ENTREVISTA

História, Literatura e a escrita de mulheres africanas e afro-diaspóricas: uma entrevista com Ana Rita Santiago

Tathiana Cristina da Silva Anizio Cassiano
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

Percursos

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN-e: 1984-7246

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 22, núm. 50, 2021

revistapercursos.faed@udesc.br

Recepção: 08 Dezembro 2021

Aprovação: 08 Dezembro 2021



DOI: https://doi.org/10.5965/1984724622502021358

Drª Ana Rita Santiago é professora Associada aposentada da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Docente do Programa de Pós-Graduação Crítica Cultural, da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus de Alagoinhas-BA. Fez estágio pós-doutoral na Université René Paris Descartes, Paris V, Sorbonne, Paris-França. Doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro do GT Mulher e Literatura da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística. Foi Pró-Reitora de Extensão da UFRB e Presidente da Associação de Pesquisadores(as) Negro(a)s da Bahia. Já publicou os seguintes livros: Vozes Literárias Negras (2012); Cartografias em Construção – Algumas Escritoras de Moçambique (2019); Águas – Moradas de Memórias (2020).

Nesta entrevista, realizada no dia 27 de outubro de 2021 por videoconferência na Plataforma Zoom, a professora Ana Rita fala da importância da Literatura de mulheres nas Áfricas e no Brasil e como estas subverteram o paradigma da escrita literária no que tange à representação de mulheres e dos seus papéis na sociedade. Ana Rita ainda aborda sobre as potencialidades e desafios do diálogo entre a História e a Literatura.

ENTREVISTA

Entrevistadora: Doutora, professora, escritora, pesquisadora... essas são algumas das formas que conhecemos a “Ana Rita”. Como você se define? Quem é a “Ana Rita” a partir dela mesma?

Ana Rita Santiago: A primeira coisa que eu preciso dizer é que eu sou Ana Rita, conhecida como Rê, meu apelido familiar; da cidade Santo Antonio de Jesus que fica a 125 km da capital baiana; filha de uma mãe solteira que trabalhou e nos sustentou na indústria do fumo. Eu sou irmã de mais três e nós somos uma família de mulheres. A minha construção familiar de ser filha mais velha, de ser filha de uma mulher trabalhadora, contribuiu para todas as geografias de afeto, de sonhos, de projetos de vida, que foram realizados ao longo do meu período intenso com a família. E, de lá para cá, eu não perdi a referência, o contato, a presença dos meus familiares, das minhas irmãs e da minha mãe, e elas continuam sendo a minha grande escola de aprendizagem. Mas além de filha, irmã, tia que sou, eu também tenho uma memória de Santo Antônio de Jesus que me construiu e, as memórias da vida comunitária ali, eu não quero que de modo algum se alojem no esquecimento. Eu me vejo a partir da vida na comunidade Santo Antônio.

Eu tenho uma memória afetiva, uma memória intelectual dos meus sete ou oito anos de vida que são inesquecíveis. Eu era a única leitora da rua inteira. Minha mãe não deixava que nós saíssemos de casa à noite, de forma alguma, e como eu era a única pessoa que sabia ler, “mainha” me deixava ir às reuniões das Comunidades Eclesiais de Base, aos círculos bíblicos, às reuniões da associação de mães, para que eu lesse na hora que se fizesse necessário. E eu ia só pela condição de minha mãe deixar sair de casa, mas hoje eu retomo essa memória e, de fato, foi aí que se construiu toda uma história de “Ana Rita” leitora, de “Ana Rita” na comunidade. É também de Santo Antônio, e depois em Salvador, que um outro “eu” se apresenta, o “eu” de “Ana Rita” que tinha uma identidade marcada pela pobreza, mas que depois se agrega à identidade de mulher e de negra. E começou também em Santo Antônio a “Ana Rita” que se construiu no coletivo.

Então eu sou uma pessoa que sempre, desde muito jovem, fui construída a pensar que eu não “sou” sem o “outro”. Quando eu conheci a filosofia Ubuntu eu fiquei maravilhada. “Eu sou porque somos”, eu sou porque o outro, a outra, precisam caminhar comigo, precisam construir pontes comigo e é claro que isso tem preços altíssimos. Reconheço a “Ana Rita” fragmentada, atravessada por outros “eus” que eu chamo de “eus comunitários”, “eus coletivos”. E para me resolver com isso e serenar minha memória, porque também fiz muita besteira com essa construção, costumo dizer que pensar e viver entre o “eu” e o coletivo é um ato político. Já tentei várias vezes deixar de ser assim, mas infelizmente (ou felizmente) o coletivo ainda fala mais alto. É quando eu ponho o “nós” no centro que as coisas se realizam e andam. Para o bem ou para o mal é assim que me construí, esta Ana Rita de Santo Antônio de Jesus que mora em Salvador há mais de 30 anos, mas que não perdeu os vínculos com a minha família, que vive atravessada e permeada por tantos “eus” que me acompanham.

Além dessa construção gradual das múltiplas identidades negras, eu tive uma prática religiosa católica por muitos anos, movida pela Teologia da Libertação, e com a crise dessa Teologia e da Igreja nos anos 1980 e os anos 1990, me afastei e me vinculei a um terreiro de Candomblé. Lá foi o lugar em que Deus me restaurou e me reencontrou. O meu pertencimento a um terreiro também é marca do que sou. A experiência de Deus, a experiência do Sagrado, a experiência do reencontro com o divino e comigo, sempre em comunidade, foi fundamental para que eu fizesse os caminhos de professora, de pesquisadora, de crítica, de coordenadora editorial e de todas as outras “bobagens” que ao longo da vida foram se agregando a mim. Esse encontro comigo mesma, esse encontro com um “eu” mais profundo, e com o Sagrado através do culto aos orixás, me fez ser esta Ana Rita que eu sou hoje.

Entrevistadora: Um dos desafios para o historiador e historiadora é a produção de um conhecimento que rompa com uma “história única”. No sentido de uma articulação entre a vida e a escrita, tal como Conceição Evaristo fala ao conceituar “escrevivências” e pensando na sua trajetória como escritora e, principalmente, como pesquisadora no campo das Letras, como você lidou com esse desafio? Em que medida sua experiência enquanto uma mulher negra informou a sua produção no âmbito da universidade?

