CONTÍNUA

O espaço vivenciado e a paisagem de emoções na obra “A Arlesiana”, de Vincent van Gogh1

Lived space and the landscape of emotions in Vincent van Gogh's “L’Arlésienne”

Jean Carlos Rodrigues
Universidade Estadual Paulista, Brasil
Universidade Federal do Norte do Tocantins, Brasil

Percursos

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN-e: 1984-7246

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 22, núm. 50, 2021

revistapercursos.faed@udesc.br

Recepção: 12 Maio 2021

Aprovação: 09 Outubro 2021



DOI: https://doi.org/10.5965/1984724622502021473

Resumo: O artigo tem como propósito apresentar os resultados de um estudo sobre vivências e paisagens elaborado a partir da obra “A Arlesiana”, de Vincent van Gogh. Esse estudo trata tal representação como paisagem de emoção, que conforma a existência de Vincent van Gogh lhe atribuindo sentidos e significados a partir das experiências manifestadas em seu espaço vivenciado. Neste sentido, entendemos que as representações do espaço apresentadas nas pinturas de Vincent van Gogh se constituem como paisagens que, tomadas como formas simbólicas, conformam a vida do artista. Dessa forma, consideramos que o espaço simbólico atribui sentidos e significados à maneira como o espaço é vivenciado e representado pelos sujeitos.

Palavras-chave: formas simbólicas, espaço vivenciado, paisagem, Vincent van Gogh.

Abstract: This article presents the results of a study on life experiences and landscapes in Vincent van Gogh's “L’Arlésienne”. The study addresses said painting as a landscape of emotions, shaping Vincent van Gogh's existence and providing sense and meaning based on his experiences in his living space. In this sense, we consider that the space portrayed in Vincent van Gogh’s paintings is constituted as landscapes that, as symbolic forms, shape the artist’s life. Thus, we consider that the symbolic space attributes sense and meaning to the way space is experienced and represented by subjects

Keywords: symbolic forms, lived space, landscape, Vincent van Gogh.

INTRODUÇÃO

Em 2019 foi lançado no Brasil o filme “No Portal da Eternidade”2. O filme francês, dirigido por Julian Schnabel, tem no papel de Vincent van Gogh o ator Willem Defoe. O filme se passa em 1888 e aborda alguns aspectos da vida do pintor em Arles. Dentre tantos episódios ali representados, uma cena em específico chama a atenção: é quando Vincent chega em casa, n’A Casa Amarela, que a essa altura era dividida com Paul Gauguin (Oscar Isaac), e se depara com Madame Ginoux (Emmanuelle Seigner) posando para o pintor francês. Rapidamente, Vincent prepara todos seus instrumentos, se coloca de frente a uma tela e começa a pintar Madame Ginoux de forma intensa. Ela, Madame Ginoux, quando percebe a atitude de Vincent, lhe vira o rosto. Em um gesto discreto, ela demonstra se recusar a posar para o pintor holandês.

Logo em seguida ela se retira do ambiente e Vincent continua pintando o que lhe restava de recordação de Madame Ginoux. Essa cena passaria despercebida, ou seria de pouca relevância, se não fosse o significado desse gesto de Madame Ginoux, ao mesmo tempo singelo, mas de forte expressão. Essa não foi a primeira vez que Vincent foi rejeitado por uma mulher. Ao longo dos seus 37 anos (1853-1890), diversas experiências desse tipo lhe cruzaram a existência, mas nenhuma que tenha possibilitado ao artista holandês vivenciar um tipo de relação estável, nos moldes em que ele desejava, qual seja: constituir uma família.

Após essa primeira versão “d’A Arlesiana”, Vincent elabora outras versões, entre seus momentos em Arles e em Saint-Rémy-du-Provence. Uma dessas versões, pintada em Saint-Rémy-du-Provence em 1890, encontra-se no Museu de Arte de São Paulo “Assis Chateaubriant”, e está reproduzida neste estudo. Algumas questões sobre esse episódio são inquietantes: por qual razão Vincent elaborou tantas versões “d’Arlesiana”? Que significados eram atribuídos pelo pintor holandês à Madame Ginoux? Que tipo de vínculo ou relação estava presente entre Vincent e Madame Ginoux? Essas questões são norteadoras para este artigo e pretendem nos levar a uma demonstração do quanto as emoções vivenciadas são carregadas de significações e são capazes de produzir pinturas e retratos que compõem as paisagens arlesianas que conformam a existência dos indivíduos, neste caso, de Vincent van Gogh.

Nosso trajeto teórico-metodológico para tal análise parte da concepção de espaço vivenciado, apoiado em Silva e Gil Filho (2020), presente nas paisagens simbólicas elaboradas que conformam a vida, manifestada nas obras de Andreotti (2007, 2008). Claval (2012), Cosgrove (1997, 2000) e de outros pesquisadores citados neste texto. Partimos do entendimento de que a pintura representa emoções vivenciadas por meio das experiências humanas no mundo, e que tal dimensão de representação constitui paisagens que, como formas simbólicas, atribuem sentidos e significados às obras (artísticas ou monumentais) e às experiências vivenciadas.

