DOSSIÊ

A margem da margem: o lugar do feminino na literatura periférica paulista

On the margins of margins: the place of the feminine in são paulo peripheral literature

Diego dos Santos Reis
Univ. Federal da Paraíba – UFPB, Brasil
Elisângela Araújo
Universidade de São Paulo, Brasil

Percursos

Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil

ISSN-e: 1984-7246

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 22, núm. 50, 2021

revistapercursos.faed@udesc.br

Recepção: 23 Fevereiro 2021

Aprovação: 05 Novembro 2021



DOI: https://doi.org/10.5965/1984724622502021145

Resumo: O ensaio analisa o protagonismo das escritoras negras de territórios periféricos na literatura marginal, a partir do entrelaçamento entre literatura, política e movimentos insurgentes na cena paulista contemporânea. Para tanto, o texto busca contextualizar a contribuição desse importante acervo poético para os círculos literários femininos, na interlocução entre o biográfico e o político. Trata-se de refletir, ademais, como esses movimentos poéticos-periféricos femininos redefinem identidades e representações, por meio de coletivos de resistência articulados em torno do slam, dos saraus e da poesia ambulante. Para isso, além da revisão bibliográfica, são analisados documentários e videoclipes produzidos por mulheres implicadas com as lutas desses movimentos, considerando o cenário literário dividido em três momentos: a literatura marginal dos anos 2000; a literatura periférica, a partir de 2005; e a literatura periférica feminina, produzida desde 2013, e seus desdobramentos. Por fim, o ensaio tematiza o memoricídio e o apagamento da literatura feminina no Brasil, especialmente da literatura feminina periférica paulista, e as estratégias atuais de denúncia e de resistência que são forjadas por escritoras negras paulistanas, ressignificando não só o espaço público, mas também a potência política de corpos e de territórios marginalizados.

Palavras-chave: literatura periférica, feminismo, racismo, Slam, sarau.

Abstract: The essay analyzes the role of black writers from peripheral territories in marginal literature, based on the intertwining between literature, politics and insurgent movements in the contemporary São Paulo scene. Thereunto, the text seeks to contextualize the contribution of this important poetic collection produced by female literary circles in the dialogue between the biographical and the political. It is also a matter of reflecting on how these feminine poetic peripheral movements redefine identities and representations, through collectives of resistance articulated around slam, “saraus” and walking poetry. For this, in addition to the literature review, documentaries and video clips produced by women involved in the struggles of these movements are analyzed, considering the literary scenario divided into three moments: the marginal literature of the 2000s; the peripheral literature, from 2005 on; and the peripheral women's literature, produced since 2013, and its unfoldings. Finally, the essay focuses on the memoricide and the erasure of female literature in Brazil, especially the peripheral female literature in São Paulo, and the current strategies of denunciation and resistance that are produced by black writers from São Paulo, resignifying not only the public space, but also the political power of marginalized bodies and territories

Keywords: peripheral literature, feminism, racism, Slam, sarau.

1 INTRODUÇÃO

Não é novidade que a literatura brasileira se constitui como espaço de intrincadas relações de poder, no qual as disputas, as polêmicas e as exclusões jamais deixaram de se apresentar ao campo. O desafio de problematizar conceitos, saberes e práticas consolidados, desse modo, não se restringe a meras disputas em nome de valores, experiências ou leituras mais ou menos legítimas, mas se erige como batalha pelo reconhecimento e validação de formas, corpos e linguagens que, historicamente, foram proscritos do rol da história e da historiografia literárias brasileira.

Às margens do cânone, as vozes femininas periféricas e as narrativas enegrecidas redimensionam poéticas, estéticas e históricas, deslocando perspectivas e enquadramentos, para além da literatura tradicional. Somadas às abordagens anticoloniais, pós-coloniais e feministas, essas produções trazem ao literário as marcações situadas de corpos genderizados e racializados, que não se dissociam das tessituras literárias nem das tramas citadinas, em campos minados e territórios atravessados pelas topografias da violência (REIS, 2020). Hip hop, rap, funk e batalhas de rimas disputam espaços em que outrora eram inaudíveis os gritos por justiça social, racial e epistêmica, no fluxo de enunciações e vocalizações que contestam a (des)ordem da cidade e do “progresso”, bem como a geografia da razão ocidental.

É nesse contexto que os territórios periféricos são narrados e demarcados pelo traço da escrita gráfica e sonora da literatura marginal, que é “uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou socioecon micas. iteratura feita margem dos n cleos centrais do saber e da grande cultura nacional, isto é, de grande poder aquisitio” (FÉRREZ, 2005, p. 12). Mesmo na literatura marginal, porém, com e idente recorte de classe e implicação político-social, é preciso questionar o (não) lugar ocupado pelas mulheres – e, em especial, pelas mulheres negras – em um cenário marcadamente masculino, na medida em que essas lutas não estão dissociadas do esforço para “o alargamento dos sentidos de democracia, igualdade e justiça social, noções sobre as quais gênero e raça impõem-se como parâmetros inegociáveis para a construção de um novo mundo (CARNEIRO, 2003, p. 130).

Trata-se, no presente ensaio, de refletir sobre a presença de escritoras negras no movimento literário periférico de São Paulo, além de questionar silenciamentos, ausências e lacunas, no entrecruzamento das perspectivas de raça, classe, gênero e sexualidades, como chave para o enfrentamento de práticas discriminatórias e de manutenção das desigualdades sociais, raciais e de gênero. Para isso, será mobilizado o conceito de memorícidio, com vistas a tematizar o apagamento da literatura feminina periférica no Brasil, com especial atenção à criação de saraus e à publicação de antologias femininas como estratégias de resistência e de denúncia utilizadas por escritoras negras paulistas. Serão analisados, sobretudo, três movimentos culturais, formados entre 2015 e 2018, por mulheres periféricas: o Slam das Minas, o Slam Marginália e o Sarau das Pretas. Tal escolha fundamenta-se, como será exposto no decurso do texto, em virtude do caráter contestador e disruptivo de tais coletivos, que redimensionam os horizontes críticos de enunciação de espaços periféricos eminentemente masculinos, reiterando o protagonismo de grupos femininos nas batalhas de poesia. Ademais, os três movimentos escolhidos têm suas trajetórias apresentadas em dois documentários recentes1, que revelam seus percursos de construção política e cultural e, por isso, aportam insumos que se apresentam fundamentais à presente investigação.

