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(In)Segurança Ontológica Experimentada pelos Marshalleses
Victoria Viana Souza Guimarães
Victoria Viana Souza Guimarães
(In)Segurança Ontológica Experimentada pelos Marshalleses
Hoplos Revista de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais, vol. 4, núm. 7, pp. 107-129, 2020
Universidade Federal Fluminense
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Resumo: De 1946 a 1958, os Estados Unidos realizaram 6 testes nucleares nas Ilhas Marshall. O artigo expõe as consequências dos testes nucleares sobre a saúde dos ilhéus, sua organização matrilinear e sua cosmovisão local; demonstra que as mudanças climáticas podem ser enquadradas como um risco para a sobrevivência física dos Estados, dos indivíduos, dos ecossistemas e para a segurança ontológica da população marshallesa; e explicita como os marshalleses estão se adaptando a uma nova realidade em Springdale e, paralelamente, preservando sua segurança ontológica por meio de eventos, cultos e clubes nas escolas, que promovam suas tradições, seus sistemas de crenças e suas identidades. Entende-se que o investimento pelos EUA na criação de centros multiculturais para preservar a cultura marshallesa e a concessão de oportunidades de crescimento profissional para essa comunidade pode contribuir para melhorar a sua inserção na sociedade norte-americana e ajudar na preservação da sua segurança ontológica. Já em relação às Ilhas Marshall, seria importante que os EUA contribuíssem para levantar as ilhas artificialmente, para a construção dos muros e para a diminuição dos efeitos das mudanças climáticas por meio de uma atuação mais ativa.

Palavras-chave: Ilhas Marshall,segurança ontológica,testes nucleares,mudanças climáticas,Springdale.

Abstract: From 1946 to 1958, the United States carried out 67 nuclear tests in the Marshall Islands. The article presents the consequences of nuclear tests on islanders' health, their matrilineal organization and their local cosmovision; demonstrates that climate change can be framed as a risk for the physical survival of States, individuals, ecosystems and for the ontological security of the Marshallian population; and explains how the Marshallese are adapting to a new reality in Springdale and, at the same time, preserving their ontological security through events, religious services and clubs in schools that promote their traditions, their belief systems and their identities. It understands that investments by the United States in the creation of multicultural centers to preserve the Marshallese culture and the granting of opportunities for professional growth for this community can contribute to improve their insertion in American society and help preserve their ontological security. In relation to the Marshall Islands, it recommends that the United States contribute by raising the islands artificially, building walls and reducing the effects of climate change through more active action.

Keywords: Marshall Island, Ontological security, Nuclear tests, Climate change, Springdale.

Carátula del artículo

Artigos

(In)Segurança Ontológica Experimentada pelos Marshalleses

Victoria Viana Souza Guimarães
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Hoplos Revista de Estudos Estratégicos e Relações Internacionais
Universidade Federal Fluminense, Brasil
ISSN: 2595-699x
Periodicidade: Semestral
vol. 4, núm. 7, 2020


1 Introdução

A República das Ilhas Marshall é um país localizado entre o Havaí e a Austrália com uma população estimada em julho de 2020 de 77,917 (CIA, 2020). No fim da Segunda Guerra Mundial esse país ficou sob a tutela dos Estados Unidos, que de 1946 a 1958, realizou 67 testes nucleares, exigindo que a população que ali vivia se deslocasse para áreas mais seguras e ocasionando problemas de saúde e da sua cosmovisão local. No final do século XX, esses elementos, fundamentais à segurança ontológica, foram novamente ameaçados, mas dessa vez devido à mudança climática.

O presente artigo tem três objetivos: 1) expor as consequências dos testes nucleares sobre a saúde dos ilhéus, sua organização matrilinear e sua cosmovisão local1; 2) demonstrar que as mudanças climáticas podem ser enquadradas como um risco para a sobrevivência física dos Estados, dos indivíduos, dos ecossistemas e para a segurança ontológica dos ilhéus que compreendem a natureza como parte de sua auto-identidade; e 3) explicitar como os marshalleses estão se adaptando a uma nova realidade em Springdale, Arkansas – EUA, e, paralelamente, preservando sua segurança ontológica por meio de eventos, cultos e clubes nas escolas, que promovam suas tradições, seus sistemas de crenças e suas identidades.

O longo recorte temporal, que se inicia no período pós-segunda guerra mundial e se estende até a contemporaneidade, justifica-se pela necessidade de contextualizar e desenvolver os objetivos do trabalho. A opção pelas Ilhas Marshall, por sua vez, está relacionada ao fato de esse ser um país bastante ativo na defesa da segurança, não apenas de seu território, mas também de suas tradições, sua identidade e sua cultura em instituições como as Nações Unidas e a Corte Internacional de Justiça. Além disso, o caso das Ilhas Marshall é representativo de outros países que lidaram com desastres naturais associados de alguma forma aos testes nucleares que lhes foram afligidos.

O artigo busca contribuir para centralização de narrativas marginalizadas de (in)segurança realizadas por indivíduos que estão sendo diretamente impactados por problemas ambientais e que são enquadradas dentro das dinâmicas presentes nos Estudos de Segurança Internacional (ESI) caracterizadas pela centralização do Estado e pela perspectiva militarizada do “nós x outros” (MATTOS, 2019, p. 17). Busca-se enfatizar outras formas de pensar e vivenciar a (in)segurança, e também, explicitar como o significado desse conceito está relacionado aos contextos político, cultural e emocional (MATTOS, 2019, p. 20).

O trabalho está dividido em três partes: segurança ontológica; metodologia; e o caso das Ilhas Marshall, este se subdivide em testes nucleares, mudanças climáticas e a busca por segurança ontológica em Springdale. A pesquisa entende que o investimento pelos EUA na criação de centros multiculturais e a concessão de oportunidades de crescimento profissional para essa comunidade pode ajudar a melhorar a sua inserção na sociedade norte-americana e ajudar na preservação da segurança ontológica dos ilhéus. Já em relação às Ilhas Marshall, seria importante que os EUA contribuíssem para levantar as ilhas artificialmente, para a fortificação dos muros, e com uma atuação mais ativa para a diminuição dos efeitos das mudanças climáticas.

