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“VOCÊ QUE LUTE!”: A RECONSTRUÇÃO DO DISCURSO MERITOCRÁTICO POR JOVENS DE ESCOLA PÚBLICA

“YOU MUST FIGHT!”: THE RECONSTRUCTION OF THE MEDIA DISCOURSE BY YOUNG PEOPLE IN PUBLIC SCHOOLS

"¡VOS QUÉ LUCHAS!": UNA RECONSTRUCCIÓN DEL DISCURSO MEDIÁTICO EN JÓVENES DE ESCUELAS PÚBLICAS

Júlia Mello Schnorr
Universidade de Brasília, Brasil
Carlos Alberto Lopes Sousa
Universidade de Brasília, Brasil

Linguagens, Educação e Sociedade

Universidade Federal do Piauí, Brasil

ISSN: 1518-0743

ISSN-e: 2526-8449

Periodicidade: Trimestral

vol. 27, núm. 1, 2023

revistales.ppged@ufpi.edu.br

Recepção: 29 Julho 2022

Aprovação: 22 Fevereiro 2023



EDUFPI

Resumo: Temos como propósito compreender a construção e a reconstrução de discursos midiáticos por estudantes de escola pública sobre os estudos de vestibulandos no contexto da pandemia da covid-19 e analisar como o acesso de jovens da classe trabalhadora em cursos de alta seletividade social na universidade pública é divulgado na mídia. Utilizamos o modelo Codificação e Decodificação, de Stuart Hall (1973; 1980), e entrevistamos 13 estudantes do Distrito Federal. Entre as conclusões, refletimos que as mídias valorizam o mérito individual, inclusive em tempos de pandemia, enquanto silenciam as políticas públicas de acesso à educação superior. Conclui-se que a maioria dos jovens, ao reconstruir as notícias, mantém a lógica hegemônica e dominante.

Palavras-chave: mídia, pandemia, meritocracia, acesso à educação superior.

Abstract: Our purpose is the understanding of what shapes and remodels the mediatic discourse relating to public school students regarding entrance exams. The focus is within the circumstances of the Covid- 19 pandemic in order to evaluate how the media reports thea access of working class youth in courses within a profile of high social selectivity in public universities. The model we use to represent this is Stuart Hall’s (1973;1980) Encoding and Decoding in the Television Discourse. We interviewed 13 students from the Federal District, within our conclusions, also during the pandemic we made reflections considering how the media values individual merits while silencing public policies of access to higher education. We came to the conclusion that the majority of the youth, when reconstructing the news, preserve the hegemonic and dominant logic.

Keywords: media, pandemic, meritocracy, access to higher education.

Resumen: Tenemos el propósito de comprender la construcción y reconstrucción de las declaraciones en los medios de comunicación por estudiantes de escuelas públicas sobre los estudios de las pruebas de ingreso en el contexto de la pandemia Covid-19 y analizar como aparece en los medios el acceso de jóvenes de la clase trabajadora en los cursos de alto carácter selectivo social de las universidades públicas. Nosotros utilizamos el modelo de codificación y decodificación de Stuart Hall (1973-1980) y entrevistamos a 13 estudiantes del Distrito Federal. Entre las observaciones, llegamos a la conclusión de que los medios de comunicación valorizan el mérito individual, incluso en tiempos de pandemia; mientras hacen callar a las políticas públicas de acceso a la educación superior. Cabe concluir que la mayoría de los jóvenes, al reconstruir las noticias, mantienen la lógica hegemónica y dominante.

Palabras clave: medios de comunicación, pandemia, meritocracia, acceso a la educación superior.

INTRODUÇÃO

Temos como propósito compreender a construção e a reconstrução de discursos midiáticos por estudantes de escola pública sobre os estudos de vestibulandos no contexto da pandemia da covid-19. Ademais, queremos analisar como o acesso de jovens da classe trabalhadora em cursos de alta seletividade social na universidade pública é divulgado na mídia.

O neoliberalismo, contexto da codificação midiática, é uma doutrina que defende a restrição da atuação do Estado na sociedade, ao focar em direitos de livre comércio e propriedade privada. Harvey (2008, p.12) afirma que o neoliberalismo “propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais.” Para analisar como jovens decodificam e reconstroem os discursos midiáticos, elegemos como objeto de análise peças jornalísticas que abordam o ingresso de jovens da classe trabalhadora na educação superior e, também, os estudos para o vestibular em tempos de pandemia da covid-19, bem como informações fornecidas por jovens sobre sua relação com essas mídias, a forma como consomem as diversas informações a respeito do acesso à educação superior e como isso perpassa suas próprias trajetórias.

Os jovens entrevistados, num total de 13 estudantes do 3º ano do Ensino Médio, foram selecionados em escolas de distintas regionais de ensino do Distrito Federal. Após a seleção das escolas, expusemos o projeto aos estudantes e entrevistamos 13 estudantes do 3º ano do Ensino Médio sobre sua relação com essas mídias, a forma como consomem as diversas informações a respeito do acesso à educação superior e como isso perpassa suas próprias trajetórias.

Ao pesquisar sobre o acesso ao ensino superior por jovens periféricos e as produções jornalísticas que divulgam esse ingresso, encontramos trabalhos que fazem análise do comportamento da mídia na formação da opinião pública, em especial sobre as ações afirmativas mais conhecidas como cotas. Frequentemente, as investigações concluem que há a problematização na mídia sobre a política de cotas (SALES, 2009; BOTOSSO, 2014). Os trabalhos corroboram o argumento de que a mídia enfatiza a posição contrária às cotas em geral, sendo que a situação é mais acentuada quando se trata das cotas raciais. Nesse sentido, há a defesa de que a reserva de vagas fere o pressuposto do mérito.

No caso de Sales (2009), ao analisar o jornal O Globo, a ênfase dada pela editoria é de que, no Brasil, não existe racismo, e sim classismo, logo, as cotas raciais não se sustentariam. Já Botosso (2014), ao estudar as matérias de Veja, entende que a revista dá ênfase ao discurso contrário às cotas, tanto sociais como raciais. O Globo e Veja são exemplos da mídia hegemônica, essa que se refere aos conglomerados de comunicação que são endereçados pelo interesse neoliberal e comportam suas pautas para manutenção do status quo.

Apesar do discurso elaborado pela mídia, é inegável que a implementação da Lei de Cotas, Lei n.. 12.711, promulgada em 2012, trouxe um novo panorama no acesso à educação superior pública para jovens periféricos. Com a reserva de vagas, jovens da rede pública ingressaram de forma substancial na universidade. Frequentemente, a mídia trabalha o ingresso de jovens da classe trabalhadora, especialmente os que logram sucesso em cursos de alta seletividade social, como Medicina e Direito. Muitas dessas notícias protagonizam o esforço e o mérito individual dos jovens nos estudos, característica do discurso neoliberal. Baseando-se nesse contexto, perguntamos como os jovens de escolas públicas constroem e reconstroem seus discursos sobre o acesso da classe trabalhadora em cursos de alta seletividade social na universidade pública, diante do conteúdo apresentado pela mídia.

Para entender a relação dos jovens com o discurso meritocrático da mídia, construímos a intervenção com base modelo Codificação e Decodificação, de Stuart Hall (1973; 1980). As modificações no modelo aliam a decodificação à epistemologia do estranhamento e à desnaturalização (MORAES et al, 2006). A ideia, na entrevista, é a de colocar os jovens em uma posição de protagonistas dos discursos, questionando como eles elaborariam o discurso jornalístico se tivessem essa oportunidade.