O movimento literário marginal paulista será dividido, a título de análise, em três momentos históricos. Destacaremos como marco do primeiro momento o lançamento do livro Capão Pecado, de Ferréz, em 2000, cuja produção literária em prosa periférica é marcada pela notória influência da cultura hip hop e do rap. O segundo momento é o da poesia marginal (literatura poética periférica), caracterizado pela ascensão dos saraus, que têm como marco a publicação da antologia do Sarau Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), em 2005, movimento que estimulou diversos saraus, com o lançamento de, aproximadamente, duzentos livros coletivos e individuais. Por fim, o terceiro movimento é o da literatura periférica feminina, marcado pela presença do movimento feminista na cena literária, cujo marco é o lançamento da antologia Pretextos de Mulheres Negras2, em 2013, organizada por Carmen Faustino e Elizandra Souza, do coletivo Mjiba3. Dedicaremos especial atenção a esse terceiro movimento, para deslindar os desafios e os obstáculos que se apresentam às escritoras de territórios periféricos diante do racismo e do sexismo dominantes na cultura brasileira (GONZALEZ, 1984).

2 LITERATURA MARGINAL: A CENA LITERÁRIA DAS/NAS QUEBRADAS

Nossa arte vem da dor. Ela não fala dos negros, ela fala com os negros. Não fala dos pobres, fala com eles.

Sérgio Vaz (2016)4.

O movimento literário periférico paulista é composto por diversas iniciativas de artistas periféricos que, a partir dos anos 2000, organizaram-se e criaram nas quebradas de São Paulo uma cena intensa de saraus, batalhas de rimas, slams e eventos itinerantes, nos quais as pessoas periféricas de diferentes idades, identidades e profissões encontram-se regularmente para discutir, produzir e performar literatura. Um dos elementos mais importantes e presentes nas produções literárias das periferias é a narração e o registro do cotidiano dos territórios. Obras como Manual Prático do Ódio, de Ferréz (2003), e Graduado em Marginalidade, de Sacolinha (2005), narram tanto o cotidiano violento das quebradas quanto as esperanças, sonhos e denúncias dos seus moradores.

A literatura periférica retrata as diversas experiências de marginalidade social, cultural e política experimentadas por sujeitos de diversas periferias do país. O cotidiano da periferia é complexo, irredutível ao imaginário popular burguês do medo e da violência. Enquanto território de experiência e de experimentação multicultural, as vozes que emergem re erberam a crítica social, mas também colocam em eque o c none do literário e seu sistema alorati o, desdobrando outros modos de representação e de figuração, como exercício de “reconhecimento da margem como posição comple a que incorpora mais de um local”, pois “a margem é tanto um local de repressão quanto um local de resistncia” (KILOMBA, 2019, p. 68). Ademais, longe de estar restrita às periferias,

É inegáel que a iol ncia, por qualquer ngulo que se olhe, surge como constitutiva da cultura brasileira, como sendo um elemento fundante a partir do qual se organiza a pr pria ordem social e, como consequ ncia, a e peri ncia criati a e a e pressão simb lica, aliás, como acontece com a maior parte das culturas de e tração colonial. (PELLEGRINI, 2004, p. 16)

Se, de um lado, nas franjas periféricas os sujeitos enfrentam a violência policial cotidiana, denunciam a precarização dos serviços públicos e a segregação socioespacial, de outro lado, nesses espaços de convivência e de sociabilidade são constituídos laços importantes de solidariedade e de amizade, bem como práticas, tradições e costumes singulares. A experiência, o discurso e os vínculos provenientes do território fundamentam os sentidos do co-pertencimento e das identidades partilhadas, na pertença de quem fala não apenas sobre, mas desde o lugar. Para Sérgio Vaz, fundador da Cooperifa, um dos mas importantes saraus da cena contemporânea:

Estamos vivendo nossa Bossa Nova, nossa Tropicália, nossa Primavera de Praga. A cultura na periferia sempre existiu, mas a partir do ano 2000 surgiu como um movimento. Sempre se fez cultura, mas antes era de uma forma isolada. É quando vem o hip hop que a periferia dá um grito de independ ncia: “ u posso! u sou da periferia, e daí?”. aí que vem o orgulho de ser negro, de ser da periferia e o respeito por quem mora na favela. Por isso começamos a fazer cultura para nós. Essa é a grande diferença hoje: antes nós fazíamos cultura para nos apresentar para a classe média e hoje fazemos para nós. Estamos fazendo e consumindo cultura. (VAZ, 2016)

O adensamento desse movimento cultural decorre, principalmente, da organização de saraus nos bairros periféricos de São Paulo, cuja iniciativa advém de artistas que são moradores dos próprios bairros e comunidades. Os saraus costumam atrair grande número de jovens, que encontram nesses espaços um lugar de intervenção e de criação para discutir questões políticas, sociais, afetivas e um conjunto de outros temas que tocam diretamente a existência dos participantes e ouvintes. Frequentemente, esses saraus desdobram-se em outras ações, como publicações de livros, organização de eventos itinerantes, peças teatrais, formação de coletivos e, muitas ezes, outros saraus. A Cooperifa, por e emplo, criou o “Cinema na Laje”, em 2009; há, ainda, o “Cine Becos”, de 2006; e o “Cine Quebrada”, iniciado em 2018, para citar apenas alguns. De acordo com o poeta Sérgio Vaz:

A grande novidade é que a gente começou a consumir o que a gente produz e não a levar nossa produção para o outro lado da cidade. O que estamos fazendo agora é dando nosso charme, nossa visão sobre as coisas. (VAZ, 2016)

Cabe destacar que muitas dessas iniciativas funcionam como ferramentas de profissionalização de artistas e como fonte de sustento de moradores/as das quebradas paulistas, o que revela, por sua vez, as engrenagens de funcionamento de uma economia solidária, pautada pela autogestão e pela geração de trabalho e inclusão social:

Quando você faz um evento tem que pagar os artistas, tem que pagar produção, no entorno se montam as barracas onde se vendem bebidas [...]. e e com toda a infraestrutura e altera a paisagem, com um perfil de resistência. É o empoderamento, palavra de ordem agora. Acho que a cultura serve para a gente não enlouquecer, para sabermos de onde viemos e para onde vamos. (VAZ, 2016)

É importante salientar também a existência de um quarto movimento que emergiu concomitante à literatura periférica feminina: os slams. O lançamento do filme Slam – Voz de Levante, em 2017, dirigido por Tatiana ohmann e oberta strela D’Al a, acompanha o surgimento e o crescimento desse movimento no Brasil e no mundo, que une poesia, performance e crítica social.