Ana Rita Santiago: Em mim não há distinção entre eu ser acadêmica e ser mulher, eu ser de terreiro e ser militante, hoje conhecido mais como ativista, e ser mulher e todas as outras marcas identitárias. Havia uma proposta de trabalho que eu desejava muito em Moçambique, então agilizei a minha aposentadoria na UFRB. A Covid interrompeu o projeto, eu não fui, mas me aposentei. Mas quando fui providenciar os documentos para agilizar a aposentadoria, tomei um susto porque eu não sabia que eu já tinha 32 anos de trabalho e 39 anos de contribuição. Esses 32 anos efetivamente de trabalho regular foram feitos muito dessa dor e alegria de ser “Ana Rita”. Então não há distinção. Isso é um preço alto, porque a universidade hegemônica não vê em mim um perfil de pesquisa pura, de pesquisa neutra, de pesquisadora nos modos hegemônicos.

Eu terminei o ensino médio com 17 anos, mas só entrei na universidade 10 anos depois. Comecei a trabalhar como empregada doméstica, depois trabalhei no comércio e só depois de mais de 10 anos eu entrei na universidade, no curso noturno. Sempre fui trabalhadora e estudante, nunca tive bolsa, a primeira vez que eu fui liberada para estudar foi no pós-doutoramento. Estudar era uma condição aliada a todas as outras, de trabalhar para ajudar a família, de trabalhar para sobreviver, e também com todo o meu engajamento social e o meu engajamento político.

Evidentemente que quando eu entrei na universidade como trabalhadora, como coordenadora de várias organizações sociais de mulheres, de jovens, de tudo o que eu era vinculada, a universidade não tinha como acolher isso tudo o que eu era. Eu fiz uma graduação na Universidade Católica de Salvador que pouco tinha interesse nos cursos de Letras. Não era curso de ponta, não havia investimento e no noturno era pior ainda. Mesmo assim, quando fiz a graduação, e quando eu descobri que tinha pós-graduação, eu dizia, “eu não sei como, mas daqui a 20 anos eu serei professora universitária; eu não sei como é, mas um dia eu vou estudar sobre escritoras negras”.

E assim eu me apressei para terminar o curso em três anos e meio, porque era uma faculdade privada e sem bolsa, e fui fazer uma pós-graduação na Universidade Federal da Bahia, lato sensu, que considero o meu letramento superior. Fiz o mestrado em Educação, mestrado em Letras, depois o doutorado, isso tudo para dizer que a história da mulher negra “Ana Rita” não pôde ficar de fora durante a minha pós-graduação. Ficou de fora até a graduação, mas na universidade, quando comecei a fazer pesquisa, começou a se desenhar a possibilidade de que eu pudesse ser “Ana Rita” e acadêmica, mas ainda bem distante. E essa possibilidade me conduziu até hoje.

Eu fiz o mestrado sobre uma organização que criei com uma outra companheira para formação, ingresso na universidade e para o mercado de trabalho, voltado às mulheres negras, o quilombo Asantewaa. No mestrado em Letras eu não tive escolha, porque o meu foco era em 15 ou em 20 anos me tornar professora universitária e para que eu entrasse tive que apresentar um projeto que se adequasse às Letras e aos trâmites dos grupos de pesquisa da época, e ninguém se aproximava do que eu queria. Então, quando fiz o mestrado para pensar as identidades negras e de gênero das cursistas, eu disse “não preciso me esconder do que eu sou e a partir de agora tudo que eu fizer também vai dizer de mim, vai ser a pesquisadora que também tem função social, sem intimismo, mas os meus ‘eus’ não precisarão ficar de fora”.

E é por isso então que no doutorado, com uma certa autonomia, eu realizei uma angústia, um desassossego investigativo, pois desde o tempo em que eu lia autoras afro-americanas, me perguntava "Por que na graduação eu nunca li uma autora negra brasileira? Por que que os autores negros que chegaram na graduação são todos os problemáticos (problemáticos com a negritude porque foi assim que me apresentaram)? E por que que eu só leio autoras afro-americanas?”. Eu era do movimento negro e nós líamos Alice Walker, Toni Morrison, e todas as outras, mas ainda ficava a angústia. As minhas questões de pesquisas advêm das minhas angústias de vida, portanto eu não separo de modo algum aquilo que eu sou como pessoa, como professora e como membro de terreiro. Você vai me ouvir falar pouquíssimo de terreiro, eu não tenho um texto sobre a prática de terreiro, mas o que eu vivo é intenso. O fato de não estar explícito o meu viver no terreiro, não quer dizer que ele não acompanha as minhas angústias de pesquisa, as minhas construções.

Arrisco a dizer que sem a minha experiência, sem a minha história, sem os meus desassossegos políticos, sociais, culturais, eu não teria a produção acadêmica que tenho, eu não teria dado a contribuição que eu dei na Universidade Federal do Recôncavo. Eu sou do segundo edital da criação da universidade e eu não estou sozinha. As pessoas que entraram na UFRB nos primeiros editais abraçaram a universidade como um projeto de vida. As políticas afirmativas para negros e negras, mulheres, indígenas, quilombolas, são resultados das nossas angústias e das nossas histórias de vida nos movimentos sociais pelo direito à vida e à dignidade das populações negras, das mulheres, e de tudo mais.

Eu reconheço que a universidade não alcança essas dimensões que a gente está conversando aqui, e tenho impressão que ela não vai alcançar, porque ela tem uma tradição e um passado que são pesados e hegemônicos demais para compreender como uma mulher, filha de uma mãe solteira, trabalhadora do fumo, de um trabalho escravizado, pôde se tornar professora da universidade e paute uma universidade de excelência, de qualidade, mas de uma universidade de referência a partir das populações negras, das populações indígenas e de mulheres. Ela (a universidade) não alcança porque a branquitude foi quem construiu a universidade, e em muitos casos ainda a mantêm. Então, ela não vai alcançar, ela não vai nos chamar, mas a gente empurra a porta e entra, faz esse celeiro de possibilidades dentro da universidade. Precisamos ocupar os espaços na universidade, mas o grande desafio é ocupar com todas as nossas construções de vida. A universidade não está preparada para isso.