2 Segurança ontológica

Ao revelar o caráter político da agenda de segurança e ao permitir uma leitura contextual, os estudos críticos e o movimento de abertura mostram que há diversas leituras que podem ser feitas da segurança (MATTOS, 2019, p. 61). Neste sentido, para Beatriz Mattos (2019, p.55), a teoria da segurança ontológica é uma abordagem promissora para mediar as relações entre mudança climática e segurança.

A razão por trás dessas afirmações reside no fato de que, enquanto a abordagem de segurança ambiental ofereceria uma análise que entende as mudanças climáticas como uma ameaça à segurança nacional e/ou humana; a abordagem realista enfatizaria como seus efeitos afligiriam a soberania dessa região; e as abordagens humanas liberais demonstrariam como isso diminuiria a capacidade do governo de gerenciar recursos essenciais e proteger seus cidadãos, representando uma ameaça à sobrevivência e ao bem-estar humano (MATTOS, 2019, p. 61). A perspectiva ontológica permite analisar como os efeitos das mudanças climáticas criam novas maneiras de entender e conceituar segurança; já que esse fenômeno ambiental apresenta um risco não somente para a segurança física dos Estados e dos indivíduos, mas também para as identidades, os sistemas de crenças e as tradições (MATTOS, 2019, p. 24).

O conceito de segurança ontológica foi originalmente teorizado pelo psicanalista Ronald David Laing e por Anthony Giddens, na sociologia, e se estabeleceu nas Relações Internacionais (RI) e nos ESI por meio de autores como Jef Huysmans, Bill McSweeney, Catarina Kinnvall e Jennifer Mitzen.

Apesar de ser um conceito recente no âmbito das RI e dos ESI, já existem diversos autores2 que fazem uso dele usando diferentes objetos referentes e métodos. Contudo, para Kinnvall e Mitzen (2016, p. 3), é possível identificar sua essência que se encontra na tentativa de articular a

... relação entre identidade e segurança e entre identidade e resultados políticos importantes na política mundial, com a premissa de que a subjetividade política é socialmente constituída de maneiras que têm efeitos reverberantes em muitos níveis

... [e seu foco que] ... enfatiza o que entra nas histórias ou narrativas que contamos a nós mesmos e a nossas relações com os outros. É um chamado para investigar razões cognitivas e afetivas pelas quais indivíduos, grupos e até Estados experimentam insegurança e ansiedade existencial e explorar as respostas emocionais a esses sentimentos (tradução nossa)3.

Kinnvall e Mitzen (2016, p.4) ressaltam diferentes modos pelos quais o conceito segurança ontológica é aplicado: 1) necessidade trans-histórica ou fruto da modernidade; 2) busca por solucionar problemas (usando uma concepção fechada da subjetividade ou usando uma abordagem crítica/emancipatória) e 3) a noção de si como intersubjetiva, estando sempre relacionada a outras pessoas, ou intra-subjetivo, cumprindo noções particulares de sua própria identidade enquanto a define.

Em relação ao primeiro modo, o presente trabalho se baseia em Giddens (1990, p.105) e Kinnvall (2004, p.742), que afirmam que a modernidade ou globalização, respectivamente, cria incerteza e insegurança ontológica. De modos diferentes, esses autores argumentam que as instituições modernas desencadeiam novas dinâmicas que, por intermédio da recombinação do tempo e do espaço e do rompimento da tradição, fazem com que seja mais complicado sustentar uma continuidade biográfica e um senso estável de si (MATTOS, 2019, p. 59). Considerando- se as pesquisas de Giddens sobre os efeitos desestabilizadores da modernidade na segurança ontológica, o trabalho argumenta que as mudanças climáticas podem potencializar esses efeitos (MATTOS, 2019, p. 52).

Já em relação ao segundo modo, busca-se evitar uma definição fechada de segurança/insegurança. O objetivo é oferecer entendimentos contextuais sobre as realidades e desvendar como as narrativas hegemônicas sobre segurança não correspondem a uma descrição atemporal e incontestável sobre o que segurança “é” revelando, assim, a inadequação de certas ideias e práticas quando aplicadas a diferentes contextos (MATTOS, 2019, p. 59-60).

A autora concorda com Huysmans em seu objetivo de fornecer um entendimento contextualizado de segurança, por meio da operacionalização do thick signifier approach, ao invés de um entendimento fechado. Como afirma Kinnvall (2004, p. 744-746), analisar a segurança com o thick signifier approach fornece conhecimentos sobre como as condições estruturais de insegurança estão conectadas a aspectos emocionais e à mobilização de identidades. Nesse sentido, a conceitualização marshalliana de segurança será analisada por meio de uma pesquisa das principais dimensões da (in)segurança no centro de uma ordem mais ampla de significados, estes que não são necessariamente construídos por meio de práticas linguísticas e podem ser fortalecidos ou interrompidos por representações estéticas, orais e visuais (MATTOS, 2019, p. 59-60).

Finalmente, quanto ao terceiro modo, este trabalho diverge da compreensão de Kinnvall (2004, p. 752) e Mitzen (2006, p.342) sobre a relação dicotômica entre "eu" e "outro". Entende- se que a identidade marshallesa não é considerada ameaçadora pelo estranho. A conceituação de segurança utilizada desafia a racionalidade militarizada, que permeia os ESI tradicional, e as identidades conflitantes e dicotômicas, que normalmente estão presentes nos estudos ontológicos de segurança (MATTOS, 2019, p. 60). A seguir, será abordada a metodologia empregada.

