Artigos Dossiê
Uma história de mulheres: Svetlana Aleksiévitch e a disputa pela memória
A history of women: Svetlana Aleksiévitch and the dispute for memory
Percursos
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN-e: 1984-7246
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 20, núm. 42, 2019
Recepção: 07/03/19
Aprovação: 03/07/2019
Resumo: O artigo busca problematizar, através da obra A guerra não tem rosto de mulher, da ucraniana Svetlana Aleksiévitch, questões envolvendo a construção da memória, a oralidade e as relações de poder atreladas ao gênero. Assim, após uma breve introdução na qual nos deteremos sobre tópicos que envolvem a memória e a historiografia, partiremos para uma análise das memórias femininas trazidas na obra citada à luz da teoria, valendo-nos de conceitos como o de “memória subterrânea” a partir de Maurice Halbwachs e Michael Pollak em seu clássico trabalho Memória, Esquecimento e Silêncio, além de diálogos com outros teóricos que se ocupam da questão, como François Hartog, Pierre Nora e Alessandro Portelli. Em um terceiro momento, produziremos uma reflexão acerca das formas com que as memórias trazidas pela autora são atravessadas por questões de identidade e poder, promovendo um controle social e um discurso oficial a respeito destas.
Palavras-chave: Memória Mulheres Segunda Guerra Mundial, Svetlana Aleksiévitch.
Abstract: The aim of this article is to problematize, through the book The Unwomanly Face of War, by Ukrainian Svetlana Aleksiévitch, questions involving the construction of memory, orality and power relations linked to the gender. Thus, after an introduction in which we dwell on topics involving memory and historiography, we will start with an analysis of the feminine memories brought in the work quoted in the light of the theory, relying on concepts such as "underground memory" from Maurice Halbwachs and Michael Pollak in their classic work Memory, Oblivion and Silence. In addition, we will dialogue with other theorists who work with the issue, such as François Hartog, Pierre Nora and Alessandro Portelli. In a third moment, we will reflect on the ways in which the author's memories are crossed by questions of identity and power, promoting a social control and an official discourse about them.
Keywords: Memory Women, Second World War, Svetlana Aleksiévitch.
Introdução
Em tempos de crise política e social, os discursos oficiais, as possibilidades narrativas e o caráter científico da História se tornam campos em disputa. Não raras vezes nos deparamos com a discussão, ainda presente no senso comum, acerca do tempo necessário para nos separar de determinado fato de modo que seja considerado como “histórico”. Tal discussão traz de forma subjacente a questão da grandeza do fato e da legitimidade de quem o conta, negando assim a ideia de uma História do Cotidiano ou do Tempo Presente (HTP), bem como desvalorizando qualquer perspectiva que parta (para evocarmos o famoso poema de Bertolt Brecht), dos “cozinheiros de César”.[1]
Entre aqueles que lidam cotidianamente com a História e suas narrativas, as questões não são menores. Sobretudo aos que se ocupam da História Contemporânea. Da concepção de HTP surgem as discussões envolvendo as questões de memórias, oralidade e disputas de identidades. Há, ainda, nesse debate a questão de compreensão e de crise da experiência com o tempo. François Hartog (2003) lança luz sobre a discussão ao introduzir o conceito de regime de historicidade e delimitar uma ruptura, a partir de 1989, entre o regime moderno – que assegurava uma experiência de tempo futurista, um projeto de progresso – e o presentismo, observado ainda nos dias atuais.
Por regime de historicidade, o autor entende uma forma, ou melhor, um ponto de vista, de compreensão de tempo (passado, presente e futuro) e a partir dessa compreensão, de se pensar e se escrever a História. Nesse sentido, há três regimes de historicidade para Hartog: a história magistra, o moderno regime, e o presentismo. A história magistra, que perdurou até 1789, é uma forma de compreender e de pensar a História a partir de uma ideia de passado; escrever e pensar a história a partir do passado para aprender com ele. Viver e fazer projeções futuras, mas olhando para trás como referência para não repetir os erros. Hartog (2003), identifica, a partir da Revolução Francesa no século XVIII, uma ruptura no regime de historicidade. A forma de compreender a história a partir da experiência do tempo avança para o futuro. O futuro, que nem aconteceu, é o objetivo primeiro da sociedade. Há uma ideia muito forte de progresso, um projeto de futuro. A partir de 1989, com o fim da Guerra Fria – além de outros avanços tecnológicos, científicos e demandas do mercado e da sociedade de consumo – esse modelo de historicidade entra em crise. A partir de então, se estabelece uma concepção presentista. A experiência com o tempo é no “aqui e agora”. Essa ruptura, além da mudança na experiência, também deixa o sujeito em crise.
Deste contexto, bem como da historicidade sobre o ponto de vista do presente, emergem os debates sobre memória[2] no campo acadêmico. Não há como discutir as questões da memória pelo viés social e da História, sem estabelecer diálogos com as concepções de tempo. A memória emerge da conexão necessária entre passado e presente. Ainda sob esse ponto de vista, a construção da memória engloba não apenas as questões relativas à subjetividade dos indivíduos, mas às questões intersubjetivas. Ou seja, não se trata de memórias no campo do particular, da individualidade, mas da vida em sociedade, no sentido em que as memórias são também construções coletivas. Ainda, essas memórias são objeto de disputa e de poder, que se ocupam das relações e do corpo social de uma determinada comunidade imaginada[3], auxiliando, muitas vezes, na manutenção de costumes, tradições, mitos e identidades.