E por que hoje, no século 21, ela ainda não está? Porque nós todas, nós todos, fomos formados em fontes semânticas muito ocidentalizadas, muito europeias, não é de uma hora para outra que vamos conseguir pensar efetivamente em novos paradigmas consistentes, mas cada um vai fazendo um caminho. Embora a gente esteja em um momento com um chefe de Estado cujo projeto político não quer esse projeto de universidade que nós temos, nós resistimos e, em alguma medida, não vamos sucumbir. A gente não vai deixar perder o que conquistamos, porque nada foi dado, não foi pela cor dos meus olhos pretos que eu entrei na universidade, não foi pelo meu cabelo crespo que eu entrei na universidade. Efetivamente é na base da luta do movimento, da conquista, e histórias, não só da minha geração, mas de outras gerações. O que eu quero dizer é que não há um muro, não há distanciamento entre a mulher negra que eu me tornei e a vida acadêmica, a vida universitária. É um preço altíssimo, mas é assim que eu acredito que a gente deve continuar. E, por fim, todos meus interesses de pesquisa, de escrita, também derivam daquilo que eu sou como mulher negra e daquilo que é a vida na universidade. Não existem dois mundos.

Entrevistadora: Em um dos seus artigos1, você fala que a construção discursiva sobre mulheres na literatura brasileira é feita a partir de uma ótica masculina e quando se trata de mulheres negras, soma-se a isso um apagamento deliberado oriundo do racismo. Porém você também destacou como mulheres negras, escritoras, estão construindo novos paradigmas na escrita. Como você analisa essa transformação e em que medida isso modifica o status da literatura brasileira?

Ana Rita Santiago: Esse movimento não é dado, é construído. E eu não estou sozinha. Tem vários e várias pesquisadoras negras espalhadas pelo Brasil e pelo mundo que estão fazendo isso. O que é isso? É um esforço, o compromisso de construir epistemes negras. Pensar uma tradição literária negra e feminina, e uma crítica literária negra e feminina, é pensar em desafios e provocações gigantes. Primeiro porque nós vivemos imersos e imersas desde sempre em tantos distanciamentos, não só os distanciamentos físicos e sociais no momento, mas também o distanciamento acadêmico, literário, social, científico, histórico, cultural. Nós vivemos distanciamentos perenemente.

A tradição científica ocidental e eurocêntrica, desde sempre se dedica, e de forma intensa, ao exercício de formular conceitos e respostas para sustentação dos seus pensamentos, conhecimentos e teorias. Por exemplo, os conceitos de raça, de etnia, de gênero, cultura, religião, história, e por aí vai. Todos esses conceitos, todas essas áreas de conhecimento, foram inventados para corroborar, para sustentar os seus princípios epistemológicos, eurocêntricos, ocidentais, e assim por diante. Ao mesmo tempo, esses conceitos provocam distanciamentos e isolamentos epistêmicos que anulam, apagam e silenciam outros modos de pensar, que silenciam e invisibilizam outras cosmogonias, as experiências culturais indígenas no Brasil, as africanidades, se a gente quiser chamar assim, que existem em nós brasileiros e brasileiras. Tudo é para apagar e justificar a pouca importância que essas culturas e pensamentos milenares têm para o mundo ocidental ou para o mundo europeu. Esses conceitos são utilizados para justificar a si mesmos nunca pensando em nós. Eu preciso dizer que a América é inferior e daí eu vou criar teorias e vou criar conceitos que digam isso, de que ali há um povo inferior.

Em contraposição, nós transgredimos historicamente a isso. Mesmo com toda essa força ocidental e europeia nós escrevemos, nós lemos, nós publicizamos, nós mobilizamos e atravessamos essa ocidentalidade do saber, essa europeização do conhecimento, e nesse sentido nos insurgimos e des-silenciamos vozes e pensamentos. Inventamos pensamentos, epistemologias, existências, isso em diálogo, buscando e fazendo trabalho de escavação e de reversão ao mesmo tempo. Afinal o que não nos disseram que é preciso a gente conhecer, que é preciso a gente assumir como fonte de saber nosso? Todo trabalho decolonial, inicialmente da descolonização e hoje dos decoloniais, é um pouco nessa perspectiva.

Então, nós publicamos como tecnologia ancestral, ou seja, como potência de partilha e de convívio, nisso é que está a escrita das mulheres negras no Brasil, é a experiência ancestral de se pensar a partir do convívio do comunitário, da partilha, que é preciso escrever. É preciso escrever para inventar outras histórias, inventar outros sonhos, inventar outros cenários, inventar outras paisagens. E isso não é novo, desde sempre tivemos e temos intelectuais negros e negras que se dedicam a esses exercícios. Vou citar só alguns aqui: Teodoro Sampaio, Guerreiro Ramos, Milton Santos, Lélia González, Abdias do Nascimento, Henrique Cunha Junior, Narcimária, Vanda Machado, Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, só para citar alguns e algumas.

Diante do que eu chamo de injustiças epistêmicas, os epistemicídios, os aniquilamentos e as invisibilidades, nós precisamos pensar em desobediência epistêmica. Há uma injustiça epistêmica e nós não queremos apenas jogar fora as teorias européias, as teorias ocidentais. A gente precisa ser desobediente no sentido de construir teorias e epistemes, construir literaturas e críticas literárias que se aproximem daquilo que a gente está construindo aqui e agora. Isso é um pouco de como eu vejo a escrita das mulheres negras. É fazer uma volta não apenas para negar, mas para construir novos capítulos na história da literatura brasileira.

