tanks no Brasil, precisamos entender o processo histórico de organização da burguesia e suas formas de atuação, portanto, entender as particularidades que assume o desenvolvimento do capitalismo. Torres (2019) explica que o desenvolvimento da burguesia brasileira se deu extremamente marcado por traços de dependência com as economias dos países da centralidade do capital, ao passo que no mercado interno assumia o lugar de classe dominante que busca seu domínio sobre as classes exploradas. Desse modo, a burguesia brasileira se mostrou débil perante as relações estabelecidas com o capital internacional e ao mesmo tempo supremo no que se refere às relações com as classes inferiores.
Torres (2019) recorre a Caio Padro Júnior para traçar as particularidades do capitalismo brasileiro e explicar que desde o período colonial o Brasil assume um caráter agrário, dependente da exportação para as grandes potências mundiais da época como condição inalienável para o desenvolvimento das forças produtivas do Brasil. Do mesmo modo recorre a Florestan Fernandes para explicar os dilemas da burguesia brasileira, e destaca que diferente dos países europeus nos marcos da revolução burguesa, não apresentou um rompimento estrutural no caso do Brasil, visto que o desenvolvimento do capitalismo aqui é marcado por distintas fases, quais sejam: mercado capitalista moderno, expansão do capitalismo competitivo e principalmente emergência do capitalismo monopolista. Essas fases, segundo Torres (2019) apoiado em Florestan Fernandes, forneceram os elementos para a formação do capitalismo brasileiro e suas especificidades: a lógica da dependência e do subdesenvolvimento. Ou seja, o desenvolvimento interno da economia Brasileira se fez de forma submissa ao mercado exterior, no qual foi explorado ao extremo.
Nessa mesma linha de entendimento, também situamos a particularidade do capitalismo brasileiro no exaustivo estudo de Mazzeo (2015) sobre ―Estado e burguesia no Brasil. Segundo o autor, um dos elementos que caracteriza o Estado brasileiro é a própria condição em que foi colonizado, se configurando numa
‘adaptação’ da sociedade portuguesa no Brasil, vista nesta perspectiva, é a nova ‘síntese’ que, dialeticamente, também constrói, a partir do particular-específico-colonial, também uma superestrutura específica, isto é, uma sociedade conservadora, rígida, cuja ‘classe dominante’ – ‘os aristocratas coloniais’ –, pela sua própria origem histórica, nasce subordinada, econômica e ideologicamente, aos centros do capitalismo mundial (MAZZEO, 2015, p. 79).
Vale destacar que, ainda, de acordo com Mazzeo (2015, p. 83, grifos do autor):
Desde sua formação, o Estado Nacional brasileiro trará em seu âmago dois aspectos que comporão sua superestrutura: de um lado, elementos ideológicos comuns às formações sociais que vivenciam situações tardias de desenvolvimento capitalista (em que se insere Portugal); de outro, aspectos específicos inerentes à situação de particularidade escravista e fundiária.
É nesse contexto de subordinação política e econômica do Estado que se constitui a burguesia no Brasil. Entender a forma como ela se constitui é importante para entendermos como se relaciona com a questão social. Somente assim compreenderemos como se deu o movimento que transitou do desprezo à repressão, passando pela filantropia até chegar à Responsabilidade Social Empresarial.
De acordo com Torres (2019), a forma de intervenção social das classes dominantes brasileiras se deu de acordo com o conflito de classes na sociedade, seguindo um caminho impulsionado pelas necessidades de acumulação capitalistas. A crise do proletariado brasileiro a partir de 1920 traz à tona a questão social como resultado do desenvolvimento do capitalismo, uma vez que o processo de industrialização - tardio, pois somente foi de fato impulsionado a partir do século XX - provocou profundas transformações socioeconômicas, com a consolidação do trabalho-livre nos marcos do liberalismo clássico que impõe, por um lado, a acumulação capitalista e, por outro, a expropriação da classe trabalhadora. Coube às classes dominantes e ao Estado resolverem a questão social provocada pela separação entre capital e trabalho. Pode-se dizer que três fases marcam esse posicionamento no que se refere à burguesia brasileira, são fases distintas que se localizam em determinados momentos históricos.