Sobre esse aspecto, as lembranças costumam, por vezes, estabelecer desvios em relação à História e às memórias “oficiais”, quando não oferecer ainda alternativas às políticas deliberadas de esquecimento. Esses mecanismos de esquecimento e ou silenciamentos demonstram, para Michel Pollak (1989), o caráter opressor, sufocante, angustiante da memória nacional. O autor explora a memória como um processo de disputa constante e de dominação social. Em não se enquadrando nos limites ou no corpo da memória nacional, criam-se memórias subterrâneas (POLLAK, 1989). É tendo esse debate como pano de fundo que trazemos a proposta de proceder a uma análise reflexiva, cujo objeto é o trabalho de resgate de memórias subterrâneas que Svetlana Aleksiévitch traz na obra A guerra não tem rosto de mulher (2016), bem como de suas implicações teóricas para as questões envolvendo identidades sociais e de gênero, além das consequências inerentes do processo de publicização dessas memórias subterrâneas e dos silenciamentos.
Svetlana Aleksiévitch é uma jornalista e escritora que concentra seu trabalho em relatos documentais sobre fatos que afetaram a população russo-soviética, como a participação das mulheres na Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Afeganistão, o desastre de Chernobyl[4], ou fim da própria União Soviética, entre outros temas. No Brasil, além de A guerra não tem rosto de mulher, foram publicados, pela Companhia das Letras, outros livros de sua autoria, como Vozes de Tchernóbil (2016), O fim do homem soviético (2016) e As últimas testemunhas: crianças na Segunda Guerra Mundial (2018). A estrutura narrativa de todos os seus livros segue estilo próprio e se concentra no relato das personagens; após um texto introdutório com as impressões da autora em formato de diário, escrito à época em que colheu os depoimentos, ela deixa que os personagens relatem suas experiências, compondo um verdadeiro mosaico de memórias. Svetlana Aleksiévitch documenta, assim, em forma de livro, fragmentos da história sob diversas situações-limite ou de conflitos. Pelo conjunto de sua obra, recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 2015. Em A guerra não tem rosto de mulher, a autora nos traz um conjunto de depoimentos de mulheres que integraram, em diversas funções, o exército soviético durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Diante destas considerações iniciais, propomos, em um plano teórico, estimular uma reflexão sobre os exercícios da memória do ponto de vista social a partir das contribuições de Halbwachs (1990) e Pollak (1989), de como se estabelecem as disputas pela memória nacional e as implicações dessas batalhas para as identidades sociais que acabam por ser silenciadas. Halbwachs trabalha com uma ideia de união em torno da questão da memória coletiva e da memória nacional. Já Pollak se distancia dele no sentido de evidenciar tensões, opressões e outras consequências oriundas de um processo de silenciamento. Pollak também explora como as memórias funcionam como mecanismos de poder.
Há de se atentar ainda que essas memórias deixam cicatrizes e quando tais lembranças vêm a público, muito mais do que exigir seu espaço dentro da História nacional, elas têm o poder, por meio do debate sobre ética, de destruir o imaginário cristalizado sobre a guerra e o nacionalismo e, muitas vezes, exigir reparações.
Histórias de mulheres
Os relatos femininos são outros e falam de outras coisas. A guerra “feminina” tem suas próprias cores, cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 12)
Distante de uma visão de heroísmo do exército da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas[5] – que saiu vitorioso na Segunda Guerra Mundial ao derrotar as tropas nazistas, a um custo estimado de mais de vinte milhões de mortos –, os relatos trazidos por Svetlana Aleksiévitch (2016), em A guerra não tem rosto de mulher, embarcam nos pormenores das vidas cotidianas daquele período. Não são as histórias de como se organizavam as tropas, de como os soldados eram treinados ou sobre como foi o momento da vitória. São intimidades, dores, visões humanas marcadas pela pessoalidade. As mulheres que depõem para o livro falam sobre si, sobre seus sentimentos, seus medos, angústias, arrependimentos e paixões.
A autora não especifica, na obra, quantas mulheres exatamente foram entrevistadas, mas pelo livro há ao menos uma centena. Algumas, aceitaram dar depoimentos sem se identificar, portanto, não há como saber o nome e/ou função exercida por todas as mulheres que compõem o livro de testemunhas da guerra. Segundo o que Svetlana Aleksiévitch aponta no seu diário, intitulado O ser humano é maior que a guerra, os depoimentos foram coletados entre 1978 e 1985. Quanto à estrutura, há 17 capítulos. Com exceção do primeiro, que é o diário da escritora que cumpre a função de prefácio, todos os demais são trechos de depoimentos, por vezes precedidos de breves comentários de Svetlana.
Ela também não especifica a idade de todas as entrevistadas. Neste capítulo inicial, há uma breve menção à questão da idade. Superficialmente, ela aponta que colheu depoimentos de pessoas já na ‘velhice’, pelo menos 40 anos após terem ido à guerra. Algumas mencionam a idade, outras não. Entre os relatos, há, por exemplo, a história de Maria Ivánovna Morôzova, cabo do exército soviético e franco-atiradora, que não sabia muito bem, no momento do conflito, qual era a real dimensão da guerra, mas que, a exemplo de todas as mulheres à sua volta que estavam se alistando, quis também ir para o front. Após enfrentar a resistência do próprio exército quanto ao seu engajamento voluntário, Morôzova conseguiu realizar seu objetivo. Conforme tal relato, a franco-atiradora não tinha completado 18 anos quando se alistou. Uma vez na guerra, ela passaria pela experiência obrigatória de assassinar outros seres humanos.