Com dez anos de existência no Brasil, os Poetry Slams são batalhas de poesias performáticas, nas quais o texto e a habilidade de apresentá-lo publicamente são elementos fundamentais. p blico também e erce papel incontorná el nesse “jogo” e tem a permissão – e talvez a incumbência – de participar ativamente das disputas. Celebrada em todo o mundo, as apresentações têm se alastrado com enorme impacto no público jovem e periférico. Hoje, já existem mais de 150 comunidades em 18 estados do país nas quais os slams se fazem presentes.

É preciso sublinhar que o movimento literário feminino das periferias e o slam são movimentos interdependentes. Não à toa, muitas das artistas, organizadoras e participantes dos slams são mulheres escritoras e artistas negras e periféricas, como oberta strela D’al a5, considerada uma das fundadoras dos Slams Party no Brasil. Tatiana Lohmann6, no referido documentário, aponta como a performance é um modo de se posicionar politicamente nesses contextos:

Ocupar os espaços públicos é uma vocação do Poetry Slam no Brasil. São raros os slams indoors por aqui, o que reforça ainda mais o seu caráter político. Não que lá fora não exista esse caráter político, mas aqui é especificamente forte. O boom dos slams dos últimos anos aconteceu em sincronia com o grande balanço político pelo qual o país vem passando. A questão racial, o feminismo, a questão do transgênero e a luta de classes são assuntos recorrentes na cena de Slam brasileira. (LOHMANN, 2017)7.

Vê-se que, nesse cenário de intensas lutas e disputas políticas e sociais no país, os slams e os saraus não se furtaram ao debate político, com especial ênfase nas intervenções de mulheres negras, cis e trans, que performam as experiências vividas e as resistências nos diversos fronts de batalha da cidade. Os desafios para produção, divulgação e circulação editorial, porém, não são poucos. Daí a luta intransigente pela ocupação dos espaços, pela visibilidade e viabilidade de projetos que se organizam, abertamente, como modos de enfrentamento ao poder masculino, branco e cisheteropatriarcal.

3 TERCEIRO MOVIMENTO? ONDE ESTAVAM AS MULHERES?

Por que a discussão em torno da presença e da poesia feminina emerge em um terceiro momento no movimento literário periférico? Qual a finalidade de demarcar cronologicamente o giro – ou a gira – que marca a intensificação da presença da lírica feminina nesse movimento? Na perspectiva crítica que buscamos traçar, há uma terceira margem no movimento literário periférico paulista: o gênero.

É essa a questão rastreada também por um documentário como Pelas Margens: vozes femininas na literatura periférica. No filme, o lugar e o papel de gênero impostos às mulheres na cena literária periférica são questionados em todas as suas dimensões e sentidos. Evidencia-se que, mesmo nos mais famosos saraus paulistanos, era comum que as poetas e outras organizadoras fossem tratadas como “primeiras damas” e “secretárias” dos poetas. No documentário, Raquel Almeida8. destaca que, muitas vezes, a presença feminina é repudiada de diversas formas no movimento periférico. Almeida aponta que o corpo feminino das poetas é preterido pelo próprio espaço sede dos slams e saraus periféricos: o bar. Para a poeta:

O bar é um lugar que os homens vão lá, vão beber, vão fazer tudo e as mulheres ficam em casa cozinhando, passando e cuidando dos filhos. Então, quando eu passei a pegar o microfone, desde o primeiro sarau, pedir silêncio, chamar poeta, discutir com alguém que tá lá causando, já causa um impacto. alam: “heh mulher! Não sei o quê...! Sai daqui que isso aqui não é espaço seu! (ALMEIDA, 2016 apudBALBINO, 2016)

Para além do desprezo à presença feminina, Almeida também critica a função que era exercida pelas mulheres nesses slams e saraus, pois, segundo a poeta, eram delegadas às mulheres as funções de organizadoras, faxineiras e secretárias, mas nunca a de poetas:

Ser uma das primeiras organizadoras de saraus foi um incômodo muito grande [...]. A gente tá fazendo a mão de obra o tempo todo, nesse papel de “tá ajudando” companheiro. u era ista dessa forma também: “tá brincando ali, tá ali porque o marido tá fazendo poesia”. Não iam como um trabalho meu, como algo que me pertencia também. Sou poeta também. (ALMEIDA, 2016 apudBALBINO, 2016)

Nesse contexto, entre 2006 e 2018, diversas poetas uniram forças e formaram coletivos, a fim de fortalecer a luta conjunta e combater o lugar de subalternidade relegado às mulheres na cena periférica paulista. Desde então, diversas iniciativas tiveram lugar, como a criação de novos saraus comandados por e para mulheres periféricas; o Slam das Minas; o Slam Marginália; o Sarau das Pretas, entre outros. Além disso, uma série de produções independentes de autoras e de antologias femininas foram publicadas, como Perifeminas I (2013) e II (2014), Pretextos de Mulheres Negras (2013) e Narrativas Pretas (2020).

Decorridos dez anos de intenso trabalho, Elizandra Souza, em entrevista concedida ao coletivo Nós – Mulheres da Periferia, em 2017, comemoraria à ocasião o primeiro ano de criação do Sarau das Pretas, sarau itinerante composto por mulheres poetas de diversas regiões periféricas de São Paulo. Na entrevista, Souza salienta os esforços que têm sido feitos contra o apagamento da memória e da produção das mulheres periféricas:

Em nosso cenário, ainda que seja contestador e de luta por direitos humanos, a mulher dentro da cultura literária periférica não é reconhecida e potencializada. Somos poucas porque o racismo, omachismo também são eficientes [...]. Os movimentos de mulheres dentro do cenário literário periférico são o que mais me alegra e anima, pois elas estão vindo com uma energia e um grito entalado, e não estamos de brincadeiras. Queremos ser reconhecidas, queremos ser lembradas e referenciadas, mas, principalmente, existirmos dentro de todo este panorama cultural. (SOUZA, 2017)

Ressalta-se, portanto, que, mesmo no interior desses espaços de luta e de contestação, as opressões machistas, masculinistas e cisheterossexistas se perpetuam. Daí a necessidade de fomentar saraus e publicações que garantam a presença feminina, seu reconhecimento e representação nesses espaços. Por isso, poetas, escritoras e artistas seguem viabilizando a construção de espaços de participação exclusivamente voltados às mulheres, dadas as dinâmicas de silenciamento e de exclusão nos espaços periféricos tradicionais.

