DOSSIÊ
“Metendo dança”: saberes estético-corpóreos nas músicas do rapper Rincon Sapiência
“Getting into dance”: aesthetic-corporeal knowledge in the rapper's songs Rincon Sapiência
Percursos
Universidade do Estado de Santa Catarina, Brasil
ISSN-e: 1984-7246
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 22, núm. 50, 2021
Recepção: 22 Fevereiro 2021
Aprovação: 06 Outubro 2021
Resumo: O presente artigo tem como objetivo, realizar uma breve reflexão sobre as significações das músicas do rapper paulistano Rincon Sapiência. Sobretudo, o conteúdo das músicas presentes no seu mais recente trabalho, Mundo Manicongo: Dramas, Danças e Afroreps. A proposta de análise a ser empreendia aqui, visa identificar a contribuição cultural e pedagógica que este disco possui, quando pensamos sobre o prisma da corporeidade negra e as ressignificações identitárias dos sujeitos pertencentes a este grupo. Desta forma, além de evidenciar o impacto das músicas de Rincon na construção de identidades negras contemporâneas, busca-se também, apontar as concepções históricas acerca das sociabilidades negras, nas quais, muitas das manifestações culturais exercidas pela população negra, tiveram e ainda têm, como principal vetor de expressão o corpo negro somado à musicalidade.
Palavras-chave: Rincon Sapiência, corporeidade negra, identidade negra.
Abstract: This article aims to reflect briefly on the meanings of the songs of São Paulo rapper Rincon Sapiência. Especially, the content of the songs present in his most recent work Mundo Manicongo: Dramas, Danças e Afroreps. The proposed analysis to be undertaken here aims to identify the cultural and pedagogical contribution that this record has, when we think about the prism of black corporeality and the identity re-significations of the subjects belonging to this group. In this way, besides evidencing the impact of Rincon's songs in the construction of contemporary black identities, we also seek to point out the historical conceptions about black sociabilities. In which many of the cultural manifestations exercised by the black population had, and still have, as the main vector of expression the black body added to musicality.
Keywords: Rincon Sapiência, black corporeity, black identity.
INDÍCIOS DA IDENTIDADE MUSICAL
A dança é como ginástica
Ela tem a cintura elástica
Ancestralidade em prática
Eu confesso que é nossa tática
Afinal de contas
Multiplica essa multidão matemática
Sente o batidão, tenho gratidão
Bença nossa mãe, Dona África.
O excerto acima, corresponde aos versos contidos na música Meu Ritmo, segunda faixa do disco e que apresenta em sua narrativa as principais bases que caracterizam o conceito geral da obra, bem como da identidade artística de seu criador. No trecho em destaque, podemos evidenciar a referência a uma ancestralidade africana que reflete nas práticas contemporâneas de sociabilidade negra através da dança.
Podemos inferir que essa ancestralidade acionada está dialogando a partir de uma percepção ampla de cultura, ao referir-se a “Dona África”, imprimindo assim uma visão de África enquanto continente e por conseguinte, as suas diversas formas de cultura. Da mesma forma, uma leitura possível a ser empreendida, remete à noção de africanidade. De acordo com o sociólogo Carlos Gadea (2008, p. 3), a africanidade pode ser compreendida como “um espaço de elaboração discursiva e política que pretende sintetizar a pertença coletiva de um grupo humano a uma comunidade presumivelmente fundamentada em determinadas especificidades históricas e culturais referenciadas no continente africano”. Nesse sentido, a africanidade reflete essa condição ancestral heterogênea, somada às significações identitárias dos sujeitos negros no espaço em que se encontram. Essa breve apresentação denota parte do arcabouço referencial constituidor da musicalidade de Rincon Sapiência que buscaremos apresentar e aferir determinadas hipóteses ao longo deste artigo.
CAMINHO TEÓRICO-METODOLÓGICO DA PROPOSTA
Buscaremos nortear esta proposta de análise a partir dos conceitos postulados nos estudos culturais nos quais evidenciamos o potencial de análise que os artefatos culturais apresentam em torno da produção de formas de ensinamentos. Somado a esse recurso de pesquisa, pretendemos ainda, relacioná-lo com as concepções teóricas contemporâneas em torno das pedagogias das ausências e das emergências aliadas aos desdobramentos a partir das perspectivas étnico-raciais apresentadas pela antropóloga Nilma Lino Gomes (2017) no livro O Movimento Negro educador. saberes construídos nas lutas por emancipação.
No que tange as definições sobre os artefatos culturais, o pesquisador em educação Tomaz Tadeu da Silva (1999, p. 139) nos brinda com a seguinte definição, ao destacar que “tal como a educação, outras instâncias culturais também são pedagógicas, também têm uma pedagogia, também ensinam coisas. Tanto a educação como a cultura em geral estão envolvidas em processos da identidade e subjetividade”. Ou seja, artefatos culturais são os diferentes canais pedagógicos que disseminam informação e conhecimento nos quais encontram-se: livros, filmes, jornais, jogos, fotografias, músicas, entre outros exemplos.
Já para o antropólogo Livio Sansone (2000), no artigo Objetos da identidade negra..., em que se propõe a discutir a cultura negra baiana através de objetos materiais e imateriais pertencentes a este grupo, nos revela uma visão mais ampla em relação à transmissão de ensinamentos por meio destas instâncias. O autor evoca em seu texto a importância de dimensionar as práticas culturais e saberes exemplificados nas vestimentas, gosto musical, preocupação estética e pertencimento religioso, pois essas ações representam o conhecimento sendo operacionalizado e vivenciado no cotidiano pelos seus atores sociais. Nas palavras de Sansone:
Em outras palavras, a nova geração de jovens negros e mestiços baianos insiste em querer ser negra E moderna. Sua nova etnicidade, baseada na estetização da cultura negra e em um uso ostentoso do corpo negro, presta-se a uma atitude totalmente diferente em relação ao consumo e, em contrapartida, cria novas condições para a mercantilização; quando menos porque hoje uma variedade de culturas negras mercantilizadas, de objetos negros, está presente nos fluxos globais. (SANSONE, 2000, p. 100)
Embora retrate um contexto social específico, as afirmações de Sansone (2000) já demonstravam a crescente desterritorialização e novas significações que estavam emergindo em torno da juventude negra brasileira sob o modo que se identificavam e que buscam ser vistos pelo mundo. Hoje, essa busca permanece constante e acrescida de novas formas e elementos identitários que expressem as lutas e vivências contemporâneas, mas sobretudo as ações que possibilitam experienciar a existência e celebração dos corpos.
