DOSSIÊ
Recepção: 08 Março 2021
Aprovação: 13 Dezembro 2021
Resumo: O presente artigo se propõe a analisar o que denominamos discursividade nos textos do poeta Éder Rafael de Araújo. Para cumprir tal proposta, realizamos, em primeiro, reflexões sobre a constituição e desenvolvimento da poesia brasileira na segunda metade do século XX, bem como suas vertentes e oposições. Após a pequena súmula, nos debruçamos sobre os poemas, em especial dos livros “Eu no mundo que sou no mundo que há em mim” e “Poesia revolta”, para demonstrar como essa pretensa discursividade que conclamamos se faz presente e qual sua importância para a elaboração poética de Araújo.
Palavras-chave: discursividade, Éder Rafael Araújo, poesia brasileira contemporânea.
Abstract: This article aims to analyze what we theoretically call discursiveness in the texts of the poet Éder Rafael de Araújo. To fulfill this proposal, we carried out, first, reflections on the constitution and development of Brazilian poetry in the second half of the 20th century, as well as its aspects and oppositions. After the brief summary, we will talk about poems, mainly books Eu no mundo que sou no mundo que há em mim and Poesia revolta, demonstrate how this alleged discursiveness that we call is present in discourse and its importance for the poetic elaboration of Araújo.
Keywords: discursiveness, Éder Rafael Araújo, contemporary brazilian poetry.
Dis
É deveras difícil, hoje, no Brasil (e mesmo em países como Portugal ou Alemanha¸ não dizemos de outros mais por falta de conhecimento mais aprofundado) pensar a poesia contemporânea sem ver nela a forte influência do que a historiografia convencionou chamar experimentalismos. Com tal designativo quero me referir, em especial, a movimentos denominados concretismo (Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos, Pedro Xisto), neoconcretismo (Ferreira Gullar, Amílcar de Castro), poesia-práxis (Mario Chamie, Cassiano Ricardo), poema-processo (Moacyr Cirne, Wlademir Dias Pino) e, fora do âmbito brasileiro, à PO.EX (Ana Hatherly e Ernesto Manuel de Melo e Castro) e à poesia concreta alemã (Eugen Gomringer em especial). Não obstante ser complexo, depois da década de 60 do século XX, discorrer sobre o verso sem escalonar tais referências, é óbvio que a escrita poética, em sua multiplicidade de autores, sofre uma mudança de rumos em sua forma quando em contato com tantas manifestações, muitas vezes díspares, mas alocadas em um mesmo termo unificador e com um único intuito: transformar a forma de se fazer poesia. É inegável que este fazer dos experimentalismos, inevitavelmente, transformou o processo estilístico da poesia do século XX.
Com tal proposição queremos afirmar que o verso em português perdeu seu tom ritmado e cadencial mais básico, geralmente em redondilha maior (como em Canção do exílio) ou mesmo em seus decassílabos clássicos, organizados, bem postos (como bem ensinou a escola parnasiana pelas mãos de um Bilac ou por um espírito livre como Silva Alvarenga – autores que os experimentalistas não só leram, mas emularam e releram em chave paródica). Isso sem contarmos com a dureza de um Drummond e a aspereza de um João Cabral, antecipadores de alguns pressupostos experimentais de forma aparentemente singela, mas com força e convicção. Para não ficarmos no campo das ideias e sugestões sintéticas, quando não pouco confirmadas, apresentamos, a título de exemplo, como esse movimento se mostra ativo nas mãos de um poeta que passa por essa transformação. Em 1954, Ferreira Gullar lança seu segundo livro de poesias, A luta corporal. O pequeno projeto inicia-se com um conjunto de poemas denominados Sete poemas portugueses. Leiamos o de número seis:
6
Calco sob os pés sórdidos o mito
que os céus segura – e sobre um caos me assento.
Piso a manhã caída no cimento
como flor violentada. Anjo maldito,
(pretendi devassar o nascimento da terrível magia)
agora hesito,
e queimo — e tudo é o desmoronamento
do mistério que sofro e necessito.
Hesito, é certo, mas aguardo o assombro
com que verei descer de céus remotos
o raio que me fenderá no ombro.
Vinda a paz, rosa-após dos terremotos,
eu mesmo juntarei a estrela ou a pedra
que de mim reste sob os meus escombros. (GULLAR, 2017, p. 40)
Mesmo cheio de novidades, com uma anárquica e prolífica mistura de neobarroquismo, tom surrealista e linguagem moderna, Gullar ainda é, em certo sentido, direto, sonoro, pleno de uma densidade comum ao verso brasileiro – mesmo com seus abalos sísmicos tais como os últimos versos de A luta corporal1. Sem nos estendermos demais à questão, é possível vislumbrar uma métrica organizada (decassílabo), seguidora da normatividade do soneto – rimas em ABBA, CDDC, EFE e FGE. Ora, por mais movimentado e cheio de mudanças, afeito à quebra sonora evidente – quase uma injeção de novidade ao produzido pelos poetas da época – Gullar é, ainda, um cauteloso, obediente; apesar de “anjo maldito”, “calca os pés sob o mito”, assenta sua poética em uma flâmula que, à época, não poderia causar questionamentos formais. Mesmo que haja, como bem expresso nos versos metapoéticos, uma pretensão de negação do pai edípico, a possibilidade se extingue, pois o erigido (céu mítico) é, também, o destruído. Ou seja, o eu-lírico afirma-se como um flâmulo de posse: apesar de mover o poético em interesse próprio, não abandona seu estado de dependência e subordinação; zela e protege em ordem e instruído por outros. Poderíamos, ainda, pesar a mão e dizer que o autor não exerceu poder próprio sobre o texto, todavia, há que vermos na atitude do poeta um “tomar para si” o dever, a missão em proteger e melhorar o existente.
Se pularmos de A luta corporal para Poema sujo – datado de 1975 –, constataremos que há uma forte mudança de tom. Não há mais ordens dada pela “boa poesia”. Sua linguagem, já contaminada pelos diversos ramos experimentais, se expressa de forma totalmente inusitada no novo livro e alcança temas e ritmos diversos. Temos, em relação ao livro anterior, uma quebra do estado de dependência e subordinação, angariando ao livro marcas formais de cunho mallarmaico (bem ao gosto concretista), consciência abstrata e uma renovação da forma de fazer versos em língua portuguesa. É o que podemos vislumbrar logo no trecho inicial:
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu. (GULLAR, 2018, p. 31-32)
Por mais estranho que pareça ao neófito em poesia, a construção estranha do início de Poema sujo não carrega uma posse cedida, antes a vitória de uma “luta corporal” com a palavra, duelo de eterna repetição (tanto do poeta quanto da palavra), ocupação de um espaço por natureza não ocupado, espraiamento radical em não-modelos. Há, no poema, o nascimento de uma dicção particular ou, para voltarmos a utilizar o linguajar técnico do Direito, se ninguém pode ter de volta o nunca pertencido, não assiste ao poeta invocar a proteção do tradicional para ser possessório de sua bandeira. Compete-lhe provar – e nesse momento José Ribamar se descobre Ferreira Gullar – de forma inequívoca que deixou de cumprir as ordens e instruções por não querer mais a posse do não pertencido. Em contrapartida, passa a detentor de um corpus novo, de direito seu.