O ESPAÇO VIVENCIADO, A PAISAGEM E AS FORMAS SIMBÓLICAS: APONTAMENTOS NO ESTUDO DAS OBRAS DE VINCENT VAN GOGH

O debate proposto por este artigo se aproxima das perspectivas simbólicas da paisagem e a atribuição de sentidos e significados impregnados nessas formas simbólicas de representar-o-mundo. Nessa perspectiva, consideramos que a pintura pode ser abordada como paisagem que conforma a existência do sujeito, haja vista que no processo criativo destas espacialidades simbólicas algo se faz presente para além da técnica e da tinta: os espaços vivenciados pela experiência. No caso do estudo que propomos, Vincent nos convida a reviver com ele toda a complexidade de vivenciar Arles e o quanto tal vivência adquiriu formas simbólicas espaciais quando o artista fez com que suas experiências vivenciadas com emoções (SILVA; GIL FILHO, 2020) se tornassem paisagens simbólicas arlesianas.

Não é de hoje que se reconhece uma nítida relação entre paisagem e pintura. A paisagem muito antes de ser incorporada nas formas espaciais, se constituiu primeiramente como forma pictórica. Para Andreotti (2008), a paisagem possui uma dimensão que envolve aspectos materiais e simbólicos. De acordo com a autora, “è anzitutto fondamentale premettere che il paesaggio viene considerato sia materiale, sia simbolico. É materiale nel senso che comprende oggeti come gli insediamenti ed è simbolico perche há un significato per gli uomini” (ANDREOTTI, 2008, p. 82). Nesse entendimento, tantos os aspectos materiais quanto os simbólicos fazem com que a paisagem compreenda faces da cultura humana que estejam relacionadas com suas materialidades (“gli insediamenti”), mas também com seus significados (“simbólico”).

Partindo da premissa de que o artista vê o que pinta (GOMBRICHT, 2007), em suas elaborações estéticas se inclui uma espacialidade-na-obra cujos sentidos e significados ali representados não caminham na direção das descrições das coisas reais da cena observada, mas na significação que essas coisas possam ter para o artista e para a sociedade em seu tempo-espaço, o qual se coloca na liberdade de recriá-las a partir de suas significações e de sua estética.

Em todo caso, tanto geógrafos quanto pintores exercem “il controlo dello spazio visivo” (COSGROVE, 1997, p. 40). E isso se apresenta como um campo de investigação relevante para os geógrafos que abordam as paisagens artísticas como maneira de compreender as representações do mundo estético desde a fundação da geografia como ciência. Segundo Andreotti (2007, p. 103), “i geografi godono del privilegio di avere libertà d’immaginazione, senza troppo confrontarsi com le esigenze del reale”. De acordo com Cosgrove,

come studio delle relazioni tra i gruppi umani i il loro ambiente fisico, la geografia si è assunta la responsabilità di quella visione integrata che il paesaggio e il senso di armonia con il mondo naturale del romanticismo hanno fondato nei primi anni del diciannovesimo secolo, la visione de Goethe, Humboldt, Ruskin e tanti altri tra i loro contemporanei si sono sforzati di ottenere ed esprimere nell’arte del paesaggio, incorporandovi la moralità dell’intero processo sociale. (COSGROVE, 1997, p. 238)

Segundo Claval (2012), “a nova concepção que os geógrafos têm da paisagem os leva a se interessarem pelas motivações daqueles que as desenharam ou organizaram”. Essa passagem é extremamente significativa quando debruçamos nossos olhares e nossas expectativas sobre a arte de Vincent interpretada à luz da paisagem em suas representações. Em outro momento, Claval (2012) se posiciona no seguinte aspecto: “o geógrafo não estuda mais apenas a paisagem como realidade objetiva. Preocupa-se com a maneira como a paisagem está carregada de sentido, investida de afetividade por aqueles que vivem nela ou que a descobrem”.

Dessa forma, na medida em que a paisagem comunica sentidos e significados, tais predicados podem estar associados ao que se vive-no-espaço, ou seja, ao espaço vivenciado. Quando falamos em espaço vivenciado, nos dedicamos às elaborações apresentadas por Bollnow (2019) e por Silva e Gil Filho (2020). Silva e Gil Filho (2020), baseados em Bollnow (2008) dizem que “[...] o espaço não é somente algo de caráter espiritual, imaginado ou concebido, sendo carregado de significado, portanto, idealizado pelo sujeito e pelo seu sentimento espacial”.

Para Silva e Gil Filho (2020, p. 155), “os espaços vivenciados são conformações de expressões, representações e significações ensejados também por potências emocionais”. Diante das várias possibilidades que se abrem ao sujeito para vivenciar suas conformações espaciais, tais vivências ganham formas e cores quando se trata de elaborar as representações de mundo desses sujeitos e fazer-aparecer novas expressões da realidade nas telas e quadros, uma vez que a arte, enquanto forma simbólica na perspectiva cassireriana, se apresenta como forma-de-conformação-da-existência.

A fase arlesiana da vida e da obra de Vincent se depreende sob diversas representações de seu mundo, cujas emoções ganham um significado muito especial em suas telas. A arte arlesiana de Vincent é pura manifestação de suas emoções em suas pinturas, pois muitas das telas do artista desse período carregam consigo sentimentos e experiências mobilizados pelas paixões (A Arlesiana), dores (Autorretrato com orelha ligada e cachimbo) e alegrias (O Girassol) do artista. Mas não só em Arles: grande parte da obra de Vincent aproxima-se de uma manifestação de emoções: segundo Fell (2007, p. 14-15) “em seus extraordinários retratos e surpreendentes paisagens [...] o âmbito e a intensidade das emoções de Vincent se manifestam dramaticamente”.