Dessa forma, compreenderemos o álbum Mundo Manicongo: Dramas, Danças e Afroreps, lançado em 2019, como um artefato cultural de pedagogias negras, visto que seu conteúdo, como veremos mais à frente, transmite ensinamentos e saberes pertinentes na formação de identidades negras múltiplas. Com isso, a análise empreendida será pautada na tentativa de explorar e inferir sobre as potencialidades do referido artefato cultural como inspiração para formação de identidades negras que questionam e subvertem os padrões pré-estabelecidos na sociedade. Além de contribuir para o fortalecimento do discurso em torno das pedagogias das ausências e seu caráter emergente. Pois, como apontou Boaventura de Souza Santos (2019, p. 13), “os artistas do hip-hop são hoje, a vanguarda da denúncia dessa sociologia das ausências e, ao fazê-lo, dão testemunho da criatividade, da resistência e da inovação das práticas protagonizadas pelos excluídos, marginalizados e discriminados”. É dentro dessa percepção que buscaremos elencar as chaves analíticas acionadas pelo conteúdo artístico evidenciado no disco de Rincon.
O rap apresenta-se como um elemento de análise potente e interdisciplinar, possibilitando diversas incursões e perspectivas que vêm sendo amplamente difundidas nos espaços de produção de conhecimento científico. Justamente por uma de suas principais características estar centrada na capacidade de retratar a realidade social, bem como de denunciar as injustiças e problemas decorrentes dessa realidade. No artigo Ritmo, palavra e poesia, os pesquisadores Paula Guerra e Tirso Sitoe (2019) chamam atenção para esses e outros aspectos decorrentes do rap.
Inicialmente, os autores discorrem sobre o papel da música popular como mecanismo de mudança e de cunho intervencionista, porém enfatizam que é através da linguagem do hip-hop, que esse discurso se apresenta mais bem articulado e capaz de transmitir essas mensagens. Ao destacar esses pressupostos na Portugal dos anos 1980, Guerra e Sitoe chamam atenção para os aspectos geográficos que contribuíram para o desenvolvimento da cultura hip-hop no país. As áreas urbanas passaram a ser ocupadas por imigrantes africanos recém-emancipados das antigas colônias trazendo novas culturas e identidades transnacionais promovendo assim, “a vivência do espaço urbano, de uma life in the street, que se torna condição essencial para se ingressar no movimento hip-hop nacional” (GUERRA; SITOE, 2019, p. 22). Embora esse somatório de conjecturas tenha construído as bases para o movimento hip-hop se desenvolver, esse multiculturalismo também evocará atos xenofóbicos que, como pontuam os autores, servirão de combustível para as letras rap desenvolvida pelos artistas.
Corroborando para refletirmos sobre essas perspectivas transnacionais e voltadas para as identidades culturais, Eduardo Lichuge, Lurdes Macedo e Sara Joana Laisse (2019), nos trazem importantes contribuições no artigo “Eu sou um cidadão, brada”: O rap como forma de artivismo em Moçambique?. Os autores discorrem sobre o conceito e/ou categoria de análise do artivismo, buscando demonstrar como o hip-hop pode ser um importante vetor dessa manifestação contemporânea que busca tensionar questões políticas, identitárias e as relações de poder vigentes, tendo como lócus de análise, a realidade social moçambicana. Os autores destacam que essas manifestações artísticas se deram a partir da década de 1990, período que marcava 16 anos do fim da guerra civil pela independência de Moçambique, e passou-se então a promover cada vez mais a abertura democrática e cultural que “naturalmente desenhar-se-ia um novo contexto no campo artístico-cultural, enquanto a população moçambicana se tornava num público potencial para a produção artística internacional” (LICHUGE et al., 2019, p. 37). Foi nesse contexto que o hip-hop, e sobretudo as letras de rap, passaram a figurar com mais ênfase nas rádios e a atingir a juventude ávida pelas novidades.
Ao retratar a contemporaneidade do rap moçambicano, os autores optam por elencar o discurso crítico e ativista do rapper Azagaia. Suas letras dialogam diretamente com a realidade econômica, política e social de Maputo, salientando em suas letras, sob tom de convocação, a participação da população nos debates que impactam seu cotidiano. Ao longo de sua análise, os autores apresentam falas de outros artistas que em alguns casos se denominam fazedores de rap, no intuito de evidenciar uma participação mais de proteção e denúncia do que propriamente uma utilização simplesmente musical.
Eduardo Lichuege et al (2019, p. 45) apontam que essas intervenções artísticas moçambicanas através do rap vêm crescendo pois “o fato de hoje se registrar a realização de um maior número de shows deste gênero musical, bem como um maior número de músicas e consumidores, demonstra o quanto o artivismo é capaz de atrair, mobilizar e consciencializar um número cada vez maior de cidadãos”. Essa capacidade de conscientização que a arte proporciona através da música está presente na obra de Rincon Sapiência, porém, sob o caráter de ressignificação identitária e utilização da visualidade performática como um acréscimo na transmissão de ideias.
Seguindo a esteira da arte e performance aliada ao discurso do rap, o artigo A rua como lugar de luta política, arte e performance no Brasil, da autora Vera Fátima Gasparetto (2019) apresenta pontos instigantes para essa proposta de estudo. No artigo, Gasparreto, discorre sobre o protagonismo feminino nos debates contemporâneos em torno da emancipação das liberdades individuais e coletivas, sobretudo em relação às pautas ligadas aos direitos das mulheres, identidades de gênero e temas afins. A autora busca enfatizar esse protagonismo através das formas de organização que o movimento de mulheres de Santa Catarina utiliza para promover seus atos e manifestações; dessa forma, sua análise destaca a rua como palco para corporificar e materializar essas lutas e reivindicações. Em determinado ponto, Gasparetto ressalta o papel da cultura hip-hop nessas articulações, em especial a Batalha das Mina protagonizada por mulheres e que apresentam um grande papel de intervenção artística e política ao somar-se com os demais movimentos de mulheres.