4 HISTORICIZAÇÃO E INVISIBILIDADE DA LITERATURA FEMININA NO BRASIL

[...] a margem é um local que nutre nossa capacidade de resistir à opressão, de transformar e de imaginar mundos alternativos e novos discursos.

Grada Kilomba (2019, p. 68)

Para pensar mundos alternativos, consideremos as marcações históricas dessa margem. Entre o século XIX e o século XX, diversas escritoras e artistas mulheres foram forçadas a assinar seus trabalhos com nomes masculinos para fugir da recepção estereotipada da escrita feminina e para desafiar o preconceito que lançava as autoras para fora do circuito da criação literária. Na Inglaterra, para citar um exemplo, Mary Ann Evans, cujo romance Middlemarch: um estudo da vida provinciana (1871) é considerado obra prima da literatura inglesa, descrito por Virginia Woolf como “um dos poucos romances ingleses para adultos”, alcançou notoriedade assinando seus trabalhos como George Eliot9. Para ser reconhecida entre os pares, a poeta, romancista e tradutora necessitou forjar uma identidade masculina para que seus trabalhos fossem recepcionados e lidos com seriedade, para além das críticas direcionadas à transgressão do papel social e de gênero imposto às mulheres.

Virginia Woolf, por sua vez, na década de 1920, também não escapou das críticas. Em uma época na qual as personagens femininas ainda recebiam papéis sem relevância, comumente associadas ao âmbito doméstico e com contornos superficiais, Woolf foi uma das primeiras mulheres a viver como escritora na Inglaterra. Com produção expressiva e densa, a inglesa segue como uma das escritoras mais importantes da literatura mundial e como uma das mais aguerridas defensoras dos direitos das mulheres. Em Um teto todo seu,Woolf (1985) propõe uma reflexão sobre as condições sociais da mulher e a sua influência na produção literária feminina, sublinhando as dificuldades impostas pelas expectativas de gênero para a livre expressão de seu pensamento. Expectativas que obstaculizam uma escrita sem sujeição e, evidentemente, impedem que a recepção das obras escritas por mulheres seja considerada pelo seu valor literário:

As mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural. Sem esse poder, provavelmente a terra ainda seria pântanos e selvas. As glórias de todas as nossas guerras seriam desconhecidas. O tsar e o cáiser nunca teriam usado coroa nem a teriam perdido. Seja qual for o uso nas sociedades civilizadas, os espelhos são essenciais para todas as ações violentas e heróicas. É por isso que tanto Napoleão quanto Mussolini insistiam tão enfaticamente na inferioridade das mulheres, pois, se elas não fossem inferiores, eles deixariam de crescer. (WOOLF, 1985, p. 54)14

O apagamento sistemático da história e da memória das mulheres na literatura e na imprensa tem sido nomeado por Constância Lima Duarte (2009); 2018) como memorícidio. No Brasil, a invisibilização das produções artísticas, científicas e intelectuais de autoria feminina silencia e oculta os trabalhos realizados por mulheres, encaradas como objetos, cuja agência é negada em detrimento da manutenção de pactos sexistas desiguais e ainda mais nefastos quando analisados também sob o prisma racial.

Esse processo, que é denunciado reiteradamente pelas poetas que participam dos saraus e slams paulistas, pode ser analisado na perspectiva do memoricídio. Sabe-se que essa amnésia sexista não começou no século XXI. Mas ela segue constituindo o cerne das relações de poder acadêmicas e intelectuais brasileiras, sobretudo da cultura letrada e de seu repertório de exclusões:

Para ilustrar essa discussão, citamos, por exemplo, os nomes das irmãs Amélia de Alencar Mattos e Olga de Alencar Mattos que, ainda em 1902, editaram o jornal O Astro, originário de Baturité e que anos depois transferiu-se para Fortaleza. O periódico dirigido por mulheres foi editado durante sete anos e ainda assim os nomes de suas dirigentes são completamente desconhecidos da história, da literatura e da imprensa cearenses. (CASTRO; MOURA, 2019, p. 52)

Na história da literatura brasileira, quando não varridas da história oficial, sabemos que diversas mulheres necessitaram também ocultar seus nomes verdadeiros para validar suas produções, ou tiveram suas obras boicotadas e usurpadas por outros “homens de letras”. A lista de escritoras in isibilizadas pela historiografia oficial da literatura brasileira é grande, como Úrsula Garcia (1865-1905), poeta, cronista, ensaísta e primeira mulher nordestina a fazer jornalismo político; a poeta Abigail Sampaio (1897-1990), nascida em Paracuru, no Ceará, que publicou o livro Luar de prata, em 1923; e Maria Sampaio de Andrade (1888-1975), que publicou Átomos e centelhas (1928), Corolas de cristal e Manacá, estes três últimos em coautoria com sua irmã Abigail Sampaio.

5 A ISIBILIDADE DO “EU” FEMININO E A LITERATURA PERIFÉRICA

No Brasil, quando discutimos a produção literária feminina, o nome de Carolina Maria de Jesus e seus trabalhos literariamente situados nas periferias do Canindé são incontornáveis. Em 1937, aos 33 anos, Carolina muda-se para a favela do Canindé, localizada na zona norte de São Paulo. Desempregada e grávida, a escritora sustentava-se como catadora de papel e, nas horas vagas, registrava o cotidiano da favela nos cadernos que encontrava em meio ao material que recolhia. Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, o primeiro livro de Carolina de Jesus (2005), publicado em 1960, é fruto de um desses diários.

Em seus trabalhos, a autora denunciaria reiteradamente o racismo e as múltiplas discriminações de que foi alvo, marginalizada por uma sociedade em que mulheres negras e pobres eram senão o refugo, as raspas e restos do projeto desenvolvimentista branco-patriarcal. Não estranha que um dos temas mais frequentes na obra da escritora seja a fome. Carolina descreve minuciosamente as suas jornadas de trabalho e a escrita, não raro, parece iniciar quando a fome se intensifica, como se as palavras que preenchessem as páginas em branco materializassem algo de concreto diante de tantas ausências.