Isso demonstra que o espaço vivenciado com emoção por Vincent conforma e significa em sua arte formas de expressões que de outra maneira não seriam possíveis de se demonstrar com tamanha intensidade, pelo menos nas obras arlesianas de do artista, nas quais a pintura adquire uma dimensão incapaz de se manifestar pelas letras. Nas palavras de Silva e Gil Filho (2020, p. 159) “o sujeito é aquele que [...] vive o mundo e o significa em sua ação conformadora do mundo da cultura das espacialidades”. O mundo-da-cultura é uma dimensão eminentemente humana, constituído por símbolos que mediam nossa relação com o mundo e com as coisas-do-mundo. Nesse processo de mediação, o pintor representa nas telas seus simbolismos que significam seu modo de construir e de aproximar o possível e o impossível; aquilo-que-imagina e aquilo-que-acontece.

Martin Heidegger, quando analisou a obra “O par de Sapatos (1886)”, de Vincent van Gogh, caminhou no mesmo sentido da intepretação dos sentidos e significados da tela. Segundo Leão e Martins (2010, p. 19), “os sapatos pintados na tela de Van Gogh possuem autonomia artística em qualquer época, embora, na construção de seus vários significados, não possamos ignorar o lugar e a memória histórica de seu observador”. E acrescentam: “para Heidegger, a obra de arte é uma abertura, uma clareia (lichtung) para a realidade. O ente representado na tela, no quadro, transporta o observador do mundo imaginário à realidade efetiva através da abertura e da acolhida da obra” (LEÃO; MARTINS, 2010, p. 20).

Na perspectiva de que a obra é uma abertura-para-o-mundo,

mais uma vez, pensando na tela [...] pintada por Van Gogh, não a vemos como simples artefato ou adorno, que se pendura na parede. Ao contrário, segundo Heidegger, Van Gogh tornou visível o mundo da camponesa. Os sapatos gastos, velhos, presentes no quadro trazem consigo a presença da própria lavoura, evidenciando o peso do trabalho árduo, da manhã que se inicia no caminho para o campo, do suor da lida, do sol quente no verão, do inverno rigoroso. Pelo quadro, que exibe apenas um par de sapatos velhos, é possível conhecer o vasto mundo de que deles se acerca. O par de sapatos é uma janela, uma abertura, que mostra os elementos velados na cotidianidade. (LEÃO; MARTINS, 2010, p. 21, grifo nosso)

Dessa forma, a obra enquanto abertura para o mundo evidencia a expressão da cotidianidade que tem; na obra analisada por M. Heidegger, a representação do mundo camponês, do trabalho na lavoura, que se manifesta enquanto verdade, mas verdade-que-aparece nas pinceladas de Vincent. Se levarmos em consideração o que Vincent pintou e escreveu sobre o trabalho do camponês, sobretudo na sua fase holandesa, tudo adquire sentido e significado nesta tela: o pintor queria fazer-aparecer o mundo vivenciado daqueles que dignamente buscam por sua subsistência no árduo trabalho do campo.

Assim, se “[...] o espaço vivenciado é o espaço heterogêneo, concreto, onde acontece a vida” (SILVA; GIL FILHO, 2020, p. 159), esse acontecer-da-vida se dá mediado pelas emoções, as quais adquirem formas e cores nas pinturas de Vincent como expressão de eternizar os desejos e de objetivar os sentimentos. É nesse ponto que encontramos sentido na filosofia de Ernest Cassirer conforme apontado por Silva e Gil Filho (2020, p. 164): segundo os autores, a filosofia da cultura de Ernst Cassirrer “[...] parte da liberdade do ser simbólico, de sua subjetividade, para a constituição da objetividade e de uma teia de significados, expressos enquanto espaços significativos”.

Essas liberdade, subjetividade e objetividade destacadas pelos autores se fazem presentes nas pinturas de Vincent e se colocam nessa rede de significados que cada tela tem para a vida e a obra do artista. Se existe algo que o artista holandês comunica em suas pinturas, esse algo é a fidelidade aos seus sentimentos: Vincent foi (i) muito fiel a si mesmo, (ii) às suas emoções e (iii) às suas utopias quando pintava, pensadas conforme Cosgrove (2000, p. 51): “a utopia é parte da imaginação social dirigida ao futuro que desafia a tradição e busca a ruptura com o presente. Ao construir histórias e imagens de futuros possíveis, as utopias fornecem razão para a ação e para a mudança”. E tamanha fidelidade ao seu próprio-ser-que-existia-no-mundo fez de sua obra um testemunho de suas próprias emoções. Parafraseando Silva e Gil Filho (2020, p. 160): Vincent era o centro do seu próprio espaço.

Para Silva e Gil Filho (2020, p. 159), “a emoção é parte evocativa de um espaço vivenciado. Tal conceito inicia na experiência e na percepção humana de compreender o todo como espaço da existência. Cada lugar no espaço vivenciado tem um significado para o ser simbólico”. Partindo dessa concepção de espaço vivenciado, constatamos que o modo-de-fazer-arte de Vincent tinha muitas atribuições dos significados que cada lugar pelo qual passou conformava o artista, até porque cada lugar tinha um sentido para o artista estar-ali. Se considerarmos, por exemplo, as obras de Vincent pintadas em Nuenen (Holanda) e em Arles (França), visualizamos diferenças significativas no seu modo-de-pintar-o-mundo porque cada lugar atribuía um significado específico em sua existência e em sua arte.

Importante destacar que não havia um sentido de intencionalidade em Vincent para imitar a realidade em suas pinturas. Não era esse o propósito do artista holandês, e não o seria também da própria arte, tanto conforme E. Cassirer (2005) quanto para E. Gombrich (2007). Para este último, não é possível a arte alcançar uma imitação da realidade, pode-se pensar apenas em elaboração de uma representação, “[...] se por esse termo entendemos uma referência a outra coisa” (GOMBRICHT, 2007, p. 84).