Cabe salientar que não entendemos o jovem protagonista na perspectiva da lógica capitalista, filantrópica ou como aquele que, ao sobressair-se diante dos demais, é colocado em um papel de empreendedor de si. Protagonista, nessa investigação, refere-se ao jovem que entende que, na coletividade, ocorre a transformação social e, para isso, há necessidade de um grau de organização conjunta com seus pares. Logo, neste caso específico, protagonismo tem relação com uma leitura negociada ou resistente da mídia hegemônica.

O objetivo central deste artigo é compreender como ocorre a construção e a reconstrução de discursos de estudantes sobre o acesso de jovens da classe trabalhadora na educação superior, bem como analisar as mídias televisivas que trabalham esse ingresso e o estudo em tempos de pandemia da covid-19. Para isso, dividimos o texto em duas partes: referencial teórico-metodológico e discussão dos resultados, em que apresentaremos os entrevistados, faremos a codificação das mídias e a própria reconstrução midiática pelos jovens estudantes.

REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO

Apresentando o modelo Codificação e Decodificação

O modelo Codificação e Decodificação (HALL, 1973; 1980) é utilizado, nesta investigação, atrelado ao uso das mídias televisivas. O objetivo de analisar as reportagens é fomentar o debate e entrelaçar a assistência das matérias jornalísticas sobre o ingresso de jovens da classe trabalhadora na educação superior com a interação social dos entrevistados. Pensar o modelo de Codificação e Decodificação é também refletir sobre conceitos como poder, ideologia e hegemonia.

A ideologia está relacionada ao sentido construído pela mídia e com as leituras hegemônicas, também chamadas dominantes ou preferenciais, visto que nelas há a naturalização dos códigos midiáticos (HALL, 1980), especificamente a ação ideológica. No caso das matérias selecionadas, como abordaremos na sequência, a ideologia naturaliza-se na meritocracia. Dito isso, entendemos ser necessário realizar uma explicação do modelo, trabalhar seus principais conceitos, possíveis brechas de atuação e sua correlação com outras metodologias. Após, apresentaremos uma análise textual das matérias jornalísticas, especificando e explicando a codificação apresentada pela mídia.

Para começar, é prudente frisar que Lima (2015) lembra que Stuart Hall é um esquecido nos estudos relacionados à mídia no Brasil. O seu modelo Codificação e Decodificação, publicado no formato de ensaio, em 1973, com o nome de Encoding and decoding, pouco foi abordado. No entanto, esse modelo trouxe novidades à época, pois Hall (1973) defendia que a mensagem midiática não se propaga de forma linear, seguindo a reta produtor/mensagem e receptor, mas em circuitos distintos de circulação. A mensagem, dessa forma, adquire a característica de um bem simbólico e faz parte de quatro etapas: produção, circulação, distribuição e consumo e, por fim, reprodução. Assim, não há como pensar as mensagens midiáticas sem inseri-las no próprio sistema capitalista e em suas relações de ideologia. Sendo um bem simbólico localizado nesse contexto, a mensagem jornalística visa ao lucro das empresas midiáticas.

Isso nos remete ao contexto de elaboração do modelo de Hall (1973). Na época, os tradicionais modelos empíricos positivistas, como a pesquisa de efeitos de audiência, eram utilizados para tentar aferir o comportamento dos sujeitos perante os textos midiáticos. A comunicação era dita perfeita e a única falha estava a cargo do receptor que, por considerada “falta de inteligência” ou atenção, não captou a mensagem, que era vista como transparente. O modelo combate a comunicação centrada na mensagem, aquela em que o emissor elabora uma codificação que o receptor pode ou não entender, a depender de suas habilidades.

Para o modelo de Hall (1973; 1980; 2003), a mensagem pode ter decodificação dominante, negociada ou opositiva. Dessa forma, uma notícia televisiva com codificação dominante pode ter uma leitura do receptor opositiva, mas, para outro sujeito, negociada. Isso ocorre porque as mensagens são decodificadas pelos sujeitos levando em consideração mediações individuais, como valores familiares, apropriação de capitais simbólicos e vivências de classe social.

Embora afirme que os sujeitos têm leituras multirreferenciais do texto, Hall (2003) nega que quem controla os meios de comunicação tem o mesmo poder que as audiências. Há distintos espaços de poder, sendo que os canais de televisão, por exemplo, dão significado ao mundo para as audiências, pois têm os meios para tal, têm financiamento e o poder de escrever o texto midiático. Hall (2003, p. 368) ainda lembra que “muitas pessoas lá fora não têm outra forma de conhecer o mundo a não ser através do significado que se comunica a elas”. Dessa forma, no Brasil, um país com tradição profunda da oralidade (MARTÍN-BARBERO, 2009), pouca vazão à pluralidade da opinião pública e uma inegável tradição imagética, os grandes meios de comunicação e suas produções audiovisuais podem ser, ainda, o principal meio de obtenção de informação cotidiana.

A primeira hipótese elaborada por Hall (1973) é de que a leitura dominante se refere à posição de preferência do texto, que ocorre quando o receptor possui a mesma leitura ideológica proposta pela produção televisiva. Como exemplo, podemos pensar na codificação de uma matéria elaborada por um jornalista de uma empresa de comunicação. Após análise textual, percebemos que a notícia tem codificação hegemônica. Para ocorrer a leitura preferencial do jovem sobre essa notícia, ele precisa concordar com a codificação hegemônica proposta pela mídia. A leitura hegemônica é chamada também de dominante e preferencial, pois não discorda dos aspectos apresentados na notícia, como a abordagem, as fontes levantadas e a ideia construída sobre o fato.

A segunda hipótese de leitura é a de o sujeito decodificar a mensagem com uma leitura globalmente contrária, por meio de um código de oposição, o que Hall (1973) chama de política de significação, ou seja, a luta que ocorre dentro do próprio discurso. Isso acontece quando o jovem se identifica com outro segmento social que não é o da codificação do texto. Assim, ele lê a mídia levando em consideração vivências e interesses distintos. Para Hall (1973), somente quando o sujeito se torna autoconsciente e com esquemas de interpretação organizados pode ter uma leitura de oposição. Logo, é uma decodificação pouco frequente.

Ao se distanciar de um fato cotidiano, ao analisa-lo com o estranhamento necessário, trabalha-se com o senso crítico que se pergunta o porquê de algo acontecer. Também podemos lembrar da historicidade, ao refletir sobre a permanência e descontinuidade ao longo do processo histórico. O estranhamento, por assim dizer, pode se relacionar como uma leitura resistente ou até mesmo negociada. O mesmo pode ocorrer com a desnaturalização, visto que refletir criticamente sobre a questão naturalizada é, também, revelar as ideologias que existem nos discursos. Assim, não utilizar o estranhamento ou não desnaturalizar o fenômeno pode, sim, levar à leitura hegemônica e dominante.