Eu afirmo sempre que a literatura negra produzida por mulheres e por homens negros é parte da literatura brasileira, é um projeto da literatura brasileira. Então não está de um lado a literatura negra, a literatura negra feminina e de outro lado a literatura brasileira. O que nós vamos ter de diferente é o argumento e o que queremos com a literatura negra e com a literatura de mulheres negras. Possivelmente há um projeto de escrita, um projeto da palavra a serviço da emancipação de sujeitos negros e negras, a serviço de uma ressignificação da história de negros e negras no Brasil. Um projeto de reivindicação do direito de escrever que foi invisibilizado, silenciado. Mas quando eu estou falando de literatura de mulheres negras brasileiras, eu estou falando de literatura brasileira. Não é uma vertente do Brasil, não, ela é um projeto da literatura brasileira. O mundo hegemônico, cânone, nunca vai entender assim. Vai sempre colocar como algo menor, como algo só político, como se política fosse uma coisa ruim, como uma escrita raivosa. Mas nós temos na contemporaneidade exemplos de autores e autoras negras que não têm a escrita de reivindicação social, mas as escritas são tão pretas, tão negras, quanto aqueles que têm um projeto de reivindicação social. Eu estou me lembrando agora de Ricardo Aleixo, Edmilson Pereira, ao sudeste do Brasil, que não têm uma escrita de combate, mas efetivamente o universo da escrita é de um autor negro.

Então o que nós vamos fazer enquanto pesquisadores e pesquisadoras, como críticos e críticas? Forjar e fazer exercícios de criar epistemes que se adequem minimamente e nos ajudem a entender esses textos literários desses autores e das autoras. Não é um exercício fácil, não é apenas jogar fora. Eu costumo dizer que a teoria da representação, que é uma teoria muito forte nos estudos literários, não atende aos nossos trabalhos de pesquisa. Quando eu fiz o doutorado, vivi uma angústia terrível porque a ideia de representação, como os papéis sociais, papéis atribuídos, não me dava margem satisfatória e chance de fazer análise textual e análise biográfica das autoras com quem eu trabalhei de forma positiva. Eu sofri uns dois anos até entender que a teoria da representação literária não cabia aos meus estudos, mas eu não tinha outra. Tentei fazer esse exercício no mestrado e era uma angústia, porque quando começava a ler o texto das autoras, eu me dava conta que não se tratava de representação, se tratava de invenção.

Para a literatura canônica cabe a teoria da representação literária, porque na literatura canônica você tem lá os perfis que se congelam de mulheres negras: a boa de cama, a gostosa, a serviçal, aquela dos trabalhos domésticos, aquela que pouco pensa. Só que na escrita das autoras que eu acompanho esse perfil não aparece. Então eu não poderia ter como chave de interpretação a teoria da representação literária, porque não se trata de papéis, se trata de invenção. As autoras negras brasileiras inventam novas figuras femininas negras empoderadas que gostam de ser, de ter referência positiva com a África, que não é aquela representação feminina de Castro Alves, da África escravizada. Então aquela representação cabe em Castro Alves, mas não cabe em Aline França e a “Mulher de Aleduma”, não cabe em Antonieta de Barros, não cabe nas autoras que eu estudo, com que eu trabalho. Eu não estou sozinha nisso, existem vários estudiosos, várias estudiosas negras, que têm feito esse exercício de criar epistemes negras para compreender a tradição da literatura negra e para fazer a própria crítica literária com responsabilidade e com cuidado. Esses exercícios espalhados pelo Brasil têm “forçado” a literatura brasileira hegemônica.

Vivemos aquela experiência dolorosa que foi a inscrição de Conceição Evaristo na Academia Brasileira de Letras e por unanimidade eles rejeitaram a candidatura dela, e era candidatura única! Agora, neste mês, Fernanda Montenegro, que não tem um livro publicado, que é uma atriz fabulosa, mas não está na esfera da literatura, foi convidada a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Então não é um trabalho fácil esse que nós estamos fazendo, que é o de dizer “tem limites essa teoria”. Eu sei que para você que é historiadora é um problema, mas para nós, por exemplo, não é problema admitir que na literatura o distanciamento entre ficcional e não ficcional não existe, mas para você isso é difícil. Eu estou me lembrando de um texto de Foucault que atesta o que é um texto ficcional e eu engoli isso por muito tempo, que é um documento, aquelas histórias todas. Mas a gente tem passeado por aí. Não é uma tarefa fácil construir uma episteme própria e não é uma tarefa fácil das autoras negras brasileiras se ver com esse cerco da literatura brasileira. A prova disso foi o exemplo de Conceição Evaristo.

Nós temos um exemplo aqui na Bahia que eu citei já, a Aline França. O primeiro livro dela é de 1976, o livro se chama “Negão Dony” e 1978 “A mulher de Aleduma”. A mulher de Aleduma tem filme nos Estados Unidos, é estudado nos Estados Unidos, e aqui nós não conhecemos. Se me perguntassem, Conceição Evaristo ou Aline, “O que você acha de entrar na Academia de Letras?” Eu diria, “vai fazer outra coisa, eu não ligo para isso”, mas é um gosto delas, é o interesse delas. No mês passado, Aline França se candidatou a uma vaga da Academia de Letras da Bahia e foi rejeitada. Então, se para elas é um desejo, elas têm direito de estar nesses espaços. E você percebe como os paradigmas hegemônicos, canônicos, não permitem que essa feição preta, que essa essa escrita marcada por referenciais de cosmogonias africanas e afro-brasileira cheguem à Literatura. Isso incomoda, e vai incomodar.

Mas o bonito disso é a insurgência. Conceição Evaristo teve agora um dos seus livros premiados na tradução francesa. A Aline França continua sendo procurada e conhecida fora do país. Quero um dia que assim ela seja entre nós e não apenas fora. Mesmo assim, com todas essas interdições e essas forças paradigmáticas tão conservadoras, no Brasil em todos os territórios têm aparecido escritoras negras e escritoras de qualidade. Escritoras que estão em construção, aprendendo a escrever, e outras que já nascem prontas, que tem uma força na escrita fantástica. Então eu tenho dito nas minhas pesquisas que o escrever, o assenhorar-se da palavra, tem sido um modo de se colocar no mundo e de se inscrever no mundo pelas escritoras negras. Aí, para mim, está uma pista desse rompimento com os paradigmas: “Vocês não me querem nas grandes listas, mas ainda assim a gente escreve, publica, e divulga o que a gente escreve”.