3 Metodologia

Segundo Jef Huysmans (1998, p. 231, tradução nossa)4, o thick signifier approach5 amplia a análise conceitual e implica uma análise de uma “metafísica específica da vida”, explorando a “relação com a natureza, com os outros seres humanos e com o eu”. Mattos (2019, p.91) argumenta que, para analisar essas relações mais amplas, é necessário incluir a análise das dimensões culturais6 e emocionais que possibilitam conceituações específicas de segurança.

As emoções ajudam a determinar o que priorizar mais como um objeto de referência a ser protegido contra ameaças e serve de "guia" para a identificação/construção de ameaças; elas são uma condição que possibilitam a compreensão sobre o que significa se sentir seguro (MATTOS, 2019, p.91). Bleiker e Hutchison (2008, p. 128, tradução nossa)7 argumentam que “um dos locais mais promissores para estudar emoções é a maneira pela qual elas são representadas e comunicadas”. Desse modo, Mattos (2019, p.91) sustenta que chamar a atenção para a maneira como os objetos são representados é uma forma de compreender os significados emocionais a eles associados.

Considerando o papel fundamental das emoções nos estudos de segurança e a capacidade das representações estéticas de torná-las visíveis, Mattos (2019, p.92) propõe a curiosidade estética como uma maneira de entender as dimensões emocionais que informam os diversos entendimentos sobre (in)segurança. Nesse sentido, o thick signifier approach da segurança dependeria da análise dos contextos culturais e emocionais específicos a partir dos quais a segurança adquire significado, por meio de uma curiosidade estética que chama a atenção para a maneira como a vida cotidiana dos indivíduos é representada (MATTOS, 2019, p.92).

Toda análise é influenciada por determinado ponto de vista, percepção ou interpretação individual; desafiando o entendimento objetivo sobre uma realidade inequívoca, presente nas teorias tradicionais da RI e da ESI, a curiosidade estética permite que os receptores da mensagem experimentem mundos diferentes (MATTOS, 2019, p.92). Tal curiosidade estética, proposta por Mattos (2019, p.93), torna explícita a existência de diversas visões de mundo, crenças e sistemas de conhecimento, desafiando as verdades tidas como certas sobre a política mundial e o campo da segurança.

A escolha da estética se justifica por seu potencial para oferecer novas formas de pensar, sentir e comunicar, revelando, assim, diferentes conceitos e racionalidades sobre segurança que geralmente são marginalizados pelas narrativas dominantes (MATTOS, 2019, p. 71). O thick signifier approach se baseia na análise de contextos culturais e emocionais específicos e como eles estão sendo esteticamente representados por meio de filmes, poemas, fotografias ou desenhos (MATTOS, 2019, p.87).

Desse modo, ao questionar que tipos de (in)segurança são promovidas pelos testes nucleares e pelo fenômeno climático nas Ilhas Marshall, testemunhos da população local, comunicados por meio de poesias, filmes e desenhos serão usados. A justaposição desses recursos fornece dispositivos que permitem entender os elementos emocionais e culturais que possibilitam entendimentos distintos sobre: o que significa se sentir (in)seguro, o que é tido como um objeto de referência privilegiado a ser protegido contra ameaças e o que pode constituir uma ameaça e por quê (MATTOS, 2019, p.93).

Neste sentido, busca-se demonstrar a importância da abordagem da segurança ontológica para compreender a (in)segurança sentida pelos marshalleses no contexto dos testes nucleares, das mudanças climáticas e a busca por esta segurança pelos mesmos em Springdale. A seguir será abordado os antecedentes históricos e os testes nucleares.

4 Ilhas Marshall e antecedentes históricos

As Ilhas Marshall foram descobertas pelos espanhóis no século XVII e ficaram sob seu domínio até 1884 quando foram compradas pela Alemanha (RUDIAK-GOULD, 2013, p.18). Até meados do século XIX, os ilhéus raramente interagiam com os europeus. No entanto, com a chegada dos missionários americanos, e tendo a Alemanha assumido o controle do território, a população se tornou, pelo menos nominalmente, cristã, sendo a grande maioria protestante (RUDIAK-GOULD, 2010, p.70). No início do século XX, o país passou a ficar sob o mandato do Japão por meio de um regime de tutela aprovado pela Liga das Nações; já durante a II Guerra Mundial, passou a ser formalmente dos EUA sob auspícios das Nações Unidas, como parte do Território de Confiança das Ilhas do Pacífico (RUDIAK-GOULD, 2013, p.19). Em 1978, o país se separou do Território de Confiança e no primeiro dia de maio do ano seguinte foi criada sua constituição estabelecendo-as como um país autônomo e, posteriormente, uma República. Este dia passou a ser considerado o Dia da Constituição pelos marshalleses que comemoram a criação da nova Constituição e o status de República independente alcançado. Em 1986, entrou em vigor o Tratado de Livre Associação com os EUA e em 1991 o país se tornou membro da ONU.

4.1 Testes nucleares durante a tutela norte-americana

Em 1946 foi iniciada a Operation Crossroads no Atol de Bikini para testar armas nucleares com o intuito de determinar seus efeitos em navios de guerra dos EUA. O comodoro da Marinha Ben Wyatt fez um apelo aos bikinianos para evacuarem a ilha, declarando que suas terras eram necessárias para "o bem da humanidade e para terminar todas as guerras mundiais" (WENDORF, 2019, tradução nossa)8. O chefe de Bikini, Juda, concordou em evacuar os 167 ilhéus com o entendimento de que eles poderiam retornar quando os testes terminassem.

A Marinha estadunidense transportou os ilhéus para o Atol de Rongerik e os deixou com algumas semanas de comida e água (WENDORF, 2019). Os bikinianos começaram a plantar novas colheitas e pescar, mas, em Rongerik, suas colheitas produziam muito menos alimentos e havia muito menos peixes (WENDORF, 2019). No final dos anos 1940, os bikinianos passavam fome e, portanto, foram novamente deslocados, agora para a ilha de Kwajalein. Entretanto, seis meses depois, tiveram que se mudar para a ilha Kili que também não fornecia comida suficiente (WENDORF, 2019).