Por fim, há a leitura negociada, que não dialoga inteiramente com o produtor, mas não é totalmente opositiva em questões estruturais da matéria. De acordo com Hall (2003, p.350), as “leituras negociadas são provavelmente o que a maioria de nós faz, na maior parte do tempo”. Hall (2003, p. 378) defende que “as leituras que você faz surgem da família em que você foi criado, dos lugares em que trabalha, das instituições a que pertence, das suas outras práticas”. No contexto da nossa pesquisa, podemos relacionar essa leitura negociada à aquisição e consolidação dos diversos capitais simbólicos, influências religiosas e familiares, vivências de classe social e mediações sociais e culturais.

A ideologia em ação

Partimos do princípio de que a ideologia influencia modificações sociais, ou seja, a ideologia orienta a ação (GRAMSCI, 2017). Dessa forma, ela está relacionada com o conceito de hegemonia, em que uma classe exerce poder não por meio da coação ou manipulação, mas do consentimento. Logo, o consenso é peça fundamental na ação da hegemonia, que também tem como base a divulgação de ideias. É nesse sentido que a concepção de ideologia gramsciana dialoga com nossa ferramenta fomentadora de discursos, a mídia.

Em entrevista sobre o modelo Codificação e Decodificação, Hall (2003, p. 355) afirma que, de forma controversa, consideravam a ideologia “como algo secundário, como algo não constitutivo, meramente constituído pelos processos socioeconômicos”. No contexto comunicacional, a ideologia trabalha por meio da fixação de significados que são dados na própria codificação midiática. Como leitor de Gramsci, Hall (1973) entende a mídia com auxílio dos conceitos de ideologia e hegemonia.

Em uma sociedade neoliberal capitalista, como é o caso da realidade brasileira, com poucas vagas na educação superior pública, o discurso do mérito surge para explicar por que alguns estudantes logram sucesso em seus estudos, enquanto outros precisam buscar alternativas, sendo que muitas delas acabam distanciando grande parte dos jovens da trajetória escolar. Assim, as relações de poder incidem na vida estudantil e têm, como explicação, um discurso ideológico: a meritocracia.

Souza (2012) entende que a meritocracia é uma ideologia que oculta as desigualdades existentes em nossa sociedade, ao preconizar as ações dos sujeitos e interpretações com base no esforço e merecimento. O mérito acaba naturalizado como parte fundadora de uma sociedade que não trabalha mais com os privilégios de berço, como em uma monarquia. Assim, naturalizam-se frases como: “os que se esforçam chegam lá!”. Michel Young (1958) criou o termo meritocracia em seu livro The rise of meritocracy. O livro é uma distopia futurística, em que as pessoas colocam a culpa por seu fracasso em si mesmas. Sandel (2020), ao relembrar a gênese do conceito, afirma que, atualmente, a meritocracia se relaciona à reação populista de direita.

3. RESULTADO E DISCUSSÃO

3.1 Quem são os jovens?

Os entrevistados tinham, na época da coleta de dados, entre 16 e 18 anos. Embora parte dos estudantes, apresentados aqui com nomes fictícios, viva distante da escola – como Augusto, que mora na Cidade Ocidental-GO e estuda no Centro de Ensino Médio Setor Leste, na Asa Sul; Carol, que mora no Paranoá-DF e estuda na Asa Sul; e Martina, que mora no Itapoã-DF e estuda na Asa Norte – foi mais comum encontrar jovens que não ocupavam demasiado tempo de deslocamento entre a sua casa e a escola. Quando ocorria, a escolha por uma instituição de ensino distante se justificava pela busca familiar por um ensino público tradicionalmente reconhecido como forte, em contraponto ao que acreditam ocorrer na comunidade em que residem.

Os jovens moravam em variadas regiões administrativas do Distrito Federal, consideradas, pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), em sua maioria, como de baixa renda. Um dos jovens mora no Entorno-GO A proporção de população de baixa renda é acentuada em três regiões administrativas habitadas pelos estudantes, Paranoá-DF, Itapoã- DF e Estrutural-DF. Duas das moradoras das regiões com menor poder aquisitivo apresentavam composições familiares incomuns para a idade, pois viviam somente com o irmão mais velho ou com o namorado, e eram responsáveis, desde cedo, pelo sustento material e gerenciamento do lar.

Dos jovens, somente três viviam em regiões administrativas de média alta renda (Vicente Pires-DF) ou alta renda (Plano Piloto-DF). No entanto, apesar de não serem locais de baixa renda, a ocupação dos responsáveis – trabalhadores de padaria e de hotel, diarista, trabalhador de construção civil e recepcionista – não possibilitava recursos para investimento em educação privada, o que justifica a manutenção de seus filhos em escolas públicas.

Quadro 2 - Codificação das reportagens analisadas
TítuloTecnologia digitalCodificaçãoRelação com o poder
1Medicina na UnB/RitiéliPresenteDominanteReforço da ideologia neoliberal meritocráticaNão nomeia ações afirmativas no acesso à educação superior
2Estudante de Ceilândia passapara Medicina na UnB/GeorgeNão apareceDominanteReforço da ideologia neoliberal meritocráticaFrisa que estudante, mesmo tendo direito,ingressou sem a utilização das cotas
3“Universidade existe para a gente também”, diz aluno da rede pública após 3ºlugar em Medicina na UnB/GeorgePresenteDominanteReforço da ideologia neoliberal meritocráticaFrisa que estudante, mesmo tendo direito,ingressou sem a utilização das cotas
4Aluno vende doces para estudar e passa em Medicina na UnB/LucasNão apareceDominanteReforço da ideologia neoliberal meritocráticaNão nomeia ações afirmativas no acesso à educação superior
Fonte: Autoria própria, 2022.

Fonte: Autoria própria, 2022.

A ocupação dos responsáveis dos jovens, salvo em algumas exceções, é de trabalhos subalternos que não geram grande disponibilidade financeira nem representam prolongamento de estudos. Raramente os jovens não dependeram do sistema público tanto de educação quanto de saúde. Essa limitação econômica traz as famílias para ações do presente, no aqui e no agora, já que há insegurança sobre o futuro (SOUZA, 2017). As ocupações mais citadas foram pedreiro, dona de casa e empregada doméstica.

Chama a atenção que alguns jovens não têm qualquer contato com o genitor masculino, inclusive sem a paternidade registrada em seus registros civis. De acordo com dados da Codeplan, as mulheres são as responsáveis pelo domicílio nas regiões administrativas de baixa renda no Distrito Federal, como Itapoã-DF, Paranoá-DF e Estrutural-DF. Esses dados dialogam com os achados das entrevistas, pois, em sete dos 13 lares, a figura materna representa a totalidade ou parte principal da geração de renda familiar e/ou a figura paterna está ausente.

Também são as responsáveis mulheres as que estudam por mais anos, apesar de ser evidente, nas trajetórias delas, a falta de oportunidades a longo prazo, visto que tiveram, sem grandes alternativas, que trabalhar para o sustento familiar. Apesar da geral baixa escolaridade, visto que nove dos responsáveis pararam os estudos no Ensino Fundamental, nove foram até o Ensino Médio e cinco concluíram o ensino superior – nenhum em instituição pública –, os jovens citam seus responsáveis como influências para a sua própria vida escolar e profissional, em especial, a figura materna.

Somente em três casos os jovens relatam não ter ninguém como influência familiar nos estudos ou no trabalho. Marcio, por exemplo, cita que sua principal influência são os empreendedores, pois gosta de ouvir histórias que salientam trajetórias ascendentes e meritocráticas, que mostram de “onde saíram” e para “onde chegaram”. Souza (2012; 2017) lembra que essa identificação com os opressores é recorrente quando se divulga que as pessoas são “empresárias de si mesmas”, um eufemismo para a própria dominação, visto que “temos uma nova semântica social que tende a passar a imagem de que todos nós somos empresários e patrões de nós mesmos” (SOUZA, 2012, p. 363).