À parte a análise do percurso de Gullar, não queremos afirmar que o poeta encontrou um novo modo de fazer poesia, mas seu livro é um juízo menos petitório e muito mais declarativo, exercício de consciência de buscas realizadas em seus diversos processo de experimentação. O próprio título do livro expressa, como bem aduziu o escritor, uma diferença estilística na qual há a explosão particular de uma linguagem. Para além, como já orientou a crítica específica, sua dicção intenta reconstruir uma poética da língua portuguesa brasileira, aquela comum, nascida das ruas e nos grandes centros e capitais. Daí a mescla entre linguagem culta (um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas) com as repetições comuns da linguagem oral (azul/ era o gato/ azul/ era o galo/ azul/ o cavalo), a marcas de sutilezas poéticas despertadas, muitas vezes sem querer, em assonâncias e aliterações que passam a compor o diálogo de todo dia (menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo/ escuro) e, ainda, o vocabulário chulo e pesado dos palavrões e xingamentos que se coordenam com o movimento apressado da urbanidade (azul/ teu cu). Destarte, há de tudo: versos rimados, cadenciamentos, trechos metrificados de moda parnasiana, onomatopeias, jogos visuais e lúdicos, coloquialismos e mesmo desintegrações vocabulares.
Gullar é um ótimo exemplo para constatar que a poesia brasileira, de forma genérica, foi modificada com os diversos experimentalismos da década de 50. O movimento Noigrandes, tanto quando o neoconcretismo, o poema-processo e a poesia-práxis abalaram o “sistema nervoso e sanguíneo” da poesia. Houve uma desfetichização do parnaso e de suas formas célebres, quase a proclamação da destruição de seus modelos fixos. Por isso, podemos ver sonetos de um Vinícius de Moraes com versos de 5 sílabas cada, uma abertura jamais imaginada por qualquer poeta do século XIX. Mesmo nesse poeta “clássico e narrativo” e seu Operário em construção vemos essa inclinação e mudança. Ora, essa influência gerou o que, em tempos atuais, se tem como prática: escrever poesia por meio de sistemas de choque entre termos sem muita expressividade, quando não, um jogo de palavras simplório, em que o vocábulo é explodido e exposto em sequências com única possibilidade de leitura, uma esquematização bem ao gosto do Oulipo. Exemplo básico desse processo é o “poema” Amortecedor. Nele, temos apenas a palavra repetida por quatro vezes em combinações diferentes de seus morfemas: “amortecedor/ amor tece dor/ amor tecedor/ amortece dor”. O jogo de palavras apenas explora, em um vocábulo, suas combinações. Não há aspecto visual verdadeiramente trabalhado, apenas uma sorte de descobrir possibilidades de “explosão” da palavra para gerar uma sequência de único sentido. Junto a tais “experiências” temos, entre as formas mais exploradas atualmente, os “poemas de colagem”: palavras justapostas – inclusive versificadamente – que deixam um espaço de abertura quase plena para o enunciatário completar seu sentido e carregar os vocábulos de movimento e narratividade2.
Não queremos afirmar que tal questão seja ruim – na verdade, em sua novidade, o artifício apresenta várias qualidades cuja exploração amplia a linguagem poética em seu serviço de significação. Exemplo básico e, ao mesmo tempo muito bem realizado dessa colagem, é o poema Epitáfio de um banqueiro:
negócio
ego
ócio
cio
0 (PAES, 1967, p. 17)
A leitura rápida do “epitáfio” comprova algumas questões enfáticas, tais como a da justaposição de palavras que, unidas pelo título, permitem a construção de um desencadeamento narrativo. A trajetória do banqueiro é ironicamente descrita por flashes; esses delineiam uma atividade de vida e, analogamente, remetem ao processo de fatoração matemática. O zero final do poema (re)apresenta a putrefação do eu e insere a cifra nula como causa mortis do sujeito. Todavia, apesar de “estrutural”, o poema de Paes não se rende a esquematismos. Antes, a complexidade da vida poetizada permite uma reflexão sobre os limites da existência, do mundo deformado pelo ser (afinal ego e ócio nascem de negócio, sinônimo de vida no poema), bem como questões de individualismo e visão unilateral. Seria preciso lembrar, ainda, como bem deixou claro Arrigucci Jr., que a poesia de Paulo Paes possui uma matriz epigramática “[...] com o corte seco da linguagem reduzida à forma breve [...]” (ARRIGUCCI JR, 2001, p. 8). Contudo, mesmo com a força satirizante do processo epigramático, o corte preciso e o uso do mínimo para evitar o cansaço (tão ao gosto da publicidade atual), seu uso desregrado e sem cuidado cansa o leitor – nem sempre disposto a encontrar ligações e ilações muitas vezes forçadas e absurdas para poder acompanhar os versos contemporâneos. Ínclito de seu sucesso, os poetas atuais esquecem que a poesia é feita não por hermetismos ilógicos, mas é experiência comunicante na qual o texto compõe-se, também, pela parte que lê e significa algo cujo teor seja provido de uma mínima intenção de sentido.
Críticas à parte, acreditamos perfazer, com os exemplos dados, a caracterização de grande parte da poesia brasileira pós-60. Em início de novo milênio, e com uma crescente onda de poetas mais escritores que leitores, o Brasil apresenta certo desgaste da técnica usada por Paes, tanto quanto da liberdade de Gullar ou a materialidade demarcada na sintaxe visada pelo concretismo. A tônica perseverante nos novos poetas nasce do choque de uma tradição clássica versejadora – e evocam Gregório de Matos seu arquétipo –, somada a processos experimentais de quebra de verso, modificação da palavra, movimento, visualidade e disposição espacial de vocábulos, dentre outros. Destarte, o que mais pulula por tais livros é um prosaísmo descarado, disfarçado por quebra sequencial em versos brancos e sem ritmo (justificado pelo aceite do manifesto Plano-piloto para poesia concreta, da qual os usuários não conhecem nem a primeira linha, mas sabem ser o documento “decretador” do fim do verso como unidade rítmico-formal do poema) ou, por outro turno, um texto altamente estranho, sem nexo, de sintaxe quase analógica, por vezes cheio de paronomásias, frases de efeito – espaço cheio de elementos perdidos incapazes de veicular sequer uma possibilidade de mensagem, que se dirá pluralidades. Mas, quando contestados, os autores transformam-se em auto advogados e defendem seus “objetos poéticos” como “algo totalmente novo”, de um ineditismo incompreensível para uma crítica acadêmica e especializada, incapaz de ler o diferente, o novo, o transformador, blá, blá, blá. Amparados pela ideia de criação verbi-voco-visual (sem sequer entenderem o significado do termo e/ou da proposta), tais senhores consideram-se, bem como os seus poemas, “pérolas perenes” (ideia, aliás, totalmente contrária aos ideais concretistas). Outras vezes, se autoproclamam criadores de uma resposta poética haurida de um nada, mas de força eterna frente à informação, ao poder publicitário e a uma filosofia pós-modernosa de ares passageiros.