Entrevistadora: Em relação à escrita de mulheres nas Áfricas, particularmente nos países falantes da língua portuguesa com os quais você dialoga nos seus trabalhos, como você percebeu o papel e os impactos dessa escrita feminina? É possível identificar aproximações dessa escrita de mulheres nas Áfricas e no Brasil?

Ana Rita Santiago: Eu conheci escritoras negras no movimento negro, negras afro-americanas e, não, negras brasileiras. E de lá já vinha a indagação: por que eu não conheço nenhuma escritora africana? Por que eu não conheço nenhuma escritora afrodescendente no Brasil? Mas não tinha respostas. Essas respostas estou construindo há mais ou menos 15 anos. Eu tinha essas duas perguntas e uma desconfiança: Será mesmo que elas não escrevem? Foi a pesquisa do mestrado e do doutorado, sobretudo do doutorado, que me fez enfrentar essa desconfiança.

O fato de ser leitora desde aquele período de sete ou oito anos de idade, me conduziu a me perguntar: “Existem escritoras negras brasileiras? Existem escritoras africanas? Por que não as conhecemos? Por que não passaram por mim na escola? Por que não passaram por mim no curso de Letras que fiz na graduação e no mestrado? Por que não as conheci?”.

A primeira resposta era uma hipótese que se confirmou: a ausência de escritoras negras da Bahia nos circuitos literários, nos currículos escolares, nos currículos de graduação e de pós-graduação, não era uma ausência que indicava inexistência, era uma ausência que indicava práticas de invisibilidade. Esse texto que você leu trata disso, de invisibilidade e de expressão do racismo. Homens e mulheres negras escrevem desde sempre, mas o racismo e as relações desiguais, raciais, no Brasil, os colocam fora do circuito. Então essa foi uma das hipóteses do meu doutorado e que, de certa forma, se confirmou a partir do encontro com as escritoras e com as obras. O mesmo ocorreu com as escritoras africanas.

Quando ainda não tinha pesquisa em torno das escritoras negras brasileiras, mas empiricamente pelo meu engajamento social, fiz um mapeamento de lideranças negras na história do Brasil e de nomes de escritoras negras brasileiras, e guardei isso pensando que um dia iria me servir. E quando eu fiz o mestrado em Educação, ao início de cada capítulo, coloquei uma imagem de uma escritora africana de países de língua portuguesa e um trecho de sua obra, de qualquer obra. Isso no mestrado. Eu nem sabia onde isso ia dar. Eu pensei, não quero colocar epígrafes de afro-americanas, eu quero colocar epígrafes de escritoras negras brasileiras e de escritoras africanas em língua portuguesa. Àquela época eu não tinha lido uma autora africana ainda. Mas já foi um sinalzinho, um sinal verde que apontava que posteriormente eu ia fazer alguma coisa.

Então eu fiz o projeto de doutorado com escritoras negras da Bahia e quando terminei o doutorado, fiz um projeto de pesquisa para a UFRB. Um projeto ambicioso, inicialmente para cinco anos, mas ele já está em torno de 10, 11 anos, que inicialmente era o mapeamento de escritoras de Moçambique, de São Tomé e Príncipe, de Angola e de Cabo Verde. A ideia era um mapeamento semelhante ao do projeto de doutoramento, e esse projeto ganhou uma dimensão macro. Porque eu também, lá no doutorado, queria só discutir os traços identitários que apareciam na escrita das mulheres negras, mas ganhou uma dimensão muito mais ampla a partir das entrevistas, a partir das leituras, que foi o cuidado de si, a memória de si, a reinvenção, essa escrita que dilui o “eu” e o “nós”, que é coletiva. Tudo isso que o doutorado mostrou, comecei a fazer na pesquisa, no exercício da minha docência e comecei por Moçambique, mas a condição de leitora foi fundamental.

Em 2010, eu fui a primeira vez a Moçambique, de férias com um grupo de amigos. Lá, vendem-se muitos livros, os sebos são quase todos na rua. Eu olhava e tudo que era livro de escritoras moçambicanas, escritoras moçambicanas negras, eu comprava. Eu trouxe dessa viagem de férias mais ou menos 12 a 15 livros de autoras africanas de Moçambique. Esses livros ficaram aqui, eu li todos, mas ainda em 2010 não tinha o interesse pela pesquisa. Quando fui a trabalho em Angola em 2014, a folga que eu tinha no trabalho fiquei procurando livros de escritoras angolanas. E assim foi nos eventos acadêmicos, nos sebos, com os livreiros, eu passei a me sensibilizar e a ler sobre essas autoras. Em 2015, pedi afastamento para fazer o pós-doutorado e escolhi esse grande projeto com as escritoras moçambicanas.

Primeiro fiz um levantamento aqui nas bibliotecas da cidade de Salvador e também nas bibliotecas digitais, e fui a Moçambique em 2015 ou 2016 com 83 nomes de autoras. E ao chegar lá, pesquisando em bibliotecas universitárias, em arquivos, muitos nomes que estavam ali eram pseudônimos masculinos e outros nomes eram de autoras de crônicas de matérias de jornal, que eram de filhas ou esposas de colonizadores. Então eu fiz o papel de retirar esses nomes que não me interessavam e que resultou nesse livro que você citou, Cartografias. E aí a metodologia, o que eu falava de teoria da representação, não cabia mais. A etnografia, que foi o meu trabalho de doutorado, também começou a apresentar limites e, de 2015 para cá, eu tenho trabalhado entre a etnografia e a cartografia, e assim foi o meu contato com essas escritoras.

Existem aproximações e distanciamentos com as escritoras brasileiras. Primeiro é que em Moçambique, por exemplo, 60% da população não tem domínio da língua portuguesa escrita, só falam língua portuguesa na escola ou nos ambientes públicos. É comum você encontrar nas ruas, nas famílias, todo o tempo as pessoas falando em suas línguas maternas, que são mais de 30, e não em língua portuguesa. Daí já dá para a gente entender o porquê que poucas mulheres escrevem. A escrita em Moçambique é semelhante ao Brasil, é de dominação masculina, é de predominância masculina, é só a gente ver quem foi que chegou aqui primeiro, o Mia Couto. Nos últimos anos é que tem chegado outros, a partir de projeto literários, de projetos editoriais específicos, que a gente está conhecendo alguns angolanos, alguns de outros países, mas no geral em Moçambique o Brasil conhece Mia Couto.