[...] E, dentro de mim, algo resistia... Algo não deixava, eu não conseguia me decidir. Mas retomei o controle e apertei o gatilho... Ele acenou com as mãos e caiu. Se estava morto ou não, não sei. Mas depois disso comecei a tremer ainda mais, surgiu um medo: eu matei uma pessoa?! Era preciso me acostumar a essa ideia [...] (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 52)
As memórias colhidas por Svetlana Aleksiévitch abordam outras tantas dimensões muito particulares a respeito da guerra. Tal é o caso da soldado Nonna Aleksándrovna Smirnova, que calçava trinta e cinco, mas foi obrigada a usar botas tamanho quarenta e dois, porque as confecções eram masculinas e não havia sua numeração; ou ainda da enfermeira Maria Seliviôrstovna Bojok que lembra de estar sempre coberta de sangue, em virtude das amputações que precisava fazer, sob condições insalubres, em soldados feridos. Das mulheres que ainda eram meninas quando saíram de casa e foram à guerra. Daquelas que estavam em zonas de conflito, mas não deixavam a vaidade de lado, pois queriam estar bonitas. Memórias de mulheres que foram comprar vestidos antes de ir para os combates, ou mesmo das que casaram na guerra.
Há relatos sensíveis sobre pormenores do conflito, sobre vulnerabilidades e particularidades de mulheres. Mas há também retratos das marcas e consequências psicológicas deixadas pelas situações vivenciadas. Mulheres que sonhavam em cursar medicina, mas que, com o fim da guerra abandonaram a ideia, porque não podiam mais ver e lidar com situações próprias do ofício, como a proximidade com a morte. Mulheres que passaram a desenvolver outras atividades, cujas profissões não tinham a menor relação com aquelas personagens que haviam pegado em armas e matado “inimigos” em nome da ideia de pátria e liberdade durante a Segunda Guerra Mundial.
Svetlana Aleksiévitch extrai resquícios de patriotismo soviético e o que significava para as mulheres ir para o front e defender seu povo. No primeiro capítulo, quando fala sobre suas motivações pessoais, lembra-se de como sua geração cresceu aprendendo a amar a Nação e a pensar sobre a vitória na guerra. “Na escola, nos ensinavam a amar a morte. Escrevíamos redações dizendo como queríamos morrer em nome de... Sonhávamos com isso...” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 11). A escritora não faz ponderações, de maneira objetiva, sobre a relação de suas entrevistadas com o sentimento nacionalista. No decorrer do livro, é possível perceber, nos depoimentos, mulheres que continuavam a amar sua pátria apesar de todos os danos causados pela guerra, mas também mulheres em conflito com a questão nacionalista.
Ou como a educação recebida, não só na escola, mas principalmente em casa, conduzia para esse sentimento de amor à pátria e de necessidade de lutar, de ir para a guerra. De franco-atiradoras a enfermeiras, de engenheiras a lavadeiras, a autora ucraniana busca por relatos individuais. Uma por uma, a escritora vai mergulhando na vida dessas mulheres e contornando uma guerra que não é uniforme, que não estava nos registros oficiais. Uma guerra feita por seres e sentimentos humanos. Uma guerra que diverge em sentidos e significados.
O desejo de Svetlana, de acordo com ela própria, não era recontar a história que todos sabiam, mas sim ir atrás das memórias individuais das protagonistas e testemunhas. “Preciso pegar o que é mais amplo – escrever a verdade sobre a vida e a morte em geral, e não só a verdade sobre a guerra. Fazer a pergunta de Dostoiévski: o quanto há de humano no ser humano e como proteger esse humano de si?” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 16).
Antes de trazer os relatos, a obra inicia com trechos de um diário de campo, datado do período entre 1978 e 1985, com reflexões acerca do que viu e ouviu, além de alguns fragmentos sobre intenções ao documentar a história dessas mulheres. Em determinado momento, situa seu interesse principal:
Me interessa não apenas a realidade que nos circunda, mas também aquela que está dentro de nós. Não me interessa o próprio acontecimento, mas o acontecimento dos sentimentos. Digamos assim: a alma do acontecimento. Para mim, os sentimentos são a realidade. E a história? Ela está na rua. Na multidão. Acredito que em cada um de nós há um pedacinho da história. Um tem meia página, outro tem duas ou três. Juntos, estamos escrevendo o livro do tempo. Cada um grita sua verdade. O pesadelo das nuances. E é preciso ouvir tudo isso separadamente, dissolver-se em tudo isso e transformar-se em tudo isso. E, ao mesmo tempo, não perder a si mesmo. Unir o discurso da rua e da literatura. Outra complexidade está no fato de que estamos falando do passado com a língua de hoje. Como transmitir por meio dela os sentimentos daqueles dias? (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 19)
Ela responde por meio dos relatos. A partir do grande número de depoimentos que ouviu, Svetlana Aleksiévitch (2016) faz algumas considerações. Acredita que as entrevistas mais sinceras foram concedidas pelas mulheres mais humildes, que não tinham de onde mais tirar informações, senão de si mesmas. Não que outras pessoas estivessem omitindo ou mentindo sobre a história que elas próprias viveram. Mas a possibilidade de fantasiar e misturar fragmentos de sua memória com relatos escutados ou lidos em algum lugar teria uma probabilidade menor de se materializar nessas mulheres mais humildes. Estas estariam menos suscetíveis ao conhecimento indireto das pessoas mais cultas, como a autora se refere. Isso porque, segundo a autora, eram pessoas que não tinham tanto acesso a produtos culturais e materiais didáticos e históricos.
Svetlana Aleksiévitch se diz ciente de que existem inúmeras versões e verdades, de que as pessoas escrevem, descrevem e reescrevem suas vidas ao longo do tempo. “Entendo que estou lidando com versões, cada um tem a sua, e delas, do volume de cruzamento delas, nasce a impressão a respeito do meu livro. Disseram: os personagens dela são reais e nada mais. Que dissessem: é a história. Apenas a história” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 18). Além dessa consciência sobre as versões, Svetlana Aleksiévitch atenta para algo que consideramos fundamental: o efeito do tempo sobre as memórias. A Segunda Guerra Mundial é datada entre 1939 e 1945. O diário da jornalista aponta que ela colheu os depoimentos pelo menos trinta anos mais tarde. Em certo momento a autora diz ter ciência de haver três pessoas envolvidas no relato: ela própria, tomando nota, a mulher que vivenciou a guerra e a terceira, que é quem está contando. O tempo e a memória seriam, dessa maneira, um instrumento a separar as mulheres envolvidas na guerra e as entrevistadas em papéis diferentes.