Sem permanecer em tais questionamentos, importa-nos deixar claro que, apesar de termos uma massa informe de escritores seguindo tais postulados, não generalizamos por completo. Se há, por um lado, certa exaustão de tais técnicas, fazendo com que a poesia contemporânea seja por demais igual em processo, por outro ela nos lega textos maravilhosos quando o poeta habilmente sabe manipular bem tais artifícios. Assim o fizeram em diversas composições, para não nos delongarmos em nomes, Torquato Neto ou Paulo Leminski. Ao lado desses criadores e seus textos de colagens, visualidade e quebras, temos poetas que permanecem vinculados por idade a movimentos anteriores (pensamos aqui em um Drummond, fiel a seu estilo próprio até a morte, ou mesmo João Cabral de Mello Neto e sua secura do verso) e, por fim, nomes surgidos dentro desse emaranhado complexo de possibilidades com suas vozes particulares, tais como Adélia Prado, Manoel de Barros ou Sebastião Uchôa Leite.
Assim, essa transformação do poema em produto, a equação inebriante da colagem e as possibilidades em contraste fizeram com que a poesia brasileira atual perdesse, em muitos de seus versos, o processo de discursividade. Em oposição ao “poema-produto”, à colagem sem encadeamento sintático e aos problemas criados e resolvidos em termos de linguagem quase matemática, temos na discursividade aquela ideia de continuidade, o uso do enjabement, a marca do sintatismo e da expressão de um Eu-lirico declarando-se; nesse processo de discursividade o prosaísmo, evitado a todo custo pela convenção de uma maior formalidade poética, se reafirma enquanto modus operandi. É justamente dentro desse espaço de criação poética de tom subjetivante que a discursividade novamente faz morada e temos a ascensão da poética de Eder Rafael de Araújo. O escritor, nascido em Araçatuba, interior de São Paulo, começou muito precocemente seu ofício de versejar. Primeiro como brincadeira e, já na adolescência, experienciou a possibilidade com seriedade. Há, nesse período de juventude tanto física quanto escritural, sua incursão pelo teatro como escritor de peças para festivais escolares. Nesse tempo, temos um primeiro reconhecimento do artista. Sua peça Pais e filho (ainda inédita), que apresentava a tentativa de dar sequência dramática e discursiva a diversos trechos de poemas selecionados dos mais variados poetas de língua portuguesa, bem como de músicos, tais como a Legião Urbana e seu sucesso grande que, suprimido o grafema final, intitulou a sequência encenada. Obtido bom reconhecimento, a peça foi apresentada no antigo Festival de teatro amador de Araçatuba (embrião do atual e, já tradicional, Festara – Festival de teatro de Araçatuba).
Essa pequena informação, assaz simplória, é de grande valor para compreender a presença da discursividade na cosmovisão de Araújo. Apesar de ter composto a peça em parceria, a ideia em dar dramaticidade e continuidade a poemas e músicas conhecidos do público maior ensejava uma vontade concentrada, mas sem ligações subjetivas, de uma voz em ação declarativa. Ou seja, havia em seus escritos a necessidade de se projetar um efeito de continuidade, um tom narrativo, a discursividade enquanto processo criacional. Essa marca pode ser observada em poemas de aprendizagem como o que segue:
Equívoco
Eu pensava
Que te via
Mas apenas te esperava.
Eu pensava
Que te possuía
Mas apenas te guardava.
Eu pensava
Que vivia
Mas apenas respirava.
De todas as minhas convicções
Fui despido;
De todas as minhas paixões;
Destituído.
Tudo é contra
O que eu pensava
Tudo luta.
E eu pensava
Que morria,
Mas eu apenas te amava. (ARAÚJO, 2001, p. 60)
Escolhemos, intencionalmente, Equívoco para, em primeiro, consertarmos um injusto erro cometido contra o poema e, também, identificar algumas marcas dessa discursividade que defendemos nas leituras dos poemas de Araújo. A leitura fácil do poema mostra um ritmo contagiante, cheio de “quebras contínuas” via encadeamento de versos, bem como o uso de uma metrificação justa, adequada, formal. Se o lermos por esse viés, teremos a seguinte disposição: três estrofes compostas por 3-3-7; uma 7-3-7-3; outra 3-4-3; e, por fim, a última que retoma 3-3-7. Poderia o leitor mais atento questionar que a segunda estrofe não possui três sílabas em seu segundo verso mas, expliquemo-nos. Quando publicado em uma coletânea de poetas araçatubenses, os versos de Araújo foram “revistos” por um corretor que alterou o original “que te tinha” por “que te possuía” alegando apagar a cacofonia te tinha presente no verso. Nada mais injusto. Primeiro, a literatura não é espaço de fuga, mas de encontro – também cacofônico (haja vista, para citar o mais banal dos casos, o romance de Lima Barreto cujo título carrega o termo mijota – Vida e morte de M J de Sá). Segundo, os versos falam de uma relação amorosa e, por obviedade, o encontro físico faz parte da vida de um casal. Assim, fingir inexistir o sexo é, no mínimo, disfarçado moralismo idiossincrático do “corretor”. Por fim, e para sairmos desse assunto de vez, àqueles que acham inapropriada a sonoridade “te tinha” em um verso singelo como o de Equívoco, feito por um rapaz no auge de seus 17 anos, sugerimos a leitura e correção do cu de Ferreira Gullar no poema supracitado, da bunda de Drummond (A bunda que engraçada) e o caralho de Glauco Mattoso (Canal anal). Isso tudo sem citar o famoso pica-flor de Gregório de Mattos, o qual, em sua ousada construção, junta no nome do passarinho duas designações: pica-pau e beija-flor. Suprimidos os vocábulos pica e flor dos compostos, resta-nos justamente a nada cacofônica ação que o poeta sugere. O universo poético brasileiro está cheio de palavras e palavrões. A quem interessar ser censor, será uma “diversão” procurar e “consertá-los” a fim de achar o sublime e menos expressivo do humano (como se a relação sexual não fizesse parte da humanidade e da reprodução).