Nesse sentido, o mesmo autor acrescenta que por se tratar de uma criação, a representação não tem a necessidade de ser idêntica ao motivo (GOMBRICHT, 2007, p. 94). E alerta: “[...] é perigoso confundir a maneira pela qual uma figura é desenhada com aquela pela qual é vista” (GOMBRICHT, 2007, p. 64). Besse (2006), citando Straus (1989) afirma que a pintura de paisagem “[...] não representa o que vemos, ela ‘torna visível o invisível’ ” (STRAUS, 1989 apudBESSE, 2006, p. 81).

E. Cassirer (2005), ao considerar a arte como uma forma simbólica, caminha no mesmo sentido em que citamos de E. Gombricht: a arte estabelece uma mediação entre o homem e a realidade, mas não necessariamente a imita. Segundo Cassirer (2005, p. 234), “[...] a arte não é uma simples reprodução de uma realidade dada, pronta. É um dos meios que levam a uma visão objetiva das coisas e da vida humana. Não é uma imitação, mas uma descoberta da realidade”. Ao observarmos o trabalho de um artista, Cassirer (2005, p. 239) nos diz que “[...] somos forçados a olhar para o mundo com os olhos dele. Temos a impressão de nunca antes ter visto o mundo sob essa luz peculiar”. Segundo Gombricht (2007, p. 73) “o artista tende, consequentemente, a ver o que pinta em vez de pintar o que vê”.

O que se faz presente nas análises de E. Cassirer e de E. Gombricht é a natureza simbólica do homem, e como essa perspectiva faz a mediação na nossa intepretação da arte. Para Gombricht (2007, p. 85) “[...] o mundo do homem não é só um mundo de coisas tangíveis, é um mundo de símbolos, no qual a distinção entre a realidade e faz-de-conta é, ela própria, irreal”. E o autor acrescenta: “toda arte tem origem na mente humana, em nossas reações ao mundo mais que no mundo visível em si, e é exatamente por ser toda arte ‘conceitual’ que todas as representações são reconhecíveis pelo seu estilo” (GOMBRICHT, 2007, p. 76).

“A ARLESIANA”: AS EMOÇÕES VIVENCIADAS NA EXPRESSÃO DA PAISAGEM DE VINCENT VAN GOGH

Para que possamos compreender os espaços vivenciados e representados na estética de Vincent e, consequentemente, nas suas paisagens arlesianas, torna-se necessário conhecermos também suas trajetórias a fim de identificarmos elementos de suas experiências com as telas produzidas. Para Heidegger (2010), a obra não existe sem o artista, e tampouco o artista se faz sem a obra. Ora, nesta intrínseca relação entre obra e artista, para identificarmos e reconhecermos nas obras aspectos existenciais dos artistas, torna-se importante reconhecer o que essas obras significaram para seus criadores. Segundo Leão e Martins (2010, p. 17), “a verdade acontece na arte através de sua abertura interpretativa. Na pintura exposta na parede, na mistura das cores da tinta e dos traços dos pincéis junto à tela é que o mundo circundante ganha vida”. No caso de Vincent não é diferente.

Para compreender Vincent, é necessário ir para além de seus quadros. Como dissemos anteriormente, as telas do artista holandês possuem modos de existência que precisam ser associadas às cartas que trocava com seu irmão, Théo van Gogh, e alguns poucos familiares e amigos, como também à literatura que o acompanhava para serem percebidas. Segundo Walther e Metzger (2015, p. 427-428), “e nós só conseguimos decodificar o seu [Vincent] simbolismo oculto se estivermos familiarizados com as fonts literárias de que se valeu para envolver o seu trabalho de significado”. Para Leão e Martins (2010, p. 19), a perspectiva fenomenológica de análise da obra de arte “possibilita apreender o sentido da obra em suas diversas nuances interpretativas. Para tal, é necessário que tanto o artista, o quadro e o observador estejam imbricados no mesmo horizonte de expectativas no qual a própria arte se manifesta”.

E Walther e Metzger (2015) prosseguem: “todos os seus [Vincent] motivos – os girassóis e o semeador, da mesma maneira que os cavadores e os barcos – são mais do que simples objetos ou pessoas. Só ficam completos com determinadas associações literárias” (WALTHER; METZGER, 2015, p. 427-428). Se a forma significante em Vincent comunica ideia, sentimento e emoção, tais manifestações espirituais do artista tornam-se cores e contornos a partir do que, tanto os motivos quanto sua compreensão de mundo, significava para Vincent.

Esse processo se apresenta relevante quando estudamos as obras de Vincent, associadas com um extenso conjunto daquelas cartas nas quais ele registrava os motivos que o levaram a criar determinada pintura. Ao ter acesso a essas correspondências, podemos reconhecer que muitas de suas telas tratavam daquilo que importava e significava para o artista, cuja conformação da existência se tornava arte. Foi assim com os quadros “Os Comedores de Batata”, “O Semeador” (várias versões), “A Arlesiana” (várias versões), e tantas outras pinturas criadas pelo artista holandês. É como se fôssemos percebendo a obra e seu sentido por camadas interpretativas, conforme Cosgrove (1997) propõe o estudo da paisagem simbólica.