A primeira fase compreende ao período da Primeira República, anos 1889-1930, quando predominou a concepção liberal aversa a qualquer tipo de intervenção do Estado e de regulamentação da exploração da classe trabalhadora. A questão social era tratada com repressão, com uso da força policial pelo Estado que, por sua vez, favorecia a elite e os proprietários. A segunda fase abarca o período do governo provisório até o estado novo (1930-1937), e não existe muita diferença do primeiro, pois permanece a ausência de qualquer assistência por parte do Estado, ao tempo em que se mantém a pressão da burguesia por uma legislação que beneficie seus interesses. O Estado deu início à negociação com entidades corporativas patronais, buscando legitimar os aparelhos de repressão com vistas a controlar a mobilização operária que ganhava contornos significativos. A terceira fase tem início com o Estado Novo (1937-1945), de caráter extremamente centralizador, apresenta-se como um momento de considerável modificação do conflito entre capital e trabalho, com adesão da burguesia à intervenção estatal, isso em um momento que o movimento do proletariado ganhava conotação mais combativa.
O autor destaca que essa terceira fase tem como marco a concessão de direitos sociais, como a CLT, por exemplo. Nesse momento a principal característica é o populismo, embora a repressão ainda esteja na ordem do dia. Entidades patronais, sobretudo da indústria e do comércio, articularam-se com o Estado tanto para organizar a legislação trabalhista, como para criar serviços de atendimento aos trabalhadores em setores estratégicos como saúde e formação técnica. É nesse contexto que se dá a criação do Sistema “S” (Sesi, Senac, Senai etc.) Essa atuação que marca a passagem de um caráter caritativo-filantrópico para intervenção estatal em parceria com o sistema empresarial é também uma estratégia ideológicas do capital que busca adequar o comportamento dos trabalhadores aos seus imperativos. Nas últimas décadas, a questão social assumiu uma nova percepção com a entrada da gestão moderna empresarial, uma vez que as ações sociais passaram a fazer parte das pautas das empresas no campo da Responsabilidade Social Empresarial (RSE).
Torres (2019) explica o protagonismo empresarial no Brasil desde os anos de 1930 até meados do ano 2000, quando o campo empresarial passa por profundas mudanças. Essas mudanças vão desde o processo de urbanização e industrialização e de dependência do setor exportador, passando pela fase de articulação entre Estado e capital industrial, transitando entre mudança de sistema de representação empresarial, até a crise econômica e política brasileira.
Com todas essas mudanças o autor observou que os conflitos de interesses das classes dominantes sempre marcaram presença no capitalismo brasileiro, pois os interesses particulares ao darem a tônica das relações, acirram as disputas empresariais no Brasil. Apenas no início dos anos de 1980, com o agravamento da crise econômica, foi que as empresas viram a necessidade de estabelecerem uma nova relação entre capital e trabalho. É justamente nesse período, nomeado de Nova República que, segundo Gros (2004), grande parte das corporações de empresários surgiram ou se desenvolveram. Tinham como objetivo fazer frente às forças populares representadas na ocasião da Assembleia Nacional Constituinte. É nessas circunstâncias que as entidades corporativas do capital passam a ter relevância e nos anos seguintes passaram a representar uma nova combinação de força de direção do empresariado brasileiro. Foi nesse cenário que a Responsabilidade Social Empresarial encontrou terreno para suas propostas, dentre elas, o direcionamento dos rumos da educação.