Consertado o Equívoco, voltemos à análise pausada para que o discurso inflamado se alteasse em favor da liberdade. As três primeiras estrofes, apesar de tercetos, têm uma disposição muito interessante, pois se lidas em sequência se tornam, sonoramente, dísticos heptassílabos. Vejamos: “Eu pensava/ Que te tinha/ Mas apenas te guardava” quando lido como dístico: “Eu pensava que te tinha/ Mas apenas te guardava”. Em outros termos, apesar de sequencial, de ter lógica sintática comum e correta, o poema é fragmentado em suas três primeiras estrofes. Temos sempre uma redondilha maior quebrada em dois tercetos e encerrada por sua volta ao conjunto. Araújo sabe, e demonstra por tal artifício, a necessidade da quebra da fragmentação e da importância da variação no verso, mas não deixa o sentido escapar – nem sua sequencialidade. No restante das estrofes há um diferimento de posição, mas semelhante processo versificatório, rítmico e formativo. São três estrofes iguais, e três estrofes diferentes. Por querer significar – entre outras coisas – sentimentos, a primeira ideia surgida da leitura de Equívoco é coração, locus no qual o senso comum costuma fazer de morada do amor. O poema não trata apenas do sentimento, mas o emula e, por isso, essa mudança de formatação dos versos bem em seu meio é contígua à batida cardíaca, em sístole e diástole.
Separando as três primeiras estrofes em versos sistólicos, de contração, a “informação” é bombeada para os versos de forma a ligar o sentido, multiplicá-lo pela aparente sinonímia estrófica e abri-lo frente à contração vocabular dicionarizada (e aqui, novamente, temos a justificativa da te tinha aparecer, quase como um bico de seio endurecido em tarde de vento sem sutiã que o proteja – perdoe-nos o leitor a leitura de metáforas em exagero). Há um aumento de expectativa causado pela repetição não acontecida (em cardiologia, a contração isovolumétrica): o volume poemático-ventricular é constante nesta fase, pois como no coração as válvulas semilunares ainda estão fechadas na sístole, no poema o sentido também está guardado, escondido, apenas se insinua; após, temos a ampliação de significados quando o eu-lírico que pensava é contrariado pela realidade deparada (ejeção ventricular rápida), as negativas se apresentam e aumentam a pressão do significado para essa ação abrupta; por fim, temos um retorno ao desejo, pois o eu-lírico continua querendo, mesmo sem ter, o objeto de desejo (ejeção ventricular lenta), a “ficha começa a cair”, o sangue-desejo é ejetado e diminui-se o volume do fluxo sanguíneo-significação (representado pela quebra de versos e, principalmente, pela mudança abrupta da quarta estrofe), encerra-se a sístole. E, mais uma vez, a ideia de ejeção de fluxo sanguíneo evoca o desejo e justifica a presença da tetinha vista e do órgão que, cheio de sangue, esvazia-se em prazer.
As quarta e quinta estrofes, em tom diastólico, realizam o mesmo processo; senão vejamos: a quarta muda o tom por meio do jogo 7-3-7-3, ou seja, os dois tempos rítmicos são recuperados, mas agora em autonomia e liberdade. A quinta faz o mesmo, mas de forma a conter o ritmo diferencial. Tanto o primeiro quanto o terceiro verso são de 3 sílabas e, para atingirem a “plenitude” da redondilha maior precisam somar-se ao segundo verso, de 4 sílabas, apartado equidistantemente tanto do antecedente quanto do procedente. Estranha batida, mesmo coração. As duas estrofes em análise relaxam o leitor por meio da mudança sem choque, acalmam o músculo cardíaco-interpretativo e diminuem a expectativa ventricular do eu-lírico. Nesse processo temos, na quarta estrofe, em uma passividade intercalada (dessa vez o relaxamento ventricular isovolumétrico): o movimento se mantém, estendido em redondilhas e aberto em tercetos. Nesse momento entendemos, de forma enviesada, as significações do sujeito apaixonado e contrariado constantemente pela amada (fase de enchimento ventricular rápido), pois o elemento represado chega-nos em entendimento de forma muito rápida (qual sangue aos ventrículos). A quinta estrofe, em um processo de divisão-união-divisão, retoma as três primeiras, devolvendo ao enunciatário a calmaria da leitura (fase de enchimento ventricular lento): momento em que a velocidade-significado diminui, as pausas do poema-batimento são bem marcadas e aumentam progressivamente a pressão dos ventrículos-enunciatários. Nesse processo, temos uma lenta parada de leitura, afinal, é nele que o eu-lírico insiste em encher-nos (qual a fase da contração atrial reforça o enchimento ventricular) de informações, fazendo o volume de significação crescer.
Por fim, a sexta estrofe volta ao ritmo inicial, a batida está perfeita. Não há distorção arterial. O poema, em perfeita aferição de 12 por 8 fornece, diferencialmente da pressão humana, mais de dois números de contrações-significados, sem negar as variações sofridas normalmente por qualquer artéria-poesia. Não é morte-parada cardíaca, apenas sentimento, amor em explosão – sensorial (vivia/respirava), sexual (te tinha/guardava) e imaginária (via/esperava). E, notemos, ao invés de ceder ao comum “mas apenas te amava”, o poeta adota um intromissivo Eu: respeito não apenas à cadencia do verso e a seus pés poéticos mas, e em especial, insere a demarcação da existência de um sujeito lírico que começara a se apagar em um João Cabral de Mello Neto e encontra na atualidade seu sacrifício total em favor do texto que faz a si mesmo, saído sozinho do reino das palavras. Em Araújo, o Eu não está morto – e nem passa mal. Está vivíssimo, se apresenta, oferece a cara a tapa e ainda desafia as comodidades da convenção por seu método enviesado: resgata sem repetir, quebra por continuidade, fragmenta em unificação.
Sem nos delongarmos mais – haja vista a lavra de composições que nos espera – gostaríamos apenas de fechar nosso comentário mostrando que, já nesta fase de juventude, Araújo cria poemas em perfeito ideário dialético, mas sem síntese finalizadora. Ou seja, ele absorve a lição modernista (e moderna) sem abandonar técnicas e experiências de índole mais clássica – ou “elitizante” como os ditos escritores chamam àqueles que possuem reconhecimento maior pela crítica. Em outros termos, o poema é discursivo, segue uma linha reflexiva, não faz colagens abertas, mas justapõe posições dentro de si (em forma e conteúdo); abre-se de forma semântica à fragmentação sem negar o movimento, o sentido e mesmo a narratividade. Dialética sem síntese; ou, para fazer valer nossa proposta, heterodoxo (tanto ortodoxo quanto herético). Essa heterodoxia do sentido ou, para nos valermos de um termo já consagrado por Octávio Paz, essa continuidade da ruptura, é altamente bem realizada e declarada no primeiro livro de poemas de Araújo, Eu no mundo que sou no mundo que há em mim.