As batalhas de rap em sua essência exemplificam a cultura de rua em um de seus muitos aspectos existentes. Nas rodas de rima, além do congraçamento e do encontro que a rua promove, a presença dessa juventude ocupando os espaços públicos demonstra o posicionamento e formas de racionalidade que esses grupos operam e expressam através do ritmo e poesia. Ao destacar algumas das características presente na Batalha das Mina, Vera Gasparetto (2019, p. 144) enfatiza a composição de um “público eclético, formado por jovens, algumas crianças, a predominância de pessoas negras, homens, mulheres e pessoas do universo LBGTTQI. Inicia a ‘batalha do conhecimento’ onde são mobilizadas as rappers para o duelo entre si”. Essa descrição do cenário visual da batalha, demonstra a capacidade de mobilizar e conectar distintas identidade sociais que através do rap podem se expressar e motivar outros a ocuparem aquele espaço de troca e aprendizado, além de configurar um espaço feminino onde as mulheres tomam o protagonismo pautando os debates que as atravessam e explanando sensações e projeções que desejam para o futuro.
Ademais, evidencia-se ainda o recente artigo sobre o álbum musical Bluesman, do cantor e rapper Baco Exu do .lues. No artigo, os autores Matheus Eduardo Borsa e Melina Kleinert Perussatto (2020) analisam a obra produzida pelo rapper baiano a partir do olhar direcionado para as masculinidades negras e questões sociais que perpassam essa construção identitária na contemporaneidade. Ao apontar suas percepções, Borsa e Perussatto (2020, p. 186) salientam que “o álbum Bluesman é a quebra de um padrão na música negra brasileira, porque olha para o negro especialmente o homem negro, enquanto um humano provido de sentimentos. Tira o foco do corpo e passa para alma”. Essa perspectiva sem dúvida corrobora para ampliar as potencialidades que o rap pode evocar enquanto ferramenta de discurso e na promoção de debates assertivos. É esse sentido que a análise aqui desenvolvida buscará trilhar, porém com as particularidades e provocações que a obra de Rincon Sapiência nos permite inferir.
O intuito em questão está centrado em relacionar o Mundo Manicongo com as noções pedagógicas em torno dos saberes estético-corpóreos, buscando demonstrar as contribuições que o álbum confere ao debate em torno das identidades negras em suas significações a partir do corpo e estética. Com isso, busca-se apontar a visibilização do corpo como mantenedor e propulsor de saberes que acabam por se manifestar através da dança.
Para embasar essa análise, tomaremos como fio condutor quatro músicas do álbum: Meu Ritmo, Onda Sabor e Cor, Arrastão e Primeiro Volante, justamente por essas faixas possuírem videoclipes e possibilitarem indagações sobre aspectos corpóreos e de ressignificação identitária, bem como por evidenciarem as potencialidades que o álbum imprime. Destacamos que não realizaremos uma análise densa sobre as músicas do álbum, visto que seria muita pretensão buscar dar significados específicos às propostas literárias do autor. Contudo, buscaremos realizar uma abordagem em torno do conteúdo do disco e de suas contribuições para a construção de identidades negras afirmativas, o que acaba também por reforça sua condição de artefato cultural.
A noção de pedagogias das ausências e das emergências propostas por Nilma Lino Gomes (2017, p. 40), apoia-se no conceito de “sociologia das ausências e das emergências”, cunhado pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2004). Em linhas gerais, o sociólogo buscou com o termo transformar ausências em presenças, ou seja, dar protagonismo a outros prismas de pensamento e racionalidades que divergem do conhecimento epistemológico dito dominante.
Gomes busca desenvolver sua análise direcionando o olhar para o protagonismo negro dos movimentos sociais e suas formas de produzir saberes nas arenas sociais, culturais, históricas e políticas. De acordo com Gomes (2017, p. 42), “os projetos, os currículos e as políticas educacionais têm dificuldade de reconhecer esses e outros saberes produzidos pelos movimentos sociais, pelos setores populares e pelos grupos sociais não hegemônicos”. Dessa forma, podemos evidenciar um leque de ações e experiências sociais negras que dialogam diretamente com as assertivas da autora, das quais destacamos as manifestações artísticas e musicais como apresenta-se o artefato cultural em discussão neste artigo.
Ademais, Nilma Lino Gomes adensa suas reflexões ao destacar os saberes emancipatórios produzidos pelos sujeitos negros em contraponto ao conhecimento científico. Porém, busca elevar a dimensão e importância desses saberes visto que não devem ser tidos como inferiores ou menos saberes do que a produção científica. Para demarcar esse ponto, a autora destaca que:
Trata-se de uma forma de conhecer o mundo, da produção e de uma racionalidade marcada pela vivência da raça numa sociedade racializada desde o início da sua conformação social. Significa a intervenção social, cultural e política de forma intencional e direcionada dos negros e negras ao longo da história, na vida em sociedade, nos processos de produção e reprodução de existência. (GOMES, 2017, p. 67)
A autora demonstra que o lugar social das pessoas negras estabelecido historicamente em nossa sociedade reflete, na contemporaneidade, em sujeitos negros que buscam transgredir, libertar e emancipar suas trajetórias no papel de protagonistas. Essa perspectiva descrita por Gomes, permite-nos estabelecer as bases de reflexão necessária para realizarmos as incursões analíticas sobre o álbum musical de Rincon Sapiência, a partir dessa chave de leitura em torno das potências negras e de suas ações sociais. Pois assim como os livros, os discos musicais de um modo geral possuem sua carga de saberes e historicidade ao refletirem o contexto social em que estão inseridos, bem como as discussões que o caracterizam.