No documentário Pelas Margens – vozes femininas na literatura periférica, de Jéssica Balbino (2016), situação similar àquela enfrentada por Carolina Maria de Jesus é exposta e destrinchada na crueza do cotidiano das quebradas. No filme, a escritora e ativista social Elizandra Souza não se refere ao contexto socioeconômico vivido por Carolina nos anos 30 ou 40, mas, sim, à situação com que se deparam centenas de autoras negras e periféricas atualmente:

Conheço muita mana potente que se calou, que sumiu, nunca mais vimos dentro do cenário. E lembrando que estamos falando de mulheres que, na sua maioria, são negras e que têm suas triplas jornadas: são mães solos, trabalhadoras de qualquer trabalho que lhe garanta a subsistência, e ainda são artistas. (SOUZA, 2016 apudBALBINO, 2016)10

Assim, o percurso de Carolina Maria de Jesus se aproxima da trajetória de muitas mulheres escritoras negras contemporaneamente, como a da poeta Dinha Maria Nilda:

Comecei a escrever aos 12 anos porque queria ter um diário. Como não tinha dinheiro pra comprar um com chave, resolvi escrever nos cadernos velhos que sobravam da escola. Criei códigos, que depois foram se tornando metáforas, capazes de ‘trancar’ os significados. Aos poucos, minha escrita foi migrando da prosa de um diário adolescente para a poesia da mulher adulta de hoje. Escrevo literatura brasileira feminina e negroperiférica. Não é uma escolha, a princípio se trata de lugar de fala mesmo. Gosto e valorizo esse lugar, pois ele compõe boa parte da minha identidade e se relaciona com minhas lutas pessoais. (NILDA, 2020 apudDELBONI, 2020)11

De acordo com Ana Rita Santiago (2016), diversos poemas, contos e diários que integram a antologia pessoal de Carolina indicam hibridismos de gênero, temas e vozes que perpassam a sua escrita poética. Narrativas curtas, por exemplo, são construídas em erso, atra essadas pelo elemento autobiográfico, em uma multiplicidade de “eus” que se decantam em sua identidade autoral, como em Atualidades:

Encontrei-me com uma senhora

De fisionomia abatida

Perguntei-lhe por que chora?

Já estou exausta e vencida.

Não mais dá gosto em viver

Que luta! Que aflição

Oh! Deus que hei de fazer

Dá-me tua proteção.

Trabalho o ano inteiro

Nem um dia posso perder

Luto e não tenho dinheiro

E nem pão para comer.

Tenho medo de enlouquecer

Oh! Existência oprimida

Não sei quem é que vai deter

O alto custo da vida.

Não sei por que estou vivendo

Se me falta até a ilusão

É uma forma de ir morrendo

Lentamente, à prestação.

Vivo falando sozinha

Extravasando a minha dor

Recordando a época que eu tinha

Tranquilidade interior.

Não mais posso trabalhar

Pungente é a minha condição

E se eu for mendigar?

Ameaçam-me com a prisão.

Não percebem as autoridades

Que já estou aprisionada

Com estas dificuldades

Que sou uma desgraçada?

A velha rota e revoltada

Tudo que sofreu narrou-se.

Vivo ao léu sem ter morada

O mundo do pobre acabou-se.

Deus é a única esperança

Desta classe sem apoio certo

Luta e sobre por fim se cansa

Igual o viajante no deserto.

(JESUS, 1996, p. 164-165)

Como nos versos de Carolina, os discursos produzidos pelos moradores das periferias urbanas são formas de expressão de modos de ser, estar, sentir e intervir no mundo a partir de um lugar social, histórico e territorial determinado. São, é certo, expressões, descrições e formalizações críticas que podem ser potencializadas pelo literário e suas técnicas, em permanente diálogo com realidades sociais, econômicas e culturais específicas. Como revela Débora Garcia no documentário Pelas Margens – vozes femininas na literatura periférica, de Balbino:

Eu tive a oportunidade de tirar a literatura daquele pedestal e reconhecer o valor daquilo que eu escrevia [...] Quando eu comecei a frequentar o movimento cultural dos saraus, eu encontrei essas pessoas que me fortaleceram para passar por esse processo. Eu encontrei um espaço de debate, uma literatura que fala dessas questões, da mulher negra, de se assumir, de falar da sua ancestralidade. (GARCIA, 2016 apudBALBINO, 2016)

A resistência tematizada por Garcia toma forma nos gestos e nas ações de militância dos coletivos, nas escritas e performances de fala e escuta, que desestabilizam, igualmente, o modus operandi do literário. Os entrelaçamentos entre literatura e outras artes abrem um campo de possibilidades de produção que avizinha a literatura a outros dispositivos artísticos. É o que Flora Süssekind (2013) nomeará de formas corais, isto é, a e peri ncia contempor nea com a multiplicidade de ozes e dicç es que desestabilizam as artes no presente, por uma espécie de escrita-em-tensão, que cria “um problema para esforços de encai e crítico imediatos e sem ajuizamento, [...] para compreens es restriti as de literatura que parecem não ir além de oposições binárias sistémicas” (SÜSSEKIND, 2013).

É justamente no esforço de dissolução de fronteiras e enquadramentos unívocos que as antologias organizadas pelos coletivos têm ganhado visibilidade. O protagonismo feminino nesse exercício crítico, sobretudo das mulheres negras, merece destaque. Daí o fato de essas vozes disruptivas e corais desterritorializarem não somente a forma literária canônica, com a possibilidade de ampliação de suas operações, mas também produzirem toda uma série de tensionamentos e desfigurações identitárias, reconfigurando a margem “como um ‘espaço de abertura radical’ [...] de criatividade, onde no os discursos críticos se dão. aqui que as fronteiras opressi as estabelecidas por categorias como ‘raça’, ‘gênero’, ‘se ualidade’ e dominação de classe são questionadas, desafiadas e descontruídas” (KILOMBA, 2019, p. 68).

6 ANTOLOGIAS E MARCOS HISTÓRICOS: COLETIVO MJIBA E A VISIBILIDADE DO “EU” FEMININO NA LITERATURA PERIFÉRICA DA ZONA SUL DE SÃO PAULO

Em agosto de 2004, foi organizado o evento Mjiba, uma ação construída por três jovens mulheres negras, moradoras da periferia paulistana: Elizandra Souza, Elisângela Souza e Thaís Vitorino. Com o objetivo de valorizar o fazer artístico de mulheres negras, o Mjiba em Ação reúne poetas, artistas e promove diversos shows de grupos femininos de rap, além de saraus e exposições de poesias. Um ano depois, em agosto de 2005, teria lugar mais uma edição do evento, com a participação de Ieda Hills, Zenzele e outras convidadas, e atuação do coletivo Mjiba em uma rádio comunitária.