Apesar do aparente jogo especular e quiásmico, o título do livro revela um processo realçado e afirmado a cada poema: as oposições marcam tanto a retomada quanto a transformação. E isso se dá por meio de cinco momentos dispostos no título que, disfarçadamente imbricados, escorregam múltiplicidades: eu no mundo, mundo que sou, ser no mundo, mundo que existe, e mundo em mim. Já a primeira proposição (eu no mundo) retoma a ideia de sujeito existente, que age e “poeticamente habita” um mundo. A segunda sentença declara não ser qualquer esse mundo, mas um especificamente desse sujeito lírico denominado Eu. Esse sujeito se faz em um mundo criado, habita e é habitado, vai e volta, dispõe contrários para existir. A terceira sentença declara o poder literário dos poemas, pois esse Eu só existe no mundo criado por si, ou seja, o sujeito declara-se existente enquanto papel, objeto poético construído por imagens, linguagem, ser em movimento quando interpretado. Apesar da aparente inocência dessa conclusão, a ideia retoma e explicita ao leitor a modernidade desse eu-lírico, entendido como poeta e, também, construção. A quarta sentença é o elo entre realidade e possibilidade: a poesia é criação ficcional, fictum e factum unem-se para criar a realidade. Assim, afirmar a existência desse mundo é confessar a vida potencial do versejado. Não há abandono da concretude, antes mimetização de uma consciência atual anatomizada em moldes clássicos, mas sem abandonar o novo. Por fim, a última sentença convoca toda a materialidade mallarmaica para si: tudo isso existe em mim. O dêitico “mim” prova que a realidade poética existe no papel, mas se atualiza em mudança na leitura do novo mim, nascido quando o enunciatário abrir as páginas do livro e se faz um pessoano que “sente o que o poeta sentiu”. O título se nos revela uma poética do produto a ser lido, um acúmulo em poucas linhas de cada poema: a repetição quiásmica de algo em moldes diferenciais. A atualização do moderno em movimento de uma outra lavra experimental – mais dialógica com o discurso continuado e menos próximo ao processo de montagem esquemática.
Pedimos licença (poética), enfim, para mostrar como esse Eu (sujeito por demais equivocado3) se faz em um mundo próprio e, ao mesmo tempo, concreto. Distante, mas à vista, mimético por natureza. Em outras palavras, há duas forças de sentido diferentes; elas se empurram e formam a constante heterodoxa da poesia de Araújo. O moderno se faz clássico, o clássico se veste moderno. O vestido é minissaia de uma bata já cortada em top. Ou seja, e repetimos por exaustão de clareza, seu texto é um abalo do “sistema nervoso e sanguíneo” da poesia. Detalhe: a capa, escolhida a dedo pelo poeta, mostra a frase titular em sentido correto e invertida a 180º, bem como o nome autoral. Junto dela, um olho dividido, metade pela cor e metade por tonalidades em branco e preto. Explicar ou justificar tais escolhas é dizer, mais uma vez, o afirmado desde a primeira linha: os opostos se conjugam para criar uma poesia de cunho modernista, mas sem voga ou marcação severa de influência experimental. Para além, há, em forma visual, a exposição da poética araujina: repetição quiásmica do mesmo em diversos moldes, atualização do moderno em lavra não experimental, discurso continuado sem processos de montagem esquemática. E isso se expressa, de forma ácida, nas palavras do poeta em auto-apresentação: “ultrassom que penetra a pele, tendo a poesia como a tecnologia única capaz de evidenciar, ainda que disforme, traços de minha alma” (ARAÚJO, 2017, p. 7) – poesia como tecnologia: penetra o eu para apresentar sua alma. Mas como, se a poesia sai de dentro desse eu? Efeito quiásmico, processo heterodoxo.
Poderiam questionar-nos: por que perder tempo com detalhes como título e capa se importante são os poemas. E justificamo-nos para informar que uma poética não se faz de sons e ritmos apenas, de versos e rimas, mas de um projeto maior, expressão de uma coerência incapaz de desdizer-se, a não ser por um motivo explicado e explicitado como, por exemplo, um Drummond em seu “Não, meu coração não é maior que o mundo”, ao desconstruir o famoso “mundo mundo vasto mundo/ mais vasto é meu coração”. Ora, se a já citada auto-apresentação e o prefácio do livro dão conta de direcionar o leitor em caminhos possíveis do livro gostaríamos, para efeito de ilustração e melhor compreensão, de determo-nos em um poema-chave para a compreensão da poética nele expressa como um todo: Ecce homo.
O livro está dividido em sete partes: poemas em si, poemas do eu, poemas do mundo, poemas de morte, poemas da ausência, poemas da presença e poemas de vida. Essa divisão, nada inocente, comprova algumas das questões elencadas. Por exemplo, poemas do eu e poemas do mundo remetem ao título e, por consequência, à ideia de fazer e desfazer que tensiona a poesia de Araújo. Poemas da ausência e poemas da presença dividem vida e morte, presentificando e ausentando tanto a vida quanto a morte, referendados no quarto e sétimo subtítulos. Mas, todos os detalhes apontam para os poemas em si pois, em verdade, todos são metacríticos. E, no centro da centralidade, o ser descrito e aparecido – figura dentro do mundo-livro. Ignorando a proximidade do poema com o pensamento de Nietzsche, voltemo-nos para o aglomerado textual que enforma Ecce homo para vermos como ele se constitui texto-chave do livro:
Eis o mundo
Que sou
No mundo que é
Em mim
Eis o homem
Ínfimo ser
Transbordante em querer
Sem fim
Eis a mente
Crescente em saber
Delirante em paixão
Envolvida em mistérios
Sem nexo necessário
Eis o ente
Causado do acaso
Com a assinatura
De artista escondido
Por muro arbitrário
Eis o eu
Nem supereu nem super-homem
Com identidade e sem nome
Sujeito indefinido
Eis-me a mim
De barro fundido
Átomo cindido
Um dividido
Num indivíduo. (ARAUJO, 2017, p. 70-71)
Comecemos pela primeira estrofe, reinvenção do título em nova chave: eu sou um mundo, e o mundo é (existe/se transforma) em mim. A aparente simplicidade condensa a ideia dialética e se faz, sequencialmente, em heterodoxia. Mas, para além de refletir refratadamente a concepção geral do livro, o poema segue, nas duas estrofes seguintes, a descrever quem é esse sujeito, bem como o mundo por ele criado. E, como não poderia deixar de ser, no ínfimo desse ser, temos o transbordamento de um sem fim que resgata Cecília Meireles. Se na poeta carioca o sem-fim continha um planeta, no poeta paulista o sem fim transborda o continente, continuando em nova chave a proposta de reelaborar o discurso em diálogo crítico-poético. Repare-se: em um poema o termo é unido pelo traço, no outro ele se separa, clamando a semelhança dessemelhante – marco da estilística de Araújo. Já em sequência, o eu-lírico explicita que o crescimento, dado em subjetividade (mente crescente) não se dá em volume, antes diminui os mistérios e a inexatidão do sem fim. Em outras palavras, o homem-mundo era sem-fim e passa a sem fim, não tem forma fixa (nexo necessário), mas está sempre aí (Ecce).