E por fim, somando-se às noções pedagógicas e saberes descritos acima, utilizaremos também a noção de saberes estético-corpóreos elaborada por Nilma Lino Gomes (2017), em que evidencia-se o corpo negro como propagador das ações de existência e resistência da juventude negra. Optaremos por adentrar nas reflexões pertinentes a este conceito posteriormente, com o intuito de estabelecer um diálogo mais direto com o disco de Rincon.
Na sequência, elencaremos alguns aspectos das dimensões históricas e culturais que o corpo negro carregou e ainda carrega, bem como as transgressões e significações alcançadas, visto que boa parte dos aspectos elencados neste segmento acabam perpassando de forma direta ou indireta pelo álbum de Rincon.
O CORPO NEGRO EM MOVIMENTO
Não será realizada uma análise extensa sobre a questão da corporeidade negra, mas sim será estabelecida uma linha de raciocínio que nos permita elucidar questões que vão de encontro com a proposta deste artigo. Para isso, discorreremos algumas linhas que englobam o corpo negro diaspórico e os saberes contidos em suas experiências e que acabam sendo ressignificados na contemporaneidade.
No livro O Atlântico negro: Modernidade e dupla consciência, o autor Paul Gilroy (2001) traz contribuições importantes em torno do conceito de diáspora e das transformações culturais e identitárias que esse processo ocasionou. De acordo com Gilroy:
Sob a ideia-chave da diáspora, nós poderemos então ver não a ‘raça’, e sim formas geopolíticas e geoculturais de vida que são resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contexto que elas não só incorporam, mas também modificam e transcendem. (GILROY, 2001, p. 25)
Essa assertiva de Gilroy (2001) demonstra que uma das principais questões envolvendo o conceito de diáspora, diz respeito à formação das culturas do Atlântico negro, sobre a qual o autor se debruça em boa parte de sua obra. Torna-se interessante dissertar sobre o corpo negro a partir da noção do Atlântico, justamente por esse espaço geográfico ter sido o vetor que conduziu e intermediou o movimento (forçado) de corpos negros ao longo de séculos por todo o globo. O autor também enfatiza a necessidade de quebrarmos com a ideia do chamado “absolutismo étnico”, ou seja, a noção de que exista um determinado pertencimento afro centrado ao qual buscamos nos conectar. Com a diáspora africana, está mais em jogo a concepção de culturas dispersas, desterritorializadas, que acabaram misturando-se, reinventando-se e produzindo novas identidades a partir da confluência de trocas mediada pelo Atlântico. Dessa forma, podemos compreender que o processo de escravização de diferentes povos étnicos em África, também originou como resultado desse processo doloroso, identidades negras diaspóricas pelo mundo.
Com o intuito de exemplificar as dinâmicas culturais produzidas pelos filhos da diáspora, Paul Gilroy chama atenção para a importância da música negra em meio a essa cultura do Atlântico. O autor direciona o olhar para o papel da música na cultura negra pós-escravista, com o intuito de evidenciar as contribuições e articulações que músicos desempenharam na disseminação expressiva da cultura. Nessa esteira, Gilroy (2001, p. 161), enfatiza que “um procedimento particularmente valioso para isso é fornecido pelos padrões distintivos do uso da língua, que caracterizam as populações contrastantes da diáspora africana moderna e ocidental”. Com isso, a comunicação é parte fundamental do processo de expressão e transmissão de um aspecto cultural.
No caso da música negra norte-americana, podemos tomar a título de exemplo, as work-songs e os spirituals negro, cânticos escravos percursores do que se tornaria futuramente o blues e o gospel. Esses cânticos eram entoados durante a rotina de trabalho dos escravizados com o intuito de suavizar as condições desumanas que sofriam. Em seguida, passaram também a falar sobre planos de fuga e rotas para alcançar a liberdade de forma subliminar, com analogias a passagens bíblicas e outros assuntos relativos as suas experiências. Nessa situação, percebemos que a comunicação musicada e subliminar, foi essencial para a sobrevivência e resistência desses grupos naquele contexto. E, posteriormente, essas musicalidades ganhariam novas atualizações e ressignificações em termos rítmicos.
Ainda dissertando sobre a música atlântica, Gilroy recupera uma fala da escritora Toni Morrison em uma entrevista que Morrison havia lhe concedido, na qual ambos refletiram sobre o papel das artes negras, em especial a música. Em sua arguição, Morrison reflete sobre os alcances artísticos que a música negra proporciona:
Meu paralelo é sempre a música porque todas a estratégias de arte estão aí presentes. Toda a complexidade, toda a disciplina. Todo o trabalho deve passar por improvisação de modo a parecer que você jamais tocou nele. A música deixa a gente faminta por mais. Ela nunca nos dá o conjunto todo. Ela bate e abraça, bate e abraça. A literatura deveria fazer o mesmo [...]. (GILROY, 1993apud GILROY, 2001, p. 167)
Com base nas palavras de Toni Morrison, podemos evidenciar toda a potencialidade que a música negra pode abarcar em termos artísticos e intelectuais, visto que a palavra musicada também nos informa, denotando-se assim um potente saber emancipatório. Contudo, como reflete a autora, o alcance da música também está relacionado à capacidade de provocar sentimentos e sensações distintos e muitas vezes conflitantes, dependendo do estado de cada indivíduo. Isso demonstra a riqueza e a complexidade da força artística em forma de música.
No que tange as questões envolvendo o corpo negro como veículo de manifestação artística, Paul Gilroy aponta como essa característica contribui para intensificar o poder da comunicação. Neste sentido, Gilroy (2001, p. 162) denota que “sua força é evidente quando comparada com abordagens da cultura negra que têm sido baseadas exclusivamente na textualidade e narrativa e não na dramaturgia, na enunciação e no gestual”. Com isso, o autor contempla a potencialidade da performance somada ao discurso, uma importante estratégia para disseminar conhecimento e saberes.
Seguindo na esteira do corpo negro diaspórico, foi possível perceber os processos e registros que as dinâmicas do Atlântico negro ocasionaram. Vejamos agora como esses sujeitos, frutos da diáspora, lidaram com essas cargas étnicas e culturais no lado de cá do Atlântico, especificamente no Brasil. Podemos refletir sobre a questão a partir dos estudos que vêm sendo realizados sobre mulheres africanas e crioulas que experienciaram o processo de escravidão.