A próxima seção aborda a análise textual de notícias televisivas, já explicando suas codificações. Uma dessas matérias foi apresentada aos jovens em nossa pesquisa e será decodificada e reconstruída por eles.

Por trás das matérias: a codificação midiática

A mídia e o ingresso de jovens da classe trabalhadora na educação superior

Ao elaborar uma notícia televisiva, o profissional da comunicação codifica o conteúdo a partir do campo jornalístico. Tratando-se de uma empresa com fins comerciais, oriundos de uma renda publicitária alargada a partir do alcance de suas notícias, o campo jornalístico está permeado pelo campo econômico. Sabe-se que a mídia tradicional, que chamaremos aqui de mídia hegemônica, como os grandes meios de comunicação, tem o poder relativo de pautar a agenda de discussões da nossa sociedade. Em relação ao ingresso de jovens periféricos na educação superior, isso não é diferente.

Após a divulgação das listas de aprovados na Universidade de Brasília (UnB), veículos midiáticos constroem reportagens sobre os estudantes que ingressaram na instituição. De forma geral, essas matérias trazem o jovem da classe trabalhadora como alguém que “chegou lá” e “venceu as adversidades da vida” ao ter seu ingresso aprovado. A apresentação das matérias jornalísticas e sua codificação, construída a partir da metodologia Codificação e Decodificação, de Hall (1973; 1980; 2003), será trabalhada com a concepção de que a própria análise do pesquisador sobre o texto midiático codificado é uma decodificação. Como lembra Hall (2003, p. 373), não há verdadeira objetividade nesse processo, mas se deve ter uma objetividade necessária, pois é um momento “da pesquisa onde se tenta suprimir ao máximo sua própria leitura para reconstruir o texto como um objetivo de pesquisa”.

Antes de pormenorizar as matérias, é interessante reafirmar que o campo jornalístico está permeado pelo campo econômico. Dito isso, é compreensível entender o motivo que fazem com que grandes meios de comunicação produzam notícias que não causem completa resistência e oposição nos leitores, porque isso causaria possíveis problemas na audiência e em questões publicitárias. Dessa forma, são raras as abordagens que realizam grandes problematizações sociais.

No Quadro 2, constam a menção da tecnologia, a codificação da matéria e a relação com o poder, evidenciando o silenciamento das políticas públicas e o reforço da ideologia meritocrática. De forma geral, as notícias costumam ressaltar o esforço e o mérito individual do estudante, agora acadêmico da UnB. Além disso, é abordada a utilização de tecnologias nos estudos, em uma suposta defasagem no conteúdo e também na aquisição de códigos específicos que o jovem não domina.

As notícias analisadas seguem a narrativa de construir a história dos jovens com base no mérito individual. Nota-se que, quando o jovem ingressa no curso de Medicina por meio das ações afirmativas, como nas notícias 1 e 4, isso não está presente nas notícias. No entanto, quando a reportagem mostra um estudante que se enquadra no perfil das ações afirmativas, mas ingressou na concorrência geral, o fato é reforçado.

O merecimento individual é um enredo amplamente utilizado em produtos midiáticos – em matérias noticiosas, reportagens, telenovelas ou livros. Esse discurso, no entanto, ameniza a desigualdade social e escolar, ao colocar o sucesso ou fracasso escolar como responsabilidade do próprio esforço do jovem (SOUZA, 2012). Esse é o caso de várias narrativas jornalísticas que contam a história escolar de sucesso de jovens da classe trabalhadora, que envidenciam a meritocracia, não mencionam a desigualdade social e negligenciam ou ocultam a importância de políticas públicas como as ações afirmativas.

Quadro 2 - Codificação das reportagens analisadas
TítuloTecnologia digitalCodificaçãoRelação com o poder
1Medicina na UnB/RitiéliPresenteDominanteReforço da ideologia neoliberal meritocráticaNão nomeia ações afirmativas no acesso à educação superior
2Estudante de Ceilândia passapara Medicina na UnB/GeorgeNão apareceDominanteReforço da ideologia neoliberal meritocráticaFrisa que estudante, mesmo tendo direito,ingressou sem a utilização das cotas
3“Universidade existe para a gente também”, diz aluno da rede pública após 3ºlugar em Medicina na UnB/GeorgePresenteDominanteReforço da ideologia neoliberal meritocráticaFrisa que estudante, mesmo tendo direito,ingressou sem a utilização das cotas
4Aluno vende doces para estudar e passa em Medicina na UnB/LucasNão apareceDominanteReforço da ideologia neoliberal meritocráticaNão nomeia ações afirmativas no acesso à educação superior
Fonte: Autoria própria, 2022.

Detalharemos agora as matérias selecionadas, apresentadas no Quadro 2, que relatam o ingresso de jovens da classe trabalhadora em cursos de alto reconhecimento social. As matérias selecionadas trabalham especialmente o fato de o estudante conseguir “driblar” as dificuldades para ocupar uma vaga na educação superior. Exemplo é a notícia 1, “Medicina na UnB”. Nela, aparece a estudante Ritiéli, que teve paralisia cerebral na infância. Aliás, essa questão de saúde é a primeira a ser apresentada, já na fala direta da jovem. Sua casa é simples, com paredes sem pintura. A jornalista frisa que as limitações cognitivas e motoras não impediram que ela conquistasse uma vaga em Medicina, o curso mais concorrido da UnB.

Ritiéli conta que as pessoas se surpreenderam quando ela disse que desejava ingressar em Medicina, pois não tinha “bagagem nenhuma de Ensino Médio”, tampouco tinha “estrutura”. Nesse momento, a fala tem cobertura da imagem da viela em que a acadêmica mora. Na segunda parte da notícia, a jornalista reforça que ela, além da deficiência, precisou superar outras dificuldades: a falta de acompanhamento de professores e não ter acesso à internet. Para ter mais benefícios nos estudos, ela se mudou para a casa do namorado a fim de utilizar um computador com acesso à banda larga. A jovem também participou das atividades do cursinho comunitário Bora Vencer.

A notícia mostra a entrevista com a mãe de Ritiéli, que enfatiza, emocionada, a conquista da filha. A finalização ocorre com um depoimento da jovem sobre as diferenças sociais: “desanimam muita gente a continuar nesse sonho, meio maluco para alguns, mas ver que hoje tudo é possível”. O que pode parecer uma reflexão sobre o abismo social brasileiro, pois afirma que há uma evidente desigualdade social no acesso à educação superior, na verdade abraça a proposta narrativa construída desde o início da matéria, que é a de reforçar o mérito individual da estudante. Não há menção às ações afirmativas na notícia, elas sequer são nomeadas, mesmo sendo utilizadas pela jovem no ingresso da UnB.

A notícia 2, “Estudante de Ceilândia passa para Medicina na UnB”, e a notícia 3, “’Universidade existe para a gente também’, diz aluno da rede pública após 3º lugar em Medicina na UnB”, contam a história do estudante George, filho de um marceneiro e de uma costureira, moradores do Sol Nascente. O jovem não tinha recursos para pagar um curso preparatório e contou com o financiamento solidário de um professor. A jornalista afirma que o estudante, pobre, não teria condições de arcar com o curso, mas que nunca desistiu do seu sonho de cursar Medicina. George conta que, com o apoio do curso, conseguiu corrigir sua base escolar, pois nunca, em suas palavras, teve acesso a um ensino de qualidade.