Quando Vincent chegou em Arles, na França, em fevereiro de 1888, ele não imaginava que naquele lugar viveria as experiências mais intensas de sua vida: estas seriam tanto gloriosas quanto trágicas. Como experiências gloriosas de Vincent destacamos que foi em Arles que alcançou um nível de criação artística tão sofisticado quanto colorista, criando pinturas/paisagens atualmente de grande destaque: “Os Girassóis”, “A Casa Amarela”, “O Quarto”, “O Semeador”, “O Terraço do Café na Place du Forum, Arles, à Noite”, e outras.

Mas também comunicam as experiências trágicas de Vincent, arrastando e demonstrando consigo conflitos com Paul Gauguin e o episódio no qual o artista cortou a própria orelha após uma intensa discussão com o pintor francês, e que depois retratou em uma tela. Entre a glória e a tragédia, as experiências vividas por Vincent em Arles lhe permitiram conhecer e conviver com pessoas que se tornaram muito próximas e significativas para o pintor holandês que, entre uma glória e uma tragédia, as imortalizou em quadros/retratos como “O Carteiro Roulin”, “A Arlesiana”, “O Escolar (O Filho do Carteiro – Gamin au Képi)”, dentre outros.

No paradoxo entre sentimento e forma apontado por Langer (2011), recorremos à filosofia das formas simbólicas de E. Cassirer para pensar a arte de Vincent como expressão de seu mundo circundante conformando a própria existência do artista. Para Martinez (2014, p. 155), “os retratos de van Gogh em Arles possuem a função de catalogar as pessoas de sua época, tal como os tipos que ele desenhava na Holanda”. Se o desejo de Vincent em fundar uma escola colorista em Arles fracassou, esse fracasso não impossibilitou que criasse expressões artísticas de emoções: o artista holandês soube fazer de sua arte um espaço de cores inigualável que o imortalizou pelos seus temas e seus significados para a arte e a vida (WALTHER; METZGER, 2015).

Quando Vincent pintou a versão “d’A Arlesiana” deste artigo, era o ano de 1890 e ele se encontrava em Saint-Rémy-de-Provence, na França, cidade onde chegou em 08 de maio de 1889 e na qual permaneceu até 16 de maio de 1890. De acordo com Martinez (2015), o tela “A Arlesiana” corresponde ao retrato de Marie-Julien Ginoux, sobre a qual o artista holandês criou sete quadros: duas versões em Arles e cinco outras em Saint-Rémy-de-Provence. A figura 1 corresponde a uma das versões pintadas em Saint-Rémy-de-Provence e pertence ao Museu de Arte de São Paulo “Assis Chateubriand” (MASP), desde o ano de 1954, de acordo com o próprio MASP.

A Arlesiana, 1890
Vincent van Gogh. Óleo sobre Tela, 65cmx54cm.
Figura 1
A Arlesiana, 1890 Vincent van Gogh. Óleo sobre Tela, 65cmx54cm.
Fonte: MASP, São Paulo. Imagem cedida pelo MASP/SP para este artigo.

De acordo com Martinez (2015, p. 110), Marie-Julien Ginoux era proprietária do Café de la Gare, em Arles, cidade na qual Vincent residiu entre fevereiro de 1888 até maio de 1889. O café de Marie-Julien Ginoux era frequentado por ele antes de o artista se instalar em um armazém que depois seria sua casa, na Praça Lamartine, onde residiu sozinho até a chegada de Paul Gauguin e que depois se tornou uma das grandes obras do artista holandês, “A Casa Amarela”, pintada em setembro de 1888 e que hoje se encontra no Museu Van Gogh (Fundação Vincent van Gogh), em Amsterdã, na Holanda. Segundo Walther e Metzger,

desde que chegara a Arles, Van Gogh vivera sempre em casa de outras pessoas. Alugou um armazém para a pilha de quadros que depressa se foram acumulando; este armazém ficaria conhecido na história da arte como a ‘casa amarela’, uma vez que ele se mudou para lá em setembro desse ano [1888]. (WALTHER; METZGER, 2015, p. 342)

O lugar em que Vincent vivia representava muito em sua arte. Quando esteve em Saint-Rémy-de-Provence, o artista escreveu na carta 617: “‘penso que nunca mais vou pintar coisas pastosas; isto é resultado da vida calma que levo no hospício, e sinto-me melhor assim’” (VAN GOGH, 1889 apudWALTHER; METZGER, 2015, p. 591). De fato, sua arte toma um novo sentido e uma nova direção a partir de sua internação, sobretudo quando Vincent passa a se dedicar a pintar mais de memória do que ao ar livre.

Walther e Metzger (2015, p. 530) revelam que, para Vincent, o mundo da tela era um local mais calmo do que o mundo exterior. Nesse mundo-de-telas, o artista holandês criava as representações do que importava na vida. Foi nesse intuito que ele criou “A Arlesiana”, que representava não apenas a proprietária de um café frequentado por ele em Arles, mas também constituía um elo de aproximação geográfica-simbólica entre Arles e Saint-Rémy-de-Provence: dois mundos interligados por uma tela!

Para compreendermos o significado dessa aproximação entre dois mundos aproximados por uma tela, é necessário retornarmos algumas questões. Como já fora dito, Vincent criou outras versões “d’Arlesiana”, tanto em Arles quanto em Saint-Rémy-de-Provence (WALTHER; METZGER, 2015). Por aí já é possível reconhecermos que tal representação tinha um sentido bastante significativo pois raramente Vincent se dedicava a fazer tantas telas de um mesmo motivo. Para compreendermos tal circunstância, requer que retornemos um pouco a Arles.