ATUAÇÃO DOS THINK TANKS NO ÂMBITO EDUCACIONAL: AS REFORMAS DIRECIONADAS PELO CAPITAL EM CRISE
Toda essa organização dos think tanks em busca da implementação de uma agenda social, com vistas a criar as condições para o capital continuar se reproduzindo em meio a uma grave crise de ordem estrutural, tem impactado diretamente a educação desde os anos 1990. Exemplo disso é a realização de diversos Fóruns e Conferências mundiais sobre Educação para Todos, que tem como resultado a Declaração de Jomtien (1990), a Declaração de Nova Delhi (1993) e o Marco de Ação de Dakar (2000), com objetivo de implantar uma reforma na Educação Básica, cujo norte são os interesses do mercado e a necessidade de reprodução do capital em crise (RABELO; JIMENEZ; MENDES SEGUNDO, 2017).
São resultados dessas diretrizes o movimento pela estruturação dos referenciais curriculares nacionais, os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais, aprovados 1997, a implantação de processos de avaliação em larga escala, com padronização de testes nos moldes do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), da Provinha Brasil, para o ensino fundamental, e do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), para o ensino superior. Ademais, foram dadas as condições para o processo de privatização do sistema público de educação, que vem sendo efetivado ao longo das últimas décadas de diversas formas, desde a ampla contratação de serviços terceirizados, a compra de materiais apostilados fornecidos por grandes conglomerados do ramo educacional, até o uso de vouchers para a educação infantil.
Tratam-se de reformas totalmente alinhadas com a concepção de educação baseada na defesa do livre mercado, cujo entendimento acerca do que seja qualidade da educação está plenamente condicionado à inserção das escolas, dos professores e dos estudantes em um mercado concorrencial, sem qualquer interferência do Estado. Conforme Freitas (2018), os preceitos dessa reforma orientam tratar a escola como empresa, de modo que as escolas de menor qualidade devem sucumbir às de maior qualidade, assim como os processos educativos têm que ser padronizados e permanecerem sob rígido controle. A educação é vista apenas como um serviço a ser adquirido, uma mercadoria que pode ser comprada, daí a necessidade de afastar qualquer interferência do Estado, a fim de garantir o processo de privatização. E se considerarmos o fenômeno do ponto de vista ideológico, a privatização também é muito bem-vinda, pois garante maior controle político do espaço escolar.
Esse controle ideológico imposto às escolas vem aumentando consideravelmente a partir do agravamento da crise econômica em 2009, com impactos mais diretos no Brasil a partir do acirramento da crise política instaurada em 2013, quando percebemos um crescimento dos movimentos em defesa de pautas conservadoras e ultraliberais, com grande impacto inclusive para os princípios da democracia burguesa, em geral, defendidos pelas entidades educacionais.
A participação de organismos de defesa dos interesses privados se dá de várias formas, segundo Mendes (2019). Não se limita a uma interferência de cunho jurídico nas instituições educacionais. Ela acontece sob a forma de pressão por parte de setores da sociedade civil, extremamente organizados e apoiados por grandes empresários, parlamentares e pela imprensa, com vistas a introduzir um conjunto de valores que se chocam com os interesses das instituições públicas de ensino.
Os princípios difundidos por essas organizações visam interferir na educação pública por intermédio das instituições privadas, que estabelecem um conjunto de encaminhamentos, os quais orientam como deve ser desenvolvido o trabalho de todos que compõem a rede pública de ensino, com o fito de limitar sua autonomia. Assim, criam um modelo que é amplamente articulado por diversos grupos empresariais e partidos políticos, em sua maioria conservadores no que se refere a valores morais, e neoliberais no tocante à economia.
Desse modo, a educação brasileira tem sido fortemente impactada, principalmente pelos dois projetos mais comentados dos últimos anos, que são a Base Nacional Comum Curricular e a Reforma do Ensino Médio, as quais cumprem uma importante função ideológica para o capital, e não por acaso foram amplamente defendidos pelos think tanks que militam no campo educacional. Para Lopes e Rezera (2022), trata-se de um rebaixamento no currículo voltado para subalternização dos filhos da classe trabalhadora por meio da expropriação cultural.