Após o depoimento do jovem, a jornalista fala que ele ganhou a oportunidade e soube aproveitá-la. Nesse momento, aparece na tela a posição de George no Sistema de Seleção Unificada (SiSu) do curso almejado na UnB: terceiro colocado em ampla concorrência. A fala do professor que auxiliou financeiramente o jovem é de que, somente com um ano de preparação, George conseguiu ir bastante longe, pois, quando o conheceu, não sabia realizar contas de matemática básica. Para finalizar, a jornalista fala que George é uma inspiração para outros jovens da “mesma condição que a dele”. George deixa um recado para esses jovens: “não desistam de seus sonhos para que consigam a aprovação”.

A notícia 3 começa com o apresentador do telejornal frisando que George tirou um “notão” e não entrou pelas cotas. A jornalista conta que a mãe, ao saber do resultado, chegou a passar mal de emoção. A partir desse momento, ao mostrar os cômodos simples da casa, fala que George sempre estudou em escolas públicas, que sofreu com greves e falta de estrutura. Conta que ele teve de começar a trabalhar cedo para auxiliar no pagamento das contas. George explica que foram inúmeros os percalços na vida estudantil até conhecer o professor que o auxiliou com uma bolsa integral em um curso preparatório. Após a aprovação, a jornalista afirma que George pretende doar as apostilas e dar aulas em cursos gratuitos para ajudar jovens “da mesma situação que ele”. Nessa notícia, o próprio estudante finaliza ao dizer que “a gente precisa colocar essa galera que está à margem dentro desses espaços, porque tudo que a gente quer é oportunidade, a gente só precisa disso, de oportunidade”.

As notícias 2 e 3 são parecidas em alguns aspectos. As duas frisam que George ingressou na UnB sem a utilização das ações afirmativas, o que valida o empenho do próprio estudante. Fica evidente o sentido da matéria jornalística, que dá ênfase ao esforço, sem ponderar a importância das políticas públicas – especialmente na fala dos repórteres. A maneira como essas notícias foram construídas leva à reflexão sobre a influência do discurso dominante, que vê as conquistas de jovens de classes populares que ingressam em cursos concorridos por meio do caráter de esforço meritocrático, como se casos como esse fossem regra. Assim, boa parte da grande mídia aborda o ingresso de jovens da classe trabalhadora na educação superior por meio de uma codificação da mensagem de caráter neoliberal dominante, como é também o caso das notícias que falam sobre George.

Para finalizar, a notícia 4 conta a história de Lucas, estudante de Medicina e filho de uma empregada doméstica, que vendeu doces, como brigadeiros, para pagar o cursinho e auxiliar nas contas de casa. Essa notícia é outro exemplo da abordagem do esforço individual. A jornalista está na rua em que Lucas mora no Sol Nascente, mesma região administrativa de George. Ela afirma que 61 mil estudantes disputavam uma vaga na UnB, mas o jovem fez a diferença ao conquistar a sua vaga em Medicina na instituição.

A profissional, ao relatar que ele ingressou na UnB em segundo lugar, sem citar que fez uso das ações afirmativas, mostra a casa simples e sem pintura onde mora Lucas. Entrando no quarto do estudante, a jornalista conta que descobriu o segredo, pois há muitos livros e apostilas em cima da mesa, além de um computador portátil. Lucas afirma que ter uma longa rotina de estudos, que chegava a 13 horas, foi primordial em sua caminhada. Para finalizar, mostra Lucas fazendo doces para vender, dinheiro que utilizou para pagar o curso pré-vestibular e também para auxiliar em casa. Nos últimos momentos da notícia, Lucas afirma que a mãe foi sua maior inspiração. Em nenhum momento, a reportagem evidencia que o jovem ingressou na UnB por meio de cotas raciais, o que, de fato, ocorreu.

Ao analisar as mídias televisivas sobre o acesso à educação superior, reflete-se que elas valorizam o protagonismo do sujeito, enquanto silenciam as políticas públicas que reservam vagas para as cotas sociais e raciais. Além de manter o enfoque na ideologia meritocrática, esse enquadramento jornalístico dialoga com uma codificação midiática neoliberal e que busca minimizar a atuação estatal.

A mídia e o estudo em tempos de pandemia

Há uma variedade de abordagens nas peças jornalísticas que relatam os estudos em tempos de pandemia da covid-19. Algumas versam sobre os problemas que os estudantes encontraram no estudo remoto, especialmente a falta de dispositivos, tais como notebooks e smartphones. No entanto, há matérias em que o enfoque é em como esse momento deve ser de reinvenção, uma espécie de self-made man versão estudante, a fim de continuar o ritmo de estudos, mas com o uso das tecnologias digitais.

Esse é o caso da matéria escolhida para trabalhar com os jovens, visto que a produção veiculada pela TV Brasília, em abril de 2020, um mês após a suspensão das aulas presenciais no Distrito Federal, traz pouca ou nenhuma problematização social. Na notícia, intitulada “Alunos aproveitam isolamento e se preparam para provas”, a codificação é dominante e hegemônica. Nela, os depoimentos trazidos pelos próprios jovens falam sobre a necessidade de se adequar para continuar seus estudos de forma remota.

A primeira entrevistada da matéria lembra que nem todos os estudantes têm acesso à internet, “só 70% dos estudantes têm acesso à internet”. Parte de sua fala é coberta por um jovem que, com cadernos em mãos, assiste atentamente a uma aula na televisão. Após, aparece o Escola em Casa, programa de teleaulas ofertado pelo governo do Distrito Federal, mas que, depois, foi interrompido em canais da televisão aberta. Na sequência, há o depoimento da jovem afirmando que esse é um momento de adequação dos estudos. O momento que poderia trazer reflexão sobre o acesso ao mundo digital ou a dispositivos tecnológicos não acontece, pois logo já entra em cena a fala do então presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), Alexandre Lopes. Em suas palavras, o Inep quer “tranquilizar os estudantes”, pois, sim, haverá Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

Na continuidade, há a fala de uma estudante que recebe, de forma online, as atividades do cursinho presencial e que relata fazer simulados todos os finais de semana para testar os seus conhecimentos. A jornalista faz sua primeira aparição para afirmar que as telas ganharam protagonismo e substituíram o quadro, por isso, alguns cursinhos se reinventaram. O diretor de um deles conta que, agora, investe em aulas online gratuitas, para dar oportunidade a jovens que antes não tinham condições de participar das situações de estudo por empecilhos financeiros.

Para cobrir a fala do presidente do cursinho, há a reaparição da imagem de um jovem mostrada anteriormente quando se falou sobre acesso à internet. Ele está em uma casa simples, sem pintura. Cabe salientar que o jovem em questão é negro e não dá entrevista durante toda a matéria. Não se sabe qual a realidade do jovem, sua participação é meramente decorativa. Decoração essa que reforça o discurso meritocrático da reportagem, pois afirma que, mesmo em épocas com dificuldades devido à pandemia, os jovens devem se reinventar em busca do sucesso escolar, mesmo em um contexto de desigualdade escolar e social. Para finalizar, a matéria traz dicas de um coach sobre organização de estudos: ter foco, mentalizar as conquistas futuras e lembrar de quando você atingiu um sonho e se sentiu corajoso.