Marie-Julien Ginoux havia sido convidada para servir como modelo para Paul Gauguin, que chegara em Arles para morar com Vincent em outubro de 1888 (carta n. 557). No momento em que Gauguin criava sua tela, Vincent aproveitou a ocasião e também fez sua tela da Madame Ginoux, mas consciente de que ela havia aceitado o convite de Gauguin, e não dele. Segundo Naifeh e Smith (2012, p. 780-781), “ou Marie Ginoux recusou suas [Vincent] propostas ou, temendo que ela recusasse, Vincent nunca falou nada”.

Recém-chegado a Arles, Paul Gauguin convidou Marie-Julien Ginoux para posar como modelo na Casa Amarela. Disto, Gauguin elaborou um estudo3 para um quadro4 pintado em 1888. Em uma correspondência a Theo, Vincent chegou a afirmar que “‘Gauguin já encontrou sua arlesiana [...] quisera eu ter chegado a tanto’” (VAN GOGH, 1888 apudNAIFEH; SMITH, 2012, p. 781). Os dois pintores se dedicaram a retratar a arlesiana, Madame Ginoux, ao mesmo tempo. Segundo Naifeh e Smith,

enquanto Gauguin desenhava languidamente em carvão, soerguendo a vista do papel para manter a atenção do modelo e captar seu sorriso de Mona Lisa, Vincent trabalhava com furor à tinta, compondo depressa um vestido preto-azulado, um rosto sério em verde, uma cadeira alaranjada contra um fundo amarelo elétrico, numa corrida contra o relógio. Em menos de uma hora, Gauguin terminou o desenho e Ginoux foi embora. Por sorte, Vincent concluíra sua pintura em tempo. (NAIFEH; SMITH, 2012, p. 781-782)

De todo esforço de Vincent, numa luta contra o relógio em compor seu quadro com seu furor e tinta, finalmente o artista tinha a pintura de sua arlesiana que havia tempos desejara, sobretudo representada pela Madame Ginoux, a quem Vincent relatou por carta a seu irmão, Theo: “finalmente então eu tenho uma Arlesiana, uma figura [...] esboçada em uma hora” (VAN GOGH, 2015, p. 271 – carta n. 559). Essa foi a primeira representação de Madame Ginoux, sobre a qual ele se dedicou mais seis vezes, sendo cinco delas em Saint-Rémy-de-Provence a partir de recordações e de um desenho de Paul Gauguin.

Após o episódio do corte da orelha e de outros dramas e ataques ocorridos em Arles, Vincent se internou em um asilo chamado Saint-Paul-de-Mausole, em Saint-Rémy-de-Provence, que “funcionava mais como uma estância de repouso do que como uma casa de alienados mentais” (NAIFEH; SMITH, 2012, p. 868). Conforme já foi dito, ele chegou lá em 08 de maio de 1889 e por lá permaneceu até 16 de maio de 1890. Mas não esqueceu Arles.

E foi em novembro de 1889 que, após receber recursos financeiros de seu irmão Theo e a autorização do Dr. Théophile Peyron, retornou a Arles pela segunda vez depois de sua chegada ao asilo Saint-Paul-de-Mausole (a primeira, em julho de 1889, havia provocado uma série de crises em Vincent, e era por isso que o Dr. Peyron relutava em autorizar esta segunda viagem). Entre tantos interesses nesta viagem, havia um em especial: Madame Ginoux. Como em julho Vincent não conseguiu vê-la, todas as expectativas para um novo encontro haviam sido apostadas nessa nova viagem.

Enfim, Vincent conseguiu ver Madame Ginoux, e só por isso a viagem já tinha valido à pena. A arlesiana correspondia a um elo entre dois mundos bastante significativos para o artista: Arles e Saint-Rémy-de-Provence. No primeiro, um mundo de cor, de expectativas e de frustações; no segundo, uma chance de descanso e de criações com qualidades mágicas. Entre eles, Vincent criou formas que expressam suas emoções e seus encantamentos: ele queria rever Madame Ginoux, seja “por um súbito frêmito de desejo ou uma longa paixão por uma mulher que mal conhecia” (NAIFEH; SMITH, 2012, p. 914), mas com a qual sonhava.

Arles, e seus amores, não saiam da cabeça de Vincent. No Natal de 1889 o artista teve um novo ataque, exatamente um ano depois daquele que sofreu em Arles, no Natal de 1888. Mas ele não se deixou abater: queria fazer uma terceira visita à Arles, queria rever Madame Ginoux. E o fez: em 19 de janeiro de 1890, de terno novo, a cartografia do sentimento volta a colocar Arles na rota de Vincent. Mas foi frustrante: Madame Ginoux estava doente, e talvez nem o tenha visto. Quando retorna à Saint-Rémy, ele lhe escreve: deseja que se recupere o quanto antes e que “‘as doenças existem para nos lembrar que não somos feitos de madeira [...] e esse me parece o lado positivo de tudo isso’” (VAN GOGH,1890 apudNAIFEH; SMITH, 2012, p. 927).

Mas, se na vida, Madame Ginoux fosse um amor impossível, na imaginação de Vincent ela sempre estava presente. Se a mente de Vincent se encontrava em Saint-Rémy, seu coração estava em Arles (NAIFEH; SMITH, 2012, p. 942), e esses mundos insistiam em se cruzar em Madame Ginoux. Na cartografia do sentimento, a arlesiana do Café de la Gare significava o final de uma viagem motivada pela paixão; na expressão simbólica do imaginário, ela preenchia telas que constituíram formas significantes que atribuíam sentidos, significados e explicações a todo esforço que Vincent, mesmo doente, se propunha a enfrentar em viagens pelas montanhas para estar perto de uma mulher que lhe despertava, ao mesmo tempo, desejo, paixão e consolo maternal.