Contemplado com o projeto de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, o terceiro Mjiba em Ação pôde expandir o número de mulheres convidadas e propostas a serem realizadas no evento. Segundo Graziele Alves (in FAUSTINO; SOUZA, 2013, p. 133), os espaços do evento foram propostos para artistas convidadas da música, da dança, da poesia, além de contar com recital e lançamento do livro “Águas da Cabaça” de Elizandra Souza. O quarto Mjiba em Ação, uma vez mais subsidiado pelo VAI, em 2013, seria marcado pela presença massiva de crianças em seu público, com contação de histórias de Kiusam Oliveira e o espetáculo Mjiba, realizado pela Trup Liuds.

As performances literárias protagonizadas pelo Coletivo Mjiba foram realizadas na periferia (CEU EMEF Três Lagos) e com a parceria de mulheres em todos os estágios de organização e produção do evento: no projeto gráfico (Nina Vieira), na filmagem (Mel Duarte), na cenografia (DJ Vivian Marques e Jú Bernardo), nas fotografias (Chaia Dechen, Guma e Thaína Joaquim) e na assessoria de imprensa (Jéssica Balbino). É desse projeto coletivo que culminaria a antologia "Pretextos de Mulheres Negras", publicada em 2013.

Maria de Fátima Moreira Péres, em Falas femininas em Pretextos de Mulheres Negras, destaca a importância da antologia para visibilizar a performance feminina na literatura periférica:

Pretextos de Mulheres Negras é uma antologia que reúne a escrita poética e autobiográfica de vinte e duas jovens negras, pouco ou quase nada conhecidas – duas estrangeiras, Queen Nzinga (Costa Rica) e Tina Mucavele (Moçambique) – e as demais paulistas. Com o apoio do programa VAI – Valorização de Iniciativas Culturais, da Secretaria de Cultura do Município de São Paulo –, elas lançaram em 2013 a publicação, que conta, também, com ilustrações marcantes de Renata Felinto e o projeto gráfico de Nina Vieira, cuidadosamente elaborado e envolvente. A organização da antologia não foi um processo automático ou corriqueiro, na qual as escritoras enviaram simplesmente seus textos. Antes, tiveram vários encontros e piqueniques colaborativos no Parque do Ibirapuera, em São Paulo para produzir e acompanhar o processo de criação do livro, além de muita conversa sobre o que é ser escritora ou não e, por fim, algumas sessões de fotos. (PÉRES, 2016, p. 1)

O movimento político da literatura periférica alcançou as mulheres que leem as poetas e fortaleceu a projeção de escritoras mulheres outrora proscritas do circuito de produção literária. A representatividade e a atuação poético-político-periférica de escritoras como Elizandra Souza aponta para a necessária reparação histórica também nos campos artístico e literário, que tem por horizonte a justiça epistêmica, racial, social e de gênero:

Ser mulher negra é carregado de estigmas, pesa. A escrita é um pretextopreto, texto da nossa existência, é um grito, é um revide, é uma vontade de existir e pegar na mão de outras mulheres negras jovens como nós e dizer que a vida não é só isso, que podemos ser tudo que queremos. E vamos assim, combatendo o machismo e o racismo da nossa forma... nos curando dessa perversidade que é ser a carne mais barata do mercado, de ser sexualizada e erotizada como um produto. (PÉRES, 2016, p. 2)

A luta travada por Lisandra Souza liga-se diretamente aos debates levados a cabo por Angela Davis (2016), quando a filósofa denuncia em seus trabalhos a perpetuação de diversos mecanismos do sistema escravagista, dos privilégios da branquitude masculinista e da coisificação das pessoas negras, submetidas a formas multifacetadas de controle e de dominação raciais. As lutas e os trabalhos dialogam também no que concerne aos modos de resistência e de reexistência das mulheres negras, por meio das revoltas, protestos e recriações coletivas, com inestimável relevo conferido à linguagem e ao simbólico. A dimensão interseccional dessas lutas articula-se aos corpos e experiências periféricos de maneira ainda mais radical, haja vista que as violências de que são alvos são indissociáveis dos marcadores sociais da diferença, que (re)produzem efeitos permanentes nos sujeitos – feridas insuturadas, muitas vezes.

Diante do silenciamento e do recrudescimento da violência racial e de gênero, a escrita das mulheres negras periféricas tem promovido rupturas, ressonâncias e permitido aos coletivos elaborar estratégias de autodeterminação e de transformação do social, mormente nos últimos 15 anos. Jovens mulheres negras formaram coletivos e organizam encontros, saraus e espaços de experiência – e resistência – para literatura negra, feminina e periférica. A publicação de Pretextos de Mulheres Negras e de outras antologias atesta como os movimentos têm produzido sismos na cena literária paulista e brasileira, com o traço incisivo de trabalhos que se nutrem da força coletiva e de uma escrita encarnada. Para muitas escritoras, como Raquel Almeida (2016 apudBALBINO, 2016)12, participar da referida antologia “foi um di isor pra muitas mulheres se empoderarem, se assumirem, e ir pra cima, publicarem seus livros, fazerem seus textos, blog... que seja! sso foi muito significati o nos ltimos anos”.

7 CONCLUSÃO

[...] essas mulheres poetizaram a própria existência – para existir. Mulheres que encontraram moradia na escrita. Existir é exercício diário no mundo, mas existir na própria periferia do mundo é um trabalho muito mais árduo. Demanda doses extras de oxigênio, que é outra coisa que parece andar em falta. Mas, enquanto o mundo entra em colapso, são exatamente as mulheres periféricas que nos lembram de que é preciso peito pra viver – ou sobreviver.

Carolina Delboni (2020)13

Diante do exposto, evidencia-se que o lugar, a função e os papéis sociais das mulheres na literatura, na poesia e na sociedade vêm sendo questionados em toda sua espessura e amplitude. As mulheres periféricas paulistas tensionam não só o modo de produção e de reprodução da literatura e das artes, com seus cânones e paradigmas, mas também os circuitos, as presenças e ausências e as vozes que emergem na cena pública. Elizandra Souza, Raquel Almeida, Débora Soares e Jennyfer Nascimento são algumas das artistas que têm se organizado para criar e multiplicar espaços poéticos e políticos, com potencial de intervenção intraliterário e na política da escrita e das artes.

O movimento da literatura marginal paulista, que completou, em 2020, 30 anos, a despeito de ser um importante e reconhecido movimento de luta pela cidadania e dignidade periféricas no campo político e literário, não passa incólume aos conflitos, tensões e violências internas. A invisibilização de escritoras e poetas mulheres e a tentativa de reduzi-las a funções não artísticas nos saraus e eventos periféricos são algumas das expressões dessas violências, que têm sido combatidas por diversas artistas periféricas e coletivos, com estratégias de luta contra o sexismo e o memoricídio feminino, além da criação de espaços de maioria feminina.