Há alguns anos, a Companhia das Letras publicou um livro de Paulina Chiziane e depois a Nandyala (editora), que é um projeto de literatura negra, publicou outros dois livros dela: Andorinhas, que é um livro de contos, e o Canto dos Escravizados. No mais, não chegava mais ninguém. Então meu trabalho em Moçambique foi bem de escavação para entender por que que elas não aparecem. A dominação e predominância masculina é grande, o acesso à cultura e aos bens editoriais é de predominância masculina, o domínio da língua também era de predominância masculina. No país, as políticas editoriais ainda são muito aquém. Quando eu comecei a ir em Moçambique, ainda não havia uma editora lá. Qualquer pessoa que quisesse publicar era ou na África do Sul ou em Portugal. E agora é semelhante ao Brasil, há mais de oito editoras pequenas locais como projetos de valorizar a escrita local. As mulheres, ainda em minoria, têm tido acesso a essas pequenas editoras.

A questão do acesso às editoras é comum no Brasil e em Moçambique. Mas tem uma coisa que me chamou muita atenção lá: quando eu comecei a entrevistar e conhecer as escritoras para fazer a pesquisa de pós-doutoramento, elas não queriam falar de leitura e responder àquelas perguntas clássicas que a gente tem, “como você passou a escrever?”. Elas queriam saber: “Ana Rita, como eu posso publicar no Brasil? Eu quero internacionalizar a minha obra!”. Aqui na Bahia nós temos um, dois, três, quatro casos de escritores negros e escritoras negras que têm pé em outro lugar, mas as contingências políticas e culturais segregacionistas ainda nos deixam muito no território local, e a segunda coisa é a necessidade de publicar em vários idiomas. Então você tem lá meninas do slam, do hip hop, do rap, que publicaram seus livros de poemas numa língua materna, em português e em inglês; numa língua materna, em português e espanhol. E para nós ainda é muito complicado pensar em línguas maternas. Lá é muito comum encontrarmos, sobretudo entre as mais jovens, autoras buscando publicação bilíngue e até trilíngue, que é uma coisa que nós estamos aprendendo a fazer ainda, esse esforço pela internacionalização.

Paulina Chiziane, que está na cena esses dias, é um exemplo disso. Ela descobriu cedo que os autores canônicos de Moçambique desvalorizam a sua escrita, dizem que é uma escrita muito oralizada, que é uma escrita sem valor literário, que é uma escrita problemática, que é uma escrita muito raivosa… Paulina descobriu isso cedo, “então já que vocês não me querem, eu vou procurar o Brasil, eu vou procurar Portugal, eu vou procurar a Europa”, e é essa Paulina que tem um grande contrato com a editora que a obriga a publicar um livro todo ano. É essa Paulina que chegou à tradução em vários idiomas, que chegou ao Brasil, que chegou às universidades. O movimento negro apresentou Paulina às universidades. Mas a gente ainda não tem isso, essa força para fazer igual. É claro que a gente tem uma Cidinha da Silva ali em São Paulo, ou outro nome de autoras negras buscando extrapolar fronteiras, mas a gente ainda não tem passos largos sobre isso.

Por outro lado, aquela Moçambique que eu conheci em 2010, com a imagem só de José Craveirinha, de Calane da Silva, de Mia Couto, a partir de 2012 e 2013, ainda tem uma predominância masculina, mas já tem mais mulheres escrevendo, publicando e circulando. O que ocorreu é semelhante ao Brasil, a gente tem uma história de não reconhecimento de autores e autoras negras brasileiras. Nas festas literárias, por exemplo, no início eram 100 escritores não negros. Hoje quem coordena, quem é curador e curadora dessas feiras, tem tido o cuidado porque senão as comunidades, os grupos e os coletivos vão para cima: “onde estamos nós que não aparecemos?”. A identidade autoral lá é semelhante aqui, ela é de mulheres, é uma construção diária. Imagine que eu conheço várias escritoras como Fátima Landa, como Sónia Sultuane, que inicialmente criaram suas editoras para poder publicar e hoje a gente já tem em Moçambique, por exemplo, várias editoras que as acolhem.

Então o trabalho de fazer, de publicar, as condições de escrita, a edição, a publicação, e fazer circular o livro, ainda é um trabalho árduo para os dois continentes, para os dois grupos de mulheres negras. Aqui na Bahia tem uma escritora negra chamada Rita Santana, ela sempre diz que o livro dela morre no dia do lançamento, pois até o lançamento eles saem jornal, em site, todo mundo conhece, depois que lança ninguém mais sabe. E de forma semelhante daqui, as escritoras lá botam bancas nas feiras com seus livros para vender, e elas vendem, vão atrás. Aqui no Brasil temos agora várias editoras pequenas que estão publicando um bocado de autoras jovens de África.

Esse trabalho cartográfico que eu fiz e que eu faço do mesmo jeito no Brasil, e se assemelha lá, essa aproximação, esse princípio de colaborar com a divulgação desses nomes e dessas obras, e também de formar público leitor, escritoras e escritores. Lá também foram criadas muitas iniciativas de divulgação das obras. São clubes de leituras das mais diversas formas. Há poucos dias, eu participei de um clube de leitura, no sábado, que é por meio do áudio do WhatsApp. Isso porque nesta província de Moçambique não chega o vídeo, então imagina que eu fiquei três horas ouvindo áudios com as perguntas, com os comentários, e eu respondendo através de áudios. E é um grupo de leitura de mais de 180 pessoas, eles se encontram uma vez ao mês, aos sábados à tarde.