A autora reconhece, evidentemente, o abismo que existe entre um relato contado imediatamente no pós-guerra e um contado mais de trinta anos depois. A maturação da memória e a aproximação da morte, conforme ela, modificam o teor dos relatos.
Muitas vezes reparo em como elas estão escutando a si mesmas. O som de sua alma. Conferindo-o com suas palavras. Depois de longos anos, a pessoa entende que aquilo era a vida, e que agora é preciso fazer as pazes e se preparar para a partida. Contra a vontade e com pena de desaparecer assim sem mais nem menos. Sem cuidado. Na caminhada. E, ao voltar para trás, nele está presente não só o desejo de contar sua história, mas também de alcançar o mistério da vida. (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 15)
O desejo de contar as histórias não corresponde à História conhecida da guerra, aquela já presente em livros, filmes e materiais didáticos. As lembranças colhidas por Svetlana Aleksiévitch retratam o ser mulher e suas implicações no espaço de fala, já que essas mulheres, que participaram da guerra tanto quanto os homens, eram constantemente silenciadas pelas versões oficiais. Era como se tentassem esconder os fragmentos de vida, de humanidade, as vulnerabilidades, o sofrimento. No diário inicial, a autora registra que, em diversas ocasiões, deparou-se com situações nas quais os homens haviam combinado ou “instruído” as mulheres sobre o que e como elas deveriam falar sobre a guerra.
Estive com uma família... Tinham lutado o marido e a mulher. Se conheceram no front e se casaram lá mesmo. [...] O homem na hora mandou a mulher para a cozinha: “Vá cozinhar alguma coisa para a gente”. A chaleira já tinha fervido, os sanduíches já estavam preparados, ela sentou conosco, mas o marido a fez levantar ali mesmo: “Mas cadê os morangos? O nosso presentinho da datcha?”. Depois de meus pedidos insistentes, ele cedeu seu lugar a contragosto, dizendo: “Conte como eu te ensinei. Sem chorar e sem essas ninharias de mulher; que queria ser bonita, que chorou quando cortaram a trança”. Depois ela confessou para mim, sussurrando: “Ele passou a noite comigo estudando um livro de história da Grande Guerra Patriótica. Estava com medo por mim. E agora deve estar aflito de que eu não lembre direito. Não lembre do jeito certo.” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 22)
Por trás de milhares de vozes femininas que não eram escutadas, há igualmente milhares de memórias e histórias. Porém, por vezes elas não cabem dentro das delimitações narrativas da memória nacional de um Estado vitorioso. “Quando as mulheres falam, não aparece nunca, ou quase nunca, aquilo que estamos acostumados a ler e escutar: como umas pessoas heroicamente mataram outras e venceram” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 12). E, segundo a escritora, é também ali que está a história: na multidão, na rua, na cozinha, em cada uma dessas mulheres por tantas vezes silenciadas.
Narrativas, contextos e (auto) censuras
Ao analisarmos a obra de Svetlana Aleksiévitch em seu conjunto, é importante não perdermos de vista duas dimensões fundamentais para a sua compreensão. A primeira diz respeito ao próprio tempo em que a autora colheu as narrativas e as transformou em um produto literário. Tal elemento é importante não apenas para compreendermos a história por trás de A guerra não tem rosto de mulher, mas o próprio conjunto de sua obra. Com efeito, seus dois livros de estreia (a obra por nós escolhida para ser objeto de análise neste artigo e As últimas testemunhas: crianças na Segunda Guerra Mundial) constituem-se originalmente nos primeiros livros publicados pela autora, ainda no ano de 1985, ou seja, em um momento em que as transformações políticas que conduziriam ao fim da União Soviética apenas começavam a produzir seus efeitos sobre a produção cultural. Isso certamente influenciou na história por trás do livro em questão.
Uma leitura um pouco mais atenta da versão publicada no Brasil de A guerra não tem rosto de mulher nos traz alguns elementos para essa discussão. O primeiro capítulo, intitulado O ser humano é maior que a guerra é basicamente uma colagem de trechos do diário de campo da autora, cuja parte inicial remonta ao período 1978-1985. Assim, houve um longo caminho trilhado por ela desde o momento em que começou a pesquisar até que os relatos por ela colhidos encontrassem pela primeira vez as gôndolas das livrarias. Deve-se observar também que, nesta introdução, Svetlana Aleksiévitch nos informa sobre os motivos de sua opção por produzir reflexões acerca de um tema diretamente ligado à morte, às suas lembranças de infância e como os relatos a respeito da Segunda Guerra Mundial apareciam em tal período, bem como sobre a relação que ela, na posição de pesquisadora, estabeleceu com as ex-combatentes que lhe narraram suas experiências pessoais durante o conflito. E há, também, a narrativa, possivelmente colhida do diário, das dificuldades para que o livro fosse aceito no contexto soviético da Guerra Fria, dadas as dificuldades impostas pelo poder.
O manuscrito está na gaveta há muito tempo…
Já faz dois anos que recebo recusas das editoras. Silêncio das revistas. A sentença é sempre a mesma: é uma guerra terrível demais. Muito horror. Naturalismo. Não há menção à liderança e à orientação do Partido Comunista. Em outras palavras, não é a guerra certa… E qual seria? Com generais e o sábio generalíssimo? Sem sangue e sem piolhos? Com heróis e façanhas? […]. Não fico só anotando. Eu coleto, sigo as pistas do espírito humano, ali onde o sofrimento faz de alguém pequeno uma pessoa grandiosa. Onde a pessoa cresce. E então, para mim, ela já deixa de ser um proletariado mudo e insignificante da história. Sua alma transparece. Mas em que consiste meu conflito com o poder? Entendi que uma grande ideia precisa de pessoas pequenas, e não de alguém grande. Para ela, o grande é supérfluo e incômodo. Dá trabalho para moldar. E é por ele que procuro. Procuro pelo pequeno grande ser humano. Humilhado, pisoteado, ofendido – ele passou pelos campos de trabalho stalinistas e pela traição, e mesmo assim venceu. Realizou um milagre.