Munido do desenho que Paul Gauguin havia feito de Madame Ginoux em novembro de 1888 em Arles, Vincent se dispôs a criar suas versões dele. Como afirmado por Ernst Cassirer (2005), na arte não existe imitação, e cada criação é a expressão de algo novo e nunca visto: em cada versão de sua arlesiana o artista holandês dava forma aos sentimentos e expressões. Segundo Naifeh e Smith (2012, p. 942), na segunda versão “d’A Arlesiana” que estava pintando, Vincent tinha “uma necessidade premente de afeto e autoafirmação que se estendeu com especial cuidado na expressão do rosto de Madame Ginoux, lisonjeiramente acrescentando à altivez do desenho de Gauguin um sorriso afável”.

Entre sentimento e nostalgia, Vincent povoou seu ateliê com cinco versões “d’Arlesiana” em Saint-Rémy-de-Provence. Sentimento porque a motivação em criar tantas versões do desenho de Paul Gauguin, era o desejo e admiração que Vincent manifestava pela Madame Ginoux em cartas, palavras e sonhos. Nostalgia porque nas versões de Vincent em que Madame Ginoux aparece com livros nas telas, estes são de seu tempo de infância, como Contos de Natal, de Charles Dickens; e A cabana do pai Tomás, de Harriet B. Stowe (NAIFEH; SMITH, 2012, p. 943).

Desse modo, compreendemos que as expressões artísticas em suas versões “d’Arlesiana” correspondem às formas simbólicas de expressar sentimentos e emoções que conformaram a existência do artista holandês e se apresentam como composição das paisagens arlesianas. Por Madame Ginoux, o mundo de Vincent se movimentou: (i) tanto o mundo físico no esforço de viagens cansativas entre Saint-Rémy e Arles a despeito de seu estado de saúde que não era dos melhores; (ii) mas também o mundo simbólico, no ardente desejo de representar em telas, tintas e cores aquilo que não poderia alcançar em vida, atribuindo a essas pinturas uma realidade que não conseguiu pessoalmente: um sorriso afável de sua arlesiana.

Ao contextualizarmos o mundo circundante de Vincent que resulta em arte como conformação simbólica da existência e da emoção, reconhecemos a complexidade da existência e da expressão humana. Parafraseando Scofano (2018), percebemos como isso é complexo, porque as tramas da vida também são complexas e, “todo e qualquer avanço no campo do pensamento e das atividades culturais complexificam ainda mais essa rede” (SCOFANO, 2018, p. 19). Para Lepera (2004), “o ser humano é estudado na rede da vida e não fora dela, pois o processo de conhecer [...] está sempre ligado ao despertar de diferentes padrões e níveis de consciência” (LEPERA, 2004 apudALMEIDA, 2018, p. 08).

Ferraz (2009, p. 32) afirma que através da “linguagem das formas de espaço como meio para que os indivíduos dialoguem suas experiências vivenciais através das imagens que as referenciam, vislumbra-se o sentido dessa espacialidade, passível de ser apreendido pelas imagens elaboradas pelos artistas pintores”. No caso específico da tela em análise, “A Arlesiana” como uma imagem/pintura elaborada por Vincent, é uma maneira de o pintor holandês dialogar conosco sobre suas experiências vivenciadas com emoção e que compõe um conjunto mais complexo das paisagens arlesianas.

Nesse sentido, o retrato “d’Arlesiana” deve ser lido como um texto, conforme a proposta de Cosgrove (1997), pois as imagens/pinturas

se apresentam como iconografias que podem ser lidas em camadas de dimensões históricas e simbólicas. Neste sentido as paisagens em Cosgrove passaram a ser detentoras de uma história mais complexa, exigindo uma leitura crítica e dialética, e podem ser desvendadas, como numa espécie de arqueologia de fatos justapostos e superpostos, através das “camadas” de sentidos contidos nas suas representações. (CARVALHO, 2017, p. 89)

Foi essa proposta metodológica de D. Cosgrove que procuramos seguir ao longo deste artigo: como observadores, interpretamos a tela “A Arlesiana” de Vincent a partir de fatos vividos justapostos e superpostos em camadas a fim de desvendarmos as experiências vivenciadas pelo artista em Arles que motivaram a criação e a repetição dessa tela por ele. Os sentidos e os significados ali impregnados conformaram a existência de Vincent, levando-o à exaustão física e mental, mas sem nunca abandonar o projeto de ter sua arlesiana, ao menos representada em uma tela, como parte das experiências vivenciadas por seu ser-no-mundo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No início deste artigo, abordamos a questão da paisagem e o quanto ela é importante nos estudos espaciais. Apoiados em Andreotti (2007; 2008) Cosgrove (1997; 2000) e Claval (2012), apontamos o quanto a paisagem pode carregar e manifestar consigo sentidos e significados. Mas não só: ela também pode ter sua elaboração mediada pelas emoções que são componentes importantes do espaço vivenciado por cada ser-que-está-no-mundo. Dessa forma, a paisagem simbólica, manifestada em uma imagem, pintura ou monumento, pode ser interpretada por camadas que decodificam aquilo que está na paisagem, mas não aparece em um ingênuo e inocente olhar superficial de um observador distraído. Para compreender os sentidos e significados das paisagens simbólicas, se faz necessário avançar um pouco mais para além de um primeiro olhar.