Esse processo tem conscientizado criticamente, transformado e impulsionado uma série de artistas, inclusive as próprias organizadoras dos saraus. Como afirma a escritora e ativista Jennyfer Nascimento (2016 apud BALBINO, 2019), “hoje eu tenho mais consciência de como o machismo opera no sarau. Por exemplo, você vai lá fazer uma poesia erótica, aí você sai do palco e o cara já acha que você vai fazer tudo que você falou na poesia”.

Destaca-se, portanto, que o lugar do feminino na literatura periférica paulista tem sido reivindicado como lugar de enunciação literária, epidérmica e epistemicamente qualificado. Não à toa, os últimos anos têm sido marcados pela intensificação do questionamento aos cânones e pelo reenquadramento do lugar e do espaço das mulheres na literatura e na historiografia literária. Poetas, performers, escritoras profissionais e em formação tensionam paradigmas e ampliam recursos, operações e possibilidades do literário, traçando outros itinerários corpo-políticos para sua escrita.

A periferia, assim, emerge também como o lócus situado de muitas dessas mulheres escritoras que, com suas lutas poético-políticas e com suas escrevivências (EVARISTO, 2008) periféricas de resistência, têm refigurado o lugar ocupado por seus corpos no território literário. Conforme afirma Elizandra Souza no documentário Pelas Margens:

No início, buscava manter as escritas escondidas porque, de alguma forma, elas falam sobre mim, minhas visões e meus sentimentos. Antes eu tinha uma impressão, hoje eu tenho uma certeza: os homens não leem as mulheres! Os escritores negros mesmo deste campo literário [periférico] conhecem, mas não leem. (SOUZA, 2016)

Ao redimensionar as bases de enfrentamento à hegemonia masculina na literatura e nas artes, os textos das escritoras periféricas funcionam como um levante literário feminino, irredutíveis às referências e identidades edificadas pelo olhar masculino. Como sujeitos de representação própria, a articulação e a produção de mulheres negras na e da periferia conferem relevo a outro corpus literário: o da recusa à terceira margem da exclusão. O que o depoimento de Lu Ain-Zaila, escritora periférica carioca e primeira mulher negra brasileira a publicar um livro de ficção científica, revela ao salientar que sua escrita:

[...] reconhece os lugares periféricos, as pessoas e suas realidades. Quando uma empregada doméstica muda o mundo no seu contexto, isso é muito forte para quem lê. Passamos a acreditar nesses lugares sociais como dignos de promover mudanças para além do literário. Vejo a força de uma heroína em quem estuda ou lê em pé no transporte. Essas são as marcas da minha literatura. O que estamos vivendo toca a minha literatura futura e a resistência à racialização dos prontuários cabe perfeitamente numa história. O direito-privilégio de ficar em casa tem exacerbado e exposto vários problemas que já nos eram fisicamente mortais antes. Essas palavras precisam ser escritas. (AIN-ZAILA, 2020 apudDELBONI, 2020)

Nas trilhas de Angela Davis (2016) e de Sueli Carneiro (2003), as estruturas de toda sociedade são movidas com a mobilização e com as lutas das mulheres negras. Ao criar espaços de reflexão, de ação e de produção, as escritoras mulheres modificam não apenas o presente, mas também as perspectivas futuras de todas as mulheres. Sobretudo, quando a violência segue ditando o ritmo e silenciando versos e vidas femininas, autorizada pela sanha patriarcal. Aqui, todavia, a lei é outra. Ressoa, nas quebradas, o rumor de protesto e a voz do verso da escritora Esmeralda Ribeiro (2004, p. 63): “nunca me erás caída ao chão”.

REFERÊNCIAS

BALBINO, Jéssica (dir.). Pelas margens: vozes femininas na literatura periférica. São Paulo, 2016. 1 vídeo. (ca. 66 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nHm4cennyyw&t=1507s. Acesso em: 02 dez. 2020.

CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 117-32, 2003.

CASTRO, Carla; MOURA, Gildênia. Mulheres escritoras: as pioneiras no século XIX. In: NETTO, Raimundo (org.). Curso Literatura Cearense. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2020.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

DELBONI, Carolina. A literatura de mulheres periféricas. Revista Trip, São Paulo, jun. 2020. Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/tpm/a-literatura-de-mulheres-perifericas. Acesso em: 04 jan. 2020.

DUARTE, Constância Lima. Arquivos de mulheres e mulheres anarquivadas: historias de uma historia mal contada. Gênero, Niterói, v. 9, p. 11-18, 2009.

DUARTE, Constância Lima. Escritoras nordestinas do século XIX: resgate e história. Estudos Linguísticos e Literários, Salvador, v. 59, p. 177-184, 2018.

EVARIST, Conceição. scre i ncias da afro-brasilidade: história e mem ria. Releitura, Belo Horizonte, n. 23, n.p., nov. 2008.

FAUSTINO, Carmen; SOUZA, Elizandra (org.). Pretextos de mulheres negras. Ilustrações de Renata Felinto. São Paulo: Coletivo Mjiba, 2013.

FERRÉZ. Capão Pecado. São Paulo: Labortexto Editorial, 2000.

FERRÉZ. Literatura marginal talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro, Agir, 2005.

FERRÉZ. Manual prático do ódio. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2003.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje (ANPOCS), [São Paulo], p. 223-244,1984.

HOOKS, bell. Intelectuais negras. Estudos feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 464-478, ago./dez. 1995.

JESUS, Carolina Maria de. Antologia pessoal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 8. ed. São Paulo: Ática, 2005.

Kl LOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

LOHMANN, Tatiana; ESTRELA D'ALVA, Roberta (dir.). Slam: voz de levante. São Paulo, 2017.1 DVD (105 min).

PELLEGRINI, Tânia. No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de hoje. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 24, p. 15-34, jul./dez. 2004.

PÉRES, Maria de Fátima Moreira. Falas femininas em Pretextos de Mulheres Negras. Resenha. Portal Literafro - UFMG, Belo Horizonte, 2016. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/arquivos/resenhas/poesia/CarmenFaustinoeElizandraSouza-PretextosdeMulheresNegras.pdf. Acesso em: 05 jan. 2021. REIS, Diego dos Santos. Estéticas afro-decoloniais e narrativas de corpos negros: arte, memória, imagem. Revista da ABPN, [São Paulo], v. 12, n. 34, p. 774-801, set./nov. 2020.