Assim, do mesmo jeito que aqui a gente tem criado e recriado iniciativas para divulgar a escrita literária, também lá tem tido um movimento pulsante, mas com políticas culturais menores. Aqui no Brasil, agora, a gente vive um período em que não há incentivo à leitura, não há incentivo à literatura, não há políticas para isso, mas eles também, como a gente, se insurgem. Então, a circularidade das obras depende ainda desse trabalho pessoal, mesmo Paulina Chiziane e Sónia Sultuane, que já têm um caminho e que têm editores, têm um trabalho braçal cotidiano para fazer chegar as suas obras nas escolas, para fazer chegar as suas obras nas prateleiras de livrarias, nos eventos.

Entrevistadora: As pesquisas científicas nas áreas das Ciências Humanas, particularmente no campo da História, têm compreendido diversas abordagens a partir da Literatura, uma delas é enquanto narrativa a partir da qual é possível compreender processos históricos na postura metodológica de pensar as demandas de memória de grupos sociais e povos historicamente subalternizados. Nesta abordagem, você considera que a Literatura produzida por mulheres negras no Brasil ou nas Áfricas impacta e contribui para a produção teórica e epistêmica nessas áreas?

Ana Rita Santiago: Eu já tinha comentado sobre o exercício contínuo de não só abandonar a teoria ocidental e eurocêntrica, mas de fazer novas epistemes. Em Salvador, na UFBA, nos anos 2000, dizer que eu estudava a obra de escritoras negras era um problema. Hoje não é, que bom que não é, mas eu tive que usar um certo eufemismo para poder seguir na pesquisa. Nessa perspectiva de contribuições epistêmicas, eu criei o conceito de literatura afro-feminina como forma de driblar a insistência de varios professores de que eu não fazia pesquisa, de que eu estava chamando de pesquisa o movimento negro, que eu estava fazendo política e tal. Mas eu nem tinha consciência efetiva de que eu estava forjando, cunhando um conceito.

Um dia apareceu uma mensagem de um professor da UFRGS com uma pergunta que começou assim: "Professora, a senhora cunhou o conceito de literatura afro-feminina, pode indicar um texto seu em que a senhora desenvolve isso?”. Eu tomei um susto! Pensei e fui reler umas coisas que eu tinha publicado… não é que ele tinha razão? Dentro de Letras tem uma área que cuida dos dicionários, que incluiu os verbetes, é dentro da semântica, não me lembro o nome do segmento. Esse cara é isso, ele busca verbetes novos para propor aos dicionários de língua portuguesa. Então ele estava me procurando para pensar um verbete para literatura afro-feminina, e eu tinha feito na minha tese alguma coisa que considerei o suficiente para aquilo.

Essa provocação me chamou a atenção e eu quis ser uma pessoa responsável. Se o cara fez uma pesquisa e descobriu que fui eu quem criou, eu preciso então pensar no que é a literatura afro-feminina. E foi aí que construí esse entendimento de que é a literatura que tem uma voz autoral de mulheres negras, mas que não é só a cor da pele, é também o argumento. A teoria da literatura apresenta cinco elementos como fundamentais para dizer que um texto é literário ou não, que é a autoria, a recepção, o argumento, o contexto e o tempo. E então desenvolvi a partir desses elementos o conceito de literatura afro-feminina que praticamente entre 2010 e 2020, aqui na Bahia, quase todo mundo que estava estudando literatura de mulheres negras se apropriou para poder conduzir suas pesquisas e estudos. Por que eu dei esse exemplo? Para dizer que efetivamente as contribuições epistêmicas advêm de necessidades vindas dessas ausências e dessas lacunas. E a escrita de mulheres negras tem provocado isso.

E aí vou dar outro exemplo: a teoria literária chama de literatura fantástica ou de literatura realista os textos literários que lidam com a figura dos monstros, dos fantasmas e tal. Dizer que as escritoras africanas e que a obra de, por exemplo de Aline França, A mulher de Aleduma, são obras que se ancoram na literatura realista não atende. Por que não atende? Porque a literatura fantástica chama de monstros e fantasmas os seres invisíveis. Para as culturas africanas, os seres invisíveis são partes das existências, não são monstros nem são fantasmas. No mundo ocidental há o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, para as cosmogonias e culturas africanas não existem o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. A pessoa quando morre continua parte daquela comunidade, continua parte daquela família como invisível e não como fantasma, não como monstro. Ela continua participando. A literatura produzida por mulheres negras no Brasil, a literatura produzida nas Áfricas, e você vai ver que na Nigéria isso também ocorre, tem forçado pensar outras teorias e outras epistemes.

Eu nao posso chamar a obra de Aline França como obra da literatura fantástica porque, por exemplo, na narrativa de A Mulher de Aleduma, o narrador cria um universo para que negros e negras brasileiras residam já que o Brasil como está não cabe. O racismo impede, então ele cria figuras. Aline como autora e o narrador, criam figuras femininas e masculinas aparentemente disformes do ser humano, mas aquelas figuras não são fantasmas nem monstros. Inclusive, foi essa obra que provocou em mim essa angústia. Eu não posso caracterizar essa obra como literatura fantástica porque é o mundo ocidental que diz que isso aí é monstro, é fantasma. Mas as culturas africanas, a experiência do sagrado, do invisível, no Brasil a partir da perspectiva indígena ou da perspectiva afro-brasileira ou negra não se trata de monstros, se trata de antepassados e antepassadas, se trata de ancestralidade. Então eu até fico meio emocionada porque é só a leitura, e olha que eu me considero pequena no sentido de entender esses textos, mas eu não posso ser irresponsável com esses textos tendo como chave de leitura e interpretação essas teorias, essas teorias que negam aquilo que de fato tem se pensado.

Eu dei o exemplo de literatura afro-feminina, mas eu terminei o doutorado em 17 de dezembro, no dia 18 já era literatura negro-feminina, aquilo foi só para fazer o doutorado. Aí eu criei, mas daí já não é só criação minha, uma abordagem de literatura negro-feminina. Já com quatro ou cinco anos terminado o doutorado, lendo obras mais contemporâneas de autoras negras, eu entendi que também as literaturas produzidas por mulheres negras são literaturas que se apresentam como exercício de (re)existências, então eu criei o conceito de (re)existência, no sentido de reinvenção da existência e de inscrição no mundo a partir de sua própria voz, de sua própria criatividade, de sua própria imaginação. E agora eu estou forjando um outro conceito que é o da literatura negro-feminina como travessia. Eu tenho lido muita coisa das autoras que têm sempre colocado a escrita como caminhos, como possibilidades, como modo de tecer e destecer destinos, histórias e vidas.