A matéria reforça a estrutura dominante de codificação, pois o Enem ocorrerá, como assegura o Inep; esse é um direito dos vestibulandos, como disse o seu presidente; e eles precisam se adequar, como os próprios jovens afirmaram. Dificuldades para a adequação não são evidenciadas, sequer são mencionadas. A matéria não problematiza questões estruturais da vida da maioria dos jovens, em especial, os de escola pública. A aparição decorativa do jovem que estuda pelo caderno ao assistir à televisão reforça, também, a codificação dominante, pois não trabalha a pluralidade e diversidade, deixando a cargo do receptor construir a história desse jovem periférico. Da forma como é apresentada a matéria, a leitura imaginativa que temos de sua trajetória é de enfrentamento das dificuldades e de reforço meritocrático nos estudos. Afinal, a matéria frisa que querendo, tendo foco e meta, alcança-se seus objetivos.

A decodificação e a reconstrução das mensagens midiáticas

Partimos do princípio de que os sujeitos fazem algo com as mídias que consomem, Suprimida a ideia da agulha hipodérmica, a que entende que os produtores da notícia obtêm total sucesso na decodificação da mensagem, realizamos um exercício de reconstrução das mensagens midiáticas com os jovens. Afinal, o que esses jovens pontuariam nas notícias se a eles fosse dado o poder de contação midiática de uma história? Esse é um momento para o exercício prático em que fica evidente o uso de dois preceitos epistemológicos, estranhamento e desnaturalização.

Desnaturalização é um conceito-chave da Sociologia que auxilia a explicar os fenômenos sociais ao se contrapor aos argumentos explicativos naturalizadores. Com isso, reafirma-se a importância da historicidade dos fenômenos, ou seja, “que nem sempre foram assim” (MORAES et al., 2006, p. 106), e das análises sociais que vão além das explicações de tendências naturais. Já estranhamento é “espantar-se, é não achar normal, não se conformar, ter uma sensação de insatisfação perante fatos novos ou do desconhecimento de situações e de explicações que não se conhecia” (MORAES; GUIMARÃES, 2010, p. 46).

Aliamos o estranhamento e a desnaturalização com a leitura negociada da mídia (HALL, 1973), mas especialmente com a resistente. Entender que há uma naturalização do cotidiano e que é possível refletir criticamente sobre ele é, também, revelar as ideologias presentes nos diversos discursos. Dessa forma, encontramos, na reconstrução midiática, uma possibilidade de compreensão do que esse jovem pondera sobre a mídia e, em especial, sobre o próprio discurso hegemônico de meritocracia nos estudos, visto que essa é a apresentação e o enquadramento midiático preponderantes sobre o acesso à educação superior por jovens da classe trabalhadora.

Em um contexto de pandemia, cabe salientar que a notícia “Alunos aproveitam isolamento e se preparam para provas” foi enviada previamente aos jovens e, por mensagem de texto, frisamos a importância de assistir à reportagem antes da entrevista. Primeiramente, nós, pesquisadores, precisamos nos distanciar do jovem idealizado, que seria resistente e inovador. O teor das análises das respostas dos jovens demonstra que, em muitas vezes, a decodificação da mensagem midiática não ocorre sob o viés de um pensamento crítico e emancipatório, mas está alinhada ao pensamento neoliberal. Entender que a mensagem da mídia é uma construção passível de análise crítica e que, como construção, é formada por discursos selecionados, é primordial para viver de maneira consciente.

Para os jovens, a mensagem principal da notícia analisada é que os estudantes podem e devem se reinventar durante a pandemia da covid-19. Nesse enquadramento, a quarentena torna-se uma oportunidade para estudar e os jovens sentem a pressão para adequar os estudos para o Enem. Já quando demandados que resumissem a matéria, os jovens mostram diversos olhares sobre a mídia. A maioria apenas pincela que a reportagem mostra as várias formas de se estudar na pandemia, como assistir às aulas na televisão, fazer cursinhos online e aproveitar que agora “tenho tempo para estudar”. Poucos elaboram críticas, mas quando as fazem, estão baseadas em suas próprias vivências, influenciadas pelo campo social em que estão inseridos (BOURDIEU, 2013).

A notícia assistida pelos jovens caminha na mesma estrutura discursiva que a propaganda do Enem 2020, que tem como slogan “A vida não pode parar”, amplamente divulgada nas redes sociais. Dos jovens entrevistados, chama a atenção a elaboração de Dandara que, criticando a construção midiática, utiliza satiricamente o slogan da propaganda oficial do Enem 2020. Para ela, a notícia lembra a propaganda do Enem 2020: “estude onde for, como for, porque vai ter Enem”. De fato, há bastante similaridade discursiva entre elas. Essa peça foi criticada por conter discurso meritocrático e gerou diversas reações na internet, com memes baseados na frase: “você que lute!”.

Fritoli e Polato (2021), ao analisarem a propaganda do Enem 2020, encontraram sinais de distinção social e poder aquisitivo distantes da maioria da população brasileira, como jovens utilizando Iphones e Macbooks. Além disso, a própria redação da propaganda, com frases como “estude, de qualquer lugar, de diferentes formas, pelos livros, internet, com a ajuda a distância de professores” não faz contextualização social. A propaganda mostra “signos ideológicos vinculados a poder econômico e que ajudam a configurar discursos de igualdade de condições de ensino e estudo remoto, acessibilidade a tecnologias” (FRITOLI; POLATO, 2021, p. 342), uma falsa realidade brasileira. Apesar disso, muitos dos entrevistados internalizam que a pandemia traz oportunidades de estudo e que eles deviam, mesmo que individualmente, reinventar-se.

Neto e Silva (2020, p. 3) analisam que a propaganda “reverbera [...] a lógica neoliberal, que focaliza o esforço individual como alternativa possível para o êxito, desconsiderando disparidades sociais e econômicas”. De forma geral, a internalização do discurso de que a pandemia é um momento oportuno para estudar é forte e presente nos jovens da pesquisa.

Os entrevistados corroboram a visão da notícia, pois afirmam que “a gente deve adequar e aderir às aulas on-line nesse momento de pandemia” (Rafaela), “é difícil para todo mundo manter o foco, e a positividade, mas é só manter a calma, respirar fundo, que vai conseguir” (Frederico), “eu achei fundamental ter mostrado os problemas que estão acontecendo, como podemos pensar em soluções” (Augusto), “os cursinhos online são uma boa ferramenta de estudo” (Cristina), “a gente tem que correr atrás e procurar outros meios” (Vanessa) e “a gente tem que ter foco, disciplina para conseguimos o nosso objetivo” (Carol). Uma das jovens, Vanessa, chega a dizer que “amou” a matéria e que repassou às amigas para que as incentivassem em seus próprios estudos. No entanto, fica evidente o mea culpa dos estudantes que, ao verem como outros jovens mostrados na matéria – mesmo que em condições relativamente privilegiadas – estudam, também se cobram o mesmo, sem análises comparativas da realidade distinta.