No ano de 1948 foram os ilhéus do Atol de Enewetak, que num processo de expansão do programa de testes nucleares, foram forçados a evacuar. Mais de quarenta testes foram efetuados nesta ilha, incluindo a primeira explosão de uma bomba de hidrogênio – Ivy Mike em 1952 (ATOMIC HERITAGE FOUDATION, 2019). Em 1980, depois de remover grande parte do solo desse Atol foi informado que os ilhéus já poderiam retornar.

Em 1954 foi detonado no Atol de Bikini a bomba de hidrogênio, conhecida como Bravo. Essa bomba de 15 megatons, muito mais forte do que a de Hiroshima, vaporizou ilhas e espalhou detritos radioativos.

Depois disso, a população marshallesa apresentou uma petição formal à ONU:

O povo marshallês ... estão também muito preocupados com o aumento do número de pessoas que estão sendo removidas de suas terras. Terra significa muito para os marshalleses. Significa mais do que apenas um lugar onde você pode plantar suas colheitas e construir suas casas; ou um lugar onde você pode enterrar seus mortos. É a própria vida das pessoas. Tire suas terras e seus espíritos também se vão (THE MARSHALLESE PEOPLE, 1954, p. 1, tradução nossa)9.

Nesse trecho fica explicita a preocupação do povo marshallês com os ilhéus deslocados. Essa preocupação está relacionada ao fato da terra ser entendida como uma base importante para sua cultura, organização social, identidade e para o seu espírito nacional (UNITED NATIONS, 2009, p.4).

De acordo com Takala e Johnston (2016) as comunidades insulares foram submetidas ao Projeto 4.1, um programa de pesquisa em radiação humana que operou sob nomes variados de 1954 a 1992, em que equipes médicas dos EUA foram para as Ilhas Marshall com a finalidade de monitorar e documentar a saúde degenerativa e realizar experimentos variados, sem consentimento informado.

O presidente norte-americano, Lyndon Johnson, em 1968, anunciou que era seguro o retorno dos bikinianos a Bikini; contudo, Johnson estava enganado, pois apesar da radiação haver diminuído para níveis normais, o césio-137 havia se concentrado no solo e entrado na cadeia alimentar (WOODARD, 1998, p.11). Nesse mesmo ano, a Comissão de Energia Atômica dos EUA começou a limpar detritos radioativos e a replantar coqueiros, e, em 1969, iniciou um projeto de longo prazo para descontaminar o atol (WENDORF, 2019).

Em 1970, foi comunicado que um retorno seguro a Bikini seria possível, logo, os ilhéus retornaram; contudo, foram encontrados níveis perigosos de radiação, portanto, os EUA evacuaram os ilhéus para o Atol de Majuro. Devido a radiação, as mulheres sofreram abortos, tiveram natimortos e anormalidades genéticas em seus filhos (WENDORF, 2019). Na cultura e religião marshallês, os problemas reprodutivos são um sinal de que as mulheres foram infiéis a seus maridos, por isso elas sofreram de modo silencioso e diferente dos homens (EKNILANG, 2003, p. 318).

Os médicos de Rongelap falharam em perceber ou agir com base nas evidências crescentes de que algo semelhante estava acontecendo (WOODARD, 1998, p.11). Entretanto, no início de 1980, as pessoas sabiam que algo estava errado e pediram para serem evacuadas; os EUA disseram que era desnecessário e o governo das Ilhas Marshall não agiu (WOODARD, 1998, p.11). Assim, em 1985, os ilhéus entraram em contato com a ONG Greenpeace que promoveu a evacuação por meio do navio Rainbow Warrior.

A partir de 1996, os níveis de radiação em Bikini Atol foram considerados baixos o suficiente para permitir o retorno do turismo. Contudo, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) apresentou seu relatório final sobre condições radiológicas e concluiu que os bikinianos não deveriam retornar à sua terra natal, até que medidas corretivas fossem tomadas (IAEA,1998, p.2).

A transferência compulsória dos ilhéus para diferentes atóis foi legitimada por uma narrativa dos EUA que presumiu uma intercambiabilidade e homogeneidade entre toda a comunidade marshalliana; contudo, transferidas por herança, pela linhagem materna, as terras não são vistas como intercambiáveis, o que levou os migrantes forçados a rejeitar o imaginário espacial imposto pelos EUA (MATTOS, 2019, p. 116). Apesar da cultura tradicional (manit) e o cristianismo unirem o país, muitos ilhéus se identificam mais com seus atóis (RUDIAK- GOULD; SCHWARTZ, 2014, p. 219, 225).

As consequências dos testes nucleares - uma ameaça tradicional e militarizada - sobre a saúde dos ilhéus, sua organização matrilinear e sua cosmovisão local contribuíram para o entendimento de que a segurança não se restringe a considerações materiais (MATTOS, 2019, p.104). No final do século XX esses elementos, fundamentais à segurança ontológica, passaram a ser novamente ameaçados, mas dessa vez devido à mudança climática. A próxima sessão do artigo abordará esse tema. Nela será verificada a interpretação científica e não-científica do fenômeno, o que a expressão “mudanças climáticas” significa para o marshallês, como está afetando a sua segurança ontológica e qual tem sido sua reação.

4.2 Mudanças climáticas

As Ilhas Marshall são compostas de atóis de coral baixos, com altitude média de um metro, e trechos longos e estreitos de terras (RUDIAK-GOULD, 2013, p.2). Tais aspectos tornam a nação vulnerável ao aumento do nível do mar. Em 1992 foi divulgado o primeiro relatório sobre os impactos do clima no país e, posteriormente, as Ilhas Marshall passaram a participar do Projeto de Adaptação do Pacífico às Mudanças Climáticas (NAÇÕES UNIDAS, 2009, p. 6). Apesar de já haver disseminação dessa temática nesse período, é no final da primeira década do século XXI que ela ganha maior repercussão.