Mas a história da guerra foi substituída pela história da Vitória.
Ele mesmo contará isso… (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 26-7)
Pela coincidência de datas – o ano de 1985 –, transparece que esta é a introdução apresentada quando da estreia do livro, ainda durante a Guerra Fria. As transformações decorrentes do processo de abertura política pela qual passou a União Soviética naquela década certamente influenciaram em sua aceitação pelas editoras e pelo público. Nas palavras da autora: “Começou a perestroika de Gorbatchóv… Meu livro foi publicado e teve uma tiragem impressionante – 2 milhões de exemplares. Era uma época em que havia muitos acontecimentos extraordinários, de novo nos lançamos furiosamente rumo a alguma coisa” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 29). Todavia, podemos afirmar que, em que pese uma compreensível euforia com o clima de abertura, Svetlana Aleksiévitch ainda não podia e tampouco ousava nos contar tudo naquele momento.
Há uma segunda parte na introdução à edição brasileira, cujo texto, intitulado Dezessete anos depois – 2002-2004 nos oferece o olhar e a memória da autora após o lapso de tempo referido. É ela mesma que traz, já nas primeiras palavras, a consciência de que agora o livro e as memórias que ele fixou estão inseridos em um novo contexto: “Estou lendo meu velho diário… Tento me lembrar da pessoa que eu era quando escrevi o livro. Aquela pessoa já não existe, assim como não existe o país em que vivíamos naquela época. O país que defendíamos e em nome do qual morríamos entre 1941 e 1945” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p 26). A maior parte das páginas deste segundo momento, porém, está dedicada a um personagem específico, do qual Svetlana Aleksiévitch pouco ou nada nos fala nas vezes em que intercala sua voz com a de suas entrevistadas, mas que pôde ser decisivo na hora de fixar o conjunto das memórias no papel: a censura.
Com efeito, a autora passa a apresentar trechos que, originalmente, foram vetados pelo órgão censor da União Soviética, intercalados com as anotações que ela possuía acerca do diálogo estabelecido entre ela e o agente público. Não deixa de ser curioso notar que as transcrições destes diálogos nos trazem uma perspectiva de História por parte do Estado que é, ao fim e ao cabo, exatamente aquela contra a qual a autora erige sua obra: a de uma história oficial, rígida, antisséptica ao mesmo tempo que glorificadora. Basta um olhar atento para os trechos para notar que eles, em si, não trazem grandes contestações políticas, questionamentos aos heróis ou mesmo à própria ideia da importância da vitória naquela guerra. O que os relatos censurados na versão original do livro traziam era justamente o cotidiano, o comezinho da vida sob a batalha, mas também sua dureza crua: o sentimento de vergonha da mulher que, na linha de frente, ficou menstruada sem que percebesse a tempo; o soldado moribundo que, diante da iminência da morte, pediu para a enfermeira desnudar seu seio; a forma com que os prisioneiros nazistas eram sumariamente executados; a mãe que lutava na guerrilha e que, durante um cerco promovido pelos nazistas, afogou o próprio filho que chorava de fome, pois o grupo poderia ser descoberto através do choro da criança. É interessante ver como, diante de tais trechos, censor e autora passavam a esgrimir seus argumentos e sua percepção própria de História:
Sim, a vitória foi dura para nós, mas você deve procurar exemplos heroicos. Há centenas. No entanto, você nos mostra a sujeira da guerra. A roupa íntima. Para você, nossa Vitória foi terrível… O que está tentando alcançar?
A verdade.
E você acha que a verdade é aquilo que está na vida. O que está nas ruas. Sob os pés. Para você, ela é tão baixa. Tão terrena. Não, a verdade é aquilo com que sonhamos. É como queremos ser. (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 34)
Isso é mentira! É uma calúnia contra nossos soldados, libertadores de meia Europa. Contra nossos partisans.Nosso povo herói. Não precisamos de sua pequena história, precisamos da grande história. A história da Vitória. Você não ama nossos heróis! Não ama nossas grandes ideias. As ideias de Marx e Lênin.
Isso mesmo, não amo grandes ideias. Amo o ser humano pequeno... (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 36)
Há, porém, a censura em sua forma mais cruel: a que adveio da própria autocensura da autora, da censura internalizada em seu ser e que resultou em diversos trechos de relatos que foram excluídos da versão original do livro. Mais uma vez está ali a dureza do cotidiano de uma guerra total: o menino que pede aos soldados para matarem sua mãe pois ela amava um alemão; a professora que desconfiava de uma criança que vivera sob território ocupado; os pelotões de fuzilamento para os desertores e insubordinados; a dificuldade de viver diante da necessidade cotidiana de matar o inimigo. Mas qual seria o fator a balizar aquilo que a própria autora deixou de fora? Ela pouco descortina sua alma, além de uma breve menção de que a explicação constava nos diários e que muitas daquelas coisas já haviam sido restituídas ao livro (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 29). Seria a certeza de que tais trechos seriam suprimidos pela censura? O choque, apesar de tudo, de tais versões com uma história de celebração de uma vitória sempre grafada com “v” maiúsculo? Ou estaria a autora atendendo ao pedido da ex-combatente, que proferiu: “Não mexa na minha alma. Escreva sobre minhas condecorações, como os outros...” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 39). Ou seria ainda um pouco de tudo isso a moldar a forma com que Svetlana Aleksiévitch costurou os depoimentos e os apresentou em sua versão original, dando a forma final para um trabalho que envolve a memória de várias pessoas? Talvez a resposta esteja nesta última hipótese, a julgar pelas palavras finais da autora neste capítulo.