Quando há discordância com algum ponto dessa notícia, os jovens normalmente recorrem ao problema do acesso à tecnologia. “Muitos não têm acesso ao WiFi. Eu não tenho.” No entanto, o contrário, que é ter acesso à tecnologia, por si, é suficiente? Nesse ponto, ressalta- se, na fala dos entrevistados, a importância do professor, na convivência e nas orientações em sala de aula, mas também sobre esse encontro na construção do conhecimento. O “privilégio da dúvida”, como lembrado por Augusto, é uma das práticas em sala de aula mais citadas pelos jovens. No entanto, ter alguém para sanar dúvidas na aprendizagem não é a única ausência do contato humano com o professor. Nóvoa e Alvim (2021) realizam apontamentos sobre o profissional da Educação e os desafios intensos da pandemia, frisando a importância da autoria pedagógica e da prática do professor:

A pedagogia é sempre uma relação humana. Temos necessidade dos outros para nos educarmos. Os professores têm um papel fundamental na criação das melhores condições para que essa relação tenha lugar. O digital pode ser útil para manter os laços, mas nunca substituirá o encontro humano. Porque o sonho é um elemento central da educação, e as máquinas talvez possam pensar, e até sentir, mas nunca poderão sonhar. Mas, também porque a educação implica um vínculo que transforma, ao mesmo tempo, alunos e professores, e, pela Internet ou “à distância”, essa possibilidade fica diminuída . (NÓVOA; ALVIM, 2021, p. 11).

Para Nóvoa e Alvim (2021), o discurso de que temos uma infinita possibilidade de acesso a conteúdos em nossos smartphones e notebooks, que desconecta o professor da relação com o conhecimento, é um sonho vendido como o futuro da educação, que seria individualizado e permeado pela tecnologia. Nesse cenário, no qual os estudantes se adequariam, “as escolas e os professores seriam dispensáveis” (NÓVOA; ALVIM, 2021, p. 12). Esse é um cenário para todos? Nóvoa e Alvim (2021) defendem que os professores são vitais na composição e na transformação da educação pública, assim como ao construírem o vínculo humano com os estudantes. Os jovens exprimem a dificuldade em se motivar para os estudos e buscar informações sozinhos, pois se sentem desorientados e desmotivados:

Na escola, o professor explica de outra forma, e mais de uma vez. A gente tem dificuldade e o professor fala: “quem tem dificuldade me chama”. Ele chega e ajuda. E tem os colegas, também, que explicam. Gioconda

O contato com o professor, eu sinto falta disso. Porque o diálogo auxilia bastante. É a disponibilidade do professor. Você pode falar com ele. Marcio

Eu sinto muita falta do professor presencial. Porque a gente pode levantar a mão, perguntar, questionar. Já em casa a gente fica com dúvida e tem que voltar no vídeo até entender. Martina

Na escola, eu tinha o privilégio da dúvida, porque, na escola, qualquer dúvida que eu tinha, eu recorria ao professor. Augusto

Os jovens constroem outras críticas, em especial sobre a generalização efetuada pela reportagem que, ao enaltecer a possibilidade de estudar em pandemia, não traz à tona as adversidades encontradas pelos estudantes. Para citar, temos problemas com a ausência da escola, com a “base online fornecida pelo GDF” (Augusto), além de ter de lidar com outras angústias de estudar de forma remota, como “ter foco enquanto se fica com a família e se cuida da casa” (Dandara).

Não é possível continuar a análise sem refletir sobre a diferença entre os gêneros evidenciada pelas entrevistadas. O estudo da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), “When schools shut” (tradução livre “Quando as escolas fecham”), mostra que as estudantes, em especial as de menor grau de instrução e privilégios econômicos, foram as mais afetadas com o distanciamento, o isolamento social e o fechamento das escolas, pois ficaram sobrecarregadas com “cuidados com os mais novos ou familiares mais velhos, com o ato de cozinhar, limpar [...]” (Unesco, 2021, p. 31). Esse relato, encontrado em uma cidade do continente asiático, assemelha-se à realidade de algumas de nossas entrevistadas em Brasília-DF, capital brasileira:

u prefiro ensino presencial, porque muita gente não consegue prestar atenção, tem distrações dentro em casa, por exemplo. Eu acordo às 7h30, espero meus pais saírem para trabalhar, eu vejo o telejornal para acompanhar as notícias, ver o que está passando, eu separo o que vou estudar no dia, faço o almoço e depois do almoço eu limpo a casa. Depois que eu estudo, eu passo pano rapidinho na casa para receber meus pais e limpo a área da minha cachorra. Rafaela

Rafaela é uma das que mais cita as dificuldades que encontra em estudar para o Enem em tempos de pandemia da covid-19, pois, na ausência dos pais, limpa a casa e faz o almoço para o irmão mais velho, que também estuda para o exame. Por isso, precisa realizar um cronograma apertado para realizar as atividades domésticas e conciliar os estudos escolares e, também, aqueles para o ingresso no Ensino Superior. Ter o exemplo do irmão em casa que, sendo também estudante, não realiza as mesmas atividades, é algo frisado, mas não problematizado pela jovem. Não há o estranhamento e a desigual divisão das tarefas entre os dois é naturalizada.

A reconstrução do discurso da mídia é uma oportunidade para entender a reflexão que os sujeitos fazem com os diversos discursos que estão presentes em suas vidas. Essa foi uma opção metodológica para se aliar à própria definição da decodificação da notícia. No caso específico, pretende-se analisar como dialogam com o discurso hegemônico neoliberal preconizado pela mídia e que enaltece o protagonismo do mérito individual.

Concluímos que a maioria dos jovens tem leitura negociada, algo esperado (HALL, 1973), pois reconstroem a mídia com base em suas próprias vivências, familiar ou escolar, por meio das diversas mediações que os sujeitos têm (MARTÍN-BARBERO, 2009) e de suas próprias participações no campo social em que estão inseridos (BOURDIEU, 2013). Os discursos das leituras negociadas focam em modificações pontuais na matéria, sem problematizações sociais e construções que vão contra a codificação mostrada previamente. Exemplo de contestações pontuais é frisar que nem todos têm internet ou que algumas pessoas não conseguem ter foco em casa. Esses jovens, no entanto, mantêm questões primordiais da codificação da matéria, alinhadas ao discurso neoliberal dominante, como “concordo que a gente deva se adequar a esse momento da pandemia” (Rafaela), “que a matéria mostra os cursos disponíveis, inclusive gratuitos” (Thaís) e “temos que ter foco, colocar na cabeça que precisamos ter meta” (Carol).

Outra questão emergencial levantada pelos jovens é o acesso à tecnologia de qualidade. Gatti (2020) reflete sobre as dificuldades que os estudantes têm com as imposições oriundas do distanciamento e do isolamento social, em especial sobre ter uma boa internet e um dispositivo de qualidade. Essas dificuldades, lembra Gatti (2020), modificam-se de acordo com os privilégios que os estudantes têm. Dandara, em específico, tem smartphone e um computador portátil, porém tem acesso restrito a ele, pois também é utilizado pela mãe e pela irmã na casa de dois cômodos:

Uma parte de mim pensa que está certo cumprir metas, ter meta depois de meta para não se acomodar, mas eu penso na minha vida. Aqui em casa é pequeno, é uma quitinete, como que eu faço já que não consigo focar direito e divido o notebook com minha mãe e irmã que também estudam? Dandara

Outros jovens, sempre mediante a análise da sua própria vivência no cotidiano, modificariam outras questões na notícia. Criticam, em especial, as dificuldades com a tecnologia, como levantadas por Gatti (2020). Thaís diz que a matéria deveria ter trabalhado os jovens que estudavam antes da pandemia, como ela, mas que, com a quarentena, não conseguiram manter os estudos. Thaís não tem acesso a WiFi, mora na zona rural de São Sebastião-DF e não conseguiu implementar uma rotina de estudos. Assim como ela, Frederico, morador da zona urbana de São Sebastião-DF, não tem WiFi, então, em sua opinião, diz que não pode fazer o que a matéria mostra, que é frequentar cursinhos online gratuitos. Luan, Carol e Ary refletem que os seus colegas talvez não tenham as condições necessárias para se manterem estudando e criticam a generalização da mídia. Embora haja estranhamento de questões apresentadas na mídia, isso é pontual. Não há, nesses casos, discordâncias estruturais na reconstrução e que vão de encontro à codificação, por isso, a fala desses jovens é de negociação.