Segundo Peter Rudiak-Gould (2012, p. 47), em 2009, o único jornal em inglês do país, The Marshall Islands Journal, exibia artigos de primeira página sobre a ameaça das mudanças climáticas e, 44 de 52 publicações continham pelo menos uma menção a ele. Nesse ano também ocorreram diversas conferências e workshops dedicados a comunicar a noção dessa temática aos ilhéus (RUDIAK-GOULD, 2012, p. 47).

Na segunda metade do século XX, a frequência de inundações extensas e secas severas aumentou significativamente. Segundo um marshallês, “os ilhéus não têm escolha a não ser erguer repetidamente muros de inundação improvisados” (BASTIAN, 2017, tradução nossa)10. Apesar dessas medidas de precaução o aumento do mar continua danificando as construções na ilha, causando a salinização dos pequenos estoques de água e a erosão do solo.

Em 2013, Majuro sediou o Fórum das Ilhas do Pacífico. Nesse evento os líderes das ilhas do Pacífico divulgaram uma declaração, pedindo uma ação urgente para reduzir a emissão de gases de efeito estufa e afirmaram que a responsabilidade de agir cabe a todos (MAJURO DECLARATION FOR CLIMATE LEADERSHIP, 2013).

De acordo com o relatório do IPCC, a elevação do nível do mar, o ciclone e o branqueamento em massa de corais são as manifestações mais comuns das mudanças climáticas nos atóis; devido a essas consequências, o relatório indica que vários atóis podem se tornar inóspitos (IPCC, 2018, p. 232, 235, apud MATTOS, 2019, p. 138). Segundo pesquisas realizadas pela Universidade do Havaí, um aumento no nível do mar de 91 centímetros faria com que a capital e outros atóis marshalleses ficassem quase totalmente submersos; essa é uma elevação do oceano já prevista por cientistas se não houver redução das emissões de gases de efeito estufa (TILLEY, 2018).

Antes de dar continuidade a como o problema das mudanças climáticas está sendo abordado pelos cientistas e ilhéus, será abordado o que essa expressão significa.

Rudiak-Gould, por meio de sua pesquisa, percebeu que a maioria dos habitantes do país acredita nas mudanças climáticas e constatou que uma das principais razões para isso é a maneira como expressão “mudanças climáticas” foi importada para o idioma marshallês - oktak in mejatoto. Ele descobriu que há um problema com a tradução pois a última palavra pode se referir a fenômenos ambientais, socioculturais e ao tempo; além disso, na língua marshallês 'natureza' não pode ser distinguida linguisticamente de 'cultura' (RUDIAK-GOULD, 2012, p. 49).

A falta de sinônimos marshallês para essas palavras, segundo Rudiak-Gould (2012, p.50), seria indicativo de uma dificuldade de tradução mais profunda entre as visões de mundo ocidental e marshallês. A fusão conceitual de natureza e cultura inerente a palavra mejatoto significa que quase qualquer tipo de mudança pode contar como evidência a favor da previsão dos cientistas, um processo que o autor chama de “confirmação promíscua” (RUDIAK- GOULD, 2012, p. 50).

Apesar disso, Rudiak-Gould (2012, p. 52) sugere que a "tradução incorreta" deveria ser vista como uma reinterpretação e a visão marshallês das mudanças climáticas como um risco híbrido sociocultural/ambiental como algo razoável. A fusão entre natureza e cultura não deveria ser vista como uma confusão conceitual, mas como uma visão de mundo válida, tendo em vista a inter-relação de assuntos "ambientais" e "sociais" (RUDIAK-GOULD, 2012, p. 52). Explicitado qual é a percepção dos ilhéus em relação à expressão mudanças climáticas, será dado enfoque nas suas interpretações sobre esse fenômeno. Esta parte apresentará narrativas distintas de (in)segurança dos marshalleses para analisar como eles se relacionam com os desafios trazidos por esse fenômeno (MATTOS, 2019, p. 136).

Determinados efeitos das mudanças climáticas são facilmente observados pelos ilhéus: a salinização e a erosão do solo, já que há dificuldade de cultivar alimentos; o aumento da vulnerabilidade dos atóis a eventos naturais, como tempestades e tufões; o branqueamento de corais, consequência do aumento da temperatura e da acidificação do oceano, já que diminui os recursos pesqueiros; e o aumento do nível do mar, pois inunda partes da ilha e coloca em risco a integridade dos cemitérios, que possuem grande significado espiritual e cultural para os ilhéus (MATTOS, 2019, p. 139).

A cultura marshalliana está profundamente enraizada na tradição oral que transmite suas histórias, crenças e a cultura da comunidade para as gerações futuras (MATTOS, 2019, p. 141- 142). Essas atividades orais abordam questões de linhagem e do ambiente natural, ajudando a conectar o passado, o presente e o futuro, usando a terra como fio condutor (SCHWARTZ, 2016 apud MATTOS, 2019, p. 142). As representações geralmente comemoram as raízes ancestrais e/ou recordam experiências dolorosas e violentas, para que não sejam esquecidas (MATTOS, 2019, p. 144).

No filme The Sound of Crickets at Night (2012), uma produção marshalliana dirigida por Jack Niedenthal e Suzanne Chutaro, é possível verificar a in(segurança) ontológica. O filme relata a história de Jebuki, um sobrevivente dos testes nucleares realizados em Bikini, que esconde uma doença grave de sua família. Depois que sua filha decide se mudar para Arkansas, ele passa a viver sozinho com sua neta, Kali. Temendo pelo bem-estar de Kali, Jebuki resolve convocar Worejabato, uma divindade antiga do Bikini Atoll.