Caetano e Mendes (2020), ao traçarem o panorama da atuação dos think tanks na América Latina, apresentam a Rede Latino-Americana de Organizações da Sociedade Civil para Educação (Reduca), formada por organizações sociais e empresariais de quinze países, criada no Brasil em 2011, com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Cada organização partícipe dessa rede mantém sua identidade e agenda própria, além de uma atuação coletiva visando disputar os rumos das políticas educacionais. Com isso, procuram influenciar diretamente a opinião pública acerca dos problemas sociais, dentre eles, a educação.
O que se observa é que as organizações que compõem a Rede disputam com o Estado o protagonismo no que se refere ao direcionamento das políticas para a educação pública. Há ainda outros elementos que os assemelham, como “a ideia de sociedade civil organizada, e não restrita a grupos profissionais de educação; atuação de caráter nacional; crença na educação como caminho para o desenvolvimento do país; defesa da qualidade da educação, mas sem especificar conceitos e métodos pedagógicos” (CAETANO; MENDES, 2020, p. 12).
No Brasil, o mais importante think tank da área educacional e articulador da Reduca é o Movimento Todos pela Educação (TPE), que possui diversas frentes de atuação, dentre elas, o Movimento pela Base Nacional Comum. O Todos pela Educação condensou no seu projeto, entre os anos de 2005 e 2006, os anseios de diversos empresários representados por suas fundações. Esse movimento passou a disputar intensamente espaços de direcionamento da educação no Brasil, cuja principal bandeira foi a qualidade da educação de acordo com as diretrizes do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), que é coordenado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A qualidade nesse caso é medida por meio da ampla utilização de testes em larga escala, bem como pela organização e divulgação de rankings que têm como principal função o estabelecimento de uma competição dentro das instituições entre os estudantes e entre os próprios professores, e uma competição entre instituições de um mesmo sistema e entre os sistemas públicos de ensino: municipal, estadual e federal.
Suas práticas incluem realizar estudos, divulgar dados, estabelecer metas e exercer pressão ao governo para seu cumprimento, de modo que, devido ao apoio da mídia, à ideia de que defendem uma pauta neutra e se preocupam com o bem coletivo, com a qualidade da educação pública, conseguem inserir propostas que modificam a compreensão do que seja a educação pública, ao tempo que impõem a lógica do mercado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procurou-se nessa primeira etapa da pesquisa compreender de forma mais aprofundada a atuação dos think tanks, sua relação com a propagação do pensamento neoliberal e seus impactos no âmbito das políticas de Estado, sobretudo suas reverberações no campo educacional. Nesse sentido, foi possível compreender o papel que organizações do setor privado assumem no planejamento e execução de serviços públicos.
É importante enfatizar que existem duas perspectivas de análise acerca da atuação dos think tanks. Uma amparada pela lógica burguesa, que entende esses institutos como necessários ao desenvolvimento da sociedade, uma vez que, nessa perspectiva, dão conta de suprir as lacunas deixadas pela suposta fragilidade do serviço público. A compreensão que defendem é a de que se tratam de institutos de posicionamento neutro diante do cenário político, sem vinculação partidária, de modo que, embora defendendo interesses de grupos economicamente dominantes, contribuiriam positivamente para o coletivo, pois estariam apenas buscando soluções para os problemas sociais. Estamos lidando com um pensamento influenciado pelo behaviorismo estadunidense, amplamente difundido no final do século XIX e início do século XX, cujo objetivo era modelar o comportamento dos indivíduos por meio do treinamento (estímulo-resposta) para produzir uma sociedade supostamente harmoniosa.
Na contramão dessa perspectiva, existe outra concepção. Esta assume uma postura crítica ao analisar os think tanks, por entender que tais instituições organizam-se em torno dos interesses dos grandes representantes do poder econômico, para desenvolver ações orquestradas, com objetivos a médio e longo prazo. Visam disseminar as ideias neoliberais e convencer a sociedade a atender às necessidades de reprodução do capital em crise.