Relembrando que não temos aqui a pretensão de analisar o referido tema em toda a sua amplitude, visto que há uma vasta bibliografia que vem desempenhando importantes avanços para este campo de estudos. A intenção proposta neste ponto do artigo, está centrada em ressaltar alguns pontos relacionados às experiências sociais de mulheres negras durante o cativeiro.
Tratando inicialmente sobre a ótica da escravidão, devemos perceber que a primeira impressão que recai sobre os corpos negros escravizados está ligada ao controle e opressão exercidos pelos grupos dominantes. As formas de manter esses indivíduos subjugados iam além das conhecidas formas de trabalho forçado nas plantações e dos castigos físicos muitas vezes exacerbados, e também se fazem presentes por meio de um cerceamento do corpo e de suas possibilidades de existência de forma mais sútil, porém não menos desumana. Essa perspectiva surge quando se compara a escravidão rural com a escravidão doméstica no espaço urbano.
Para exemplificar essa dualidade, a historiadora Mariana Muaze (2018) ressalta as peculiaridades da escravidão doméstica e urbana e os diferentes tipos de violência imputada sobre os corpos desses sujeitos. Sobretudo, para as mulheres escravizada enquanto exerciam a condição de mãe. Ao apresentar as circunstâncias que permeavam a maternidade, Muaze (2018, p. 363) salienta que “não se pode esquecer que a tarefa a que se destinavam envolvia o silenciamento, por vontade senhorial e aceitação social, do exercício da maternidade que implicava o convívio com o filho desde os primeiros dias de vida”. Nessa assertiva, a autora retrata a violência sofrida sobre o corpo dessas mulheres ao terem sua maternidade silenciada, necessitando muitas vezes abdicar da amamentação de sua prole, para dedicar-se ao cuidado da criança senhorial.
Nessa chave analítica do silenciamento, podemos inferir também sobre a condição dos escravizados domésticos que apesar de conviveram com a família senhorial dentro da casa e de realizar funções mais “brandas”, acabavam ficando mais propensos ao controle direto de seus senhores. Com isso, necessitavam adotar uma postura silenciosa, quase que inexistente pelos cômodos da casa; esse “habitus senhorial”, como bem destaca Muaze, ainda persiste em nossa sociedade quando pensamos as hierarquias que estruturam as relações de trabalho de cunho doméstico.
Corroborando essas análises, a historiadora Lorena Telles (2019) chama atenção para o controle senhorial sobre o corpo das mulheres escravizadas através da violência sexual, e também no momento em que estas encontravam-se gestantes. Telles (2019, p. 27) nos informa que dentre as práticas de controle exercidas pelos senhores, havia também “a intervenção dos médicos sobre os corpos e a vida reprodutiva das mulheres escravizadas a serviço dos interesses das classes senhoriais, assim como os avanços da medicina no campo da ginecologia e obstetrícia”. Essas iniciativas foram recorrentes com o intuito de assegurar que essas mulheres estivessem aptas a gerar mais escravizados para seus proprietários, um pensamento que se intensificou a partir da proibição do tráfico atlântico. De acordo com Telles (2019, p. 28), “com o fim do tráfico africano na primeira década do século XIX, a importância da capacidade reprodutiva das cativas para o futuro da escravidão trouxe para seus corpos a centralidade das práticas de dominação escravista”. Com isso, a violência e controle exercidos sobre os corpos das mulheres escravizadas denotam toda a exploração e objetificação que vivenciaram, como também apontam para um silenciamento de suas maternidades através da definição simplória de reprodutoras.
A partir das reflexões e exemplos citados até aqui, pudemos perceber que a corporeidade negra pode ser evidenciada sob o aspecto do controle e da libertação. O mesmo corpo que outrora fora escravizado e cerceado de sua liberdade, também se agenciava em torno de meios de manobra que possibilitassem formas de emancipar-se do domínio que sofria. Essas interações se davam nos espaços de sociabilidade negra, onde através do canto e da dança, compreendiam diversas manifestações culturais. Dessa forma, permitia-se a transgressão dos corpos ao mesmo tempo que tensionavam a configuração social que se encontravam. Nesse sentido, percebemos como essas dimensões ainda são estruturais em nossa sociedade ao mesmo tempo que as formas de ressignificar e subverter essas regulações seguem se atualizando. Sob esse prisma, Gomes (2017) busca refletir em relação aos significados e às transformações que perpassam o corpo negro através das definições de “corpo regulado” e do “corpo emancipado”.
No primeiro estão inscritas as marcações históricas do corpo escravizado e corpo objeto, refletindo assim a perspectiva do grupo racial dominante. Para Gomes (2017, p. 96), “o corpo regulado é também o corpo estereotipado por um conjunto de representações que sustentam os ideais de beleza corporal branca, eurocentrada e, no limite, miscigenada em contraposição à pele preta”. É sobre esse corpo que recaem as noções práticas do preconceito racial, que como pontou Silvio Almeida (2019, p. 32), “é o juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado”. Configurando uma “geografia do corpo” como bem apontou o antropólogo Kabengele Munanga (2010), ao enfatizar os diversos casos de racismo em nossa sociedade em que a imagem do negro é constantemente associada à criminalidade quando a suspeição inicial se dá através da identificação racial.
Já o corpo emancipado pode ser entendido como uma alternativa aos padrões e mecanismos que buscam definir o corpo regulado. Com isso, ambos se encontram em processo de conflitos e tensão sob o ponto de vista de representação e marcação de presença negra nos palcos sociais. Ademais, a autora nos apresenta uma definição ampla do conceito que nos permite evidenciar o terreno social de atuação do corpo emancipado. De acordo com Gomes:
Os corpos negros se distinguem e se afirmam no espaço público sem cair na exotização ou na folclorização. A construção política da estética e da beleza negra. A dança como expressão e libertação do corpo. A arte como forma de expressão do corpo negro. Os cabelos crespos, os penteados afros, as roupas e formas de vestir que transmitem uma ancestralidade africana e ressignificada no Brasil. (GOMES, 2017, p. 97, grifo nosso)
Aqui, percebemos que o corpo emancipado possibilita diversas formas de intervenção social, cultural e política na sociedade, produzindo assim distintos saberes emancipatórios que perpassam o corpo negro. As expressões em destaque apontam as principais chaves de leitura em que suscitaremos ao leitor o adentramento no universo do Mundo Manicongo..., bem como as demais iniciativas que contemplam o cerne do produto musical elaborado por Rincon Sapiência. No que diz respeito à identidade corporal e estética que contribuem na composição do corpo emancipado, Nilma Lino Gomes (2008) traz apontamentos sobre as significações desses ícones identitários na construção das identidades negras.