Nesse filme, as lendas marshallianas e o papel das identidades locais em meio aos desafios econômicos, sociais e emocionais são enfatizados; a vida de Jebuki é somente um exemplo dos desafios que são enfrentados pelas famílias sobreviventes aos deslocamentos de seus atóis de origem e da radiação (MATTOS, 2019, p. 144). O filme expõe as dificuldades burocráticas envolvidas na tentativa de retirar dinheiro dos fundos criados para as vítimas dos testes nucleares e a melancolia dos idosos que sabem que não poderão ser enterrados em sua terra natal, conforme sua tradição e sua crença religiosa (MATTOS, 2019, p. 144).

A produção cinematográfica não busca criar uma relação antagônica entre os marshalleses e seus ex-colonizadores, mas trata das auto-identidades interrompidas e da incapacidade dos idosos de manter uma narrativa biográfica contínua de si após o trauma causado pela destruição de seus atóis e dos deslocamentos (MATTOS, 2019, p. 144). A falta de segurança ontológica, que foi danificada quando Bikini deixou de “existir” e seus habitantes não puderam mais se expressar como antes, é exposta; contudo, ao invés de construir e reforçar identidades antagônicas, o filme ressignifica e reinventa relacionamentos problemáticos (MATTOS, 2019, p. 144).

A poesia, “Una-se”, criada por Kathy Jetnil-Kijiner, uma marshallesa, e por Aka Niviana, uma escritora Inuk, aborda o derretimento das geleiras e a elevação do nível do mar que as uniu. A poesia coloca em evidência as relações e a situação dos países onde vivem com o intuito de motivar pessoas a se unirem e tomarem atitudes. Segue um trecho que aborda a situação atual das Ilhas Marshalls:

Deixe-me mostrar a maré que nos alcança mais rápido

do que gostaríamos de admitir.

Deixe-me mostrar aeroportos submersos,

recifes patrolados, praias destruídas e planos para construir novos atóis, forçando a terra

de um mar ancestral, em elevação, obrigando-nos a imaginar o dia em que viraremos pedra11.

Jo-Jikum (“Seu Lugar”) é uma organização marshalliana que visa capacitar a próxima geração de marshalleses a desenvolver soluções para os problemas ambientais que estão impactando a ilha (JO-JIKUM, 2019b). A imagem abaixo é resultado das atividades realizadas por essa organização que busca utilizar representações artísticas como instrumento de promoção de mudanças e empoderamento.


Figura 1
Mural pintado por Lieom Loeak
JO-JIKUM, 2019a.

Segundo Lieom Loeak, a mãe representa as Ilhas Marshall; a criança, o seu povo; as sepulturas, seus ancestrais; e a cruz, o Cristianismo. A elevação do nível do mar representa a afirmação dos cientistas de que em breve Majol ficará completamente submerso. Loeak afirma:

De geração em geração, nossas Mães transmitiram cultura, herança, ensinamentos, EU. “OIT ANIJ, KIMIJ TOMAK - EM DEUS NÓS CONFIAMOS”. Usando esta concha do mar para chamar nossos ancestrais, antepassados, VOCÊ. Não estamos nos afogando, estamos lutando! (JO-JIKUM, 2019a, tradução nossa)12.

Considerando que uma das preocupações da Jo-Jikum consiste em promover a conscientização sobre a mudança climática e inspirar, por meio de oficinas artísticas, a criação de novos trabalhos que transformem seus alunos de vítimas passivas em participantes de um movimento (JO-JIKUM, 2019), é possível afirmar que o trabalho de Loeak atendeu às expectativas da organização.

As mudanças climáticas podem tornar o país inóspito para os seres humanos e incapaz de fornecer um senso de continuidade biográfica aos seus habitantes, levando à perda de suas referências territoriais, espirituais e culturais. Esse fenômeno ambiental tem representado uma “ameaça existencial” a sobrevivência física das ilhas, dos ilhéus, assim como à preservação das identidades individuais. A seguir será abordada a situação dos marshalleses que migraram para Arkansas e como eles - apesar de viverem em uma realidade totalmente diferente de seu país e muitas vezes vivenciarem a ansiedade de estarem longe de seus atóis e talvez nunca mais poderem voltar - buscam preservar suas práticas locais, seu patrimônio, sua cultura e sua identidade.

4.3 A busca por segurança ontológica em Springdale, Arkansas

O primeiro Pacto de Associação Livre estabelecido como forma de compensação pelas evacuações, concedeu aos cidadãos marshalleses o direito de estudar, trabalhar, e morar nos EUA. A decisão de ir para o país norte-americano está relacionada à busca por melhor educação, condição financeira, saúde e por questões ambientais. Entretanto, cabe salientar que essa alternativa não é desejada por todos, devido à dificuldade de preservar seu estilo de vida e identidade.

O início da migração para Arkansas se iniciou com John Moody que, no final dos anos 1970 se estabeleceu em Springdale e convidou seus parentes (CRAFT, 2010). Isso provocou a primeira onda de imigrantes marshalleses nos anos 1980; a segunda onda, nos anos 2000, foi provocada pelas demissões do governo marshallês (CRAFT, 2010). Atualmente, Springdale é considerada a cidade que tem a maior população marshallesa na parte continental dos EUA, as estimativas estão em torno de 10.000 habitantes. Em 2019, o senado norte-americano aprovou a resolução marshallesa reconhecendo sua história, seu patrimônio e a importância estratégica dessa população (SPRINGDALE CHAMBER OF COMMERCE, 2019).

A New Island: The Marshallese in Arkansas (2006) é um documentário sobre as pessoas deslocadas das Ilhas Marshall que imigraram para Springdale. Produzido por Dale Carpenter, o título do filme veio de uma conversa com Carmen Chong Gum, líder da comunidade marshalliana, que disse ao produtor que os marshalleses são grandes navegadores e haviam encontrado o caminho para Springdale, que agora se tornou uma nova ilha para eles. Chong Gum narra o documentário contando um pouco da história dessa comunidade.