Entrevistadora: Pensando ainda nesta perspectiva multidisciplinar, como você percebe o diálogo entre a História e a Literatura para a produção de conhecimento nestas áreas?

Ana Rita Santiago: A gente pode escolher vários caminhos, por exemplo, o caminho do ensino de Literatura. Por muito tempo no Brasil houve, e ainda há essa prática, de se ensinar literatura sempre a partir de dados históricos. A História servindo de instrumento para ensinar literatura, é um para-texto para ensinar Literatura. Eu não chamo isso de diálogo, eu chamo isso de instrumentalização da História. Também o inverso: existem muitos campos da História que utilizam da literatura para conhecer um fato histórico. Eu não chamo isso de diálogo, chamo isso de instrumentalização, de pedagogização da Literatura.

Eu já vivi uma experiência na qual criei um grupo de estudo e pesquisa com uma professora de História sobre a História da Bahia, que se tratava de estudar a História da Bahia com Literatura. Foi uma experiência muito bacana, multidisciplinar. Não foi tão interdisciplinar porque o foco era a História, mas foi uma vivência fantástica para entender que é possível estabelecer diálogos, e parece-me que essa é uma chave de leitura e de interpretação que eu tenho como pesquisadora, como crítica e como professora, mas parece-me que também é de quem escreve.

Os autores e autoras negras algumas vezes utilizam dessa relação com a História para desconstruir alguns fatos históricos e inventar narrativas. Eu lembro de uma autora em Moçambique, Virgilia Ferrão, que utiliza práticas culturais tradicionais, como por exemplo o casamento tradicional na província de Beira, em que ela faz um trabalho de narrar como se dá o casamento, e que é um fato histórico, cultural, mas ao final da leitura a gente tem certeza de que é um texto literário. O diálogo entre a História e a Literatura está tão bem entrecruzado na obra de Virgilia Ferrão que a gente lê sabendo que se trata de um dado histórico, mas a gente conclui a leitura sabendo que é um texto literário. Esse exemplo para mim é fantástico, é meu sonho de consumo esse diálogo entre Literatura e História e ao qual sou muito sensível. Não sei como faz, gosto muito, eu sei que na Unicamp tem um grupo de pesquisa muito conhecido que trabalha esse diálogo, sobretudo com a obra de Machado de Assis, sei de outros como Júlio de Carvalho na UnB, que são historiadores e que fazem esse diálogo com a Literatura, mas tudo que eu tenho pensado de escrita feminina negra sempre foi numa perspectiva multidisciplinar. Então, a História é um elemento, é uma chave de leitura para eu compreender a escrita dessas mulheres com as quais eu trabalho.

Ás vezes eu digo que tem algumas autoras que nem sabem que na universidade está se discutindo o diálogo entre História e Literatura, mas elas escrevem o que nos serve muito como exemplo, como Paulina Chiziane: se você lê Niketche, ou Balada de Amor ao Vento, ou Sétimo Juramento, você vê aí uma contação de história a partir de um fato ou de uma experiência cultural e que vai todo o tempo atravessada pela Literatura, pela imaginação, pela língua e pela linguagem, que ora se aproxima da História, ora se distancia. Por muito tempo eu tinha como único exemplo para falar de diálogo entre História e Literatura aqui na Bahia apenas a obra de Jorge Amado, Tenda dos Milagres, que conta de modo literário a história da Bahia, mas que bom que hoje eu posso dar esses exemplos que estão aqui apresentados e não mais apenas Jorge Amado.

Posso dizer assim, de forma planejada, consciente, nós temos poucos nomes, mas que de forma experienciada, de exercício tanto do lado da crítica, quanto do lado de quem escreve, a gente tem exemplos significativos, mas um dos meus desejos é conhecer teoricamente esse diálogo, que eu tenho de vivência, mas eu não tenho de estudo. Muitas vezes eu leio Le Goff para compreender o sentido das memórias, das memórias ficcionalizadas das autoras com as quais eu trabalho. Eu reconheço o diálogo, entendo a necessidade dele, mas não de forma pedagogizada, nem do ensino de História usando a Literatura como instrumento e nem do ensino de Literatura tendo a História como ferramenta metodológica e pedagógica, mas gosto desse exercício do diálogo.

Entrevistadora: Refletindo aqui que na construção do projeto no doutorado, tenho dialogado muito com a área das Letras. Eu li Sidney Chalhoub falando de Machado de Assis, mas sobre a escrita de mulheres negras e africanas, tem poucas pessoas na área da História. Basicamente é conversando com pessoas de outras áreas, especialmente Letras e Ciências Sociais, que percebo uma sensibilidade de entender essa Literatura sob todos os ângulos. Não é só fonte, tem um conhecimento, uma episteme própria, toda uma cosmogonia presente na forma, no conteúdo…

Ana Rita Santiago: É por isso que a cartografia tem me dado um certo conforto porque eu não tenho uma única fonte, não é só o texto escrito que é a fonte. E como eu sou muito desassossegada, quero muitas coisas ao mesmo tempo, a cartografia me acalmou um pouco, porque uma foto e uma visita a um cemitério em Maputo, me deram uma leitura e outras possibilidades de entender a morte. É bacana extrapolar a noção de fonte, não é abandonar, mas é compreender esse entendimento de fonte e extrapolar, ampliar a fonte, não ficar no texto literário pelo texto literário, no texto histórico pelo texto histórico, mas os textos literários e textos históricos em diálogo com outros textos. Só assim eu pude entender o que é essa ideia de memórias ficcionais, antes eu não tinha como entender.

Notas

1 SANTIAGO, A. R. Literatura de Autoria Feminina Negra: (Des) Silenciamentos e Ressignificações. Fólio - Revista de Letras, v. 2, p. 20-37, 2010.
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