Para a autora, analisar a relação da população com o corpo e o cabelo possibilita não somente evidenciar aspectos constitutivos das subjetividades desses grupos, bem como os efeitos do racismo impactam essas construções emotivas e socais. Dessa forma, Gomes (2008, p. 31) toma como cenário de suas análises, os salões de beleza étnicos, visando atingir os desafios de “articular a questão racial e a expressão estética, de tocar o mundo dos sentidos e das emoções na construção da identidade negra”. No que tange ao poder simbólico e político da identidade visual, a autora destaca como esses espaços fomentam e produzem os mecanismos de aceitação/afirmação da identidade racial negra. “Para isso, tentam recriar um padrão estético negro, numa associação entre a modernidade, a tecnologia e os padrões africanos” (GOMES, 2008, p. 145). Caminhando assim, na linha do corpo negro emancipado, ressignificando as concepções identitárias através da estética do cabelo crespo visto que este apresenta-se como um dos principais sinais diacríticos da identidade negra.
O MUNDO MANICONGO SOB OLHAR DOS SABERES ESTÉTICO-CORPÓREOS
Ao longo desta seção, apresentaremos uma análise do álbum Mundo Manicongo. Dramas, Danças e Afroreps, do artista Rincon Sapiência, relacionando-o com os estudos em torno dos saberes estético-corpóreos evidenciados anteriormente e que se apresentam como uma interessante chave analítica para pensar identidades negras contemporâneas e emancipadas.
Em recente conversa no podcast Rap, falando, Rincon Sapiência destacou as motivações que o levaram a explorar novas musicalidades e ritmos contidos no disco em questão. Segundo o cantor:
Na época do Galanga Livre, o meu show tinha uma cadência e num certo momento ficava muito quente e acabava, deixava as pessoas com a energia lá em cima. E aí com o tempo eu comecei a entender que eu poderia transformar esse momento de dança, de calor, na energia do trabalho em si. Então o Mundo Manicongo, veio como um trampo mais quente, com batidas mais dançantes e mais cheias de balanço. (RINCON..., 2021)
Com bases nas afirmações de Rincon, podemos perceber uma perspectiva do artista em buscar evocar uma musicalidade mais dançante no intuito de dar protagonismo às manifestações corpóreas dos jovens negros e negras presentes em seus shows, promovendo assim um congraçamento de exaltação e libertação de corpos negros na coletividade. Nessa linha de raciocínio, podemos inferir que essas características podem ser observadas em duas músicas que antecedem o disco Mundo Manicongo, são elas: Afro Rep e Mete Dança.
A faixa Afro Rep, lançada em 2017, caracteriza-se inicialmente pela levada rítmica na qual o funk é a principal referência. Porém, o que potencializou ainda mais essa canção foi o videoclipe gravado em plano sequência no qual a dança se sobressai como o principal expoente expressivo de sua arte1. Tamanha foi essa potência, que a coreográfica realizada no videoclipe foi denominada de “Passinho Manicongo”, e viralizou entre os anos de 2017 e 2018. No clipe, além do próprio artista, os protagonistas são mulheres e homens negros de diferentes fenótipos, corpos e identidades visuais que celebram sua vivência e liberdade através da dança. Essa música, que além da produção de saberes através da condição imagética, possui também uma letra de cunho crítico e reflexivo, dialoga diretamente com as formas de referencial identitário e transgressão aos padrões.
Já na música Mete Dança do ano de 2018, nota-se a centralidade do discurso em torno da corporeidade negra através da dança. No videoclipe da música são apresentados elementos visuais mais carregados de simbologias e significados, a começar pelos cenários em que o clipe transita com imagens do cotidiano do bairro que acompanha Rincon interagindo e transitando por um salão de beleza, realizando diversas trocas de roupa, adentrando numa quadra de escola de samba, até chegar num espaço aberto onde se encontra um paredão de caixas de som. Todos esses cenários são intercalados por frames de um dançarino negro e duas dançarinas negras de diferentes corpos e estéticas. Ressalta-se que todos os dançarinos não executam uma coreografia específica, mas dançam de forma livre, espontânea, demostrando a expressividade e subjetividade que a arte nos permite evocar.
Além dos ícones identitários comuns à comunidade negra apresentados no vídeo, um determinado trecho da letra proferida por Rincon nos possibilitar ampliar o entendimento das intenções do autor com o álbum Manicongo, bem como reflete diretamente a noção de saberes estético-corpóreos. Vejamos o excerto abaixo:
Sempre solto, faço eles se amarrarem A milhão que nem Ferrari, McLaren Esse é o Mundo Manicongo, não reparem Faço luta e faço bundas balançarem. (SAPIÊNCIA, 2018) Aqui, o cantor dá a tônica que iria embasar o Mundo Manicongo ao contemplar a celebração e luta como ferramentas conjuntas no combate das desigualdades sociais e raciais. Essa visão contemporânea de se posicionar, vai aoencontro da proposta dos saberes estético-corpóreos que busca olhar para corporeidade negra com o intuito de ampliar as noções em torno da construção da identidade negra em diferentes âmbitos socioculturais. Nas palavras de Nilma Gomes (2017, p. 79), “esses saberes dizem respeito não somente à estética da arte, mas à estética como forma de sentir o mundo, como corporeidade, como forma de viver o corpo no mundo”. Esse sentir e viver o corpo no mundo encontra-se também numa constante disputa em garantir a existência e visibilidade desse corpo negro na sociedade.