Logo no início do documentário é apresentada a grande celebração do primeiro aniversário de uma criança marshalliana, em marshallês Kemem. A razão por trás dessa tradição tem a ver com a alta taxa de mortalidade que a ilha já teve. Chong Gum explica que ela veio para os EUA depois de perder seu primeiro bebê nas Ilhas Marshall, quando ela engravidou novamente resolveu deixar a ilha para que sua filha pudesse nascer em um hospital melhor equipado. A Kemem é uma celebração muito importante que representa vínculos ao passado e aos lares distantes. Abaixo segue uma foto que ilustra esse dia.


Figura 2
Celebração Marshalliana Kemem em Springdale, Arkansas
HERBERT, 2019.

Para Melisa Laelan, uma princesa das Ilhas Marshall que vive em Springdale, é muito importante manter essas tradições, pois é uma forma delas serem transmitidas para as futuras gerações (HERBERT, 2019).

Maribel Childress, diretora da escola primária Parsons Hills abordada no documentário, afirma que em sua escola há muitos alunos marshalleses e ela consegue ver neles uma verdadeira necessidade de estarem ligados à sua cultura. Por isso, a escola busca promover a música e a dança marshallesas. Andi Acuff, professora na mesma escola, dá aulas para uma turma que tem oito alunos marshalleses e ressalta a preocupação dos pais com a educação dos filhos.


Figura 3
Alunos da escola primária Parsons Hills dançando e cantando.
A New Island: The Marshallese in Arkansas (2006).

O documentário também trata da dificuldade dos ilhéus em se acostumarem com o ritmo dos estudos nas escolas americanas e a barreira da língua. Jo Ray, professora no ensino médio de Springdale, convidou alguns alunos marshalleses para fazerem um documentário intitulado: Diversidade. Durante esse projeto os alunos entrevistaram outros marshalleses e perguntaram se eles queriam voltar à ilha, alguns declararam que realmente queriam e outros afirmaram que já se sentiam em casa.

No documentário é mencionado que muitos ilhéus trabalham na fábrica Tyson Foods que processa galinhas, pois não requer um diploma de ensino médio e nem o domínio do inglês. Por intermédio dessa produção cinematográfica é possível verificar que a maioria dos marshalleses que migram acabam trabalhando em subempregos, mesmo os que terminam o ensino médio encontram dificuldades para terem um bom emprego e são poucos os que vão para as universidades.

Um link importante para a comunidade marshallesa é a igreja, apenas no norte de Arkansas existem cerca de treze igrejas, e estão sempre cheias. O cristianismo junto com a tradição marshalliana são os dois valores sagrados da sociedade e consistem em dispositivos retóricos supremos para justificar as decisões e as identidades marshallesas (RUDIAK- GOULD, 2010, p.79). De acordo com estimativas mais recentes divulgadas pela CIA (2020) cerca de 80, 5% são Protestante (sendo 47% da Igreja Unida de Cristo), 8,5%, católico romano, 7% mórmon, 1,7% testemunhas de Jeová, 1,2% outros e 1,1% nenhum. A figura 4 apresenta uma foto de um culto na Igreja Unida de Cristo em Springdale.

Figura 4:
Os adolescentes marshalleses participam de uma dança tradicional durante os cultos de domingo na Faith Full Gospel Marshallese Church em Springdale, AR.

HERBERT, 2019.

Uma outra forma dos marshalleses interagirem entre si e passar para as futuras gerações seu patrimônio cultural e suas tradições é por meio da maior celebração do ano para essa comunidade, que é o dia da Constituição. Nesse dia, marshalleses em diversas partes dos EUA e autoridades da capital, Majuro, vem participar do evento. Há muita dança, comida e competições esportivas – geralmente os nomes dos times fazem referências aos atóis de origem.

Em 2016, o tema foi mudança climática e o tom foi desafiador de modo que as celebrações ficaram mais com a sensação de um protesto do que de uma festa; as faixas declaravam "70 anos de exílio" para o povo bikiniano e "1,5 para permanecer vivo" (MILMAN; RYAN, 2016, tradução nossa)13. Nessa ocasião teve o Primeiro Concurso de Beleza Marshallesa com o mesmo tema. As candidatas do concurso usaram roupas tradicionais, cantaram e fizeram a leitura de poemas; uma jovem declarou de forma angustiada: "Estamos perdendo nossa ilha, onde ficaremos?" (MILMAN; RYAN, 2016, tradução nossa)14.

O mural, que pode ser verificado abaixo, foi criado por alunos da sétima série do Ensino Fundamental Helen Tyson. Lori West, a professora, disse que o mural simboliza o problema do aumento do nível do mar nas Ilhas Marshall.

Figura 5:
O mural de trinta metros criado por alunos do Ensino Fundamental Helen Tyson

THALLS, 2016.

Helena Alberttar, uma aluna marshallesa que ajudou a criar o mural, disse que trabalhar no projeto a lembrou de casa e que "é muito especial ... saber que existem pessoas que se preocupam conosco" (THALLS, 2016, tradução nossa)15.

Os marshalleses e o Museu Shiloh formaram uma parceria para construir uma canoa tradicional marshallesa. A canoa expõe a cultura marshalliana e serve como um símbolo de união das duas comunidades.

Figura 6:
Wa kuk wa jimor ("Canoa de uma Comunidade")

DOWNTOWN SPRINGDALE, 2019.

Por intermédio de documentários, de mídias sociais e reportagens em jornais é possível perceber que geralmente os anciãos e as pessoas em que parte do seu núcleo familiar mora nas Ilhas Marshall desejam retornar e morar no seu país de origem. Por sua vez, os mais novos, que normalmente se adaptam mais facilmente, vislumbram o retorno para seu país somente em caso de visita, pois já se sentem em casa em Springdale. Apesar disso, ambos valorizam sua cultura, seu patrimônio e sua tradição e querem continuar transmitindo isso para as novas gerações. Essa transmissão é realizada e reforçada em eventos como a Kemem, o dia da Constituição, e por meio dos cultos e dos clubes nas escolas em que os marshalleses ficam unidos e reforçam suas identidades.