Tive minha guerra…Percorri um longo caminho junto de minhas personagens. Como elas, por muito tempo não acreditei que nossa Vitória tivesse dois rostos – um maravilhoso, outro terrível, cheio de cicatrizes, insuportável de olhar. “No combate corpo a corpo, ao matar uma pessoa, a gente olha nos olhos. Não é a mesma coisa que jogar uma bomba ou atirar da trincheira”, me contavam.
Escutar uma pessoa contando como ela matou e morreu é a mesma coisa – você olha nos olhos… (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 43)
A segunda dimensão a considerarmos – esta, de forma bem mais breve – é que, por sua natureza (publicações de relatos de pessoas “comuns” a respeito de determinadas passagens de suas vidas ou mesmo a percepção de tais trajetórias como fonte para a pesquisa histórica), o conjunto da obra de Svetlana Aleksiévitch não é um ponto isolado dentro do mundo editorial, sendo antes uma prática que podemos considerar hoje como consolidada. Poderíamos evocar aqui, de forma sumária e a título de exemplo, a publicação, no Brasil, de Memória e Sociedade, de autoria de Ecléa Bosi, em 1994, ou, certamente um caso sui generis de apresentação de relatos, a coleção de autoria do maltês Joe Sacco a respeito dos conflitos na Palestina, sob a forma de histórias em quadrinhos, a partir do começo da década de 1990. Assim como nos exemplos citados, o diferencial da obra de Svetlana Aleksiévitch está em suas narradoras e nas histórias que essas mulheres aparentemente simples (camponesas, mães, donas de casa...) tiveram para lhe contar.
Memória: construção e controle social
Apesar de Maurice Halbwachs ter introduzido o conceito de memória coletiva no início do século XX[6], os estudos sobre as implicações sociais e históricas da memória tomaram corpo na segunda metade do século, a partir da emergência de relatos e testemunhas vivas da história que protagonizaram a Segunda Guerra Mundial e as muitas ditaduras ao redor do mundo, inclusive no Brasil, e de um movimento de historiadores em busca de uma abordagem crítica em torno desses acontecimentos. Tais depoimentos são introduzidos e começam a ser explorados pelas ciências humanas em um período, a partir do fim da década de 1980, que Hartog (2003) define como uma crise de historicidade, ou seja, de compreensão da história a partir do tempo. Eles passam por intensas discussões acerca de sua legitimidade acadêmica e seu caráter subjetivo, já que envolvem relatos orais, que em muitas ocasiões envolviam ‘traumas coletivos’, como, por exemplo, o Holocausto.
A questão do tempo atravessa também as memórias no sentido em que elas não são estáveis, fixas, sólidas. Por essa razão, não podem ser compreendidas como um bloco homogêneo, mesmo dentro de uma comunidade. Inclusive elas são, muitas vezes, fragmentadas e contraditórias. O historiador italiano Alessandro Portelli (1944) acrescenta a questão do mito e do folclore à discussão da memória coletiva quando escreve O massacre de Civitella Val di Chiana. Em breves palavras, a título de contextualização, foi um extermínio de moradores da comunidade de Civitella, durante a Segunda Guerra Mundial, onde havia uma resistência contra o regime fascista. A resistência matou alguns soldados alemães, que em retaliação executaram 115 civis. Ao trabalhar a memória coletiva da comunidade e o trauma, Portelli analisa como as pessoas atribuíram a culpa pelo que aconteceu somente à Resistência, eximindo os alemães por caracterizar esse povo como “selvagem”. O historiador perpassa contradições e aborda como as vítimas do massacre foram capazes de perdoar os soldados alemães – inclusive um dele foi até o povoado, anos mais tarde, pedir perdão ao padre da capela–, mas não conseguiam perdoar, de forma semelhante, os italianos que integraram a Resistência.
Sobre o episódio dos alemães terem pedido perdão e atribuído a culpa ao nazismo (na figura de Adolf Hitler) e à juventude, Portelli introduz a questão do mito.
Um mito não é necessariamente uma história falsa ou inventada; é, isso sim, uma história que se torna significativa na medida em que amplia o significado de um acontecimento individual (factual ou não), transformando-o na formalização, simbólica e narrativa das auto representações partilhadas por uma cultura. (PORTELLI, 1944, p. 17)
Pierre Nora (1993) introduz à discussão a relação entre História e Memória e o conceito de lugares de memória. Esses lugares são tanto materiais quanto simbólicos e coexistem entre si. Ou seja, um monumento é “lugar de memória” se houver uma carga simbólica e rituais sobre ele. É preciso que haja diálogo entre os dois aspectos. Um objeto (monumento, documento) e os significados que a ele são atribuídos. É preciso que haja o que Nora (1993) chama de vontade de memória. “Na falta dessa intenção de memória os lugares de memória serão lugares de história” (NORA, 1993, p. 22).
Nora (1993) indaga como é possível que haja lugares de memória se tais testemunhos ficam apenas no âmbito do imaterial? Ainda, pergunta o que torna algum objeto em memória? Em resposta, afirma que há “um jogo da memória e da história, uma interação dos atores que leva a sua sobredeterminação recíproca”. É preciso que a memória, uma memória traumática de guerra, como é o caso no livro de Aleksiévitch, transcenda para o nível material. É preciso que haja objetos sobre ela. O livro, nesse aspecto, é justamente uma condição de possibilidade para transformar os relatos em lugares de memória. Se houve vontade de memória, então ele é um lugar de memória. Caso contrário, serão lugares de história.