Nesse aspecto, Joyce Silva (2014) corrobora essas discussões ao discorrer sobre os tensionamentos entre a corporeidade negra e os grupos historicamente dominantes que buscaram rotular e codificar esses corpos sob um único viés. De acordo com a autora:
Podemos observar na cultura a presença de um discurso para difusão dos ideais da política dominante. Sua ação por sobre o corpo, atravessa a razão, chega-nos até a corporeidade influenciando visões, percepções, ações e comportamentos dos sujeitos. A atitude corporal da população negra, foi então, atrelada ao malandro e a boemia, aos jeitinhos e ao roubo, a preguiça e à falta de instrução. (SILVA, 2014, p. 268)
Esses estereótipos negativos foram e são difundidos a partir da perspectiva do grupo hierárquico e socialmente dominante que passa a rotular como o outro aquele que difere de si e de sua cultura, tida como o padrão normativo. Essas estruturas refletem as relações de poder que perpassam as identidades sociais. No artigo A produção social da identidade e da diferença, Tomaz Tadeu da Silva (2000, p. 81), define que “a identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído”. A afirmação de uma identidade por si só já está negando outras identidades, pautando-se assim em estabelecer fronteiras entre os grupos.
Embora essa noção central de identidade seja importante, sabemos que com o advento da globalização, passamos a evidenciar uma “crise das identidades” como bem pontou Stuart Hall (2006), ao indicar que as conexões culturais, cada vez mais promoviam a quebra das identidades nacionais estáveis e homogêneas. De acordo com Hall (2006, p. 9), essas transformações sociais e culturais estariam “fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais”. Essa descentralização dos sujeitos e das identidades sociais que hoje encontram-se num estágio mais avançado de identidades múltiplas e heterogêneas conectadas sobretudo através das mídias sociais. Nesse sentido, veremos que as escolhas estéticas e o discurso que perpassam algumas das músicas do disco de Rincon são fruto dessas identidades culturais desterritorializadas.
A capacidade de fazer os sujeitos refletirem ao mesmo tempo em que dançam, é algo que poucos conseguem fazer atualmente e Rincon Sapiência executa essa arte com maestria. Essa tônica que foi possível perceber nas composições musicais mais recentes do cantor, talvez represente o fio condutor que conecta e permeia o disco Mundo Manicongo. Com base nesses pressupostos, as duas primeiras canções que discutiremos encontram-se próximas sob a mesma esteira comunicativa em torno da relação com a África, porém com formas distintas de acionar essas conexões africanas. Trata-se das músicas Meu Ritmo e Onda Sabor e Cor.
A primeira, foi apresentada no início deste artigo justamente a partir dos pontos em que o cantor pauta a ancestralidade posta em prática através da dança, como forma de exercer e materializar a cultura no corpo negro. No início da letra, Rincon já nos informa a intenção de seu som a destacar que se trata de demonstrar como o continente africano não está tão longe de nós, e podemos perceber essa herança através das práticas cotidianas de sociabilidade negra. Esses fluxos e refluxos da ancestralidade africana são perceptíveis nos versos “pegada funk tipo Guimê, mas o meu tambor vem da Guiné”. Aqui reforça-se a presença africana demarcando a construção ancestral que orienta o ritmo dançante imprimido por esse som, o que nos leva a dissertar sobre alguns aspectos referente ao videoclipe.
Da mesma forma, a estética do clipe busca imprimir referenciais de uma africanidade posta em jogo, mas, sob uma ótica contemporânea que nos dá indícios de uma visão quase afrofuturista dessa presença. O cenário em que se desenrola o clipe apresenta uma mercearia na qual encontram-se Rincon, os funcionários negros (empacotadores e serviços gerais) e o caixa branco. Em determinando ponto, um indivíduo que representa essa africanidade, se materializa e começa a dançar fazendo com que todos os presentes ali se transformem (roupas, penteados e adereços) e acabem transformando o ambiente em uma pista de dança. Compreendo que esse contexto do clipe possa representar a libertação dos corpos negros regulados identificados na figura dos funcionários, ao estágio de emancipação através da celebração coletiva acionando o canto e a dança. Do mesmo modo, demonstra que essa emancipação se deu pelo saber oriundo da ancestralidade, pois “assim como somos um corpo no mundo, somos sujeitos históricos e corpóreos no mundo” (GOMES,2017, p. 94); coaduna-se, nesse sentido, com a africanidade que acompanha o corpo negro em suas ressignificações de projeções sociais.
Sobre a segunda música, Onda Sabor e Cor, podemos inferir que o conteúdo de sua letra nos transporta para uma imersão sensorial de África na qual o corpo é o principal responsável por estabelecer esta ponte.
Elegante, pesadona e fina A ginga dela libera endorfina O som e o corpo, é o certo que combina África mãe, matéria é tão prima. (SAPIÊNCIA, 2019) As sensações, sabores e memórias estão evidenciados no trecho acima, estão intimamente conectadas as ações corpóreas que se apresentam em conexão com a dança dando a entender que a liberdade do corpo que se movimenta possibilita potencializar essa compreensão de África. Tanto no aspecto de conexão e pertencimento identitário, como no aspecto musical através da influência de ritmos e sonoridades, essa imersão se intensifica quando aliada ao videoclipe da música que foi gravado em Cabo Verde e apresenta o cantor em contato com o cotidiano descrito na letra, demonstrando assim um retrato dessa africanidade que vem evocando de maneira natural sem estereótipos e visões generalizantes. E, assim, dando protagonismo ao local e as pessoas que dão sentido aquele ambiente.
A ênfase na tensão e regulação dos corpos negros também pode ser explorada nessa canção no ponto em que o cantor comunica que o corpo que dança, se expressa e denota sua característica libertária frente à concepção naturalizada de se manter esses corpos negros cerceados de sua liberdade. Nesse aspecto, ao enfatizar a dança como uma forma de posicionar-se de maneira potente contra os estereótipos raciais, demonstra como os saberes emancipatórios podem ser sistematizados e enunciados de forma objetiva e impactante nas estruturais sociais.