O aparentemente simplório diálogo com Cecilia Meireles é, ainda, revelador. Isso porque apesar de nome canônico do modernismo brasileiro, a poeta é tida, em especial por seu primeiro livro Solombra, como neossimbolista (influenciada principalmente por Tasso da Silveira, de quem era amiga). Mais que isso, a proximidade não termina pela citação ou pela adoção de escritas próximas. Os temas dos dois escritores também se encontram pois, assim como Meireles, Araújo abrange em muitos de seus poemas questões que lidam com a efemeridade da vida e de sua contemplação. Tais características acabam por implicar um não tratamento direto da cor local (seja o Brasil ou seus estados – São Paulo e Rio de Janeiro), mas carregam o texto de um vernáculo nativo, sem rebuscamentos ou experimentos de simplificação da sintaxe – evitam o popular – apesar de Meireles ser considerada das mais importantes escritoras da segunda fase do modernismo brasileiro. Pararemos por aqui para não perdermos tempo em enumerações de semelhança que, se fossem o caso, precisariam constar as formas melancólicas de escrever, a contramão seguida pelos dois em relação ao publicado no calor da hora, a falta de uma crítica capaz de ler e entender poesia – bem como um espaço para sua produção e reconhecimento – e, por fim, a face espiritual hindu em Meireles e hesitante em Araújo.
Se os poemas de Eu no mundo que sou no mundo que há em mim são modelares de uma poética dialética, heterodoxa, os versos sequenciais de Ecce homo não poderiam deixar de falar sobre o mundo-homem em contraposição ao já exposto. A sequência ente-eu aponta novo diálogo, além de poético, filosófico. Ente, palavra da lavra de Heiddeger, expressa uma especificidade do Eu. O ente é condicionado pelo ser, sendo mais específico, um ser-aí (como aparece comumente nas traduções do filósofo). Mas, e atentemos para essa questão específica, o ser enquanto projeto subjetivo, coletivo, mantem-se fixo, já o ente (ser-aí) é sua manifestação, possui dupla natureza: aquilo que é-está e, ao mesmo tempo, deixará de ser/estar em uma forma material, não se manterá, está de passagem e, por isso, inclui seu hoje, seu ontem e seu devir (todos os seus estares). Ao usar ente, o eu-lírico se faz presente, nega a despersonalização potente criada por um João Cabral e levada ao máximo pelos experimentalismos. “Caso do acaso”, esse ente tenta se dizer, mas não consegue e logo se assume Eu. Perde-se: assina, mas escondido; identidade arbitrária, mas sem nome, indefinido por natureza poética. Possibilidade que voltará inexoravelmente no próximo livro, justo à página 54, sendo mesmo e diferente. Por fim, a última estrofe do poema apresenta um mim, composto de fé e perseverança (barro fundido), um indivisível que, no ponto mais alto, decide por ser um dividido a fim de conter em sua expressão projetos-poemas. Nesse momento, sabendo da alta probabilidade de cairmos na bobeira de cometer o mesmo erro outrora cometido pelo citado “revisor” da coletânea já citada, enxergamos o termo “uno” no lugar de “um” como mais adequado, pois traria uma gama mais ampla de significação e manteria o ritmo de cinco sílabas por verso. Mas não tivemos a oportunidade de questionar (nem deveríamos) as escolhas do poeta, destarte fica a sugestão enquanto possibilidade.
Aparte tais realidades, seguimos para a leitura do próximo livro de Araújo, ainda inédito, mas com projeção de publicação para meados de 2021. E o fazemos porque cremos cumprida a leitura de Ecce homo como microcosmo do apresentado. Quanto a essa segunda coleção de poemas, poderíamos começar a leitura por seu nome – trapaceiramente intitulado Poesia revolta. E usamos o termo trapaça longe de seu sentido caricato, maldoso, mas em sua referência a ardil (qual Odisseu, o herói ardiloso), pois o título é realmente uma cilada positiva para o leitor arguto. Ao depararmo-nos com a equanimidade dos termos poesia e revolta, pensamos em um produto que apresentará algo fora dos padrões, um grito expositivo das diversas mazelas sociais ou de problemas pessoais-existenciais. Mas temos, em princípio, um prefácio que, se lido nas entrelinhas, se apresenta como poesia em forma de prosa. Destacamos, por sua importância, uma oração logo no terceiro parágrafo desse inusitado texto: “Enquanto o saber é fácil, conhecido e cabe dentro de um copo, de um armário ou no disco rígido de alguma máquina, o não-saber é infinito, obscuro e habita em um mundo próprio, do qual nada se sabe, nem se tem como saber” (ARAÚJO, s.d., p. 2). O trecho, apesar de não explicitar o que seja revolta para o eu-lírico, apresenta a proposta dialética heterodoxa presente a cada novo texto. A proposição matemática mostra existir um saber contido, limitado, e um não saber aberto, ilimitado; contudo, há uma impossibilidade, pois o saber espalhado jamais se conglomerará em um ser, enquanto o não-saber provém de um único ser, que é mentalmente ilimitado; ou seja, o conteúdo ultrapassa o continente, ideal expresso nos versos da Condição: “Quisera eu não ser humano/ Demasiado pecador confesso/ Mas, se por fora sou de carne/ Por dentro sou um universo” (ARAÚJO, 2022, p. 44). Mais uma vez, apesar da insinuação de certo tom lúgubre (revolta), há um palpitar de complexidades alinhadas a um projeto maior, coerente, sintaticamente organizado, respeitador de um ritmo mais próximo da fala; em outros termos, um projeto de discursividade.
A leitura de Poesia revolta confirma que, gestado no presente, os poemas não conseguem negar seu passado ou, como propôs Marx algures em seu O capital, não só os vivos nos atormentam, os mortos também. Em outros termos, existe um rastro perseguidor da poesia de Araújo defraudado em versos, negando o que afirma; matando-se enquanto nasce. Um sentido perquirido por esta poesia desde seu mais tenro iniciar, lá em 2001 e, remodelado em novo tom, robustecida por imagens e metáforas, inflada por uma voz certeira, se refaz a cada novo poema. Ou, nas palavras do próprio poeta:
Eu sei, leitor, é tudo desconexo
Mas peço: faz imagens com essas tintas
Fecha os olhos e então leia atento
Fala em voz alta para o vento
Sente a música das palavras no teu dedo
Aperta a corda, força os olhos, depois solta
Bem sei que a poesia revolta
Como toda incerteza
Como a luz revolta o cego, como a mim essa pobreza
O que dói neste poema é o que falta
O que não está mais aqui ou que nem veio
O que afronta é o acinte da beleza
Em mim, poeta pobre e feio (ARAÚJO, 2022, p. 9)
Como promete e antecipa em seu primeiro livro, Araújo permanece com sua verve estilística, soltando profícuas lições absorvidas de grandes nomes da literatura brasileira modernista. Para não nos delongarmos por muito, apontaremos apenas duas influências que chocam por sua aparente disparidade: Drummond e o concretismo. Vejamos primeiro a questão da presença drummondiana em um poema carregado por demais da presença do itabirano:
A pena e a pedra
Repousa sob a pedra
Perigosamente
Uma pena mansa
Amassada e leve
Sob a dura cerviz da rocha
A pena leve lhe nega
O contato pleno do solo
Que é uma pena sob tanto peso?