Neste artigo, tratamos de apresentar uma perspectiva do estudo do espaço a partir da obra de Vincent van Gogh. A aproximação da geografia com a pintura não é recente, mas o estudo a partir das representações de Vincent van Gogh acrescenta e colabora com algo a mais nessa compreensão: as emoções vivenciadas pelo artista que se manifestam como paisagens simbólicas e revelam sua conformação existencial. Nesse sentido, consideramos que a compreensão do espaço circundante do artista, as experiências vivenciadas e as paisagens arlesianas elaboradas carregam consigo uma dimensão simbólica capaz de impressionar o observador, mas também de imortalizar os sentidos do fazer-a-obra-ser-obra.

Essa perspectiva demonstra que para além das dimensões materiais, o simbólico também deve ser considerado no fazer-geográfico e deve ser mobilizado nas intepretações das dinâmicas que compõem o espaço e as vivências neste espaço. Nesse caminho, refletir sobre as espacialidades vivenciadas por Vincent e representadas em suas paisagens arlesianas, nos coloca diante de um mundo de possibilidades de pensar as formas de existência no/do espaço de maneira bastante significativa porque nos permite um olhar não apenas sobre as coisas dispostas nas telas, mas sobre o que elas significam para artistas e observadores.

É necessário compreender que mundo foi esse vivenciado por Vincent: entre 1888 e 1890 suas representações, sentimentos, esperanças e desejos percorreram uma cartografia sentimental sempre no sentido Saint-Rémy-Arles-Saint-Rémy, na expectativa de não apenas rever objetos deixados em Arles após sua mudança para Saint-Rémy, mas também com o intento de reencontrar aquela que mobilizava sonhos, desejos e expectativas no artista holandês: a Madame Ginoux, a arlesiana do fazer-aparecer-o-mundo-significativo, a vivência significada por emoção de Vincent.

E toda essa convergência de sentimentos, ora frustrados, ora correspondidos, adquiriram formas e se objetivaram em quadros cuja compreensão está para além do que aparece nas telas. São as formas significantes que conformaram o mundo de Vincent e que a filosofia das formas simbólicas nos subsidiou para considerarmos a arte do artista holandês também como expressão do mundo, ou melhor: como expressão-da-vida-que acontece-no-mundo.

Isso nos abre uma imensa possibilidade de tratarmos as manifestações do espírito humano como criações de formas que significam as maneiras do indivíduo de ser/estar/sentir no mundo, e fazer esse mundo tornar-se paisagem simbólica. Ou seja, quando observamos “A Arlesiana” no MASP não vemos apenas uma pintura, um retrato, visualizamos um mundo que se movimentou em torno de um desejo imortalizado no conjunto de outras obras que, juntas, contribuíram com a criação das paisagens simbólicas arlesianas de Vincent.

É como diz Scofano (2018) em citação presente neste texto: as formas simbólicas, que modelam as coisas e lhe atribuem sentidos, proporcionam uma estrutura que nos permitem ver, significar e, além disso, conformar o mundo, este mundo circundante no qual a vida acontece em diferentes padrões e em diferentes níveis de consciência, conforme Lepera (2004 apudALMEIDA, 2018). A arte, diante de toda essa complexidade da existência, cria realidades que nos são apresentadas como algo nunca visto antes, mas sem perder a conexão com os fatos do mundo. A vida e seus desejos nos apresentam uma experiência significada de emoções.

Consideramos que a arte, enquanto forma simbólica, constitui-se como expressão de sentimentos e de formas que não estão dissociados do mundo circundante do artista; ao contrário: a arte constitui-se como maneira de retratar e conformar o mundo, atribuindo a ele sentidos, significados e expressões por meio da criação de formas. As pinturas tornadas paisagens são expressões e comunicações sobre o mundo que o artista elabora a partir de suas convicções emocionais, políticas, sociais, estéticas e espaciais.

Nos estudos sobre o espaço deve-se compreender tal dinâmica e considerar tal complexidade porque, de certa forma, o que aparece na arte enquanto representação, é representação de um mundo, que não está distante da vida do/no espaço porque as manifestações do espírito estão relacionadas a ele. Vincent não fugiu a esta regra e fez de sua arte novas proposições para tratarmos da realidade: uma noite estrelada com nuvens rodopiantes é, sem dúvida, uma realidade presente; uma arlesiana apoiada em livros que na tela atribuiu um sorriso afável ao artista foi a realização de um desejo que há muito Vincent esperava: um sonho que se tornou um quadro, um quadro que compõe sua paisagem arlesiana!

REFERÊNCIAS

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WALTHER, Ingo F.; METZGER, Rainer. Van Gogh: obra completa de pintura. Koln: Taschen, 2015.

Notas

1 Agradecimento ao Museu de Arte de São Paulo "Assis Chateaubriant" (MASP/SP) por ceder os dreitos de reprodução de tela "A Arlesiana", de Vicent van Gogh, para esta pesquisa e artigo.
2 "No Portal da Eternidade". Direçao: Julian Schnabel. Produção de Iconoclast Films; Riverstone Pictures. França: CBS Films, 2018.
3 Madame Ginoux (Estudo para Café Noturno). Paul Gauguin, 1888. Carvão sob papel, 91,75011 x 73011 (NAIFEH; SMITH, 2012, p. 781).
4 Café Noturno em Aries. Paul Gauguin, 1888. Óleo sobre tela. 71011 x 91011. Pushkin Museu de Belas Artes, Moscou (MARTINEZ, 2015, p. 115).
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