É sobre esta última concepção que se debruça nossa análise. Ela nos permite afirmar que, embora exista uma grande variedade desses institutos ou redes de institutos, inclusive alguns com pautas como a do meio ambiente e do feminismo, a identificação dessas instituições com a lógica liberal, ou, mais especificamente, com sua versão neoliberal, é bastante evidente. Primeiro porque instituições dessa natureza já atuavam diretamente na defesa das pautas neoliberais desde a sua origem; segundo porque os think tanks comprometidos com as pautas neoliberais são superiores no universo desses institutos; por último, porque as poucas instituições que não se dedicam à disseminação do pensamento liberal/neoliberal, também não se dispõem ao enfrentamento da lógica do capital.
Em vista do exposto, intentamos analisar a atuação desses organismos de forma crítica, no sentido de compreender, no contexto da luta de classes, o jogo de interesses existente nas relações estabelecidas entre os think tanks, a mídia, a manipulação da opinião popular e a implementação de políticas públicas. Isso nos ajudará a entender as reverberações da atuação dessas entidades nas políticas voltadas à educação pública, entendida como educação em sentido estrito. Do mesmo modo, entenderemos as estratégias de convencimento utilizadas de forma ampla pelo grande capital, que abarcam outras dimensões da vida, dentre elas, o complexo da educação em sentido lato.
A compreensão mais aproximada possível da atuação dos think tanks no processo de propagação do pensamento neoliberal e seus impactos no campo educacional não somente desvelou a natureza de corporações empresariais que interferem diretamente na ação reformista do Estado, com fins meramente lucrativos, mas também a natureza do próprio Estado burguês, metamorfoseado em neoliberal.
Embora o fenômeno da interferência dos think tanks nas políticas de educação no Brasil tenha se manifestado há décadas, a exemplo do conhecido acordo MEC/USAID, o aprofundamento da crise do capital tem impulsionado proporções cada vez mais abrangentes de intervenções empresariais no campo das políticas sociais, em especial a educação, no intuito de fazer, pela via do Estado, os devidos ajustes demandados pelo capital financeiro nacional e internacional.
A pesquisa aponta que a ofensiva do capital sobre a educação é elevada à medida que a crise econômica é aprofundada, o que é constatável na ação reformista do Estado, que, por um lado, assume cada vez mais o caráter mínimo para o social, e, por outro lado, na ação privatista, o caráter máximo para o grande capital. Portanto, não é de modo algum estranho o estreitamento da relação público-privado, cada vez mais presente nas políticas educacionais implementadas pelo Estado, mais fortemente a partir dos anos de 1990.
Para além de situar as políticas neoliberais no âmbito das medidas de ajustes da crise estrutural do capital e caracterizar o movimento de propagação dos think tanks, bem como relacionar os impactos dos movimentos de direita financiados pelos think tanks e suas reverberações no campo educacional, este estudo resulta numa denúncia, e consequentemente aponta para a necessidade de continuidade, visando não somente constatar formas de personificação do capital no campo educacional, mas fazer a devida crítica radical ao Estado neoliberal.
Os think tanks, independentemente dos significados que possam ser atribuídos ao termo, não passam de uma personificação do capital intrinsecamente aliada ao Estado. Por sua própria natureza, o Estado serve, em primeira e última instância, ao capital, portanto, a política educacional se encontra, em larga medida, determinada por interesses particulares da classe hegemônica, que se metamorfoseia de defensora da “Educação para Todos” e mantém o poder político, financeiro e ideológico sobre a classe trabalhadora.
Em suma, ainda que possamos reconhecer a luta travada em defesa de políticas públicas de Estado que garantam direitos à educação, saúde etc., esbarramos na impossibilidade de cumprimento dessa agenda social por parte do Estado. Assim, compreender a ideologia e o poder dos think tanks sobre o Estado implica compreender que a luta é essencialmente de classes, que os interesses são antagônicos, não sendo possível consenso entre público e privado, entre empresariado e defesa da “Educação para Todos”.
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