Essa transgressão através da corporeidade negra dialoga diretamente com a concepção epistemológica proposta pelo historiador Luiz Antonio Simas (2021) em torno do que vem chamando de “garrinchamentos”, que diz respeitos às articulações de saberes e estratégias alternativas aos padrões normativos. Em recente entrevista em que dissertou sobre o assunto, Simas enfatizou que:
Eu realmente acredito numa sabedoria que é engendrada pela escassez, nas ruas, que o tempo todo vai recriando sentidos de mundo. E que está presente no samba, nas rodas de rima, no rap, no baile, nos corpos que dançam, que celebram, que transgridem, portanto, essa certa normatividade que nos acomete o tempo todo. (SIMAS, 2021)
O autor também vem destacando em seus escritos e livros essa normatividade brasileira sob a definição de “Brasil oficial” e tudo que transgride essa oficialidade representaria a brasilidade através desses saberes e dos corpos que se expressam e que assim apresentam outros brasis mais inclusivos, culturalmente diversos e potentes. Nessa percepção, podemos dissertar algumas linhas sobre a faixa seguinte do álbum de Rincon, a música Arrastão.
Esta música, reflete boa parte das concepções apontadas por Simas (2021), visto que o videoclipe por si representa o movimento dos sujeitos nas ruas promovendo encontros e celebrações coletivas. O protagonismo das imagens se divide entre os jovens negros e negras de diferentes perfis estéticos ocupando a rua, cenário onde as potências corpóreas se manifestam de forma livre e conjunta sob uma sonoridade dançante e ritmada.
Essa batida que faz dançar advém do encontro rítmico e sonoro que compõe a música, pois essa faixa do disco contém a participação da banda Àttooxxá que mistura o pagodão baiano com técnicas eletrônicas de diferentes gêneros. Esse fator representa amplitude musical de Rincon, que de certa forma transcende o universo da música rap homogênea, e busca ampliar o leque de gêneros musicais com colaborações distintas e que potencializem a sonoridade desejada. Com isso, a conexão Rincon e Àttooxxá cristaliza o caráter dançante do disco sem deixar de marcar a valorização dos saberes culturais produzidos a partir da coletividade dos corpos negros nos momentos de existência e resistência.
E resistindo no temporal Nossa arte é atemporal E vai além desse carnaval Mais respeito, menos confete Nóis diverte porque adverte Esse senso comum, nosso tiro É tirar sorrisos entre dramas, tipo Mussum Então pode balançar o bumbum. (SAPIÊNCIA, 2019) No trecho acima, podemos notar as características que contemplam a canção ao chamar atenção para a historicidade dos movimentos culturais, sociais artísticos produzidos por negros e negras em diferentes arenas de luta. E reforça o poder de agenciar as adversidades de forma inventiva dando como resposta a identidade negra em sua excelência. No decorrer da letra, o cantor aponta essas estratégias através da estética do cabelo crespo e demais ícones identitários como forma de enfatizar a beleza e afirmação dessas identidades. Ao mesmo ponto que fornece mecanismo à juventude negra no combate aos cenários sociais que o racismo busca constantemente regular em nossa sociedade.
Essas contribuições que referendam a autoestima e estimulam a juventude negra a tensionar as regulações existentes em nossa sociedade, encontram-se presentes na última música a ser apresentada nesta seção. Nela, veremos esses enunciados carregados de saberes emancipatórios e que culminam na produção de identidades negras potentes e desestabilizadoras frente ao status quo das relações de poder enraizadas na sociedade.
Sobre essa noção de subjetividades desestabilizadoras, Nilma Gomes (2017) busca definir essa característica proveniente das juventudes negras a partir da atuação do Movimento Negro. Para trilhar essa linha de investigação, a autora indaga:
Os sabres construídos pela comunidade negra e sistematizados pelo Movimento Negro e as estratégias de emancipação sociorracial conseguem ativas em nós a capacidade de espanto e indignação que sustente uma nova teoria e uma nova prática inconformista, desestabilizadora e rebeldes? (GOMES, 2017, p. 119)
No desenrolar de suas análises, a autora conclui que essas iniciativas vêm ocorrendo com todas as limitações e avanços impostos pela sociedade. Dentro dessa perspectiva, evidenciamos a condição do disco de Rincon Sapiência enquanto um artefato cultural que sistematiza esses saberes oriundo de experiências negras e, por conseguinte, dissemina essas práticas através da identidade audiovisual. Ponto que Gomes (2017, p. 129) enfatiza ao destacar que “um dos elementos centrais da ação transformadora é a conjugação entre imagens e subjetividades desestabilizadora”. Ou seja, identidades negras carregadas de simbologias e saberes com capacidade de reivindicar e ocupar espaços de sociabilidade com protagonismo.
Nessas concepções é que podemos observar as possíveis contribuições da música Primeiro Volante. A música caracterizada como de natureza verso livre2, dialoga diretamente com o protagonismo negro no sentido estético e social o que pode ser compreendido como uma forma transgressora aos padrões estéticos e classistas que se perpetuam ainda na contemporaneidade. Esta relação fica perceptível no trecho abaixo:
Seguir o padrão é cilada Ninguém segue moda, mas cria ela Quebrada revela uma passarela A cada rolê uma desfilada. (SAPIÊNCIA, 2019) Seguindo nessa tônica, o cantor ainda aponta a perspectiva dos grupos dominantes quando essas subjetividades desestabilizadoras acionam suas identidades raciais, e passam a se afirmar com autoridade. Ao enfatizar que o corpo que se remexe ao som do tambor e com sorriso largo é algo revoltante, percebemos como a percepção do outro reluta em aceitar o corpo emancipado em seus saberes, Distanciando-se assim do contexto histórico em que se encontravam na condição de vítimas, oprimidas por políticas públicas e sociais que visavam o apagamento cultural e a negação de suas existências (MUNANGA, 2015). Em relação ao videoclipe da música, podemos evidenciar Rincon transitando pelo seu bairro, realizando movimentos de dança juntamente com outras pessoas negras reforçando novamente o espaço da rua como local de encontro e congraçamento dos corpos negros em seu pleno estado emancipatório.
REFERÊNCIAS
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Notas