5 Considerações finais

O presente trabalho ao apresentar poema, filmes e pinturas marshallianas, buscou empregar o thick signifier approach. Por meio do emprego da curiosidade estética, forneceu uma análise dos contextos histórico, político e linguístico em que emergem os significados de segurança, e esclareceu o contexto emocional que cria a condição de possibilidade para diferentes narrativas de segurança (MATTOS, 2019, p.173).

Ao fazer menção dos testes nucleares, pretendeu-se mostrar a importância da cosmovisão local que une os mundos natural e humano que, atualmente, está ameaçada pela mudança climática (MATTOS, 2019, p.174). Os atóis contaminados, os problemas de nascimento, as inundações da costa e dos cemitérios, desafiam as narrativas tradicionais dos ESI, que afirmam que práticas militarizadas e excepcionais são a única maneira de obter segurança (MATTOS, 2019, p.175).

No intuito de evitar a perda da cultura dos marshalleses que já vivem nos EUA e ajudar na preservação da segurança ontológica, uma sugestão é a criação, nos locais com maior concentração dessa comunidade, de centros multiculturais que providenciem ferramentas para preservação da cultura, do patrimônio e da história. Propõe-se a realização de atividades no âmbito da arte, música e culinária com a finalidade de ensinar às gerações mais jovens as antigas tradições das ilhas. Além disso, a concessão de oportunidades de crescimento profissional para essa comunidade pode ajudar a melhorar a sua inserção na sociedade norte-americana.

Apesar dos EUA não poderem mudar o passado, podem melhorar o presente e criar esperança para um futuro melhor. As propostas elencadas acima, complementadas por uma contribuição financeira significativa para levantar as ilhas artificialmente, de modo a evitar um deslocamento dos ilhéus e melhorar a adaptação às mudanças climáticas; pela fortificação dos muros nas Ilhas Marshall, para atenuar de modo mais imediato os sofrimentos vividos; e por uma atuação mais ativa para a diminuição dos efeitos das mudanças climáticas podem contribuir para melhorar a atual realidade vivida por essa população.

Material suplementar
Referências
A NEW ISLAND: THE MARSHALLESE IN ARKANSAS. Produção: Dale Carpenter. Springdale: AETN, 2006. 1 DVD (56 min. 48 seg.).
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WOODARD, Colin. You Can´t Go Home Again. Nine Minutes. The Bulletin of the Atomic Scientists. v.54, n.5. Set/Out, 1998.
Notas
Notas
1 A cosmovisão local marshallesa une os mundos natural e humano desafiando, assim, a noção moderna predominante de uma divisão entre esses dois mundos (MATTOS, 2019, p. 174).
2 Como exemplo Nick Vaughan-Williams, Stuart Croft, Christopher S Browning, Pertti Joenniemi, Ayşe Zarakol, Brent J Steelem, Christine Agius, DeRaismes Combes.
3 Citação livre de: the relationship between identity and security, and between identity and important political outcomes in world politics, with the premise that political subjectivity is socially constituted in ways that have reverberating effects at many levels. A focus on ontological security puts the emphasis on what goes into the stories or narratives we tell ourselves about ourselves and our relations to others. It is a call to investigate cognitive and affective reasons why individuals, groups and even states experience insecurity and existential anxiety and to explore the emotional responses to these feelings.
4 Citação livre de: specific metaphysics of life ... relations to nature, to other human beings and to the self.
5 O conceito será mantido no original, em inglês, pois consiste em uma proposta específica de análise da estrutura mais ampla de significados a partir dos quais a segurança adquire seu conteúdo (HUYSMANS, 1998, p. 231).
6 A cultura aqui é entendida como socialmente construída e multidimensional, mas também como lugar de construção de significado e lutas políticas (MATTOS, 2019, p.68).
7 Citação livre de: that one of the most promising locations to study emotions is the manner in which they are represented and communicated.
8 Citação livre: the good of mankind and to end all world wars.
9 Citação livre de: The Marshallese people ... are also very concerned for the increasing number of people who are being removed from their land. Land means a great deal to the Marshallese. It means more than just a place where you can plant your food crops and build your houses; or a place where you can burry your dead. It is the very life of the people. Take away their land and their spirits go also.
10 Citação livre de: the islanders have no choice but to repeatedly put up makeshift flood walls.
11 Disponível em: www.350.org. Acesso em 07 dez. 2019.
12 Citação livre de: The Mother represents the Marshall Islands and the Child represents the people of the Marshall Islands. The graves represent our ancestors and of course the cross represents Christianity. The sea level rise shows how scientists say we only have a few more years before Majol is completely submerged underwater. From generation to generation our Mothers passed down culture, heritage, teachings, ME. “ILO ANIJ, KIMIJ TOMAK - IN GOD WE TRUST." Using this seashell to call upon our ancestors, forefathers, YOU. We are not drowning, we are fighting!
13 Citação livre de: 70 years of exile..... 1.5 to stay alive.
14 Citação livre de: We are losing our island, where will we stand?
15 Citação livre de: It's very special …. to know that there are people that care about us.

Figura 1
Mural pintado por Lieom Loeak
JO-JIKUM, 2019a.

Figura 2
Celebração Marshalliana Kemem em Springdale, Arkansas
HERBERT, 2019.

Figura 3
Alunos da escola primária Parsons Hills dançando e cantando.
A New Island: The Marshallese in Arkansas (2006).
Figura 4:
Os adolescentes marshalleses participam de uma dança tradicional durante os cultos de domingo na Faith Full Gospel Marshallese Church em Springdale, AR.

HERBERT, 2019.
Figura 5:
O mural de trinta metros criado por alunos do Ensino Fundamental Helen Tyson

THALLS, 2016.
Figura 6:
Wa kuk wa jimor ("Canoa de uma Comunidade")

DOWNTOWN SPRINGDALE, 2019.
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