Diriam os engenheiros
E os religiosos fariam
Sua casa sobre esta rocha
Que repousa em falso
Sobre uma fina pena
Sob a pressão pesada e sólida
A pena incólume segue silenciosa
Em sigilo discursa para ninguém
Que além de pluma, além de ave
Em sua pequenez e leveza
Sustenta uma rocha inteira (ARAÚJO, 2022, p. 13)
A influência de Drummond se faz presente não apenas pela pedra, mas o tom melancólico que não desanima, a chamada atenção para a questão da engenharia da língua (uma constante também em Cabral) e, ainda, a lida distante da religião de forma a não a apoiar, mas também sem descreditá-la. Tais apontamentos bastariam por si para uma análise do poema, mas gostaríamos de deixar esse passo para outro momento e chamar, para agora, a atenção a um detalhe novamente quase despercebido. O poema, em sua camada mais superficial de significado, nega o amassar da pena pela pedra. É a pena que “em sua pequenez e leveza/ Sustenta uma rocha inteira”. Quase equilibrada, a pedra não sucumbe, mas em novo mote, firma e fixa-se sobre um elemento tão singelo, leve e simples, carregado por um mero e pequeno sopro: novamente a sutileza de Cecília Meireles é deflagrada em diálogo. E não só seu processo como a citação, em nova forma, do mesmo poema. Se na poeta carioca tínhamos um sem-fim, que equilibrava um planeta, que continha um jardim, que continha um canteiro, que continha uma violeta e, sobre ela o dia inteiro, encerrando a sequência com a asa de uma borboleta “entre o planeta e o sem-fim”, o poema de Araújo usa o mesmo artifício, mas sem se jogar no processo de mise en abyme. A falta de abismo do poema se concreta por meio da inseguridade que a leveza carrega. Há, em diferente da carioca, um outro espelho a retratar a mesma face pedida, mas sob novos contextos – reflete e refrata – para criar a heterodoxia dessa fisionomia perdida. O repousar do voo se transforma em sustento. O peso do sem fim transforma-se em bater de asas: da inanição, o movimento.
Novamente a poeta, em forte influência e empurrão, aparece sob aparente disfarce e conduz pela mão o jovem escritor para a imensidão da construção literária. Essa presença contamina a face de Drummond, desfaz o rastro, espalha o espectro (tanto derridiano quanto meireliano) e clarifica não existir nascedouro explosivo vindo do nada, antes um instante inicial já existente, uma influência que, longe de ser angústia, é reprocessamento. Lembrança em forma de resgate, différance em homenagem ao nunca pronunciado, mas sempre presente. Ou, em versos: “E hoje, de tudo o que há,/ Quanto dura, quanto cai?/ Quanto te custa lembrar/ Daquilo que nunca se vai?” (ARAÚJO, 2022, p. 41). Há aqui a lembrança do esquecimento, o esquecimento da lembrança, novamente o entrecruzar de opostos dialéticos.
O segundo poema analisado retoma Adélia Prado por seu título – similar à primeira recolha da poeta mineira. Mas, Adélia, como todos sabemos, é uma deglutição mais familiar de Drummond, uma face feminina e mais amena, toda religiosa e dogmática, do texto do itabirano. Assim, Araújo evoca os dois nomes, mas Bagagem se faz em novo mote:
Mapas, rotas, retratos
Malas, meias, sapatos
Milhas, calças, ritos
Metas, falhas, mitos
Pilhas, peças, contratos
Culpas, memórias, roteiros
Incompletos, imperfeitos (ARAÚJO, 2022, p. 46)
Se o título, como já dissemos, faz acorde em rastro às mineiranças poéticas, a composição dos versos é totalmente outra. Cheia de mudanças, cortes abruptos e deslocamentos por meio de vírgulas e não causalidade; encontro do poeta discursivo com as brasileiríssimas vanguardas experimentais. Há nesse processo não uma falta de cálculo do poeta, muito menos descuido ou falta de alocação dentro de sua poética. E isso se prova pela forma como o poema é criado: não temos uma colagem ao gosto atual, antes uma enumeração que, por não ser caótica e nem desregrada, causa a sua constante e comum discursividade. Araújo não deixa de mostrar sua dívida e herança com os movimentos experimentais da poesia brasileira, mas recolhe dela a ideia de acaso e a transforma em possibilidade. Poderíamos afirmar, por contaminatio, que, se o crítico maranhense Luiz Costa Lima vê na poesia de Sebastiao Uchôa Leite uma resposta ao agora, a poesia de Éder Rafael Araújo é uma resposta tanto ao acaso quanto ao ocaso da vida. Esse acaso-ocaso, originado no lance de dados mallarmeano, não esconde raízes, nem origens, muito menos continuidade – elemento essencial para existir o fragmento, seu oposto. Os experimentalismos múltiplos do século XX dizem-se (e o são, em certo sentido) herdeiros desse coup de dés. E cada um, a seu modo, reflexiona o acaso em suas formas possíveis, diversas, poéticas. Se o acaso não tem certeza, destino, completude, ele também não pode ter formas e regras – é ocaso. Ora, para abolir tais regras e formas a poesia de Araújo se vale do formato clássico, da regra, da metrificação e da aparente completude. Afinal, é justamente assim que sua volta se torna, paralelamente, revolta. Apenas nesse sentido de revolta conseguiríamos ler coerentemente os versos “A voz é vazio e vento/ Vida incerto movimento/ E todo verbo é transitivo (ARAÚJO, 2022, p. 50). Transitivo porque, como diz o mesmo eu-lírico em Quase poema que não dever ser lido, o negado até o penúltimo verso por não poder ser dito, o é de forma óbvia e incontornável na chave de ouro de um poema sem a forma soneto.