REIS, Diego dos Santos. Estéticas afro-decoloniais e narrativas de corpos negros: arte, memória, imagem. Revista da ABPN, [São Paulo], v. 12, n. 34, p. 774-801, set./nov. 2020.

RIBEIRO, Esmeralda. Ressurgir das cinzas. In: RIBEIRO, Esmeralda; BARBOSA, Marcio (org.). Cadernos negros. São Paulo: Quilombhoje, 2004. p. 63.

SACOLINHA. Graduado em marginalidade. São Paulo: Scortecci, 2005.

SANTIAGO, Ana Rita. O tear de memórias poéticas de Carolina Maria de Jesus. Revista Fórum Identidades, Itabaiana, v. 21, n. 21, p. 193-214, maio/ago. 2016.

SOUZA, Elizandra. Na literatura periférica a mulher não é reconhecida. [Entrevista cedida a] coletivo Nós, Mulheres da Periferia, São Paulo, 30 mar. 2017. Disponível em: http://nosmulheresdaperiferia.com.br/noticias/dentro-da-cultura-literaria-periferica-a-mulher-nao-e-reconhecida-diz-escritora/. Acesso em: 20 nov. 2020.

SÜSSEKIND, Flora. Objetos verbais não identificados. O Globo, Rio de Janeiro, Prosa & Verso, 2013. Disponível em: https://glo.bo/2MOzdap. Acesso em: 05 jan. 2021.

WOOLF, Virginia. The common reader. London: Mariner Books, 2002.

WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. Disponível em: http://lelivros.love/book/baixar-livro-um-teto-todo-seu-virginia-woolf-em-pdf-epub-mobi-ou-ler-online. Acesso em: 04 dez. 2019.

VAZ, Sérgio. 'Para nós, a periferia é um país', diz poeta Sérgio Vaz. [Entrevista cedida a] Rede Brasil Atual, São Paulo, 2016. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/cultura/2016/08/2018e-hora-da-caca-contar-um-pouco-da-historia20i9-diz-sergio-vaz-sobre-cultura-na-periferia-934/. Acesso em: 05 jan. 2021.

Notas

1 Trata-se dos documentários Pelas Margens: vozes femininas na literatura periférica, dirigido por Jéssica Balbino, em 2016; e Slam – voz de levante, de Tatiana ohmann e oberta strela D’Al a, de 7.
2 Ver: FAUSTINO, Carmen; SOUZA, Elizandra (org.). Pretextos de mulheres negras. Ilustrações de Renata Felinto. São Paulo: Coletivo Mjiba, 2013.
3 O termo Mjiba é pro eniente da língua chona, do imbábue, e significa “jo em mulher re olucionária”. Mjibas foram mulheres guerrilheiras que enfrentaram as tropas britânicas e lutaram pela independência do seu país contra o ímpeto imperialista e colonial. Em 2001, a poeta Elizandra Souza criou um fanzine utilizando o termo. Ela publicou esse informativo até 2005, que reunia uma série de textos sobre a cultura negra, poesias e manifestações culturais afrorreferenciadas.
4 Os trechos da entrevista concedida por Sérgio Vaz à Sarah Fernandes, da Rede Brasil Atual, em 2016, estão disponíveis em: https://www.redebrasilatual.com.br/cultura/2016/08/2018e-hora-da-caca-contar-um-pouco-da-historia2019-diz-sergio-vaz-sobre-cultura-na-periferia-934/. Acesso em: 05 jan. 2021.
5 Roberta strela D’al a é poeta, atriz, produtora cultural e pesquisadora brasileira. Nascida em São Paulo, fundou a primeira companhia de teatro hip hop do Brasil, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Publicou em 2014 o livro Teatro hip hop, a performance poética do ator-mc, pela Editora Perspectiva. Foi uma das pioneiras do Poetry Slam no Brasil, ao fundar a Zona Autônoma da Palavra (ZAP!). É a atual curadora do Rio Poetry Slam, que acontece anualmente na Festa Literária das Periferias, no Rio de Janeiro. Com Tatiana Lohmann, strela D’Al a codirigiu o documentário Slam: vozes de levante, em 2018.
6 Tatiana Lohmann é montadora, fotógrafa e diretora, com formação em cinema pela FAAP, em São Paulo. Dirigiu, entre outros videoclipes, o vídeo da música Respeito é pra quem tem, do rapper Sabotage. Trabalhou como montadora de filmes dos diretores Carlos Nader, Luiz Duva, Carla Gallo e Miriam Schnaiderman. É s cia e fundadora da produtora iração ilmes. Com oberta strela D’Al a, ohmann codirigiu o documentário Slam: vozes de levante, em 2018. Atualmente, vive e trabalha em São Paulo.
7 Os trechos transcritos das declarações de Tatiana Lohmann e Raquel Almeida são excertos dos depoimentos presentes nos documentários Slam: vozes de levante (2018) e Pelas Margens: vozes femininas na literatura periférica (2016).
8 Raquel Almeida é poeta, escritora, arte-educadora e produtora cultural. Co-fundadora do Coletivo literário Sarau Elo da Corrente, grupo que atua, desde 2007, no movimento de literatura periférica negra, no bairro de Pirituba, em São Paulo. Iniciou seu trabalho artístico em 2005 cantando no grupo de rap Alerta ao Sistema. Coautora de Duas Gerações Sobrevivendo no Gueto (contos, poesias e crônicas), com Soninha Mazo, publicado em 2008, e autora de Sagrado Sopro - do solo que renasço (poesia, 2014), ambos publicados pela Elo da Corrente Edições.
9 Ver HARRIS, Margaret (ed.). George Eliot in context. London: Cambridge University Press, 2013.
10 BALBINO, Jéssica (dir.). Pelas Margens: vozes femininas na literatura periférica. Documentário. 66 min. São Paulo, 2016. Disponível em: . Acesso em: 02 dez. 2020.
11 DELBONI, Carolina. A literatura de mulheres periféricas. Revista Trip, São Paulo, jun. 2020. Disponível em: . Acesso em: 04 jan. 2020.
12 BALBINO, Jéssica (dir.). Pelas Margens: vozes femininas na literatura periférica. Documentário. 66 min. São Paulo, 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nHm4cennyyw&t=1507s. Acesso em:02 dez. 2020.
13 DELBONI, Carolina. A literatura de mulheres periféricas. Revista Trip, São Paulo, jun. 2020. Disponível em: . Acesso em: 04 jan. 2020.
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
HMTL gerado a partir de XML JATS4R