Os três jovens com leituras resistentes (Augusto, Martina e Cristina) demonstram, em vários momentos das entrevistas, o cuidado em explorar as desigualdades sociais que, frisam, já existiam no país e que são aprofundadas pela pandemia. Augusto lembra que “tem gente que só tem o aprendizado da escola”, sem contar com cursinhos e apoio familiar. Cristina acredita que nem todo mundo que se esforça consegue seu sucesso. “A meritocracia não existe no Brasil”, lembra. “Não adianta eu ter esforço e querer, sendo que não tenho o meio de conseguir”, conclui. Martina lembra que, com esforço se conquista algo, “mas não é igual a uma pessoa que tem estrutura e dinheiro, com oportunidade”. Ferreira e Barbosa (2020) evidenciam que a pandemia aprofundou ainda mais essas desigualdades sociais, já tão evidentes em nosso país:

Mais uma vez se testemunha o acirramento das desigualdades no acesso à educação entre crianças e jovens de diferentes condições econômicas e sociais. Além de estarem mais sujeitos a condições domiciliares adversas, como as apontadas anteriormente, os estudantes das escolas públicas, instituições que acolhem predominantemente as crianças e os adolescentes pobres, nem sempre têm acesso a plataformas de educação online mais atuais e versáteis, que contem com amplos recursos (FERREIRA; BARBOSA, 2020, p. 9).

Os jovens com leitura resistente lembram que a matéria tem um discurso meritocrático, em especial a fala do coach sobre perseguir seus sonhos, ter metas, foco e disciplina. Ter empatia e refletir, como faz um dos estudantes, sobre “o que está acontecendo na vida dos outros” (Augusto) permite entender as adversidades que podem existir, como quem não consegue ter foco, pois precisa cuidar da casa ou sobre quem, depois da pandemia da covid-19, não conseguiu mais estudar, seja por problemas no acesso, seja por distanciamento da cultura escolar. É evidente o desamparo que alguns jovens amarguram em referência à escola, ao sentirem que seus planos de estudos para o Enem, muito dependentes dela, estavam frustrados. Por isso, relatam que modificariam essa questão e que a trariam à tona na matéria.

Dos 13 jovens entrevistados, três detêm leitura dominante da matéria (Marcio, Gioconda e Vanessa), pois concordam com a abordagem e o enquadramento da reportagem e não fariam nenhuma alteração: “gostei da abordagem, das motivações e da fala de incentivo do coach” (Vanessa). A própria negação da necessidade de modificar a matéria, pois ela contempla seus anseios e o discurso predominante, não lhes causa incômodo, o que é um marco, também, da leitura dominante, a que concorda com a codificação midiática neoliberal.

Ao propor a reconstrução dos discursos, colocamos esses jovens como autores protagonistas. Não acreditamos na passividade diante da mídia e nos interessa, também, brechas de atuação de possível contestação desses discursos. No entanto, não idealizamos o sujeito como ativo, muito menos o jovem como transformador. Essa também não foi a realidade evidenciada pela análise dos dados. Assim, a reconstrução auxilia a refletir sobre a própria decodificação das matérias e a naturalização dos discursos neoliberais, uma ação ideológica oculta no cotidiano e amplamente difundida nos principais veículos de comunicação.

CONCLUSÃO

Utilizar a mídia para promover a desnaturalização do cotidiano possibilita refletir sobre os diversos discursos ideológicos que circulam em nossa sociedade. Encontrar os jovens em uma posição de reconstrução midiática proporciona que eles reflitam sobre a forma como gostariam que fossem contadas, pela mídia, as histórias de jovens periféricos ao ingressarem na universidade. As histórias são de outros, mas poderiam ser sobre eles mesmos. Escrever uma notícia sob determinados ângulos e abordagens é uma escolha política. A reconstrução possibilita, assim, uma articulação entre as vivências dos sujeitos, familiares e escolares.

Somada à especificidade do contexto, entendemos que o modelo Codificação e Decodificação deve ser interpretado pela necessidade de nos aproximarmos ideologicamente da produção midiática e da leitura dos jovens, também relacionada à construção dos discursos. Desnaturalizar o cotidiano e as práticas sociais dos sujeitos passa, também, por um exercício epistemológico de entendimento dos interesses discursivos da mídia hegemônica.

Os estudantes de escola pública, participantes dessa pesquisa, têm leitura alinhada ao discurso meritocrático e que vem ao encontro da ideia de que, ao aproveitar as oportunidades, mesmo em condições não ideais, alcança-se o êxito escolar. Há uma cumplicidade velada desses jovens sobre esse discurso, que não é uma defesa explícita, mas se sobressai quando eles reconstroem a notícia televisiva.

Dialogamos criticamente com a naturalização do discurso meritocrático, amplamente difundido em produções da mídia hegemônica. Parte importante da leitura meritocrática provém de valores familiares relacionados à moralidade e que reforçam a força de vontade e a perseverança. A ênfase na trajetória individual é baseada, em especial, na figura batalhadora da mãe, ao focar em virtudes morais como resiliência e trabalho duro. Conclui-se que a maioria dos jovens entrevistados não tem orientação crítica e perspectiva emancipatória na leitura da mídia, e que ocorre, em grande parte das histórias, a manutenção da lógica hegemônica e dominante.

Entendemos que a pesquisa se alinha a outras que se dedicam aos estudos sobre trajetórias escolares de jovens periféricos e à compreensão sobre as desigualdades sociais no acesso à educação superior. Como contribuição social, vislumbramos a temática sendo utilizada para discutir a importância de validação de políticas públicas educacionais para o acesso e a permanência em escolas e universidades.

Como sugestão para pesquisas futuras, entende-se ser profícua a ideia de acompanhamento desses jovens ao longo do avanço da trajetória acadêmica e profissional, com a finalidade de compreensão de como os novos ambientes em que circulam reforçam ou questionam a ideia de meritocracia no acesso à educação superior.

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Notas

1 Júlia Mello Schnor - Doutoranda em Educação (UnB). Mestra em Comunicação Midiática (UFSM). Licenciada e Bacharel em História (UFSM). Professora de História na Secretaria de Educação do Distrito Federal. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8946-5984 Email: juliaschnorr@gmail.com.
1 Carlos Alberto Lopes Sousa - Doutor em Sociologia (PUCSP). Mestre em Educação (UCB). Pedagogo (UFPI). Professor Associado da Universidade de Brasília. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2745-3942 Email: carloslopes@unb.br.
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