Há ainda o debate a respeito do caráter opressor ou silente de alguns mecanismos de poder sobre as memórias e os esquecimentos. Michel Pollak (1989) faz uma releitura do conceito e aborda que a memória, enquanto produto do imaginário social, é constituída a partir de determinadas narrativas e correntes de pensamento que ou estão no poder ou possuem um projeto político/social/cultural. Aliada a interesses, sejam eles quais forem, ela ajuda na construção e manutenção de mitos, tradições e costumes.
Acontece que em tempos de crise ou de guerras, as memórias coletivas nem sempre estão alinhadas com as memórias particulares, sobretudo de protagonistas desses acontecimentos. Por exemplo, memórias de guerra, que não expõem o caráter vitorioso, viril, potente do Estado-Nação, mas sim demonstram detalhes do cotidiano, aspectos corriqueiros e depoimentos de traumas e ressentimentos, tendem a ser divergentes da narrativa ‘oficial’. Nas escolas não se aprende sobre o pavor que os soldados que mataram na guerra relatam, ou o estresse pós-traumático que desenvolveram em decorrência do episódio. Em geral, não é do interesse do governo que tais depoimentos se tornem públicos.
Por um lado, justamente porque ajuda a remover o cristal que há na narrativa da Vitória. Por outro, porque, falar sobre essas cicatrizes traz consigo outro debate: a reparação, a revisão, a crítica. Nessas questões de poder se integra uma espécie de controle social, já que dar ouvidos às vozes de minorias implica, necessariamente, em algum momento, na reivindicação do direito à memória e de assumir diferentes identidades. Isso pode ser, para o Estado, uma ação perigosa, levando em consideração que no momento em que algum grupo reivindica uma memória, é preciso que se faça uma “revisão (auto)crítica do passado”, que remeta “aos riscos inerentes a essa revisão, na medida em que os dominantes não podem jamais controlar perfeitamente até onde levarão as reivindicações que se formam, ao mesmo tempo em que caem os tabus conservados pela memória oficial anterior” (POLLAK, 1989, p. 5).
Quando a memória e a identidade estão suficientemente constituídas, suficientemente instituídas, suficientemente amarradas, os questionamentos vindos de grupos externos à organização, os problemas colocados pelos outros, não chegam a provocar a necessidade de se proceder a rearrumações, nem no nível da identidade coletiva, nem no nível da identidade individual. Quando a memória e a identidade trabalham por si sós, isso corresponde àquilo que eu chamaria de conjunturas ou períodos calmos, em que diminui a preocupação com a memória e a identidade. (POLLAK, 1992, p. 7)
Diante dessa política de silenciamentos, aparecem memórias “proibidas”, “clandestinas”, que vivem no “subterrâneo” das vivências e experiências humanas – que também são comuns ao grupo, mas que permanecem na instância do não-dito. Sem espaço nos mecanismos de disseminação da memória nacional, essas memórias vão buscar espaço em meios de comunicação, nas artes, na literatura, “comprovando, caso seja necessário, o fosso que separa de fato a sociedade civil e a ideologia oficial de um partido e de um Estado que pretende a dominação hegemônica” (POLLAK, 1989, p. 3).
Há ainda outro aspecto sobre os silêncios. As tentativas de silenciamentos e esquecimento não são as únicas razões pelas quais tais narrativas não vêm a público. Em muitas ocasiões, não é do interesse da testemunha reviver todo seu sofrimento ou não quer expor seus filhos às memórias (POLLAK, 1989). Aleksiévitch narra um fato dessa natureza, logo no início do livro, em seu diário.
Certa vez, uma mulher que havia sido piloto recusou-se a se encontrar comigo. Por telefone, explicou: “Não posso... Não quero lembrar. Passei três anos na guerra... E, nesses três anos, não me senti mulher. Meu organismo perdeu a vida. Eu não menstruava, não tinha quase nenhum desejo feminino. E era bonita... Quando meu futuro marido me pediu em casamento... Isso já em Berlim, ao lado do Reichstag... Ele disse: ‘A guerra acabou. Sobrevivemos. Tivemos sorte. Case comigo’. Eu queria chorar. Começar a gritar. Bater nele! Como assim casar? Agora? No meio de tudo isso – casar? No meio da fuligem preta, de tijolos pretos... Olhe para mim... Veja em que estado estou! Primeiro, faça de mim uma mulher: me dê flores, flerte comigo, diga palavras bonitas. Eu quero tanto tudo isso! Eu esperei tanto! Por pouco não bati nele... Queria bater... Uma de suas bochechas estava queimada, vermelha, e eu vi que ele tinha entendido tudo: desciam lágrimas por essa bochecha. Pelas cicatrizes ainda recentes... E eu mesma não acreditei que estava dizendo: ‘Sim, eu me caso com você’.
“Desculpe... Não posso...” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 16)
O caso é que, em se tratando das políticas de silenciamentos executadas pelo Estado, há duas situações: a resistência e as vias alternativas, ou seja, reivindicar e disputar a memória por meio da cena cultural (POLLAK, 1989).
O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas. (POLLAK, 1992, p. 3)
Quando conseguem destruir as barreiras e sair do subterrâneo, tais memórias passam, muitas vezes, a ocupar os espaços no âmbito cultural, por meio da imprensa, do mercado editorial, das artes em geral, dentre outros.
Uma vez rompido o tabu, uma vez que as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público, reivindicações múltiplas e dificilmente previsíveis se acoplam a essa disputa da memória, no caso, as reivindicações das diferentes nacionalidades. (POLLAK, 1992, p. 3)
É desse receio quanto à necessidade de reescrever ou recontar a história e modificar as memórias coletivas, que nasce a “censura” à história das mulheres na guerra. Importante que se diga que não são histórias simples, de quaisquer mulheres, mas sim de protagonistas, de mulheres que pegaram em armas, estiveram nas frentes de batalha. Por esse motivo, essas mulheres têm credibilidade e legitimidade para dar depoimentos sobre o que viram, ouviram e viveram da guerra e ao o fazerem, retirar do pedestal o conjunto de representações que se tinha acerca das forças nacionais. É justamente essa legitimidade que preocupa e que leva a tal ocultação.