Dito inclusive o que não se deve, que resta a essa poesia? O casulo completa-se, fecha seu ciclo, resolve-se por si. Mas não existe ponto em poesia, muito menos final. Sobeja-nos aguardar a nova lavra de poemas de Araújo e seu processo, à primeira vista, impossível. Em forma de resposta a essa impossibilidade possível, mandou-nos o poeta um novo poema, cognominado Sepúlveda, no qual sua discursividade mais aparente representa um questionar do eu-lírico a um interlocutor que nomeia o texto. Contudo, queremos ler o poema como se ele fosse a nós direcionado, não apenas pela intenção do gesto linguístico, mas por uma certa vontade de acreditarmos nesse poema e por enxergar demasiada proximidade fraternal, incapaz de separar as nove letras de Sepúlveda das nove de Nefatalin. Pedimos desculpas pelo forçosamente apelativo anseio de ser o outro desse diálogo, mas acreditamos cumprir, dessa forma, o pedido do eu-lírico em nos transferirmos para dentro do poema e, com ele, questionar as diversas posturas e posições de cunho filosófico apresentadas.
Sepúlveda
Há dúvida, Sepúlveda,
que a sepultura úmida
ungida pela lágrima
seja a única e legítima
morada da verdade
anônima?
Que dúvida, Sepúlveda,
maior que a vida insólita
em que a alegria acólita
labuta cínica e errática
contra a fatídica lógica
de uma angústia certa
e sólida?
A dúvida, Sepúlveda,
é o que a artéria estúpida
carrega desde o cérebro
sem pausa, paz ou parâmetro.
É onde o cárdio cético
sopesa o líquido em cântaro
em que Cristo pôs água ou vinho
acético.
Se a dúvida, Sepúlveda,
é medo, ânsia ou azáfama,
mesmo mínima, é máxima
Intátil, invisível e indômita.
É a faísca primogênita
De uma divindade perdida
Incógnita.
Essa dúvida, Sepúlveda,
nos atinge atroz, atônitos
atrai a escusos recônditos,
com voz doce e enigmática
nos faz tontos sem tática
a caminhar de olhos abertos
Sonâmbulos
Minha dúvida, Sepúlveda,
É óbvia, básica e nítida
Silente, mas nunca inédita
Absurda, mas sempre lúcida
A vida, Sepúlveda, a vida
alheia a toda hermenêutica
ou premissa filosófica
quer o quê, ou por que ávida
parece existir como lâmpada
que se apaga como mágica?
De tudo, Sepúlveda, o cúmulo
Este tempo entre o berço e o túmulo
De balbúrdia e tanto estímulo
De intrépido prazer e incômodo
Só permitir-me ser hóspede
Célebre súdito da hipótese
de que há, num virar de página
Deus ex machina (ARAÚJO, 2022)
Temos, em estilo angustiante, outro questionamento: como pode a vida desembocar na morte certa? Como pode a lâmpada ávida, depois de tempos, se apagar “como mágica”? O imaginário poético não dá conta da vida, menos ainda da morte. O estilo, a erudição, a eficiência do leitor, nada pode explicar o que, mesmo vivido por todos, se ignora. Conhecemos da vida sua história, possíveis filosofias, suas culturas e ideias plurais, mas não qual o jeito certo de manejá-la. A vida é texto e está continuamente sendo escrita, Sepúlveda-Nefatalin-leitor. Essa vida, cada vez que é lida, revela um pouco de si; expõe ser a poesia um elemento jamais compreendido de forma plena por ser, para cada sujeito, distinta – e isso afirma-se sem afiançar um estilo que prioriza o processo sobre os resultados. Não há lugar seguro em termos éticos e/ou ideológicos. A complexidade da vida jamais se vulgariza, mesmo um sem-fim pode ser presente no bater da asa de uma borboleta, pode aparecer no sustento da pedra pela pluma, pode criar-se em estado de violência ao senso comum. Denegação e em direção a uma imagem incapaz de rejeitar a separação do sujeito do transcorrer da vida e de suas questões vitais? Sabemos apenas da excentricidade do poema: gosto pela disposição em saber da ociosidade, erudição, proveitos e deleites de seu dedicar ao nada que finda todo trabalho de vida. Estupor. E, a fim de não vestirmos a máscara desse Deus ex machina, encerramos. Nossa leitura é apenas uma “súdita hipótese” do poema divagante, erige-se, também, entre berço e túmulo.
Teríamos de comentar, ainda, certa mudança de tom – prenúncio de distinção estilística – presente em um poema de alta estirpe como O sol no fundo de uma garrafa. Contudo, essa é tarefa para um outro texto, em momento que a estesia causada por Poesia revolta se acalmar e tivermos capacidade de ler sem gritar a plenos pulmões apenas as qualidades de algo que nos toca, mas também ver suas possibilidades e aberturas, bem como as possíveis falhas e tropeços; seu rastro – para usar uma palavra cara aos desconstrucionistas – ainda está apagado aos nossos olhos por conta do esplendor da novidade de cada poema. Ora, se só conseguimos, no momento, ler paráfrases prosaicas da imensidão poética dessa labuta, resta-nos silenciar e esperar termos não apenas bagagem, mas mais poemas que confirmem (ou não) essa mudança substancial vista de passagem.
Nada é direto, muito menos simplório, tudo é nevoeiro; essa poética, à revelia dos ditos pós-modernosos, ressemiotiza o signo em forma múltipla, ao invés de esvaziá-lo, qual um Drummond que, por exemplo, entende a pedra como plural, mas ainda e também pedra. O mesmo in hoc homine: retoma os signos culturais em significados múltiplos; fá-los correr para baixo de outros significados, concretizando um processo no qual o sentido “cai indefinidamente e morre/ E morre, e morre, e morre, e morre, e morre, e morre, e morre” (ARAÚJO, 2017, p. 131), mas nunca se dessemantiza plenamente, sendo possível sua constante e eterna ressureição. Essa escrita lembra, ao avesso, a forte afirmativa de Régio no fim de seu poema mais famoso e ensaia um processo dialético de formação do sujeito: “Não sei por onde vou,/ Não sei para onde vou/ - Sei que não vou por aí!”. Ao contrário, apesar de perdido no mundo que é, existe e está em si, Araújo sabe para onde vai, sabe porque vai, e sabe que vai por aí.
REFERÊNCIAS
ARRIGUCCI JR, Davi. Agora é tudo história. In: PAES, José Paulo. Melhores poemas. 4. ed. São Paulo: Global, 2001. p. 7-53.
ARAÚJO, Eder Rafael de. Equívoco. In: CAMPEZZI, Marilurdes Martins (org.). Experimentânea II. Araçatuba: Academia Araçatubense de Letras, 2001. p. 60.
ARAÚJO, Eder Rafael de. Eu no mundo que sou no mundo que há em mim. São Paulo: Edição do Autor, 2017.
ARAÚJO, Eder Rafael de. Poesia revolta. São Paulo: [s.n.], [2022?].
GULLAR, Ferreira. Poema sujo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
GULLAR, Ferreira. A luta corporal. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
PAES, José Paulo. Anatomias. São Paulo: Cultrix, 1967.
Notas