Os homens, quando as acompanhavam, nas entrevistas de Svetlana, estavam, de certa forma, exercendo esse papel de guardiões da memória e tomando precaução para que não houvesse atos de revisão.
Tudo o que sabemos da guerra conhecemos por uma ‘voz masculina’. Somos todos prisioneiros de representações e sensações ‘masculinas’ da guerra. Das palavras ‘masculinas’. Já as mulheres estão caladas. Ninguém, além de mim, fazia perguntas para minha avó. Para minha mãe. Até as que estiveram no front estão caladas. (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 12)
É como que um cuidado para que a fraqueza não seja exposta. Esse receio, para que essas outras memórias individuais – e subterrâneas – dessas mulheres não sejam contadas e não confrontem a memória nacional, cria uma fronteira que as separa e que resume a imagem que o Estado Soviético queria passar ou impor acerca da História da Segunda Guerra Mundial. Ainda sob essa perspectiva, a cautela existe porque toda e qualquer memória coletiva possui uma função dentro de um grupo social. Além de representação de uma imagem, ela simboliza a coesão de um grupo – e sua diferenciação com o outro –, o que constitui, por consequência, uma identidade (POLLAK, 1989).
Considerações finais
A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir ao presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens. (LE GOFF, 1990, p. 477)
A reflexão do historiador Le Goff é adequada para descrever a obra de Svetlana Aleksiévitch. O trabalho da autora é essencial no sentido de fornecer ferramentas para que essas pessoas possam reivindicar seu espaço dentro da memória nacional, constituir sua identidade e se relacionar com seu grupo. A história de vitória dos soviéticos na Segunda Guerra Mundial, contada pelos homens, já é difundida e amplamente disseminada. O sofrimento e os danos causados por ela, por outro lado, permaneciam em boa parte fadados ao esquecimento sob um discurso conveniente de heroicização.
Não se trata apenas de trazer à luz a discussão sobre mortes e sofrimentos da guerra. É importante, ao dar voz a essas mulheres, desconstruir a visão da mulher como frágil ou vulnerável. Porém, aqui fica um alerta. Svetlana Aleksiévitch argumenta, ao início de sua obra, sobre a questão emocional da mulher e como esse caráter não era explorado pela perspectiva dos homens quando falavam sobre a guerra. Ora, essa é uma lógica que existe como um vírus em uma estrutura patriarcal e também raciológica, que faz a clássica divisão entre emocional versus racional, estabelecendo uma hierarquia entre ambos. Sobre esse aspecto, Frantz Fanon (2008)[7] faz uma reflexão que, apesar de aplicada à condição do negro, vem muito a calhar para a condição das mulheres: não basta inverter a lógica e dizer que a partir deste momento, o emocional é superior ao racional porque isso ainda vai garantir a manutenção desta estrutura racista/patriarcal que delega características para determinado grupo. Não é nosso objetivo, com isso, deslegitimar algum relato com tal ponderamento, apenas atentar para essa estrutura social, sobretudo em um momento em que pautas identitárias surgem na arena, dialogam e disputam, entre outras coisas, as memórias coletivas.
Ademais, há uma preciosidade no trabalho que deve ser mencionada. Svetlana Aleksiévitch demonstra o sofrimento humano, de homens e mulheres, e consegue transportar para o papel a fortaleza que também existe nas mulheres. Sobretudo, o trabalho de resgate de memórias que faz a escritora é precioso porque é um espaço para que as mulheres tenham também a possibilidade de construir a sua memória, dentro da memória nacional. Uma memória que estava silenciada e que agora disputa espaço com aquela que fala em números, em medalhas, em ganhadores versus perdedores. Uma memória que agora fala em sofrimento humano, em mortes, e que, ao fim e ao cabo, questiona o sentido da guerra. Afinal, por que morrer pela pátria? Qual o valor da vida humana?
Ainda, silenciar e remeter essas memórias pessoais ao esquecimento é causar uma segunda forma de sofrimento às combatentes. Um dano que afeta o exercício de construção da identidade. Afinal, o que é o ser humano sem sua memória e o reconhecimento dessa memória, sem essa parte constitutiva de sua identidade e seu devido reconhecimento?
Uma vez aberta, a lacuna de reivindicação da memória não pode mais ser fechada. É essa a questão que incomoda intelectuais e classes conservadoras. O movimento de negação da história, de relativismo ou de busca desesperada para manter uma história cristalizada são respostas a esse espaço de disputa pela memória. O fato de haver uma batalha pela memória significa que a memória e a identidade não estão trabalhando por si, logo não temos conjunturas calmas, conforme a definição de Pollak (1992). O momento atual, da pós-modernidade, se caracteriza também por isso: não há mais como retornar ao ponto de início. Fomos atravessados por essas mudanças. As memórias já emergiram.
Referências
ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A Guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador. EDUFBA. 2008.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990.
HARTOG, François. História e a escrita da história: a ordem do tempo. Revista de História, São Paulo. v. 148, p. 09-34, 2003.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. Proj. História, São Paulo. 1993.
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.
POLLAK, Michel. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.
PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Vai di Chiana: memorias de la violência. Toscana, 29 de junho de 1944. Disponível em: http://www.gpmina.ufma.br/site/wp-content/uploads/2015/03/O-massacre-Portelli.pdf. Acesso em: 02 set. 2019.
ROUSSO, Henry. Sobre a história do tempo presente: entrevista com o historiador Henry Rousso. [Entrevista cedida a] Silvia Maria Fávero Arend; Marcelo Macedo. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 1, n. 1, p. 201– 216, jan./jun. 2009.
Notas